Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
216/15.5T8GRD.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CONTRATO DE MANDATO
RESCISÃO UNILATERAL
HONORÁRIOS
INDEMNIZAÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
QUESTÃO NOVA
REVOGAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA – DIREITO DAS COISAS / CONTRATOS EM ESPECIAL / PRESTAÇÃO DE SERVIÇO / MANDATO / REVOGAÇÃO E CADUCIDADE DO MANDATO / REVOGAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / CAUSAS DE NULIDADE DA SENTENÇA.
Doutrina:
-Adelaide Menezes Leitão, Revogação Unilateral do Mandato, Pós-eficácia e responsabilidade pela confiança, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume I, Almedina, p. 325 e 326;
-Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Volume IV, p. 279;
-José Carlos Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, Do enquadramento e do regime, Coimbra, p. 48 a 51;
-Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, Almedina, 3.ª Edição, p. 507.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 1154.º, 1156.º, 1170, N.º 1 E 2, 1171.º, N.º 1 E 1172.º;
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 615.º, N.º 1, ALÍNEA C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 01-07-1997,PROCESSO N.º 97A388;
-DE 09-01-2003, PROCESSO N.º 02B4134;
-DE 11-12-2003, PROCESSO N.º 03B3634;
-DE 30-06-2009, PROCESSO N.º 288/09.1YFLSB.S1;
-DE 02-03- 2011, PROCESSO N.º 2464/03.1TBALM.L1.S1;
-DE 10-12-2013, PROCESSO N.º 6329/06.7TVLSB.L1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - O vício de nulidade da decisão por oposição entre os fundamentos e a decisão – que ocorre sempre que as premissas (fundamentação) apontem inexoravelmente para um determinado sentido decisório, vindo a decisão a revelar-se em antinomia ou, pelo menos, em dissonância com esse sentido (art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC) – não se confunde com o erro de julgamento fundado em errada interpretação dos factos.

II - Não dispondo o contrato de prestação de serviço de regime próprio, são-lhe aplicáveis as disposições do contrato de mandato com as devidas adaptações (arts. 1154.º, e 1156.º do CC), designadamente a regra da livre revogabilidade do contrato, i.e., a faculdade de o fazer cessar por vontade unilateral das partes, independentemente da apresentação de qualquer motivo justificativo (art. 1170.º, n.º 1, do CC).

III - Tal regra é afastada quando o mandato tenha sido conferido também no interesse do mandatário, encontrando esta excepção a sua razão de ser numa diversa relação jurídica que antecede o contrato de mandato, que, assim, surge como um mero acto de cumprimento da obrigação (art. 1170.º, n.º 2, do CC).

IV - Não se descortinando na factualidade provada qualquer facto susceptível de conduzir à conclusão de que subjacente à contratação dos serviços em causa esteve qualquer relação jurídica pré-existente entre as partes, a contratação superveniente por parte da autora de uma sociedade para prestação dos serviços que havia ajustado com os réus configura revogação unilateral tácita do contrato, que é lícita (art. 1171.º do CC).

V - Não podendo a revogação unilateral do contrato de prestação de serviços ser equiparada à sua resolução e não tendo, como tal, eficácia retroactiva, não recai sobre os réus a obrigação de devolveram à autora as quantias recebidas ao abrigo desse contrato, não podendo igualmente tal obrigação assentar no instituto do enriquecimento sem causa, posto que, tendo este sido apenas invocado em sede de revista e não sendo de conhecimento oficioso, se trata de questão nova que está subtraída ao poder cognitivo do STJ.

VI - A revogação unilateral do mandato não prejudica o direito do mandatário aos honorários que se hajam vencido em momento anterior, nem a obrigação de o indemnizar pelos danos sofridos, o que, no entanto, pressupõe a alegação e prova quer do momento em que se venceram os direitos, quer dos prejuízos efectivamente sofridos com a cessação do contrato (arts. 342.º, n.º 1, 1171.º, n.º 1, e 1172.º do CC).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



   I. Relatório:

     AA, Lda, instaurou a presente acção declarativa de condenação contra BB, Lda, CC e DD, Lda, pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 302 998,14.

         Para o efeito, alegou, em síntese que:

      Contratou, em 10/09/2008, “os serviços dos Réus” como técnicos habilitados para execução da totalidade dos documentos de planeamento e gestão urbanística exigidos pela legislação vigente, para aprovação pela Câmara Municipal de … (C.M. de …) de um empreendimento urbanístico designado por “EE”, que compreendia a edificação de um hotel de 5 estrelas e um campo de golfe;

     Os réus vincularam-se a praticar todos os actos necessários e adequados para que o projecto viesse a ser classificado como de Potencial Interesse Nacional (PIN), bem como à execução dos trabalhos acordados.

      Os réus, apesar de terem recebido da autora o montante global de 216 000,00€, não cumpriram todas as obrigações a que se vincularam, omitindo a prestação de informações quanto ao desenvolvimento dos estudos e projectos, chantageando a autora com a exigência de pagamentos, até que, em 23/12/2011, esta descobriu que aqueles não tinham cumprido qualquer das suas obrigações contratuais, criando na autora a expectativa de que iriam prestar os serviços para os quais publicitavam estarem especialmente habilitados, sem que efectivamente o estivessem com o único objectivo de receberem verbas que aquela ia pagando.

        Os réus agiram com conhecimento da ilicitude das suas condutas e com o propósito conseguirem um ilegítimo enriquecimento à custa da autora, o que lhe confere o direito à restituição do valor que lhes entregou, € 216 000,00, acrescido dos juros que essa quantia podia render numa aplicação bancária, com uma taxa de juro de 4%, no montante de € 36 998,14, bem como à indemnização da quantia de € 50 000,00 pelo tempo, esforço e espectativas depositadas no projecto, que se frustraram por culpa exclusiva dos réus”, tudo no montante global de € 302 998,14.

      Contestou a ré DD. Excepcionou a falta de poderes de representação da pessoa que subscreveu o contrato em seu nome, dado resultar dos seus estatutos que só pode obrigar-se pela assinatura conjunta de dois gerentes, e admitiu ter recebido a quantia de € 24 000,00 pelos serviços de engenharia civil que prestou, sendo os demais serviços da responsabilidade exclusiva do réu arquitecto CC.

No mais impugnou o alegado na petição inicial e concluiu pela improcedência da acção e absolvição do pedido.

      Os réus BB, Lda, e CC contestaram e deduziram pedido reconvencional.

      Impugnaram o essencial da alegação da autora, reveladora de má fé e integradora de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, concluindo pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido.

      Na reconvenção, alegaram ter prestado outros serviços (nos termos acordados na “nota de honorários” de Junho de 2008), que não foram pagos, pedindo que: a) se declare a resolução do contrato; e, em consequência, b) se condene a autora a pagar-lhes a quantia global de € 1 554 858,73, acrescida de IVA e juros à taxa comercial, desde a citação até efectivo pagamento.

      A autora replicou, sustentando a inadmissibilidade da reconvenção deduzida, e excepcionou a prescrição do direito de indemnização invocado pelos reconvintes, impugnando a factualidade alegada na reconvenção.

Finalizou pedindo a improcedência da reconvenção e a condenação dos réus como peticionado e, ainda, como litigantes de má fé.


