Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
319/00.0GFLLE-E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
PRESSUPOSTOS
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA DA PENA
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 11/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADA A REVISÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO


1. O condenado AA, inconformado com o acórdão proferido em 1ª Instância a ....08.2011 no âmbito de Processo Comum Coletivo e que condenou o arguido como coautor material de 21 crimes de burla qualificada em cúmulo jurídico a 18 (dezoito) anos e 6 meses de prisão efetiva, decisão que foi confirmada pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de ... em ... .11.2014, e que reduziu a pena para 16 (dezasseis) anos de prisão efetiva, veio interpor recurso de revisão invocando o disposto no art. 449.º, n.º 1, al. d) do CPP, concluindo nos seguintes termos:

«i. O presente Recurso interpõe-se da decisão proferida em primeira instância a ... .08.2011 no âmbito de Processo Comum Colectivo em que o Arguido foi condenado como co-autor material de 21 crimes de burla qualificada em cúmulo jurídico a 18 (dezoito) anos e 6 meses de prisão efectiva;

ii. Decisão essa que foi confirmada por Acórdão proferido pelo douto Tribunal da Relação de …… em … .11.2014, tendo sido reduzida a pena aplicada ao aqui recorrente para 16 (dezasseis) anos de prisão efectiva;

iii. Sucede, porém, que, não obstante tal decisão ter já transitado em julgado conforme Certidão que se junta e se dá por integralmente reproduzida como Doc.1, a sua subsistência é suscetível de abalar clamorosamente o Princípio da Justiça Material e, por conseguinte, aqui se recorre através deste expediente extraordinário, por força até do disposto no nº 6 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa;

iv. O ora Arguido foi condenado pela prática como co-autor material de 16 (dezasseis) crimes de burla qualificada, p.e.p pelos artigos 217º e 218º, nº2, alíneaa) do Código Penal relativamente às lesadas “Farcópia”, “Talhão”, “Marvis”, “Simarlar”, “Cooperativa de Olivicultores do Redondo”, “Faropeixe”, “Garrancho”, “Saul Caeiro & Carapinha”, “Hiber”, “J. Silva & Filho”, “Mercadafrica”, “Riberoleos”, “Confeitaria Nova Lisboa”, “Martins & Costa”, “Adega Cooperativa da Merceana” e “Caterplus”, na pena de 4 (quatro) anos de prisão para cada um deles;

v. Foi igualmente condenado pela prática como co-autor material de 3 (três) crimes de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º e 218º, nº2, alíneas a) e b) do Código Penal relativamente às lesadas “Enchicarnes”, “Salsicharia Leitão” e “Sonaz”, na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão para cada um deles;

vi. Foi condenado como co-autor material de 1 (um) crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º e 218º, nº2, alínea a) do Código Penal relativamente à lesada “BB”, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão;

vii. E, foi condenado como co-autor de 1(um) crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217º e 218º, nº 2, alíneas a) e b) do Código Penal, quanto à lesada “Frigoríficos de Vigo”, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão;

viii. Ora, salvo o devido respeito, não resulta do processo prova suficiente da intervenção do Arguido em todas estas situações pelas quais foi condenado;

ix. Desde logo, na Sentença proferida pelo Tribunal de Círculo Judicial de ... consta, nos factos provados que (ponto. 1.1 e ss) “Em data não apurada, mas anterior a … de Janeiro de 2000, pelo menos os arguidos CC e AA decidiram unir esforços para encomendarem e receberem grandes quantidades de mercadorias a fornecedores, que não seriam pagas, e obter avultados lucros resultantes da venda dessas mercadorias a terceiros seus conhecidos a preços bastante abaixo do mercado.”

x. Dando assim a entender que os Arguidos CC e AA eram o cérebro de todas as operações;

xi. O que é certo é que, de acordo com as Declarações prestadas a .../03/2011 pelo Sr. Inspector da Polícia Judiciária DD, que foi o Inspector que acompanhou as investigações desde o início, quem estava r detrás de toda a actividade era o Arguido EE;

xii. Veja-se Declarações gravadas em áudio (20110330150606_186311_64705.wma) “O EE () era o cérebro e o angariador destes indivíduos, portanto era o indivíduo que estava por detrás de toda esta actividade. Ele fazia-se acompanhar de colaboradores da sua confiança. Entre esses colaboradores, contam-se o CC, o AA () no fundo era o indivíduo que definia a estratégia de actividade das empresas, quer a constituição e aquisição, quer na constituição das empresas, quer nas aberturas das contas bancárias, coordenava a celebração dos contratos de assinatura que, na altura, foram efectuados com redes móveis telefónicas, telefones que eram depois distribuídos pelos colaboradores da empresa, das empresas, e ainda estava por detrás também da celebração dos contratos de mútuo, com as sociedades financeiras, para a aquisição de viaturas. “

xiii. E, “Depois temos o AA () Este AA, portanto, era empregado da Paulo JV Miguel e surge também como sócio da Topalimentar. Isto antes de ele antes de ceder as quotas depois a uma a um individuo do sexo feminino chamado FF uma vez que, depois com o decurso da atividade ilícita da Topalimentar houve a necessidade de fazer uma espécie de um branqueamento ao nível do pacto social e, nessa perspetiva, também foi montado na altura um armazém no …, em …, e um escritório em ….  As quotas foram cedidas a essa brasileira, FF, e depois, a posteriori, uma vez que a mesma partiu para o Brasil, foi delegado, foi efetuado, elaborada uma procuração em nome de um outro indivíduo, salvo erro dos Açores, de nome GG.”

xiv. Em todas as suas Declarações os restantes Arguidos são elencados como meros colaboradores de EE;

xv. Chegando mesmo o Sr. Inspector a afirmar que “DD que está sempre à margem desta situação, como convinha sempre à margem em termos formais, mas que, entretanto, digamos por interceções telefónicas... salvo erro, as interceções telefónicas visaram alvos como o DD, o CC, o HH, salvo erro o II, e são aqueles que eu me recordo assim vagamente.

Portanto, e nessas interceções telefónicas, se consultarem os apensos onde constam as transcrições, portanto, as conversas transcritas, com certeza que ficam elucidados sobre a atividade da empresa, portanto, e intervenção de cada um destes indivíduos”;

xvi. Ora, dos factos dados como provados com relevância para o presente Recurso Extraordinário, importa distinguir os factos que descrevem o modo de execução comum a todos os crimes e a participação efectiva ou função do Arguido, ora Recorrente, no plano criminoso;

xvii. Dos pontos 1.1 a 1.17 dos factos dados como provados e da prova que compõe todo o processo, salvo o devido respeito, ficou por esclarecer quando, como, quais, a quem e em que circunstâncias eram feitas as alegadas encomendas, bem como ficou por esclarecer o modo, a quem e por que preço eram vendidas as mercadorias que vinham dessas mesmas encomendas;

xviii. Por outro lado, também ficou por apurar se efectivamente os valores obtidos com as alegadas “burlas” eram repartidos por todos os Arguidos e, concretamente, que valores obteve o Arguido, aqui Recorrente e em que proporção lhe eram devidos;

xix. Os factos dados como provados nos pontos 1.258 e 1.259 tratam-se de factos meramente especulativos, sem qualquer sustentação factual, pois tão pouco se sabe quais os montantes ou valores que couberam a cada um dos Arguidos ou como estes fizeram uso desses mesmos montantes ou valores;

xx. Não se nega aqui a intervenção do Recorrente em determinadas situações, mas o Tribunal recorrido condena AA pela execução global e comum de todos os crimes, não especificando a participação ou função do Arguido em cada um deles, sendo que em determinadas situações a intervenção do aqui Recorrente é inexistente;

xxi. Resumidamente, na formação da sua convicção, o Tribunal recorrido atendeu aos meios de prova disponíveis considerando as declarações de um dos Arguidos, os depoimentos das testemunhas e os documentos juntos aos autos, tudo relacionado com as regras da experiência comum;

xxii. O Tribunal recorrido conclui, genericamente e transversalmente a todas as sociedades lesadas, pela existência das encomendas, entrega de mercadorias, emissão e entrega de cheques e a sua devolução por falta de provisão;

xxiii. Quanto à empresa “Farcópia, Equipamentos de Escritório, Lda.”, nos factos dados como provados o Tribunal recorrido nenhuma referência faz à intervenção específica do aqui Recorrente;

xxiv. Referindo-se apenas “A mercadoria entregue teve como destino a sua utilização pelos arguidos na seda da “Distribuições Paulo J. V. Miguel – Comércio Geral” (facto 1.26);

xxv. Quanto à empresa “Talhão – Sociedade de Vinhos, S.A.”, também não se vislumbra onde se pode concluir pela intervenção do ora Recorrente;

xxvi. Quanto às empresas lesadas “Marvis, Materiais de Construção, Lda”, “Simarlar, Representações Têxteis, Lda.”, “Enchicarnes, Carnes Alentejanas, Lda.”, “Salsicharia Leitão & Filhos”, “Cooperativa de Olivicultores do Redondo, CRL.”, “José Batista T. Garrancho”, “Saul Caeiro & Carapinha, Lda.”, “Hiber – Comercialização de Vens de Consumo, Lda.”, “J. Silva & Filho, S.A.”, “Mercadafrica – Comércio de Exportação e Importação, Lda.”, ”Confeitaria Nova Lisboa”, “Adega Cooperativa da Merceana, C. R.L”, também nenhuma referência é feita pelo Tribunal recorrido quanto à intervenção específica do ora aqui Recorrente;

xxvii. Há situações como a da empresa “Garrancho” em que não existe prova de que a mercadoria tenha sido, efetivamente, entregue;

xxviii. Outras, em que nenhuma prova é feita de que foi o Recorrente que fez, pessoalmente, as encomendas;

xxix. Bem como, outras em que não existe qualquer prova de que tenha sido, efetivamente, o Recorrente a preencher ou entregar os cheques;

xxx. Assim, não se consegue compreender como o Arguido aqui Recorrente é condenado pela prática de burlas a estas empresas lesadas se o seu nome concretamente só aparece, por exemplo, quanto às empresas “Faropeixe – Comércio Geral de Peixe, Lda.”, “Sonaz, Comércio e Indústria de Azeites, Lda.”, “Riberóleos”, “Martins & Costa, S.A.”, “Caterplus, Comercialização e Distribuição de Produtos de Consumo, Lda.”;

xxxi. Até por que, nestas situações concretas o Tribunal recorrido dá como provado que AA ou estava presente ou fez a encomenda ou entregou os cheques;

xxxii. Ao contrário das restantes em que ficou por especificar quem é que concreta e pessoalmente fazia as encomendas;

xxxiii. Quem é que concreta e pessoalmente recebia e vendia os produtos;

xxxiv. Em nenhuma destas empresas, houve prova de que fosse o aqui Recorrente que vendeu os produtos e ficou com os lucros para repartir pelos restantes Arguidos;

xxxv. Deste modo, surge a questão: se o Tribunal recorrido conseguiu determinar em que situações concretas o Recorrente teve intervenção, através da prova produzida, por que razão o condena em situações em que pura e simplesmente desconhece ou é incerto quem concretamente levou a cabo as negociações, pagamentos e entregas?