     Teve lugar a audiência prévia, tendo o pedido reconvencional sido admitido no saneador e relegado para final o conhecimento da prescrição.

      Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que:

    - Julgou totalmente improcedente a acção e absolveu os RR do pedido;

  - Julgou procedente em parte a reconvenção, condenando a Autora a pagar à Reconvinte BB, Lda., a quantia de €159.712,90, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data da notificação da reconvenção à A;

  - Condenou a A. como litigante de má fé na multa de € 50,00 UCs.


       Apelaram a autora e a ré/reconvinte BB, Lda.

      O Tribunal da Relação de … proferiu acórdão, em 14 de Novembro de 2017, no qual decidiu: «conceder parcial provimento ao recurso da Autora e negar provimento ao recurso da Ré, e revogando-se a sentença, julga-se a acção e a reconvenção totalmente improcedentes, absolvendo-se Autora e Ré dos pedidos contra elas formulados; a Autora vai absolvida da condenação como litigante de má fé».

       Irresignadas, recorreram de revista a autora e os réus.

A autora formulou na respectiva alegação as conclusões seguintes:

«1. No acórdão recorrido cometeram-se erros na aplicação da matéria de direito, nomeadamente, no que concerne aos efeitos da revogação do contrato de prestação de serviços celebrado entre A. e RR., impondo-se, por isso, uma solução inversa à decidida.

2. O presente recurso tem por objecto a decisão do Tribunal da Relação de … de considerar que, por força da revogação do contrato de prestação de serviços, a recorrente não tem direito que os RR. lhe restituam os € 216.000,00 que lhes pagou, deduzido do montante de € 114.000,00 que a recorrente aceita como valor dos serviços efectivamente prestados pela recorrida.

3. O Tribunal da Relação de … andou bem ao qualificar o contrato celebrado entre as partes como um contrato de prestação de serviços, na medida em que, os RR. apenas assumiram perante a A. a obrigação de executar a totalidade dos documentos de planeamento e gestão urbanística necessários à aprovação de um empreendimento que a recorrente pretendia construir em …, não assumindo qualquer obrigação de realizar qualquer obra.

4. Aceita-se que ao contrato celebrado entre as partes se aplicam as regras do mandato, nomeadamente a prevista no artigo 1170.º do Código Civil, que dispõe que o mandato é livremente revogável por qualquer das partes, salvo se tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro.

5. O contrato em causa nos presentes autos não foi concedido no interesse dos RR., uma vez que, conforme tem vindo a ser pacificamente aceite pela doutrina e pela jurisprudência, a simples onerosidade não traduz esse interesse por parte do mandatário ou do prestador de serviços, pelo que, a revogação podia operar unilateralmente, não sendo exigível a vontade de ambos os contraentes.

6. Nos termos do artigo 1171.º do Código Civil, a revogação pode ser tácita, pelo que, é manifesto que ao celebrar o contrato de prestação de serviços com a FF, Lda., em substituição dos aqui RR., revogou tácita e validamente o contrato de prestação de serviços celebrado com os mesmos.

7. Contrariamente ao que se entendeu no Acórdão de que se recorre, é nossa opinião que a revogação tem os efeitos que resultarem da interpretação do contrato revogatório ou da vontade das partes, sendo que, normalmente, a intenção das partes é a de considerar o contrato como se não tivesse sido concluído, portanto, fazendo extinguir os efeitos já produzidos.

8. À semelhança da resolução e da denúncia, a revogação constitui uma excepção ao princípio da irretratibilidade da relação contratual (art.º 406º, n.º 1 do Cód. Civil) baseada em fundamentos supervenientes, só que, diferentemente do que sucede nos restantes casos, a mesma depende apenas do livre querer das partes e não está sujeita à verificação de um qualquer fundamento especial, nem da intervenção do tribunal, consistindo na destruição do vínculo contratual mediante uma declaração dos contraentes oposta à primitiva que lhe deu vida, a qual terá ou não efeitos retroativos, consoante a vontade das partes.

9. A matéria constante dos autos é reveladora de que a intenção da A. ao revogar o contrato era a de retirar todos e quaisquer efeitos ao contrato de prestação de serviços celebrado com os RR., fazendo com que ele nem sequer tivesse sido celebrado, pois, não se poderá esquecer que a A. só celebrou o contrato de prestação de serviços com a sociedade FF, Lda. porque os RR. não cumpriram o contrato que haviam celebrado com aquela, ou seja, porque, apesar de terem recebido o montante de € 216.000,00 não prestaram os serviços a que se tinham obrigado por força do aludido contrato.

10. No período de vigência do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes em 10.09.2008, o Plano de Pormenor ainda não tinha sido aprovado, nem tinham sido praticados os actos necessários para que o projecto pudesse ser qualificado como de Potencial Interesse Nacional.

11. Do contrato de prestação de serviços e do respectivo aditamento contratual resulta que as partes sujeitaram a obrigação de pagamento de honorários à efectiva prestação dos serviços por parte da recorrente, ou seja, à verificação de uma condição, a qual não veio a ocorrer.

12. Os projectos/estudos/trabalhos documentais e escritos apresentados pelos RR. não estavam de acordo com a legislação vigente, pelo que o indeferimento do pedido de informação prévia assentou apenas na conduta dos RR., que apesar de deverem conhecer a Lei do ordenamento do território, e em concreto do Plano Diretor Municipal para o local em causa, apresentaram um projecto inviável.

13. O Plano de Pormenor elaborado pela Câmara Municipal de ..., inicialmente teve por base os estudos/projectos apresentados pelos RR., sendo ainda certo que, o mesmo não mereceu aprovação do Turismo de Portugal por causa das desconformidades que os mencionados estudos/projectos apresentavam, sendo ainda certo que os RR. não auxiliaram a Câmara Municipal de … a suprir tais desconformidades, com vista à obtenção do referido Plano de Pormenor.

14. Os RR. não cumpriram igualmente a obrigação assumida no contrato quanto à preparação dos documentos necessários para que o projecto fosse aprovado pela Câmara Municipal de Seia, sendo ainda certo que, tal obrigação se tornou definitivamente impossível, quando a C. M. de … chamou a si o processo de aprovação do Plano de Pormenor.

15. A preparação da documentação necessária para que o projeto fosse classificado como de Potencial Interesse Nacional, só poderia ter início depois da aprovação do Plano de Pormenor, sendo certo que esta apenas ocorreu após a revogação do contrato em causa nos presentes autos.

16. Os RR. receberam da A. a quantia de € 216.000,00, sem que tenham prestado e concluído os serviços a que se obrigaram, pois, admitindo-se que tenham produzido alguns trabalhos constantes do objecto do contrato, a sua quantificação ascenderá a um valor máximo de € 114.000,00, referentes ao Estudo de impacto ambiental integral - 25 000,00€, Estudo económico e financeiro - 61 500,00 €, Mapa de ruído ou estudo acústico integral--15 500,00€ e Estudo hidrológico integral - 12 000,00 €, e, por isso, deveriam os mesmos ter sido condenados a devolver à A. a quantia de € 102.000,00.

17. As razões que estão subjacentes a revogação tácita do contrato, demonstram de forma clara que a R. tem de devolver os valores que a A. lhe entregou a título de trabalhos não realizados ou mal executados, pois, dúvidas não existem de que a vontade da A. ao revogar o contrato era a de que fossem destruídos todos os efeitos do mencionado contrato, acrescido do facto de não terem sido prestados serviços que lhe foram pagos.

18. De resto, tendo como referência o direito comparado, como é consabido, e BRUNO SCHMIDLIN recorda-o, o direito de resolução deve a sua “forma giuridica” ao direito romano (maxime através da lex commissoria) e o seu “conteúdo” ao direito canónico, ao sancionar o “pecado” da infidelidade contratual com a desvinculação da parte fiel (lembremos o princípio moral frangenti fidem non est fides servanda).

19. O mesmo jurista completa a “história” do direito de resolução, dizendo que surgiu como “regola generale” com o pensamento jusnaturalista (referindo o contributo de WOLFF para o acentuar da importância da estrutura sinalagmática do contrato) e foi acolhido nos arts. 1183.º e 1184.º do Código Civil de Napoleão muito por força da influência de DUMOULIN, DOMAT e POTHIER.

20. No mesmo sentido, observe-se, que no modelo francês (seguido, por ex., nos arts. 1124.º do Código Civil espanhol e 1165.º do Código Civil italiano de 1865), contrariamente à construção adoptada posteriormente pelos legisladores do BGB e do Codice Civile de 1942, a resolução está estruturada de forma “voluntarista” ao considerar-se “a condição resolutiva subentendida nos contratos sinalagmáticos para o caso em que uma das partes não cumpra a sua vinculação”.

21. A reflexão sobre o acervo normativo permite concluir que o fundamento material que está subjacente ao exercício do direito de resolução é tipicamente, mas não exclusivamente, um incumprimento obrigacional, pois, o legislador dotou a resolução (convencional e não convencional) de autonomia sistemática num corpo de normas próprias, conquanto alguma doutrina utilize a palavra “resolução” num sentido mais abrangente, preferindo adoptar o termo “rescisão” para abranger a resolução tout court.

22. A “história” do direito de resolução, surgiu como “regola generale” com o pensamento jusnaturalista (referindo o contributo de WOLFF para o acentuar da importância da estrutura sinalagmática do contrato) e foi acolhido nos arts. 1183.º e 1184.º do Código Civil de Napoleão muito por força da influência de DUMOULIN, DOMAT e POTHIER.

23. Face a esta essencial dupla valoração/delimitação, é possível conceber a resolução como o poder unilateral de pôr termo a um contrato válido em virtude de circunstâncias posteriores à sua celebração, frustrantes do interesse de cumprimento, desequilibradoras da relação de equivalência entre as prestações — atente-se no efeito resolutivo da alteração anormal das circunstâncias (atinente à chamada cláusula de hardship do comércio internacional) face à opção modificação/renegociação contratual — ou tornando inexigível a manutenção do contrato, como sucede noutros casos legais de objectivação do fundamento resolutivo.

24. Na verdade, com excepção de um conjunto residual de situações, a carecer de uma melhor configuração, e na qual a resolução surge “desmotivada”, as duas zonas principais de relevo da figura compreendem, por um lado, o incumprimento culposo e qualificado por determinada gravidade (face à norma paradigmática do art. 801.º, e, por outro, um leque amplo de eventos objectivos com significado bastante para provocar a cessação do contrato, eventos estes de alguma forma subsumíveis a uma “justa causa resolutiva”.

25. Quando o incumprimento, esse leit-motiv da resolução, atinge sem retorno a relação sinalagmática, pondo em causa a “lei contratual”, o contraente fiel tem o direito (irrenunciável) de se desvincular unilateralmente, procurando um efeito, ora liberatório, ora recuperatório, do eventualmente já prestado.

26. Como o incumprimento impede o funcionamento da correspetividade contratual, não faz sentido prender o contraente não inadimplente, privando-o da procura célere de soluções mais convenientes para os seus interesses.

27. Paradigma do fundamento resolutivo é pois o incumprimento superveniente, culposo, total ou parcial, traduzido na falta definitiva de cumprimento (por impossibilidade ou recusa de cumprimento dos deveres de prestação e de certos deveres de conduta tidos por relevantes no contexto contratual.

28. Nas específicas relações contratuais duradouras assentes na confiança e lealdade entre as partes, pode ser mesmo invocada uma justa causa que torne imediatamente inviável a manutenção do vínculo contratual (BAPTISTA MACHADO chega a referir que essa “inexigibilidade” pode ter a ver com um incumprimento objectivamente menos grave mas “sintomático” da sua repercussão futura).

29. E se este último meio reflecte o desejo do credor renunciar à recuperação da sua prestação para conseguir o cumprimento da prestação prometida, também é certo que a via resolutiva pode apresentar-se como via forçosa (pensamos nos casos de perda de interesse ou na insuficiência económica do devedor para indemnizar o valor da prestação impossibilitada) ou economicamente atractiva (para reaver uma contraprestação de valor superior à prestação impossibilitada, para a conservar em caso de fracasso da chamada interpelação cominatória ou para ficar livre para celebrar um “negócio de cobertura”).

30. ENRICO DELL’ AQUILA, para lá de recusar a finalidade repressiva (sancionatória) da resolução, também não aceita a tese dominante (de um LUIGI MOSCO) que situa o fundamento da figura na interdependência das obrigações, nem a que, sufragada por B. GRASSO, a identifica com “um poder dispositivo de fim novativo” (traduzido na convolação do direito à prestação pelo direito à libertação obrigacional).

31. O jurista italiano apela para o que apelida de misura preventiva, concebendo a resolução como meio de evitar a “injustiça” do faltoso fazer sua a prestação, enriquecendo-se, e de deslocar para a parte inocente o ónus de reagir a um contrato destinado ao fracasso.

32. Nesta perspectiva, podemos dizer que a resolução, enquanto ultima ratio, é uma figura jurídica que, questionando a estabilidade contratual, é avessa às técnicas de conservação contratual como são a acção de cumprimento (predisposta para ser o possível efeito de uma declaração categórica de não cumprimento de um contrato-promessa), a excepção de não cumprimento, a conversão, a redução, a modificação do conteúdo negocial (redução do preço) ou o pedido de reparação ou eliminação dos defeitos da coisa.

33. Esta indefinição não é apenas apanágio do sistema nacional se pensarmos que o direito de livre resolução, conferido, por ex., aos consumidores na zona dos contratos celebrados à distância, por referência à Dir. 97/7/CE, é designado, na legislação francesa, por droit de rétractation, na legislação italiana por diritto di recesso, no direito alemão por Widerrufsrecht e no sistema inglês por right of withdrawal, enquanto o jurista espanhol ENRIQUE TORRANO, nesse mesmo âmbito, fala de desistimiento negocial.

34. O chamado “direito de livre resolução”, tendo como legitimado um contraente tido por parte mais frágil, visa, como já fomos dizendo, evitar vinculações precipitadas, pressionadas, irreflectidas, derivadas das metodologias que presidiram à contratação e da natureza complexa do conteúdo de contratos significativos (de seguro, de crédito, de aquisição de direitos de habitação periódica, etc). No dizer de R. SCHULZE (165) a desvinculação procura reagir a uma “situación estructural de desequilíbrio contractual”. Ao encararmos esta teleologia somos tentados a dizer que o exercício do direito, no período legal de reflexão, revelará, a maior parte das vezes, o arrependimento do consumidor, o seu desejo de voltar atrás, de “repelir” uma vinculação que não deseja ou cujo conteúdo técnico-jurídico avaliou melhor.