xxxvi. Deveria, assim, ter aqui funcionado o princípio penal de “in dubio pro reo”;

xxxvii. Pois que, se nenhuma Testemunha referiu a intervenção de AA nas empresas elencadas aqui nos pontos 25 a 28, se nenhuma prova documental foi feita, ou qualquer outra prova existiu deveria ter-se decidido “pro reo”;

xxxviii. Por outro lado, em relação à empresa Topalimentar, AA foi convidado por EE a integrar esta empresa, pois era o EE quem conhecia à data os sócios da empresa;

xxxix. AA, aceitou e passou a ser sócio da empresa Topalimentar por Escritura outorgada em 21/03/2001, conforme Documento que se junta e se dá por integralmente reproduzido como Doc.2;

xl. Sendo certo que AA foi sócio desta empresa mas nunca foi Gerente;

xli. E foi sócio até ao momento em que EE o contactou para ir ceder as suas quotas a uma cidadã brasileira de nome FF (facto igualmente corroborado pelas Declarações prestadas pelo Sr. Inspector da Polícia Judiciária DD);

xlii. Tal cessão de quotas foi feita ainda no ano de 2001 em data que o aqui Recorrente já não sabe precisar mas, foi feita no ..º Cartório Notarial de …….. (na altura);

xliii. Desconhece-se a razão pela qual essa Cessão não foi registada;

xliv. Nunca foi o Arguido AA que assumiu o controlo da sociedade Topalimentar, mas sim o Arguido EE;

xlv. Mais, quanto à lesada “BB”, em que o aqui Recorrente também foi condenado, não se vislumbra de todo a sua actuação neste caso concreto;

xlvi. Referindo assim a decisão do Tribunal recorrido que foi o Arguido HH quem contactou a lesada e entregou o cheque;

xlvii. Em momento algum há intervenção do aqui Recorrente nesta situação;

xlviii. Por fim, quanto às empresas lesadas, note-se atentamente que, quanto à empresa “Frigoríficos de Vigo, S.A.” as encomendas foram feitas antes de o Arguido AA ser sequer sócio da mesma;

xlix. Veja-se o Doc. 2 que se junta, confrontando-se com os factos dados como provados nos pontos 1.237 a 1.252;

l. A empresa recebe um fax a apresentar a Topalimentar em Fevereiro de 2001, a primeira fatura emitida é de … de Fevereiro de 2001, o primeiro pagamento é feito com cheque datado de … de Março de 2001 que é devolvido a … de Março de 2001, a segunda encomenda é feita em … de Março de 2001 com as respectivas faturas emitidas e, AA só celebra a Escritura de Cessão de Quotas em … de Março de 2001;

li. Existe aqui uma clara má apreciação da prova produzida;

lii. Pois que, todo este processo se desenrola antes de o aqui Recorrente ter qualquer relação com a empresa Topalimentar;

liii. O que significa claramente que EE tinha já conhecimento da empresa Topalimentar e usava-a a seu bom proveito muito antes sequer dos Arguidos AA e JJ fazerem parte da mesma;

liv. Daí que, nesta situação, apenas se faça referência à intervenção direta de EE, que usou um nome falso para o efeito “KK”;

lv. Acrescenta-se ainda que, foi no ano de 2001, que o aqui Recorrente refez a sua vida, longe de quaisquer atividades criminosas;

lvi. Salvo o devido respeito, os factos dados como provados não demonstram, nem permitem concluir sem qualquer dúvida razoável, pela responsabilidade penal do Arguido, ora Recorrente, como coautor material, pela prática dos crimes que lhe são imputados;

lvii. Pois que, não é possível demonstrar e concluir que o Recorrente tomou parte direta na execução de todos os crimes por que vem condenado;

lviii. Senão vejamos:

lix. A teoria da comparticipação criminosa distingue os autores dos participantes de um crime;

lx. A responsabilidade dos participantes está sujeita ao princípio da acessoriedade limitada, isto é, o autor tem que, pelo menos, dolosamente dar início à execução de um facto típico e ilícito para que os participantes nesse facto possam ser punidos;

lxi. Por sua vez, o nº 2 do artigo 27º do Código Penal contempla uma atenuação especial da pena para o cúmplice;

lxii. O Código Penal consagra um conceito restritivo de autor, de acordo com o qual a autoria é sempre aferida pela realização do tipo legal de crime, sendo que a participação só é punível por força da extensão dos tipos da Parte Especial, uma vez que os participantes não realizam actos de execução do tipo legal;

lxiii. Tendo em conta a teoria do domínio do facto, é autor quem tem o domínio do facto, ou seja, quem tem nas mãos o poder de fazer gorar a execução do crime ou de a fazer prosseguir até à consumação;

lxiv. Contudo, para que haja concordância do conceito de autor ao tipo legal de crime, como exige o conceito restritivo de autor e não se viole o Princípio da Tipicidade, é necessário que o agente exerça o domínio positivo do facto típico;

lxv. Isto é, não basta a simples detenção do domínio do facto nem o exercício do domínio negativo do facto;

lxvi. Quem tem o domínio do facto, mas não chega a exercê-lo positivamente, dando, pelo menos, início à execução do crime, não chega a ser autor de nenhum crime;

lxvii. Por sua vez, dispõe o artigo 26º do Código Penal quanto à co-autoria de um crime que, quem “() tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros ()” é punido como autor;

lxviii. Isto significa que, o coautor tem sempre de tomar parte direta na execução do crime e tem de haver um acordo ou decisão conjunta sobre o plano de execução do crime;

lxix. Por outro lado, importa distinguir o co-autor do cúmplice, pois que o cúmplice pode desempenhar uma tarefa durante a fase de execução do crime mas não tem o domínio funcional do facto, pois ao contrário do co-autor, o cúmplice não pode fazer gorar a consumação do crime através da simples omissão do seu contributo, uma vez que esse contributo não é indispensável nem é essencial, à realização do crime;

lxx. Enquanto que o co-autor presta, nos termos do plano, um contributo essencial, indispensável à realização do plano criminoso, e precisamente em virtude dessa indispensabilidade da sua tarefa, ele pode fazer gorar a consumação do crime pela simples omissão dessa tarefa;

lxxi. Assim, não parece ser suficiente afirmar, para o preenchimento dos elementos da co-autoria, que, da prova carreada para os autos, relativamente à empresa “DISTRIBUIÇÕES PAULO J. V. MIGUEL – COMÉRCIO GERAL”, que o Arguido aqui Recorrente, foi identificado como estando à frente dessa empresa ou que estava presente na sua actividade e que efectou as várias encomendas às sociedades lesadas;

lxxii. Teria, então, de se demonstrar quais as funções concretamente executadas pelo Recorrente de acordo com o plano criminoso, que permitam concluir que este tomou parte direta na execução dos crimes, o que, comprovadamente, não sucede;

lxxiii. Ora, a condenação como co-autor de alguém que só teve intervenção em actos preparatórios viola o Princípio da Legalidade;

lxxiv. Não basta afirmar que os Arguidos engendraram um plano ou que houve um qualquer acordo;

lxxv. Para que se verifique a co-autoria, exige-se a realização do tipo pelos vários co-autores e o carácter parcelar do contributo de cada um deles.

lxxvi. É o “acordo” sobre o plano de execução do facto, que inclui a divisão de tarefas, que limita a co-autoria;

lxxvii. Sendo certo que, desconhecemos porque nada é dito ou provado pelo Tribunal recorrido, quais as tarefas concretamente atribuídas ao Arguido, ora Recorrente quanto a todas as lesadas, ou mesmo qual o acordo sobre os actos praticados;

lxxviii. Pois que o facto de engendrarem um plano não constitui qualquer crime mas, tão somente a sua execução, subsume o tipo de crime;

lxxix. Comprovadamente, dos factos dados como provados não ficou demonstrado que o Arguido, ora Recorrente, efetuou e/ou recebeu encomendas, emitiu ou entregou cheques ou letras, ou prometeu o pagamento por qualquer outro meio, ou mesmo se efectuou algum transporte de encomendas e, mesmo que o tivesse realizado, demonstrar-se-ia essencial descrever quando, como, por que meio, em que circunstâncias e quais as mercadorias transportadas, o que, claramente, não sucede;

lxxx. Importa ainda referir que a certeza e segurança jurídicas não coadunam com afirmações meramente conclusivas e sem qualquer sustentação fáctica;

lxxxi. Não basta dizer que o ora Recorrente transportou e vendeu mercadoria obtida às custas das lesadas para potenciais compradores, sem concretizar factualmente tal acção;

lxxxii. O mesmo se aplica quando se diz que o ora Recorrente esteve presente nas instalações das empresas a negociar com os fornecedores, a incutir-lhes confiança necessária, para que estes aceitassem entregar mercadorias sem desconfiar das suas verdadeiras intenções;

lxxxiii. Salienta-se que a expressão “pelo menos” muitas vezes usada pelo Tribunal recorrido resulta indefinida e suscita demasiadas dúvidas;

lxxxiv. Assim como, quando se afirma que as mercadorias entregues seriam posteriormente vendidas, contudo, sem distinguir como, quando, a quem, por que preço, ou quando se afirma que tais valores eram repartidos pelos Arguidos, de forma não apurada, ou seja, na realidade, desconhecem-se os valores obtidos pelo Arguido ora Recorrente ou mesmo se obteve alguns valores;

lxxxv. Em suma, não se demonstra que o Arguido, ora Recorrente, tomou parte direta na execução de todos os crimes que lhe são imputados, nem que executou os crimes juntamente com os outros agentes, ou mesmo que existia um acordo e quais as tarefas atribuídas a cada um, pois conforme já aqui se mencionou, a existência de um possível acordo ou pacto criminoso por si só não determina qualquer responsabilidade penal;

lxxxvi. Por fim, os factos descritos e dados como provados não demonstram nem permitem concluir que o ora Recorrente tenha realizado actos de execução do tipo;

lxxxvii. Conforme já aqui se referiu, dos factos dados como provados não ficou demonstrado que o Recorrente efectou e/ou recebeu encomendas, emitiu ou entregou cheques ou letras, ou prometeu pagamento por qualquer outro meio, ou mesmo se efetuou algum transporte de encomendas e mesmo que o tivesse realizado demonstrar-se-ia essencial descrever quando, como, por que meio, em que circunstâncias e quais as mercadorias transportadas, de onde e para onde, de quem e para quem, etc., o que comprovadamente não sucede;

lxxxviii. Os actos descritos e imputados ao ora Recorrente, mesmo não concordando com a interpretação que lhes é dada, não se revestem de essencialidade ou indispensabilidade para a execução de um suposto plano criminoso;

lxxxix. Assim, mesmo que se considerasse uma qualquer atuação criminosa do Recorrente, sempre se dirá que, em última análise, haveria participação e não autoria, o que terá como consequência nos termos do nº 2 do artigo 27º do Código Penal, uma atenuação especial;

xc. Conclui-se assim, que, por não se encontrarem preenchidos todos os elementos da co-autoria, o aqui Recorrente não pode ser responsabilizado penalmente como co-autor pelos crimes que vem condenado;

xci. Andou mal o Tribunal recorrido e em virtude disso, a matéria de facto dada como provada é insuficiente para a decisão de direito;

xcii. Segundo o Tribunal recorrido, quando ocorreu o fornecimento de mercadorias por parte das sociedades lesadas sem que os Arguidos tivessem procedido ao respectivo pagamento, deu-se o preenchimento dos elementos objetivos do tipo;

xciii. Portanto, terão existido disposições patrimoniais e, também, prejuízos que decorreram de um engano que, astuciosamente, foi provocado pelos Arguidos;

xciv. Atuando com essa intenção (dolosamente), os Arguidos praticaram todos os actos tendentes a fazer com que os fornecedores lhes entregassem bens que sabiam não terem meios de pagar, para posteriormente, à custa desses fornecedores venderem esses bens com o lucro da aquisição dos mesmos sem contrapartida;

xcv. Havendo assim, prejuízo para os fornecedores, pois que, ficaram sem as mercadorias e sem receber os valores correspondente;

xcvi. De referir que, segundo o Tribunal recorrido, os Arguidos dedicavam-se, habitualmente, à prática reiterada da burla e daí retiravam benefícios pessoais, sendo os prejuízos verificados de valor consideravelmente elevados;

xcvii. Critérios estes que justificam o tipo qualificativo;

xcviii. Ora, dispõe o artigo 217º do Código Penal no seu nº 1 que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à pratica de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial ()”;

xcix. Da disposição legal, pode concluir-se a qualificação da burla como um crime comum;

c. Assim como, quanto aos demais elementos do tipo existe uma relação causal em cadeia, sendo cada elemento consequência do anterior e causa do posterior;

ci. Assim sendo, o tipo legal do artigo 217º impõe uma conduta astuciosa ou utilização de um meio enganoso por parte do agente como elemento causador da efetiva situação de erro ou engano em que se encontra a vítima;

cii. E, por sua vez, que seja em função e determinado nesse erro ou engano que a vítima pratica actos tendentes a causarem um prejuízo patrimonial;

ciii. Por fim, da prática de tais actos tem de resultar efetivos prejuízos patrimoniais;

civ. Ora, entende o Tribunal recorrido que o preenchimento dos elementos objetivos do tipo se deu com o fornecimento das mercadorias por parte das sociedades lesadas, sem que os Arguidos tenham procedido ao respetivo pagamento;

cv. Todavia, duvidas permanecem quanto à determinação do momento em que se deu o prejuízo, pois que, o prejuízo dá-se, não com a entrega das mercadorias, mas sim com o não pagamento das mesmas;

cvi. Ou seja, se as mercadorias tivessem efetivamente sido pagas não se verificaria qualquer ação criminosa;

cvii. Não podemos considerar que todas as sociedades que, por variadas razões, entram em incumprimento para com os seus credores cometem o crime de burla;

cviii. Mais, considerando que a maioria dos lesados são sociedades comerciais, com vasta experiência na área e o risco inerente, aceite na prática generalizada das transações comerciais, não terão os lesados contribuído decisivamente par ao seu próprio empobrecimento?!

cix. Competia-lhes zelar pelos seus interesses e acautelar os seus bens, o que, claramente, não sucedeu;

cx. Inclusivamente, algumas sociedades lesadas, mesmo após a devolução dos cheques por falta provisão, aceitaram e efetuaram novos fornecimentos de mercadorias, correndo e aceitando o risco inerente ao negócio;

cxi. Em suma, o prejuízo deu-se com o não pagamento e não com a entrega das mercadorias;

cxii. Acrescenta-se que não se trata de um delito intencional, mas sim de resultado;

cxiii. Nesse sentido não são os ditos lesados que causam o seu próprio prejuízo, mas sim os alegados Arguidos;

cxiv. Logo, não se encontram preenchidos os tipos de burla pelos quais o Arguido e aqui Recorrente vem condenado;

cxv. Por sua vez, quanto à qualificação do crime não basta alegar que os Arguidos se dedicavam habitualmente à prática reiterada da burla e daí retiravam benefícios pessoais, porquanto nada foi apurado quanto aos valores obtidos pelo Arguido aqui Recorrente ou mesmo se obteve alguns valores;

cxvi. Da leitura dos factos, dados como provados, podemos concluir que o Tribunal recorrido bastou-se pelo uso de formulações generalizadas e meramente conclusivas, sem qualquer sustentação factual;

cxvii. Não basta afirmar que o Arguido engendrou conjuntamente com outros um pacto criminoso ou que ordenou o envio de faxes, ou que encomendou e recebeu mercadorias das sociedades lesadas ou que as transportou, etc.;

cxviii. Importa fundamentar tais conclusões por meio de factos concretos e não pelo uso de fórmulas genéricas;

cxix. A decisão judicial proferida tem de ser clara e transparente, tanto sobre a matéria de facto como também da matéria de direito, e da aplicação da medida concreta da pena;

cxx. Assim, a decisão de que aqui se recorre extraordinariamente reconduziu-se a remissões, conceitos vagos e genéricos, violando deste modo o disposto na alínea a), do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, pelo que a sentença deve ser Revista e substituída por outra;

cxxi. Em suma, o Recorrente é condenado numa pena de prisão de 16 (dezasseis) anos em cúmulo jurídico, quando o seu nome é mencionado raras vezes em toda a decisão;

cxxii. Ainda quanto à violação do Princípio “in dubio pro reo” claramente se pode concluir que as conclusões alcançadas pelo Tribunal recorrido não são sustentadas por quaisquer factos concretos, o que seria suficiente para suscitar duvida seria e honesta no espírito do julgador;

cxxiii. Conclui-se deste modo, pela violação deste princípio constitucional previsto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e 410º do Código de Processo Penal;

cxxiv. O crime continuado tem a sua definição prevista no nº 2 do artigo 30º do Código Penal: “Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bom jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”;

cxxv. Isto é, há crime continuado quando, através de várias ações criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propícia à repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente;

cxxvi. Deste modo, aplicado à situação do aqui Recorrente, verificam-se os elementos que permitem enquadrar a alegada atividade criminosa num único crime continuado;

cxxvii. Senão vejamos:

cxxviii. O Arguido vem acusado de 21 (vinte e um) crimes de burla qualificada;

cxxix. A forma de atuar, pela qual os Arguidos vêm condenados, reveste homogeneidade no modo de execução, tendo sido usado o mesmo procedimento e condutas em desfavor das vítimas;

cxxx. Houve um único dolo;

cxxxi. O bem jurídico alegadamente lesado foi sempre o mesmo: o património;

cxxxii. Por último, verifica-se, de igual modo a persistência da situação exterior, na medida em que perdurou no tempo o meio criado para realizar o primeiro delito, nomeadamente, as empresas de fachada;

cxxxiii. Posto isto, dever-se-á considerar que as ações imputadas ao Arguido aqui Recorrente subsumem a prática de um crime continuado, o que implicará que o agente seja punido com a pena correspondente à conduta mais grave que integra a continuação, conforme prevê o nº 1 do artigo 79º do Código Penal;

cxxxiv. Mesmo que assim não fosse, o que se concebe e se equaciona como hipótese académica e por mera cautela de patrocínio, haverá que atender à medida concreta da pena aplicada ao aqui Recorrente;

cxxxv. Assim, no que respeita à medida concreta da pena, o limite máximo fixa-se de acordo com a culpa do agente;

cxxxvi. O limite mínimo situa-se de acordo com as exigências de prevenção geral;

cxxxvii. Assim sendo, reduz-se a amplitude da moldura abstractamente associada ao tipo penal em causa;

cxxxviii. Por conseguinte, a pena concreta é achada considerando as exigências de prevenção especial e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, disponham a favor ou contra o Arguido;

cxxxix. É o que resulta da conjugação dos artigos 40º e 71º do Código Penal;

cxl. Quanto ao crime de burla qualificada temos uma moldura penal abstracta de 2 a 8 anos de prisão;

cxli. A dignidade da pessoa humana, princípio previsto no artigo 40º do Código Penal, impede que a pena ultrapasse a culpa;

cxlii. A culpa afere-se pelas circunstâncias de facto que rodearam a conduta do Arguido;

cxliii. Ora, dos factos dados como provados e da prova produzida não se descreve qualquer acção do ora Recorrente que permita concluir que tomou parte direta na execução de todos os crimes;

cxliv. Assim, as exigências de prevenção geral não se fazem sentir com particular acuidade neste domínio;

cxlv. Deste modo, as necessidades de prevenção geral não justificam que o limite mínimo vá para além daquele que é descrito pela moldura abstrata: 2 anos de prisão;