35. Apesar do predomínio da expressão “direito de livre resolução”, os termos retractação, revogação e, mesmo, arrependimento, parecem mais consonantes, na sua expressão linguística e conceituação jurídica, com a motivação psicológica do consumidor ou a finalidade essencial do poder extintivo em causa, não se tratando de uma questão de escolha de palavras, mas de tentar minorar a incerteza terminológica que grassa neste círculo da extinção contratual e de conservar os instrumentos jurídicos dentro de determinadas fronteiras, evitando “perdas de identidade”.

36. Mesmo que se entendesse que a revogação não concede à A. o direito de exigir dos RR. o montante que lhes pagou indevidamente, por força do instituto do enriquecimento sem causa os mesmos teriam sempre de devolver tal quantia.

37. No nosso ordenamento jurídico o instituto do enriquecimento sem causa encontra consagração legal no artigo 473.º do Código Civil, e pressupõe que haja um enriquecimento, que consiste na obtenção de uma vantagem de caráter patrimonial; que esse enriquecimento careça de causa justificativa, quer porque nunca a tenha tido ou porque a haja entretanto pedido; e que a obrigação de restituir tenha sido obtida à custa de quem requer a restituição.

38. Os RR. tiveram um enriquecimento injusto e sem causa justificativa, já que, apesar de lhes ter sido paga a quantia de € 216.000,00, os mesmos não prestaram a totalidade dos serviços para os quais foram contratados, sendo ainda certo que, o enriquecimento foi obtido à custa da A.

39. Estão verificados, assim, todos os requisitos que permitem à recorrente obter dos RR. a sobredita quantia de € 102.000,00 de que ficou privada, de que, sem causa legitima, aqueles beneficiaram.

40. O acórdão violou assim, o disposto no artigo 1170.º, 1171.º, 473.º do Código Civil.

41. Por último, declara-se perante os Senhores Juízes Conselheiros e principalmente perante o Senhor Conselheiro a quem vier a ser distribuído este recurso, que apesar do esforço do mandatário da recorrente, atenta a extensão das matérias aqui desenvolvidas, à complexidade das mesmas, e ainda ao modo como o processo se desenvolveu na primeira instância, tal como pretendia, não lhe foi possível encurtar as conclusões do recurso.

Termos em que, e nos demais de direito que V. Exas. douta e superiormente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via dele, ser revogado o acórdão recorrido e, em consequência, condene os RR. a restituírem à A. a quantia de € 102.000,00».


    Os réus, por sua vez, deduziram na sua alegação a seguinte síntese conclusiva:

«1. O Tribunal recorrido errou ao considerar que a recorrente não cumpriu integralmente com a obrigação de apresentar "toda a documentação exigida em condições de o projecto ser aprovado como PIN (Projecto de Interesse Nacional)".

2. Já que a recorrente procedeu à feitura de todos os trabalhos contratados com a recorrida, nomeadamente a primeira parte do desenvolvimento urbanístico e depois os projectos de arquitectura para a apresentação do projecto à candidatura a fundos comunitários e fez tudo para que o projecto fosse considerado como de Interesse Nacional.

3. Contudo, foi por culpa da recorrida que o projecto não foi considerado como PIN, pois não detinha a qualidade de proprietária dos terrenos, condição imprescindível para o efeito e também não apresentou todos os elementos para que isso fosse uma realidade.

4. Mais, a recorrente provou que tudo fez para que o projecto fosse considerado como PIN e ainda, que não procedeu de culpa sua a não apresentação de toda a documentação para esse efeito, pelo que a existir incumprimento não lhes pode ser imputável, mas sim à A.

5. A sentença recorrida enferma também de insanável nulidade por contradição manifesta entre a decisão e os fundamentos, uma vez que não se pode dar como provado que: "... a ré BB, Lda., por Intermédio do réu CC, prestou à autora os serviços objecto do contrato celebrado e supra descrito;" e depois, decidir contra este ponto, dizendo que os recorrentes não demonstraram que não tiveram culpa na não atribuição de Projecto de Interesse Nacional, na medida em que os Réus prestaram os serviços descritos no contrato celebrado, já que ficou provado, não tendo sido posto em causa por ninguém que " „.a ré BB, Lda. , por intermédio do réu CC, prestou à autora os serviços objecto do contrato celebrado e supra descrito;" - Cfr. facto n. ° 34 dos factos dados como provados.

6. Do mesmo modo, a contrário, e nesta sequência, também não podemos esquecer que não foi dado como provado que "Os réus não cumpriram qualquer das obrigações a que se vincularam", Cfr. facto 2 dos factos dados como não provados.

7. Trata-se de uma ilegalidade, cominada com nulidade (art. 668.°, n.° 1, al. c) do C.P.C.) que inquina a sentença recorrida, traduzindo-se numa patente e insanável contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos.

8. Além disso, no caso trata-se de um contrato de prestação de serviços, em que os recorrentes se comprometeram a realizar diversos actos de arquitectura, o que implicava a execução dos actos e projectos em conformidade com as regras legais aplicáveis e em condições de aprovação pela Câmara Municipal e tendo sido realizada pela A., a revogação do contrato, esta revogação, que extinguiu o vinculo contratual, inviabilizou o contrato de prestação de serviços por parte dos recorrentes.

9. Tal revogação pela A., tendo sido ilegal, deve esse incumprimento ser-lhe imputável, devendo indemnizar os recorrentes pelo prejuízo que causou (art. 798.° do C.C.), que, neste caso, coincide com o preço dos trabalhos de arquitectura realizados e não pagos (neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 26-06-2012).

10. Deve ser, por isso mesmo, julgada totalmente procedente a reconvenção, por provada e por via disso, ser a recorrente paga pelo trabalho de planeamento urbanístico, no valor em falta de 159.712,90€ e o valor de 1.395.145,83€ relativo a trabalhos de arquitectura com vista à candidatura do projecto aos fundos comunitários.

11. O Acórdão recorrido, para além de nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão (art.° 668°, n.° 1, ai. c) do C.P.C., não fez a melhor e mais correcta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, violando assim o disposto nos arts. 4.°, 165.°, 219.°, 211.°, 222.°, 224.°, 258.°, 40 6.°, 432.°, 798.°, 801.°, 802.°, 808.°, 1170.°, 1208.°, 1211.°, 1154.°, 1155.°, 1207.°, 1214.°, 1216 e 1217 do Código Civil e art. 342.°, 358.°, 498.° e 692.° e 716.° do Código de Processo Civil.

No provimento do presente recurso, deve decretar-se a nulidade da sentença recorrida ou, caso assim se não entenda, ser a mesma revogada bem como o d. acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, e por via disso, pelas razões invocadas, ser a mesma substituída por outra que, julgue totalmente procedente a reconvenção».

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar.


   II. Fundamentos:

De facto:

  Vêm provados os seguintes factos:

1. A ré “BB, Ld.ª”, exerce as actividades de arquitectura, gestão de obras, promoção imobiliária, design e a engenharia.

2. Por sua vez, o réu CC é o gerente daquela ré, é licenciado em arquitectura, desempenhando a sua actividade profissional como arquitecto, realizando projectos de arquitectura, de gestão e de acompanhamento de obra para aquela sociedade.

3. O réu CC possui um vasto currículo profissional, onde constam inúmeros projectos de arquitectura em Portugal e no estrangeiro, tendo projectos no Brasil, Timor, Angola e Moçambique.

4. Os réus possuem experiência, os meios e capacidade necessária para alcançar os objectivos para os quais foram contratados.

5. Foram, aliás, os representantes da autora quem contrataram as rés e lhes adjudicaram os seus serviços, devido à recomendação do seu atelier em V… por várias pessoas, pois tinham contactado inicialmente um gabinete em L….

6. No início de 2008, a autora deslocou-se ao gabinete da ré “BB, Ld.ª”, e aí estabeleceu conversações com o réu CC a fim de lhe prestar serviços para a construção de um empreendimento urbanístico denominado “EE”.

7. De seguida, a pedido da autora, foram realizados diversos estudos pela ré “BB, Ld.ª”.

8. A pretensão da autora foi, então, publicitada internacionalmente.

9. A ré “BB, Ld.ª”, elaborou em Junho de 2008, uma “nota contratual”, que incluía os trabalhos a realizar e os honorários a cobrar ao longo do planeamento e construção de todo o empreendimento, que serviria como estimativa de custos e cronograma de execução dos serviços e que serviu, também, de base ao (primeiro) contrato de 10 de Setembro de 2008 e a todos os trabalhos executados no âmbito desse contrato.

10. Tendo aí estimado um investimento total da obra de 136.758.503,79€.

11. Essa nota contratual previa a prestação dos serviços de arquitectura e engenharia, a realização dos estudos de planeamento e gestão, a candidatura do projecto a projecto de interesse nacional (PIN), o licenciamento da construção, a construção do empreendimento e o cronograma de pagamentos, de acordo com a fase de execução do projecto, tudo nos termos descritos no artigo 56º da reconvenção.

12. De acordo com essa nota contratual, o valor dos honorários a cobrar à autora ascendiam ao montante global de 9.573.922,70€.

13. Tal nota contratual foi alterada pela ré BB, Ld.ª, no ano de 2011, altura em que incluiu na mesma o projecto de construção de um Museu do …, relativamente ao qual os honorários a cobrar pela referida ré ascenderiam ao valor de 195 000,00€.

14. Estando, ainda, previstos como honorários devidos pela coordenação e fiscalização de obra 2,5% do valor da construção, ou seja, o montante de 3.418.962,59€.

15. Ascendendo o valor total dos honorários previstos e a cobrar pelas rés à autora ao valor de 13.187.885,29€.

16. À data da celebração do contrato, era legal representante da autora, com poderes para a representar e obrigar em todos os actos e contratos, o senhor GG, que não era conhecido por nenhum dos sócios da ré “DD”.

17. Em data anterior a 10.09.2008, entre o senhor GG e a ré “BB, Lda”, representada pelo réu CC, vinham decorrendo negociações para a elaboração/execução por parte da sua sociedade do projecto urbanístico supra referido, que compreendia, além do mais, a edificação de um hotel de cinco estrelas e um campo de golfe, sendo que no âmbito de tais negociações já ambos se tinham deslocado à Câmara de … e já ambos tinham falado com o respectivo presidente, como também já lhe tinham apresentado as intenções de investimento.

18. A ré “DD” é uma empresa de engenharia civil, que executa trabalhos próprios de engenharia e que noutras situações e em outros projectos prestou serviços de engenharia à sociedade BB, Ld.ª.

19. Face a tal relação, o arquitecto CC, que necessitava para algumas das fases de execução do projecto dos serviços de engenharia civil, sondou o sócio da ré DD, o engenheiro HH, para a hipótese da sociedade de que era sócio vir a colaborar com ele na execução dos serviços de engenharia, em regime de prestação de serviços.

20. Aquele sócio da ré “DD” achou interessante tal hipótese, aceitando executar os serviços próprios de engenharia em regime de prestação de serviços.

21. É neste contexto que é apresentado ao sócio da autora e então legal representante desta, numa altura em que aqueles já tinham falado sobre os vários aspectos do projecto, faltando acertar alguns detalhes e acertar de forma definitiva os custos inerentes.

22. Porque todo o processo, no relacionamento contratual com as rés, foi conduzido pelo arquitecto CC, foram poucos os contactos entre o sócio da ré “DD” (HH) com o então legal representante da autora.

23. Quer os legais representantes da autora, o anterior e actual, quer a sua jurista (Dr.ª II), sabiam perfeitamente que a intervenção da ré “DD” em todo o processo urbanístico se limitava à parte de engenharia e apenas a esta parte, sendo responsável por todo o processo o arquitecto CC, com legal representante da sua sociedade “BB, Ld.ª”, sendo este quem comparecia nas várias reuniões com os representantes da autora e também ele quem liderava todo o processo.

24. Mediante escrito particular, outorgado e datado de 10 de Setembro de 2008, a autora AA, Ld.ª, como primeira outorgante, e as rés BB, Ld.ª, e DD, Lda, como segundas outorgantes, aquela representada pelo réu CC e esta representada por HH, formalizaram um acordo, que denominaram de “contrato de prestação de serviços”, nos termos do qual, ponderando que a autora (primeira outorgante) tinha intenção de proceder ao desenvolvimento urbanístico do Sector da Jagunda (onde pretendia, como promotora, implementar um empreendimento urbanístico designado por “EE”, que compreendia a edificação de um hotel de 5 estrelas e de um campo de golfe) e tendo em vista a encomenda da execução da totalidade dos documentos de planeamento e gestão urbanística exigidos pela legislação vigente e aplicável para aprovação junto da Câmara Municipal de …, assim como todos os exigidos para que o projecto pudesse ser classificado como de Potencial Interesse Nacional (PIN), encomendou às segundas outorgantes, que por sua vez aceitaram a encomenda, a prestação dos serviços descritos na cláusula segunda do contrato, nos termos, prazos e condições e preços aí descritos (doc. de fls. 181 a 207 do apenso Vol. I).

25. Nos termos da cláusula segunda, a primeira outorgante encomendou às segundas outorgantes “a execução da totalidade dos documentos de planeamento e gestão urbanística exigidos pela legislação vigente e aplicável, para sua aprovação junto da Câmara Municipal de …, assim como todos os exigidos para que o Projecto possa ser classificado como de Potencial Interesse Nacional (PIN) (…), mais precisamente, e de modo não limitativo, segundo o preceituado na legislação vigente, e conforme constatado e corroborado por BB, Ld.ª, e DD, Lda, (…) os seguintes:

      1. Levantamento topográfico exaustivo. Sem prejuízo de complementar fielmente a legislação vigente de modo enunciativo e não limitativo, o levantamento topográfico será realizado à escala 1/500, com sinalização de todas as infraestruturas existentes, da totalidade das espécies arbóreas de médio e grande porte, e afloramentos rochosos. Estabelecer-se-ão cotas altimétricas de meio em meio metro;