cxlvi. De salientar também que os factos ocorreram há quase 20 anos;

cxlvii. O Recorrente não é um individuo, na sua essência, com personalidade delituosa;

cxlviii. É um sujeito respeitador, cumpridor, honesto, trabalhador e responsável;

cxlix. É um cidadão exemplar no seio laboral, entre os amigos e com a família;

cl. O Arguido não tem uma tendência inata para o crime;

cli. Pelo que não se impõem maiores considerações de prevenção especial;

clii. Considere-se ainda que não se conhecem maiores prejuízos sofridos pelas sociedades lesadas para além dos descritos nos autos, sendo certo que os prejuízos da grande parte das ditas sociedades não são de valor elevado;

cliii. Tão pouco foi apurado como eram repartidos os valores obtidos, portanto, desconhece-se se o ora Recorrente participou efectivamente de tais valores e em que medida;

cliv. Pelo exposto, o Tribunal recorrido não considerou todos os elementos necessários para determinação da medida concreta da pena, nomeadamente, os fins de prevenção geral e de prevenção especial e a observação do Princípio da Culpa;

clv. Violou assim o Tribunal recorrido ao condenar o Recorrente em 16 anos de pena de prisão efectiva o disposto nos artigos 40º, 71º, 217º e 218º todos do Código Penal;

clvi. Nestes termos deverão ser reponderados todos os elementos necessários para determinação da medida concreta da pena e, em consequência, ser o Recorrente condenado pelo mínimo legal;

clvii. O Recorrente encontra-se a cumprir pena de prisão desde …/03/2017;

clviii. Os crimes pelo qual foi condenado foram cometidos entre os anos de 2000 e 2001, isto é, há já quase 20 anos;

clix. Sendo certo que, durante estes quase 20 anos, entre a prática dos ilícitos e o actual cumprimento da pena de prisão imputada ao Recorrente, este tem vindo sempre a fazer a sua vida como qualquer pessoa comum sem mais se ter envolvido em qualquer actividade criminosa;

clx. Daí que era um indivíduo sem qualquer inscrição no seu Registo Criminal até à data da condenação pelos crimes dos quais cumpre actualmente pena de prisão;

clxi. Antes de dar entrada no Estabelecimento Prisional, tinha a sua vida estruturada, trabalhava, tinha uma família, enfim, nunca fez da actividade criminosa seu modo de vida;

clxii. Para tanto veja-se o Relatório dos Serviços de Reinserção Social de 08 de Outubro de 2010, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido como Doc.3, que demonstra a humildade da educação do Recorrente, começando a trabalhar desde cedo face às dificuldades económicas sentidas, sempre na área agrícola, tendo inclusive cumprido serviço militar, bem como o Plano Individual de Readaptação de 05 de Janeiro de 2018;

clxiii. Todavia denota que no ano de 1999 que o Recorrente querente se divorciou da sua esposa da altura e, sentiu de modo muito negativo tal separação, atravessando na verdade um período difícil e instável, sendo neste período da sua vida que terá, em associação com outros indivíduos, cometido os crimes pelos quais, actualmente, e tantos anos depois, cumpre pena de prisão;

clxiv. Saliente-se ainda que, não foi o Recorrente o impulsionador da actividade criminosa que desenvolveu, tendo um seu superior “no comando”, não obstante não descurar a sua própria responsabilidade, possuindo até uma Declaração de EE na disposição de testemunhar a seu favor, conforme documento que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido como Doc. 4;

clxv. “Superior hierárquico” esse que, mesmo coordenando todas as operações, foi condenado à pena única de apenas 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão efectiva, o que, comparativamente com a pena aplicada ao aqui Recorrente é bastante inferior;

clxvi. Note-se que, a aplicação de uma pena de prisão de 16 anos atendendo ao tipo de ilícito aqui em causa cujo bem jurídico a salvaguardar é o património, não pode deixar de se considerar desmesurada;

clxvii. E, por outro lado, as vítimas dos crimes em causa não tiveram uma intervenção activa no processo, nem tão pouco exigiram qualquer indemnização ou assumiram a condição de lesados;

clxviii. Apesar de tudo, desde 2001 que o Recorrente refez a sua vida, com uma nova companheira e uma nova família;

clxix. Pelo que, é evidente que o Recorrente teve, de facto, um período infeliz na sua vida, mas um período relativamente pequeno, embora tenha plena consciência dos estragos causados pela sua actuação durante tal lapso de tempo;

clxx. Não obstante ser condenado pela prática de 21 crimes de burla qualificada, o proveito retirado pelo Recorrente foi exíguo, sendo certo e socialmente evidente que, nunca viveu de luxos, nem teve uma vida economicamente facilitada;

clxxi. Pois, antes de ser conduzido ao Estabelecimento Prisional vivia apenas do trabalho do dia-a-dia no sector agrícola que lhe permitia satisfazer as necessidades diárias, sobrevivendo dos rendimentos obtidos com a exploração de uma quinta agrícola (arrendada) onde vivia com a sua companheira na zona do … (…) e da comercialização de … e …;

clxxii. O Recorrente não tem quaisquer bens imóveis em seu nome, nem contas bancárias com saldos avultados;

clxxiii. Sendo que, a única ligação do Recorrente à prática criminosa remonta aos autos de condenação em que se encontra em reclusão e a um outro processo que o Arguido terá sido condenado pelo mesmo crime, cometido no mesmo lapso de tempo, mas que, culminou com pena de prisão suspensa na execução;

clxxiv. Note-se que, neste mesmo Relatório de 08 de Outubro de 2010 os serviços de reinserção social foram de parecer que “Em caso de eventual condenação, consideramos que o Arguido revela capacidade e apresenta total disponibilidade para a execução de uma sanção penal de índole probatória.”;

clxxv. Ora, não se pode deixar de considerar que a aplicação de uma pena de prisão tão pesada ao Recorrente irá destruir-lhe a sua vida de forma irreversível;

clxxvi. E isto porque o Arguido ao longo de toda a sua vida e, excepcionando o lapso de tempo entre os anos de 2000 e 2001, teve um trajecto pessoal de vida regular e sem incidentes;

clxxvii. Contudo, este não foi o entendimento do douto Tribunal de …. (na altura) nem do Venerando Tribunal da Relação de …;

clxxviii. Pelo que, conforme já foi mencionado o Recorrente encontra-se a cumprir pena de prisão efectiva;

clxxix. O Recorrente tem, nesta data, 65 anos de idade;

clxxx. Deixou para trás uma vida estável, ainda que humilde e de poucas, mas essenciais, possibilidades;

clxxxi. A sua companheira, com graves problemas de saúde, agora sozinha, tem de zelar pela quinta onde ambos viviam e da qual paga, com muita dificuldade, uma renda mensal de € 500,00;

clxxxii. Era o aqui Recorrente quem impulsionava o sustento de ambos “agarrando-se” ao trabalho que havia e zelando pela sua sobrevivência;

clxxxiii. Daí que era da produção que faziam na quinta onde viviam que tiravam o seu sustento, ali mantendo e criando muitos animais (desde cães a porcos, cabras, ovelhas, etc.) e onde cultivavam produtos agrícolas para comercializar advindos dos seus esforços de cultivo;

clxxxiv. Era desta actividade que retiravam o seu sustento;

clxxxv. Uma actividade simples, rural e pacata;

clxxxvi. O aqui Recorrente e a sua companheira não tinham qualquer outro rendimento;

clxxxvii. Sendo que, actualmente é a sua companheira, ainda que no estado de saúde em que se encontra, que procura manter a situação dos animais (visto não conseguir desfazer-se deles de um momento para o outro) e da quinta, não tendo trabalho ou outro sustento, vivendo da ajuda de familiares, amigos e vizinhos, tomando ainda conta de uma irmã que se encontra em doença de fase terminal;

clxxxviii. A situação de reclusão do Recorrente desfez por completo a vida modesta mas sustentável que mantinha em liberdade, conjuntamente com a sua companheira;

clxxxix. Sempre longe do mundo do crime;

cxc. Sendo que, bem sabendo o Recorrente o que sucede “cá fora” com a sua ausência se sente imensamente culpado, consciencializando-se e penalizando-se pela sua actuação criminosa a cada dia que passa;

cxci. Certo é também que o Recorrente já tem alguma idade, o que inerentemente lhe trouxe alguns problemas de saúde, que se agravam com os nervos e condição depreciativa que tem sobre o seu comportamento aquando do cometimento dos crimes de que foi condenado;

cxcii. A sua companheira, sem a sua ajuda não conseguirá sobreviver por muito mais tempo nestas condições, sendo forçada a desfazer-se dos animais que se encontram na quinta e a deixar a própria quinta que, a muito custo, foi construindo e mantendo com o seu companheiro e que, ao longo dos últimos anos, tem sido a sua fonte de rendimento e de sobrevivência;

cxciii. Por outro lado, os problemas de saúde da sua companheira deixam o Recorrente demasiadamente nervoso e preocupado o que o faz chorar compulsivamente todos os dias;

cxciv. O Recorrente tem perfeita consciência das consequências dos actos que praticou e penaliza-se diariamente por isso;

cxcv. Face à sua idade e experiência de vida não padece de qualquer pensamento ou sentimento imaturo relativamente aos prejuízos causados;

cxcvi. Sendo que, não pretende desculpabilizar-se ou descartar a sua responsabilidade, mas sim que lhe possa ser dada uma segunda oportunidade, não de recomeçar mas de retomar a vida pacata e longe do crime que tem levado nos últimos anos;

cxcvii. Note-se que, cumprindo na íntegra o tempo de reclusão, o Recorrente sairá do Estabelecimento Prisional com 80 anos de idade;

cxcviii. Que vida o esperará cá fora nessa altura?! Sem trabalho, quiçá sem condições de subsistência, com uma vida que, até à data estava estruturada em pleno e que, de um momento para o outro, se perde e se desmorona;

cxcix. Certo é - e não será isso que aqui se pretende pôr em causa - que a situação de reclusão do Recorrente se deve, única e exclusivamente pela prática dos seus actos, mas não lhe foi nunca dada a oportunidade de se desculpabilizar ou de responder pelos únicos crimes que cometeu de outro modo que não a pena de prisão, e o que só veio a suceder 16 anos após o seu cometimento;

cc. O Recorrente está já há bastante tempo reintegrado em absoluto na sociedade;

cci. Não sendo de prever que cometerá qualquer outro crime, visto que esteve quase 20 anos sem o fazer;

ccii. Atendendo-se ainda à sua personalidade, também não será de prever que o Arguido não conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável;

cciii. Para além do mais o Recorrente revela um grande sentido crítico quando à sua conduta criminosa, assumindo os seus actos e revelando-se responsável;

cciv. Durante este período de reclusão o Recorrente esteve sempre a trabalhar no Estabelecimento Prisional não tendo até à data qualquer processo disciplinar ou mau comportamento;

ccv. Sendo tudo quanto se acaba de expor, seguramente confirmado através do processo prisional do peticionante.