    2. Masterplan. Elaborado para aprovação na Câmara Municipal de …, conforme o preceituado no n.º 6 da Portaria 232/2008, de 11/03, formado por programa base e definição urbanística, composto por:

      a. Programa base de movimento de terras, viário e de infraestruturas públicas nos arruamentos (rede de abastecimento de águas, rede de esgotos, rede de águas pluviais, rede eléctrica e de iluminação pública, rede de telecomunicações e rede de gás), conforme definido nas instruções para cálculo de honorários de projectos de obras públicas aprovados pela Portaria 07.02.72, com as suas actualizações publicadas no Diário da República n.º 53, IIª Série, de 05.03.86, incluindo, com carácter enunciativo e não limitativo: 1) projectos de arruamentos viários, (2) projectos da rede de abastecimento de águas, (3) projectos da rede de drenagem de esgotos, (4) projectos da rede de drenagem de águas pluviais, (5) projectos da rede eléctrica e de iluminação pública, (6) projectos da rede de telecomunicações e (7) projectos da rede de gás);

      b. Programa base de paisagismo e mobiliário urbano (espaços verdes, rega e drenagem e águas, mobiliário urbano), composto por: (1) projectos inerentes (Master Plan), (2) projecto de espaços verdes, (3) projecto de rega e drenagem e (4) projecto de mobiliário urbano; 3. Estudo de impacto ambiental integral; 4. Estudo económico e financeiro; 5. Estudo prévio, embora exaustivo, do projecto do campo de golfe, composto por: (1) projeto de modelação/shaping, (2) projeto de caminhos, (3) projeto de greens e (4) projeto de sementeiras); 6. Mapa de ruído ou estudo acústico integral; 7. Estudo hidrológico integral”;

26. Nos termos da cláusula quinta, foram acordados os seguintes prazos para execução dos trabalhos:

1. Levantamento topográfico exaustivo: a ser entregue à primeira outorgante no prazo de 30 dias a contar da data da assinatura do contrato;

2. Masterplan: a ser entregue à primeira outorgante no prazo de 75 dias a contar da assinatura do contrato;

3. Estudo de impacto ambiental integral, para candidatura a PIN: a ser entregue à primeira outorgante no prazo de 60 dias a contar da aprovação definitiva pela Câmara de … da proposta de desenvolvimento urbanístico apresentada, sendo que o projecto de loteamento integral terá que ser apresentado no prazo máximo de um ano após a aprovação da informação prévia;

4. Estudo económico e financeiro: a ser entregue à primeira outorgante no prazo de 60 dias a contar da aprovação definitiva pela Câmara de … da proposta de desenvolvimento urbanístico apresentada;

5. Estudo prévio, embora exaustivo, do projeto do campo de golfe: a ser entregue à primeira outorgante no prazo de 60 dias a contar da assinatura do contrato;

6. Mapa de ruído ou estudo acústico integral: a ser entregue à primeira outorgante no prazo de 60 dias a contar da assinatura do contrato;

7. Estudo hidrológico integral: a ser entregue à primeira outorgante no prazo de 60 dias a contar da assinatura do contrato.

27. Nos termos da cláusula sexta foram acordados os honorários profissionais, o tempo e a forma do seu pagamento, tendo ficado consignado que “os honorários profissionais que receberão BB, Ld.ª, e DD, Ld.ª, pela execução dos projectos que se lhes encomendam por meio do presente contrato, ascendem a 375 712,90€, mais IVA, a pagar nos seguintes termos:

1. Levantamento topográfico exaustivo: 20 000,00€;

2. Masterplan – programa base para informação prévia: 122 622,40€;

3. Estudo de impacto ambiental integral: 25 000,00€;

4. Estudo económico e financeiro: 61 500,00€;

5. Estudo prévio, para informação prévia, do Projecto do campo de golfe: 106 690,50€;

6. Mapa de ruído ou estudo acústico integral: 15 500,00€;

7. Estudo hidrológico integral: 12 000,00€.”

28. Nos termos da mesma cláusula, os honorários referidos deveriam ser pagos nos seguintes termos:

1. 100 000,00€, mais IVA, no momento da assinatura do contrato;

2. 100 000,00€, mais IVA, no prazo de 5 dias a contar da data da entrega dos projectos definitivos na Câmara de … ou Administração competente para a sua aprovação cumprindo fielmente as normas vigentes aplicáveis;

3. 100 000,00€, mais IVA, no prazo de 10 dias a contar da aprovação pela Câmara Municipal de Seia do pedido de informação prévia;

4. O restante, ou seja, 75 712,90€, mais IVA, no prazo máximo de 10 dias a contar da aprovação pelo AICEP da resolução definitiva do projecto apresentado pela primeira outorgante como Projecto de Potencial Interesse Nacional.

29. Nos termos da cláusula sétima, as segundas outorgantes obrigaram-se ainda “a manter permanentemente informada a primeira outorgante de todos os progressos que se vão produzindo, emitindo para tal efeito, semanalmente, BB, Ld.ª, e DD, Ld.ª, informação exaustiva dos trabalhos realizados e do estado dos mesmos”.

30. Até ao dia 29 de Abril de 2009 a autora já havia entregado às sociedades rés a quantia de 120 000,00€.

31. Aquando do aditamento contratual de 29.04.2009, a autora apenas tinha pago às rés a quantia de 100 000,00€, mais IVA legal, no montante global de 120 000,00€.

32. Tal acordo foi objecto de uma alteração contratual, formalizada por escrito outorgado pelas mesmas partes no dia 29 de Abril de 2009, nos termos do qual as partes acordaram uma modificação parcial da cláusula sexta do contrato, concretamente no que concerne ao tempo de pagamento dos honorários acordados, tendo as partes acordado que os mesmos deveriam ser pagos nos seguintes prazos:

1. 100 000,00€, mais IVA: foram pagos pela primeira outorgante no momento da assinatura do contrato de 10/09/2008;

2. 20 000,00€, mais IVA: a pagar pela primeira outorgante no prazo de 2 dias a contar da data da subscrição da presente alteração, com entrega de recibo da referida importância;

3. 30 000,00€, mais IVA: a pagar pela primeira outorgante no prazo de 20 dias a contar da data da subscrição do acordo entre a primeira outorgante e a Câmara de Seia, para levar a cabo o projeto de desenvolvimento urbanístico apresentado pela primeira outorgante;

4. 50 000,00€, mais IVA: a pagar pela primeira outorgante no prazo de 20 dias a contar da data da aprovação definitiva pela Câmara de … do desenvolvimento urbanístico solicitado, e em consequência a totalidade dos projetos apresentados, sem que em caso algum possa ultrapassar o dia 28/10/2009;

5. 100 000,00€, mais IVA: a pagar pela primeira outorgante no prazo de 20 dias a contar da data da apresentação perante o organismo competente da totalidade dos documentos exigidos pela legislação vigente e aplicável, e pela administração ou demais organismos competentes para que o projecto apresentado pela primeira outorgante possa ser declarado como projeto de potencial interesse nacional;

6. O restante, ou seja, 75 712,90€, mais IVA, no prazo máximo de 10 dias a contar da data da aprovação pele Administração da resolução definitiva do projeto apresentado pela primeira outorgante como Projeto de Potencial Interesse Nacional.

33. Desde a data do início dos trabalhos até data da instauração da ação, a autora pagou às sociedades rés as seguintes quantias:

1. Em 30.09.2008: 24.000,00€ à primeira ré;

2. Em 30.10.2008: 24.000,00 à terceira ré;

3. Em 30.10.2008: 72.000,00 à primeira ré;

4. Em 30.04.2009: 19.200,00 à primeira ré;

5. Em 21.12.2010: 76.800,00 à primeira ré – tudo no montante global de 216.000,00€.

34. Nesse âmbito, a ré “BB, Ld.ª”, por intermédio do réu CC, prestou à autora os serviços objecto do contrato celebrado e supra descrito.