Deve, assim a Sentença proferida em primeira instância e confirmada em segunda instância ser revista, Assim se cumprindo a legalidade e a Justiça!

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá ser dado provimento ao presente Recurso Extraordinário de Revisão, sendo o mesmo admitido por estar em tempo e devidamente fundamentado e, por conseguinte, revogada a decisão recorrida e proferida nova decisão favorável ao Recorrente.

PROVA:

TESTEMUNHAL, a notificar:

- EE, Arguido nos presentes autos e neles melhor identificado;

- LL, residente na Rua …, nº .., 0000-000 ….,….

Junta: 4 Documentos».

2. Na 1ª Instância o Ministério Público pronunciou-se no sentido que deve ser negada a revisão, nos seguintes termos:

«II – Da resposta propriamente dita

Com o devido respeito, entende-se que o recorrente carece de total razão na sua petição.

Nos termos do nº1 do artigo 449º do Código de Processo Penal, os fundamentos e a admissibilidade do recurso dependem da verificação de alguma das circunstâncias descritas nas alíneas a) a g) do nº1 daquele preceito legal.

Ora, conforme resulta da peça de recurso, no seu ponto 8. (…) não resulta do processo prova suficiente da intervenção do Arguido em todas estas situações pelas quais foi condenado.

E no ponto 19. (…) Por outro lado, também ficou por apurar se efetivamente os valores obtidos com as alegadas “burlas” eram repartidos por todos os Arguidos e, concretamente, que valores obteve o Arguido, aqui Recorrente e em que proporção lhe eram devidos.

No ponto 20. O arguido mantém o mesmo tema descrito em 19.

No demais peticionado em sede de recurso de revisão, o arguido expõe a sua posição sobre os factos por si praticados e da coautoria e bem assim dos elementos integradores do tipo de crime de burla.

Mais refere, que foi violado o princípio do in dubio pro reo e que os factos que lhe são imputados se inserem num único crime cometido na forma continuada.

Pelo que, conclui, a pena de 16 anos em que foi condenado não se mostra ajustada.

Por último, descreve factos atinentes à sua vida pessoal.

Em sede de diligências probatórias foram inquiridos na qualidade de testemunhas EE e LL, companheira do arguido, as quais não tinham conhecimento dos factos.

Como sobressai dos motivos apresentados pelo arguido, nenhum deles se insere ou corresponde ao conteúdo de uma das alíneas do nº1 do artigo 449º do Código de Processo Penal.

Antes sim, resulta inequívoco de que o arguido pretende novamente discutir a matéria de facto e de direito, a qual já se mostra transitada em julgado após decisão do tribunal de segunda instância, lugar onde, por competência própria, foi reapreciada a matéria de facto e de direito.

Com o devido respeito, o recurso de revisão não corresponde a um novo grau de jurisdição de recurso, visando apenas, nos casos a que se alude no nº1 do artigo 449º do Código de Processo Penal, repor uma situação de acordo com as novas circunstâncias que agora se conhecem, cujo escopo último é a realização da justiça.

Mesmo extrapolando as palavras do arguido, e subentendendo-se que os depoimentos destas testemunhas poderiam demonstrar a existência de novos factos que determinassem graves dúvidas sobre a justiça da condenação, tal não sucedeu dado que as mesmas não conheciam os factos.

Assim, não existem fundamentos para a revisão nem para a admissibilidade da mesma.

I - Conclusões

1. O arguido não invoca nenhum motivo válido para a fundamentação e admissibilidade da revisão, dado que não enuncia nenhuma das circunstâncias a que alude o nº1 do artigo 449º do Código de Processo Penal;

2. Aliás, como resulta da peça de recurso, o arguido pretende novamente discutir a matéria de facto e de direito, apesar de transitada em julgado a decisão proferida pela segunda instância;

3. Os depoimentos das testemunhas não trouxeram quaisquer factos novos, uma vez que as mesmas desconheciam em absoluto os factos a que foram inquiridos e imputados ao arguido.

Face ao exposto, entende-se que deverá ser improcedente o recurso e negada a revisão, fazendo-se JUSTIÇA».

4. O Mmº Juiz prestou a informação a que alude o art. 454º, do CPP, nos seguintes termos:

«1. AA, arguido nos autos, veio interpor recurso extraordinário de revisão de acórdão, com fundamento no facto de terem sido descobertos novos meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitam graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Para o efeito, alegou, em síntese, o seguinte:

- Não resulta do processo prova suficiente da intervenção do arguido em todas estas situações pelas quais foi condenado [ponto viii das conclusões];

- Dos pontos 1.1 a 1.17 dos factos dados como provados e da prova que compõe todo o processo, salvo o devido respeito, ficou por esclarecer quando, como, quais, a quem e em que circunstâncias eram feitas as alegadas encomendas, bem como ficou por esclarecer o modo, a quem e por que preço eram vendidas as mercadorias que vinham dessas mesmas encomendas [ponto xvii das conclusões];

- Por outro lado, também ficou por apurar se efetivamente os valores obtidos com as alegadas “burlas” eram repartidos por todos os Arguidos e, concretamente, que valores obteve o Arguido, aqui Recorrente e em que proporção lhe eram devidos [ponto xviii das conclusões];

- Os factos dados como provados nos pontos 1.258 e 1.259 tratam-se de factos meramente especulativos, sem qualquer sustentação factual, pois tão pouco se sabe quais os montantes ou valores que couberam a cada um dos Arguidos ou como estes fizeram uso desses mesmos montantes ou valores [ponto xix das conclusões];

Não se nega aqui a intervenção do Recorrente em determinadas situações, mas o Tribunal recorrido condena AA pela execução global e comum de todos os crimes, não especificando a participação ou função do arguido em cada um deles, sendo que em determinadas situações a intervenção do aqui recorrente é inexistente [ponto xx das conclusões];

- Existe uma clara má apreciação da prova produzida [ponto li. das conclusões];

- Não se demonstra que o arguido, ora recorrente, tomou parte direta na execução de todos os crimes que lhe são imputados, nem que executou os crimes juntamente com os outros agentes, ou mesmo que existia um acordo e quais as tarefas atribuídas a cada um, pois conforme já aqui se mencionou, a existência de um possível acordo ou pacto criminoso por si só não determina qualquer responsabilidade penal [ponto lxxxv das conclusões];

- Mesmo que se considerasse uma qualquer atuação criminosa do recorrente, sempre se dirá que, em última análise, haveria participação e não autoria, o que terá como consequência nos termos do nº 2 do artigo 27º do Código Penal, uma atenuação especial [ponto lxxxix das conclusões];

- Conclui-se assim, que, por não se encontrarem preenchidos todos os elementos da coautoria, o aqui recorrente não pode ser responsabilizado penalmente como coautor pelos crimes que vem condenado [ponto xc das conclusões];

- Não se encontram preenchidos os tipos de burla pelos quais o Arguido e aqui recorrente vem condenado [ponto cxiv das conclusões];

- Por sua vez, quanto à qualificação do crime não basta alegar que os Arguidos se dedicavam habitualmente à prática reiterada da burla e daí retiravam benefícios pessoais, porquanto nada foi apurado quanto aos valores obtidos pelo arguido aqui recorrente ou mesmo se obteve alguns valores [ponto cxv das conclusões];

- A decisão de que aqui se recorre extraordinariamente reconduziu-se a remissões, conceitos vagos e genéricos, violando deste modo o disposto na alínea a), do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, pelo que a sentença deve ser Revista e substituída por outra [ponto cxx. das conclusões];

- O tribunal violou o princípio in dúbio pro reo [ponto cxxii. das conclusões];

- Dever-se-á considerar que as ações imputadas ao Arguido aqui recorrente subsumem a prática de um crime continuado, o que implicará que o agente seja punido com a pena correspondente à conduta mais grave que integra a continuação, conforme prevê o nº 1 do artigo 79º do Código Penal [ponto cxxxiii. das conclusões];

- O Tribunal recorrido não considerou todos os elementos necessários para determinação da medida concreta da pena, nomeadamente, os fins de prevenção geral e de prevenção especial e a observação do Princípio da Culpa [ponto cliv. das conclusões];

- Violou assim o Tribunal recorrido ao condenar o Recorrente em 16 anos de pena de prisão efetiva o disposto nos artigos 40º, 71º, 217º e 218º todos do Código Penal [ponto clv. das conclusões];

- Cumprindo na íntegra o tempo de reclusão, o recorrente sairá do Estabelecimento Prisional com 80 anos de idade [ponto cxcvii. das conclusões];

O Ministério Público, na resposta que antecede, pugna pela improcedência do recurso, alegando, em síntese, que:

- Nenhum dos motivos apresentados pelo arguido para sustentar o recurso se insere ou corresponde ao conteúdo de uma das alíneas do nº1 do artigo 449º do Código de Processo Penal.

- O arguido pretende novamente discutir a matéria de facto e de direito, a qual já se mostra transitada em julgado após decisão do tribunal de segunda instância, lugar onde, por competência própria, foi reapreciada a matéria de facto e de direito.

O recurso de revisão não corresponde a um novo grau de jurisdição de recurso, visando apenas, nos casos a que se alude no nº1 do artigo 449º do Código de Processo Penal, repor uma situação de acordo com as novas circunstâncias que agora se conhecem, cujo escopo último é a realização da justiça.

Mesmo extrapolando as palavras do arguido, e subentendendo-se que os depoimentos das testemunhas poderiam demonstrar a existência de novos factos que determinassem graves dúvidas sobre a justiça da condenação, tal não sucedeu dado que as mesmas não conheciam os factos.

2. Cumpre apreciar nos termos e para os efeitos da informação a que alude o artigo 454º, do Código de Processo Penal.

Conforme referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de julho de 2013[1], «[s]ão factos novos ou novos meios de prova os que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação, e que, sendo desconhecidos da jurisdição no ato do julgamento, permitam suscitar graves dúvidas acerca da culpabilidade do condenado; para efeito de fundamentar o pedido de revisão de decisões penais, os meios de prova são novos quando não foram administrados e valorados no processo que conduziu à condenação, embora não fossem ou pudessem não ser ignorados pelo arguido no momento em que o julgamento teve lugar (cf, por todos, v. g., o acórdão do STJ, de 7 de Setembro de 2011, proc. 286/06.7PAPTM, com exaustiva indicação de jurisprudência)» e «[n]ovos meios de prova são aqueles que são processualmente novos, ou seja, que não foram apresentados no processo da condenação. Se foram apresentados no processo da condenação, não são novos no sentido da “novidade” que está subjacente na definição da alínea d) no nº 1 do artigo 449º do CPP.».

Prossegue o mesmo acórdão: «[a] novidade, neste sentido, refere-se a meio de prova -seja pessoal, documental ou outro, e não ao resultado da produção. No caso de provas pessoais, a “novidade” refere-se à testemunha na sua identidade e individualidade e não ao resultado da prova efetivamente produzida. Por isso, afastada a novidade por o meio de prova pessoal ter sido apresentado e administrado no processo da condenação, é indiferente a circunstância de a pessoa indicada ter, legitimamente, recusado prestar declarações no exercício de um direito processual que lhe assiste», pois «[d]e outro modo, criar-se-iam disfunções sérias contra a estabilidade e segurança do caso julgado, abrindo caminho a possíveis estratégias probatórias moldadas por uma atitude própria da influência da “teoria dos jogos” no processo, se existisse a possibilidade de revisão, ou mesmo de pedir a revisão, quando, como atitude ou estratégia, o silêncio não tivesse contribuído para os resultados probatórias pretendidos.».

«O recurso extraordinário não pode ser usado para proceder a um rejulgamento com base nos mesmos factos e nas mesmas provas que determinaram a convicção do tribunal sobre a culpabilidade».

Esta jurisprudência continua, na atualidade, a ser reafirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, como se pode aferir pelos acórdãos proferidos no ano de 2020, sobre o tema em causa, nomeadamente o acórdão de 5 de fevereiro de 2020 [2] , em cujo sumário se pode ler:

I - Encontra-se sedimentada uma interpretação mais restritiva da norma contida no artigo 449.º, n.º 1, alínea d), do CPP, mais adequada à natureza extraordinária do recurso de revisão e à busca da verdade material e ao consequente dever de lealdade processual que impende sobre todos os sujeitos processuais, sendo novos tão só os factos e/ou meios de prova que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser considerados pelo tribunal.

II - Condição de procedência do recurso de revisão com fundamento na descoberta de novos factos ou novos meios de prova é, por um lado, a novidade desses factos ou meios de prova e, por outro, que tais factos ou meios de prova provoquem graves dúvidas (não apenas quaisquer dúvidas) sobre a justiça da condenação, o que significa que essas dúvidas devem ser de grau superior ao que é normalmente requerido para a absolvição do arguido em julgamento.

III - A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada; há de elevar-se do patamar da mera existência, para atingir a vertente da “gravidade” que baste, tendo os novos factos e/ou meios de prova de assumir qualificativo correlativo da “gravidade” da dúvida, sendo que por se estar perante um recurso extraordinário, o mesmo tem de ser avalizado rigorosamente, não podendo, nem devendo, vulgarizar-se, pelo que haverá que encará-lo sob o prisma das graves dúvidas, e como graves só podem ser as que atinjam profundamente um julgado passado.

No mesmo sentido, se pronuncia o acórdão do STJ de 15 de janeiro de 2020 [3] , em cujo sumário se pode ler:

V. Na revisão pro reo prevista na al. d) do art. 449.º, n.º 1, do CPP, o êxito do recurso fica dependente de “se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per se ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”,

Como bem assinala Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, p. 1610, nota 3: “Não se trata de uma revisão do julgado, mas de um julgado novo sobre novos elementos.” Sendo também de referir que “com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada”- nº 3 do referido artº 449º;

VI. A dúvida relevante para a revisão de sentença tem, pois, de ser qualificada. E, se assim é, logo se vê, que não será uma indiferenciada “nova prova” ou um inconsequente “novo facto” que, por si só, terão virtualidade para abalar a estabilidade, razoavelmente reclamada, por uma decisão judicial transitada.

VII. "Apenas são novos os factos e os meios de prova desconhecidos pelo recorrente ao tempo do julgamento e que não tenham podido ser apresentados e apreciados na decisão. Se, ao invés, o recorrente conhecia os factos e os meios de prova ao tempo do julgamento e os podia apresentar, tais factos e meios de prova não relevam para efeitos de revisão de sentença" (Acórdão de 05/01/2011; Processo 968/06.3TAVLG.S1 - 3a);

IX. O recurso de revisão como recurso extraordinário não é um recurso ordinário, nem sucedâneo deste, pelo que perante provas legalmente permitidas e valoradas que serviram de suporte a determinada decisão, transitada em julgado, não pode infirmar-se essa decisão com fundamento nessas mesmas provas, ou em outras que não sejam legalmente tempestivas.

X. O recurso de revisão como recurso extraordinário, é um recurso apertis verbis, isso é destina-se a apreciar perante taxativos pressupostos legalmente consentidos, que sejam invocados como fundamento do recurso extraordinário e na sua apreciação, possam conduzir à revisão do julgado, se dessa apreciação, de forma séria e grave sobressair a injustiça da condenação revidenda;

XI. Por outro lado, não incumbe ao recurso extraordinário de revisão justificar a decisão revidenda ou rememorar a prova e respetiva valoração que conduziu à condenação, pois esta vale pelo que declara na respetiva fundamentação.

Aplicando as considerações ora tecidas ao caso concreto, verifica-se, que o arguido, conforme resulta na síntese acima exposta, esteia o fundamento do recurso de revisão, em três vetores:

- Má apreciação da prova produzida, dado que a mesma violou o princípio in dubio pro reo;

- Errada qualificação jurídica dos factos considerados provados;

- Medida da pena é excessiva;

Para prova do primeiro vetor, arrolou como testemunha EE, que esteve presente no julgamento como coarguido do recorrente, tendo exercido o sido o direito ao silêncio;

Para prova do terceiro vetor arrolou como testemunha LL, que se tornou companheira do arguido após o período temporal considerado pelo acórdão, ou seja, sem razão de ciência sobre os factos que a decisão objeto do presente recurso considerou provados.

Do que fica dito, resulta que não estamos perante novos factos (o objeto do processo mantém-se), nem perante novos meios de prova no que se refere à testemunha EE, dado que a mesma esteve presente em julgamento, na qualidade de coarguido, tendo, então decidido não prestar declarações [cf. ata de julgamento de …-03-2011, junta a fls. 4011 a fls. 4019, constando o segmento revelante a fls. 4017].

Relativamente à testemunha LL, estamos perante o meio de prova novo, dado que não depôs em julgamento.

Porém, há que ter presente a alínea d), do n.º 1, do artigo 449º, do Código Processo Penal, além da apresentação de «novos factos ou meios de prova» exige que «suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação», no sentido de que tais factos «devem sustentar uma carga valorativa, antes ignorada, capaz de pôr a descoberto a grave injustiça de que o recorrente foi vítima, a ser aferida à luz de uma constatação sem esforço»[4][4].

Ora, se atentarmos nos argumentos aduzidos pelo tribunal da primeira instância para formar a sua convicção constatamos que as declarações do então coarguido EE, não foi tidas em consideração, dado que, como ficou dito, o mesmo decidiu exercer o seu direito ao silêncio.

O facto de o mesmo agora, na qualidade de testemunha, ter prestado declarações não tem a virtualidade para pôr em causa o sedimento fáctico em que assentou a condenação do recorrente ou para afetar de forma relevante os fundamentos em que se estribou a convicção do Tribunal, dado que a testemunha, com exceção da empresa “Top Alimentar” não revelou razão de ciência sobre as demais sociedades em que o recorrente sustenta não ser coautor dos crimes pelos quais veio a ser condenado.

E mesmo relativamente à “Top Alimentar”, EE não confirmou o alegado pelo recorrente nos artigos 40º a 46º do recurso.

Com efeito, declarou que o recorrente lhe disse que era o dono da “Top Alimentar” e declarou desconhecer se essa empresa contactou a sociedade “Frigoríficos Vigo, S.A”, ou seja, negou a sua participação nos factos dados como provados sob os números 1.237 a 1.245, mas não negou ou afirmou a participação do recorrente na prática desses factos.

Ora, a decisão ora objeto do recurso de revisão apurou os factos dados como provados relativamente à “Topalimentar”, nomeadamente no que se refere a quem controlava a empresa, com recurso o teor das transcrições das escutas telefónicas e ao resultado das perceções diretas dos inspetores da Polícia Judiciária que procederam às vigilâncias, além da prova documental [cf. página 104 do acórdão, correspondente à folha 4515 dos autos]. Dito de outra forma, a prova que serviu para formar a convicção do tribunal apresenta uma solidez que não resulta abalada pelo depoimento da testemunha EE e, muito menos, pelo depoimento da testemunha LL, a qual, como ficou dito, não revelou razão de ciência sobre os factos que a decisão objeto do presente recurso considerou provados.

Quanto ao mais, trata-se apenas atacar a convicção do tribunal face à provas produzidas em julgamento, sustentando que as mesmas eram insuficientes para levar à condenação do arguido relativamente a alguns do crimes pelos quais veio a ser condenado.

Ora, como acima referido o recurso extraordinário não pode ser usado para proceder a um rejulgamento com base nos mesmos factos e nas mesmas provas que determinaram a convicção do tribunal sobre a culpabilidade».

Relativamente ao segundo vetor, o da errada qualificação jurídica, também não colhe, dado que o tribunal fundamentou porque considerou existir concurso efetivo entre os crimes de burla pelos quais o arguido veio a ser condenado e por que considerou estar preenchida a circunstância qualificativa modo de vida [cf. fls. 115 a fls. 120 do acórdão].