35. Das importâncias referidas em 33. a ré “DD” apenas recebeu a quantia de 24 000,00€, que corresponde a serviços efectivamente prestados por esta, tendo sido emitido e entregue à autora o respectivo recibo.

36. Tal montante corresponde exactamente ao valor dos serviços da sua especialidade, efectivamente prestados na fase de planeamento e no âmbito da informação prévia que deu entrada na Câmara de …, que lhe foram solicitados pelo arquitecto CC;

37. Todos os demais valores referidos em 33. foram recepcionados pelo arquitecto CC, como legal representante da sociedade BB, Ld.ª.

38. A autora sabe que todas as negociações foram feitas com o arquitecto CC e sempre reconheceu que este era o responsável pelo projeto e quem o liderava.

39. Para o projecto avançar com a candidatura aos fundos comunitários era necessário a aprovação do projecto de arquitectura e estudos necessários ao início das obras de construção do empreendimento - projectos estes que, ainda assim, estariam sempre dependentes da prévia aprovação do plano de pormenor, sem o qual não era possível determinar o tipo e a quantidade de construção possível no local.

40. Para proceder à candidatura do projecto a PIN e aos fundos comunitários era necessário proceder à elaboração de vários projectos de arquitectura e de estudos, o que a autora sabia.

41. Em Agosto de 2011, para o efeito, os Réus reuniram na Câmara Municipal de … com o executivo do município, serviços técnicos municipais, com uma representante do Turismo de Portugal, Dra. JJ, com a Dra. II, esta representante da autora, e CC.

42. Para além do referido contrato de 10.09.2008 e da alteração de 29.04.2009, não foi celebrado qualquer outro contrato a alterar ou derrogar aquele.

43. A Câmara Municipal de … não emitiu alvarás ou licenças relativamente ao empreendimento em causa, cujos requerimentos, a apresentar em nome da autora, estavam sempre dependentes da prévia aprovação do plano de pormenor, que se encontrava a ser impulsionado por aquela entidade.

44. Em 17 de Janeiro de 2012, a Autora celebrou um contrato de prestação de serviços com a “FF, Lda.” .

45. Devido ao tipo de projecto em causa, foi elaborada o “Plano de Pormenor do Sector da Jagunda”, e aprovado pela Assembleia Municipal da Câmara Municipal de … no dia 28 de Setembro de 2012, tendo sido publicado em Diário da República no dia 18 de Janeiro de 2013.


De direito:

         Perante as conclusões das alegações dos recorrentes, as quais, salvo questão de conhecimento oficioso, delimitam o âmbito de apreciação do seu objecto, são as seguintes as que se colocam à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça:

• Nulidade de acórdão por oposição entre os fundamentos e a decisão;

• Direito da recorrente AA, Lda., à restituição dos valores pagos;

• Direito dos recorrentes BB, Lda., e CC ao pagamento do remanescente dos honorários acordados e do valor dos trabalhos realizados.


1. Da nulidade do acórdão recorrido.

A oposição entre os fundamentos e a decisão que determina a nulidade da decisão (alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil) consubstancia um vício real de raciocínio do julgador que se traduz no facto de a fundamentação (i.e. as premissas do silogismo judiciário) se mostrar incongruente com a decisão (conclusão) que dela deve logicamente decorrer.

Assim, deparamo-nos com este vício sempre que as premissas apontem inexoravelmente para um determinado sentido decisório, vindo, porém, a decisão a revelar-se em antinomia ou, pelo menos, em dissonância com esse sentido.

No caso dos autos, temos que a contradição detectada pelos recorrentes BB, Lda., e CC se localiza entre o teor do ponto de facto n.º 34 e a conclusão de que os mesmos não lograram demonstrar a inexistência de culpa na falta de reconhecimento do estatuto de “Projecto de Interesse Nacional” ao projecto da recorrente AA, Lda., e, bem assim, com o facto de não se ter provado que aqueles recorrentes não cumpriram qualquer uma das obrigações a que se vincularam.

Como decorre dos próprios termos em que a questão vem colocada, não nos deparamos com uma contradição insanável entre as premissas menores (factuais e/ou jurídicas) e a premissa maior (a decisão tomada) do silogismo judiciário, razão por que a pretensa contradição jamais poderia ser enquadrada na nulidade a que vimos aludindo.

Com efeito, a apreciação da argumentação aduzida ex adverso pelos recorrentes convoca a problemática do erro de julgamento fundado no erro de interpretação dos factos, mas não é reconduzível à ilogicidade que tipifica a aludida nulidade da decisão.

A contradição apontada por aqueles recorrentes, a verificar-se, poderia, quando muito, determinar o reenvio do processo para ampliação da matéria de facto caso a ilogicidade alegada tornasse inviável a decisão do pleito (n.º 3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil).

Consideramos, todavia, que não se verifica a apontada contradição.

Na verdade, a circunstância de ter resultado demonstrado que foi executado o acordado (e, concomitantemente, de não se ter provado qualquer incumprimento do acordo) é perfeitamente conjugável com a valoração jurídica extraída pela Relação, como se verá infra.

Desse modo, não existe razão para determinar a baixa do processo para o aludido efeito, como pretendido pelos recorrentes José Cardia Arquitectos, Lda., e CC, não se verificado a arguida nulidade.

2. Do Direito da recorrente AA, Lda., à restituição dos valores pagos.

            Cumpre assinalar, antes de mais, que a autora e recorrente AA, Lda., decaiu, em ambas as instâncias, no pedido de condenação dos réus no pagamento da quantia de € 302.998,14.

Todavia, enquanto a 1.ª Instância qualificou juridicamente como contrato de empreitada o contrato a que aludem os pontos n.º 24 a 29 do elenco factual e concluiu pela falta de demonstração de factos que evidenciassem incumprimento ou cumprimento imperfeito das prestações a cargo dos réus, também recorrentes, BB, Lda., e CC, o Tribunal da Relação, diferentemente, enquadrou o mesmo ajuste no contrato de prestação de serviço e, tendo considerado que lhe eram subsidiariamente aplicáveis as regras do contrato de mandato, decidiu ter a recorrente AA, Lda., operado a revogação tácita do mesmo, não lhe reconhecendo, por isso, qualquer direito a uma compensação.

A simples enunciação das motivações jurídicas das instâncias para denegarem a pretensão da recorrente AA, Lda., evidencia que a argumentação das respectivas decisões é dissemelhante entre si, pelo que, apesar de o acórdão da Relação ter confirmado o segmento decisório da sentença apelada, é patente que não existe o grau de similitude que é requerido pelo n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil entre a fundamentação de cada uma das decisões para a verificação de dupla conforme. 

O que tem como consequência a admissibilidade da revista da recorrente AA, Lda., apesar da conformidade decisória das instâncias.

Entrando na apreciação do mérito do recurso, temos que não vem questionado por qualquer dos recorrentes o enquadramento jurídico feito pela Relação do contrato que celebraram nem a valoração que o acórdão recorrido efectuou a respeito do facto contido no ponto n.º 44 do elenco factual.