Acresce que, que o ora recorrente, também já havia recorrido, de facto e de direito, para o Tribunal da Relação de …, o qual, com exceção da pena única, que diminuiu, considerou improcedente o recurso. Ou seja, julgou improcedente as alegações de errada apreciação da prova e de errada qualificação jurídica.

Por último, quanto à medida da pena, cumpre referir o disposto no artigo 449º, n.º 3, do Código de Processo penal, nos termos do qual: com fundamento na alínea d) do n.-° 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

Ora, sendo insubsistentes, pelas razões aduzidas, os fundamentos invocados pelo arguido no que se refere na descoberta de novos factos ou novos meios de prova que provoquem graves dúvidas (não apenas quaisquer dúvidas) sobre a justiça da condenação, a medida da pena concretamente aplicada passa a ser o único fim do recurso de revisão e, como tal, vale o disposto no artigo 449º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Diga-se, por último, que embora se compreenda que o arguido se sinta prejudicado na medida da pena relativamente a outros coarguidos, há que notar que os outros coarguidos que acabaram por ser condenados em penas únicas mais baixas, recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual deu parcial provimento relativamente a tal questão.

Ora o arguido AA, não logrou interpor recurso tempestivo para o Supremo Tribunal de Justiça, com vista à redução da pena única, pelo que, neste aspeto, vale trazer à colação o brocardo latino, que consta do Código Justiano: “sibi imputet si, quod saepius cogitare poterat et evitare, non fecit" .

3. Por todo o exposto, informa-se que os fundamentos invocados deverão conduzir à denegação da revisão.

Porém, V. Exas. melhor decidirão sobre o mérito do pedido.

Notifique-se e, após, remeta-se o presente apenso [acompanhado do suporte áudio das declarações prestadas pelas testemunhas EE e LL e de cópia da ata de julgamento de 16-03-2011, junta a fls. 4011 a fls. 4019, constando o segmento revelante de fls. 4017] ao Supremo Tribunal de Justiça, para apreciação do respetivo mérito.

5. A Exmª PGA junto deste Tribunal emitiu Parecer, no sentido que deve ser negada a revisão, nos seguintes termos: (transcrição)

1. Nos autos supra referenciados, por acórdão proferido em sede de tribunal de primeira instância, datado de ….08.2011, o arguido AA foi condenado como co-autor material de 21 crimes de burla qualificada na pena única de 18 anos e 6 meses de prisão .

Tal decisão foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de …, datado de ….11.2014, tendo sido reduzida a medida da pena única para 16 anos de prisão .

2. O arguido vem interpor o presente recurso de revisão, com os fundamentos constantes do recurso.

O tribunal de 1ª instância procedeu à audição das testemunhas indicadas pelo ora recorrente.

O Magistrado do Mº Pº respondeu fundadamente ao recurso em causa (em 03.09.2020) e o Sr. Juiz prestou a detalhada, rigorosa e objetiva informação (em 11.09.2020), nos termos do art. 454º do CPP, sobre o presente recurso de revisão, pronunciando-se ambos pela improcedência/ denegação do recurso em causa.

3. Acompanhando-se os fundamentos aduzidos no citado parecer e informação judicial, os quais pelo rigor e amplitude de análise nos dispensam de considerações adicionais, por tautológicas, pronunciamo-nos igualmente pela improcedência do recurso de revisão por não se verificar a existência de qualquer dos fundamentos previstos no nº1 do art. 449º do CPP».

6. Com dispensa de Vistos, foram os autos à Conferência.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Dos documentos juntos aos autos e do teor da informação prestada resultam provados os seguintes factos e ocorrências processuais, com relevância para a decisão do presente recurso:

1.1. O recorrente AA, por acórdão de ... .08.2011 no âmbito de Processo Comum Coletivo foi condenado como coautor material de 21 crimes de burla qualificada em cúmulo jurídico a 18 (dezoito) anos e 6 meses de prisão.

1.2. Inconformado com o acórdão proferido em 1ª Instância interpôs recurso para o Tribunal da Relação de ... que por acórdão de ... .11.2014 confirmou parcialmente a decisão de 1ª Instância, reduzindo a pena para 16 (dezasseis) anos de prisão.


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III. O DIREITO

O art. 29º, nº 6, da Constituição da República Portuguesa consagra que Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão de sentença e à indemnização pelos danos sofridos”.

Em conformidade com este preceito constitucional o Código do Processo Penal prevê o direito à revisão de sentença transitada em julgado no art. 449º, sob a epígrafe Fundamentos e admissibilidade da revisão”.

Com efeito o recurso de revisão é um recurso extraordinário que possibilita a quebra do caso julgado de sentenças condenatórias que devam considerar-se injustas por ocorrer qualquer dos motivos taxativamente previstos na lei.

O citado art. 449º, nº 1, do CPP, consagra na parte que aqui releva o seguinte:

«1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando: (…)

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação».

«O recurso de revisão é estruturado na lei processual penal em termos que não fazem dele uma nova instância, surgida no prolongamento da ou das anteriores. O núcleo essencial da ideia que preside à instituição do recurso de revisão, precipitada na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, reside na necessidade de apreciação de novos factos ou de novos meios de prova que não foram trazidos ao julgamento anterior.

Trata-se aí de uma exigência de justiça que se sobrepõe ao valor de certeza do direito consubstanciado no caso julgado. Este é preterido em favor da verdade material, porque essa é condição para a obtenção de sentença que se funde na verdade material, e nessa medida seja justa. O julgamento anterior, em que se procurou, com escrúpulo e com o respeito das garantias de defesa do arguido, obter uma decisão na correspondência da verdade material disponível no momento em que se condenou o arguido, ganha autonomia relativamente ao processo de revisão para dele se separar. No novo processo não se procura a correção de erros eventualmente cometidos no anterior e que culminou na decisão revidenda, porque para a correção desses vícios terão bastado e servido as instâncias de recurso ordinário, se acaso tiverem sido necessárias. Isto é; os factos novos do ponto de vista processual e as novas provas, aquelas que não puderam ser apresentadas e apreciadas antes, na decisão que transitou em julgado, são o indício indispensável para a admissibilidade de um erro judiciário carecido de correcção. Por isso, se for autorizada a revisão com base em novos factos ou meios de prova, haverá lugar a novo julgamento (cf. artigo 460.º do CPP), tal como, nos casos em que for admitida a revisão de despacho que tiver posto ao processo, o Supremo Tribunal de Justiça declara sem efeito o despacho e ordena que o processo prossiga, obviamente que no tribunal a quo (artigo 465.º).» (Ac. TC 376/2000 DR II S, de 13 de Dezembro de 2000 e no BMJ 499, pág. 88 e ss) [5]


Relativamente ao fundamento previsto no art. 449º, nº 1, al. d) do CPP, sobre o que se considera novos factos ou meios de prova, têm sido sustentados, fundamentalmente, dois entendimentos. Assim:

- para uns, são novos apenas os factos que eram ignorados ou não puderam ser apresentados ao tempo do julgamento;

- para outros, não é necessário esse desconhecimento por parte do recorrente, bastando que os factos ou meios de prova não tenham sido tidos em conta no julgamento que levara à condenação, para serem considerados novos, mas desde que seja dada uma explicação suficiente para a omissão antes da sua apresentação.

É vasta a jurisprudência do STJ relativamente a esta questão, de que são exemplo os seguintes arestos assim sumariados:

- Acórdão do STJ de 20/1/2010, proc. nº 1536/03.7TAGMR-A.S (Relator Arménio Sottomayor):

“I - Para efeito do disposto no art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP, enquanto fundamento do recurso extraordinário de revisão, a generalidade da doutrina tem vindo a pronunciar-se no sentido de que são novos aqueles factos ou meios de prova que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação, por serem desconhecidos da jurisdição no ato do julgamento, embora pudessem ser do conhecimento do condenado na altura do julgamento.

II – Apesar de ser também este o entendimento dominante no STJ, ultimamente ganhou adeptos uma outra corrente segundo a qual, dada a natureza extraordinária do recurso de revisão, este não é compatível com complacências perante a inércia do arguido na dedução da sua defesa ou perante estratégias de defesa incompatíveis com a lealdade processual, que é uma obrigação de todos os sujeitos processuais e, por isso, o requerente só pode indicar novos factos ou novas testemunhas, quando estes também para ele sejam novos, ou porque os ignorava de todo, ou porque estava impossibilitado de fazer prova sobre eles”[6].

- Acórdão do STJ de 14/3/2013, proc. n.º 693/09.3JABRG-A.S1 (Relator Maia Costa):

“IV – É atualmente jurisprudência consensual no STJ que a novidade dos elementos de prova tem de referir-se não só ao tribunal, como inclusivamente ao próprio recorrente, já que o carácter excecional do recurso de revisão não é compatível com a complacência perante situações como a inércia na dedução da defesa ou com a adoção de uma estratégia de defesa incompatível com a lealdade processual, obrigação de todos os sujeitos processuais”.

- Acórdão do STJ de 8/6/2016, proc. n.º 132/13.5GBPBL-A.S1 (Relator Manuel Augusto de Matos):

“É jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que os novos factos ou os novos meios de prova fornecidos pelos recorrentes devem, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitar graves dúvidas e não apenas dúvidas sobre a justiça da condenação”.

- Acórdão do STJ de 11/10/2017, proc. nº 1459/05.5GCALM-B (Relator Lopes da Mota):

“2. Constitui jurisprudência constante deste Tribunal a de que, para efeitos de admissibilidade da revisão com fundamento no n.º 1, al. d), deste preceito, são factos novos ou novos meios de prova os que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação e que, sendo desconhecidos da jurisdição no ato de julgamento, permitam suscitar graves dúvidas acerca da culpabilidade do condenado; “novos”, acrescenta-se, são apenas os factos e os meios de prova que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser considerados pelo tribunal.

3. Como também se tem salientado, novos meios de prova são aqueles que são processualmente novos, que não foram apresentados no processo da condenação; a novidade refere-se ao meio de prova (seja pessoal, documental ou outro) e não ao resultado da produção da prova. Para além disso, não basta a mera existência da dúvida; é necessário que ela seja qualificada, isto é, se eleve a um patamar de solidez que permita afirmar a sua “gravidade”[7].

 - Acórdão do STJ de 22/11/2017, proc. n.º 9238/13.0TDPRT-B.S1 (Relator Vinício Ribeiro):

“I - Para efeitos da revisão excecional, a jurisprudência passou a optar por uma interpretação mais restritiva do preceito do artigo 449.º, n.º 1, alínea d) do CPP, passando a incluir também o arguido, sendo, assim, «novo» o facto ou meio de prova que ele desconhecia na altura do julgamento ou que, conhecendo, estava impedido ou impossibilitado de apresentar, justificação que deverá ser apresentada pelo recorrente.

II - Este recurso destina-se a reagir contra casos de erros clamorosos e intoleráveis ou flagrante injustiça, não podendo ser concebido como sucedâneo de qualquer recurso ordinário ou para sindicar o mérito da sentença.

III - A gravidade das dúvidas sobre a justiça da condenação deve ser séria e qualificada.”[8]


O Acórdão do STJ de 09OUT19, proc. nº. 29/14.1PBVIS-B.S1 (Relator Nuno Gonçalves), e a jurisprudência citada, quando afirma:

«Salientou-se acima que, com o fundamento em apreço – invocação da al.ª d) - podem sustentar a rescisão da sentença condenatória novos factos ou meios de prova que, necessariamente, infirmem ou modifiquem os factos que motivam a condenação.

Não satisfaz aquele requisito a invocação de quaisquer factos ou de outras provas nem a mera invocação de novos factos, ou tampouco basta a sua hipotética verosimilhança. Ademais da novidade, têm de estar suficientemente acreditados, isto é, resultarem convincentemente demonstrados. No processo penal, os factos adquirem-se através das provas. Aqui, a alegação de factos sem provas, diretas ou indiretas que os demonstrem, - por si só (autonomamente) ou combinados com outros que hajam sido apreciados no processo - não tem a potencialidade de elevar ao nível da crise grave (qualificada) a força da res judicata.

Do mesmo modo, não basta a apresentação de quaisquer novas provas. Somente fundamentam a rescisão da sentença firme provas que, ademais da novidade, aportem dados que infirmem os factos que nesta se julgaram provados e que legitimam a condenação.

Para além de os factos ou meios de prova deverem ser novos é ainda necessário que eles, por si ou em conjugação com os já apreciados no processo, sejam de molde a criar graves e fundadas dúvidas sobre a justiça da condenação. A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada; terá de elevar-se do patamar da mera existência, para atingir a vertente da “gravidade”, tendo os novos factos e/ou provas de assumir qualificativo correlativo da “gravidade” da dúvida.

Descobrirem”, do verbo descobrir, tem o significado de por a descoberto, destapar, encontrar, tanto para o que é verdadeiramente novo como também o que já existia e de que só agora se adquiriu conhecimento.

Novos” são os factos ou elementos de prova vistos pela primeira vez, que eram inéditos, desconhecidos.

A expressão “descobrirem novos” pressupõe que os factos ou elementos de prova foram conhecidos depois da sentença e, por isso, não podiam ter sido aportados ao processo até ao julgamento, seja porque antes não existiam, seja porque, embora existindo, somente foram descobertos depois.

Como se sustenta no citado Ac. STJ de 26/09/2018:

I - Quanto à novidade dos factos e/ou dos meios de prova, o STJ entendeu, durante anos e de forma pacífica que os factos ou meios de prova deviam ter-se por novos quando não tivessem sido apreciados no processo, ainda que não fossem ignorados pelo arguido no momento em que foi julgado.

II - Porém, nos últimos tempos essa jurisprudência foi sendo abandonada e hoje em dia pode considerar-se solidificada ou, pelo menos, maioritária, uma interpretação mais restritiva do preceito, mais adequada, do nosso ponto de vista, à natureza extraordinária do recurso de revisão e, ao fim e ao cabo, à busca da verdade material e ao consequente dever de lealdade processual que impende sobre todos os sujeitos processuais. Assim, “novos” são tão só os factos e/ou os meios de prova que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser considerados pelo tribunal.

Por sua vez, no Ac. de 12/5/2005 do Tribunal Constitucional expende-se:

Há-de, pois, tratar-se de “novas provas” ou “novos factos” que, no concreto quadro de acto em causa, se revelem tão seguros e (ou) relevantes – seja pela patente oportunidade e originalidade na invocação, seja pela isenção, verosimilhança e credibilidade das provas, seja pelo significado inequívoco dos novos factos, seja por outros motivos aceitáveis – que o juízo rescindente que neles se venha a apoiar não corra facilmente o risco de se apresentar como superficial, precipitado ou insensato, tudo a reclamar do requerente a invocação e prova de um quadro de facto “novo” ou a exibição de “novas” provas que, sem serem necessariamente isentos de toda a dúvida, a comportem, pelo menos, em bastante menor grau, do que aquela que conseguiram infundir à justiça da decisão revidenda.

Não se trata, portanto, de elementos probatórios que permitam novas argumentações a favor da inocência do condenado, mas de autênticas novas provas que desvirtuando totalmente as provas que motivaram a condenação, fazem duvidar gravemente da sua justiça material. Tampouco se trata de uma nova oportunidade para reapreciar os elementos probatórios que o tribunal de instância e/ou de recurso já tiveram em conta.

Como se sustenta-se no Ac. de 3/12/2014, deste Supremo e secção, exigem-se “novas provas” que, no concreto quadro factual, se revelem tão seguras que o juízo rescindente que neles se venha a apoiar, não corra facilmente o risco de se apresentar como superficial, precipitado ou insensato, tudo a reclamar do requerente a prova de um quadro de facto novo ou a exibição de novas provas que, sem serem necessariamente isentos de toda a dúvida, a comportem, pelo menos, em bastante menor grau, do que aquela que conseguiram infundir à justiça da decisão[9].

Em síntese, são, dois e cumulativos os parâmetros da admissibilidade da revisão com fundamento na al.ª d) do n.º 1 do art. 449º do CPP:

- que os factos ou provas apresentados não existiam ou se desconheciam e, portanto, não puderam apresentar-se e, consequentemente, ser tidos em conta na sentença, ainda que fossem preexistentes;

- que por si sós ou conjugados e necessariamente confrontados com provas produzidas na audiência evidenciem, acima de qualquer dívida razoável, a injustiça da condenação».


Revertendo ao caso subjudice, analisando a motivação de recurso verifica-se que o recorrente pretende de novo a reapreciação da matéria de facto e de direito, designadamente quanto à valoração das provas que o Tribunal Coletivo fez para formar a sua convicção, insurge-se quanto à qualificação jurídica dos factos provados, e quanto à medida da pena, sendo que o acórdão do Tribunal Coletivo, já foi examinado pelo Tribunal da Relação.

A situação invocada pelo recorrente não se enquadra na previsão normativa de quaisquer das alíneas do nº 1, do art. 449º, do CPP.

O recurso extraordinário de revisão não se confunde com os recursos ordinários previstos no Título I, do Livro IX do Código do Processo Penal.

Com efeito, como resulta da lei o recurso de revisão, porque põe em causa o valor de certeza do direito consubstanciado no caso julgado, é um recurso extraordinário, não visa procurar a correção de erros eventualmente cometidos no julgamento anterior e que culminou na decisão revidenda, porque para a correção desses vícios terão bastado e servido as instâncias de recurso ordinário, se acaso tiverem sido necessárias.

O recurso extraordinário de revisãovisa, assim, a obtenção de uma nova decisão judicial que se substitua, através da repetição do julgamento, a uma outra já transitada em julgado, apoiando-se em vícios ligados à organização do processo que conduziu à decisão posta em crise. Por via dele, vai operar-se não um reexame ou apreciação de anterior julgado, mas antes tirar-se uma nova derisão assente em novo julgamento do feito, agora com apoio em novos dados de facto. Temos assim que a revisão versa apenas sobre a questão de facto»[10]


Neste sentido, no caso subjudice não existe qualquer fundamento previsto nas alíneas a) a g), do nº1, do art. 449º, do CPP, pelo que a revisão terá que ser negada, sendo o recurso manifestamente infundado (art. 456º, do CPP).



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IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revisão, sendo o recurso manifestamente infundado.

Custas pelo requerente fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) Ucs, e ao abrigo do disposto no art. 456º, do CPP, vai o recorrente condenado no pagamento da quantia de 7 (sete) UC’s.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


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Lisboa, 04 de novembro de 2020


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Nuno Gonçalves

Pires da Graça (Presidente da Secção)

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[1] Relatado pelo Exmo. Conselheiro HENRIQUES GASPAR, disponível em texto integral no endereço eletrónico http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6945ee75356448fa80257c19004d48df?OpenDocument.

[2] Relatado pelo Ex.mo Conselheiro MANUEL AUGUSTO MATOS, disponível em texto integral no endereço eletrónico https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:67.16.0GBABF.A.S1/
[3] Relatado pelo Ex.mo Conselheiro PIRES DA GRAÇA, disponível em texto integral no endereço eletrónico https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:1101.09.5JACBR.B.S1/
[4] Cf. Acórdão de 15 de janeiro de 2014, processo n.º 13515/04.2TDLSB-C.S, in www.dgsi.pt
[5] Ac do STJ de 24ABR19, proc nº 200/08.5PAESP-C.S1, Relator Vinício Ribeiro, e a signatária adjunta.
[6] Idem, do mesmo Relator, o acórdão do STJ de 25/2/2010, processo n.º 1766/06.0JAPRT-A.S1. Em sentido semelhante ao sumariado em II, cfr. acórdãos do STJ de 7/10/2009, proc. n.º 8523/06.1TDLSB-E.S1-3.ª (relator Santos Cabral); de 27/1/2010, na CJ-STJ-, Ano XVIII, tomo I, pág. 203 (relator Santos Carvalho); de 14/7/2010, proc. n.º 487/03.0TASNT-F.S1-5ª (relatora Isabel Pais Martins); e de 26/10/2011, proc. n.º 578/05.2PASCR-A.S1 (relator Sousa Fonte) e em CJ-STJ-, Ano XIX, tomo III, pág. 195.
[7] In www.dgsi.pt.
[8] In CJ – STJ – Ano XXV, tomo III, pág. 201.
[9] Proc. 798/12.3GCBNV-B.S1 in www.dgsi.pt[10] “Código de Processo Penal Anotado”, Simas Santos e Leal Henriques, 2000, II, 1043.