Por tal razão e em obediência ao estatuído no n.º 5 do artigo 635.º do Código de Processo Civil, a resolução da questão a decidir terá por base a qualificação jurídica do contrato corporizado nos pontos de facto n.º 24 a 29 como contrato de prestação de serviço (artigo 1154.º do Código Civil).

É sabido que tal contrato não dispõe de regime próprio e que lhe são aplicáveis, com as devidas adaptações, as disposições do contrato de mandato (artigo 1156.º do Código Civil).

Partindo desta constatação, entende-se a perspectiva do acórdão recorrido quando reconduz a celebração do contrato entre a recorrente AA, Lda., e a FF, Lda., (ponto n.º 44 do elenco factual) à revogação tácita dessoutro contrato, o que, nos termos antes explicitados, se assume como segunda premissa de resolução da questão a decidir.

   À luz do regime jurídico do contrato de mandato, subsidiariamente aplicável, é possível fazer cessar o contrato por vontade unilateral provinda do mandante ou do mandatário e independentemente da apresentação de qualquer motivo justificativo (n.º 1 do artigo 1170.º do Código Civil). Trata-se de uma faculdade que excepciona a regra constante do n.º 1 do artigo 406.º do mesmo diploma (inserindo-se, pois, na ressalva constante da parte final desse preceito) e que corresponde a uma tradição que remonta ao direito romano e que encontra expressão noutros ordenamentos jurídicos.

Tal faculdade justifica-se tendo em atenção a natureza fiduciária do vínculo contratual estabelecido entre mandante e mandatário e o facto de o mesmo estar predominantemente orientado para a prossecução do interesse do mandante.

O exercício dessa faculdade estende-se, em princípio, ao contrato de prestação de serviço, dado que o recebedor pode, por exemplo, ter perdido a confiança no prestador (neste sentido os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 30 de Junho de 2009 (proc. n.º 288/09.1YFLSB.S1) e de 1 de Julho de 1997 (proc. n.º 97A388), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.

Embora a livre revogabilidade do mandato seja tida como um dos traços característicos deste tipo contratual, a lei afasta-a quando esteja em causa um mandato conferido também no interesse do mandatário (o denominado “mandato de interesse comum” ou in rem propriam por contraponto ao mandato puro), salvo ocorrendo justa causa (n.º 2 do artigo 1170.º do Código Civil).

O interesse do mandatário no mandato não quer significar a mera vantagem económica que aquele extrai da sua consecução, ou seja, a simples onerosidade do mandato não determina a sua irrevogabilidade (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Março de 2011, proc. n.º 2464/03.1TBALM.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt).

O n.º 2 do artigo 1170.º do Código Civil refere-se a um “interesse jurídico ou mais concretamente reconduzir-se à existência de um direito subjectivo do mandatário ou de terceiro realizável através da actividade” (cfr. Irene Seição Girão, ob. cit., pág. 394, Adelaide Menezes Leitão, «Revogação Unilateral» do Mandato, Pós-eficácia e responsabilidade pela confiança – Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. I, Almedina, págs. 325 e 326, e, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 2003, proc. n.º 03B3634, e de 9 de Janeiro de 2003, proc. n.º 02B4134, acessíveis em www.dgsi).

Trata-se, assim, de um interesse que se traduz em satisfazer ou assegurar um verdadeiro direito subjectivo do mandatário que se revela merecedor de ser colocado num plano superior ao interesse do mandante e que encontra a sua razão de ser numa diversa relação jurídica que antecede o contrato de mandato, o qual surge assim como um mero acto de cumprimento da obrigação (é correntemente mencionado o exemplo da dação pro solvendo – artigo 840.º do Código Civil). 

Daí que, como lapidarmente escreveu Jacinto Rodrigues Bastos quando o negócio pertence também ao mandatário, o mandante não pode dele dispor à sua vontade (Notas ao Código Civil, vol. IV, pág. 279).

Já estando em causa um puro contrato de mandato, a designação de um novo mandatário por parte do mandante para a prática dos mesmos actos implica a revogação tácita do mandato (artigo 1171.º do Código Civil).

    Vejamos, pois, se pode ter acolhimento a alegação dos réus no sentido de que a revogação do contrato de prestação de serviço pela autora AA, Lda., foi ilegal, em virtude de o mesmo ter sido celebrado também no interesse dos prestadores.

Podemos adiantar, desde já, que não lhes assiste razão.

Isto porque não se descortina na facticidade provada qualquer facto susceptível de conduzir à conclusão de que subjacente à contratação dos serviços aludidos no ponto de facto n.º 26 esteve qualquer relação jurídica pré-existente entre todos os recorrentes por via da qual essa contratação correspondesse ao cumprimento de uma obrigação nela assente. Não se evidencia, de igual modo, qualquer convénio que exprima essa ligação funcional.

Por isso e não podendo, como vimos, reconduzir-se o interesse a que alude o n.º 2 do artigo 1170.º do Código Civil à onerosidade do contrato, que emerge das estipulações contratuais mencionadas nos pontos n.º 28, 29 e 31 do elenco factual, é de concluir que esse preceito não tem aqui aplicação.

Daí a irrelevância da falta de concordância com a revogação do contrato manifestada pelos réus/recorridos BB, Lda., e CC no seu recurso de revista.

Nada obsta, pois, a que se reconheça a conformidade legal do acto de revogação tácita traduzido na superveniente contratação pela autora da FF, Lda., para a prestação daqueles serviços (ponto de facto n.º 44).

      Importa, por conseguinte, apreciar se, como defende a autora AA, Lda., a revogação unilateral do contrato de mandato, fora do contexto específico da revogação do mandato conferido no interesse do mandatário, assentou em motivos pessoais e funcionou à margem da relação jurídica estabelecida com os réus, atingindo-a apenas reflexamente.

A revogação do mandato, no caso em análise, é de caracterizar como uma manifestação de vontade discricionária que não está subordinada à invocação de qualquer fundamento (cfr. José Carlos Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil - Do enquadramento e do regime, Coimbra, págs. 48 a 51), embora se lhe reconheça uma eficácia extintiva meramente ex nunc, o que significa que não se extinguem os direitos da parte a quem é imposta a revogação, sendo-lhe, consequentemente, inaplicável a disposição do artigo 433.º do Código Civil, preceito que equipara os efeitos da declaração resolutiva aos efeitos da anulabilidade (artigo 289.º do mesmo diploma).

Torna-se, pois, claro que a revogação unilateral não é passível de ser confundida com a resolução do contrato, apesar de a resolução operar, em regra, também por um acto jurídico unilateral (n.º 1 do artigo 436.º do Código Civil).

Na verdade, a resolução contratual apenas é admitida nos casos previstos no contrato ou na lei (n.º 1 do artigo 432.º do mesmo código), sendo indistintamente atribuída a qualquer uma das partes contratantes e assenta, em regra, num poder vinculado, porquanto o autor da declaração resolutiva tem de alegar e demonstrar o fundamento resolutivo que suporta a destruição retroactiva da relação contratual.

Por outro lado, a atribuição de eficácia retroactiva à declaração resolutiva visa repor, para o contraente cumpridor, a situação de que era titular aquando da celebração do contrato através da restituição do que prestou. A atribuição da eficácia retroactiva à resolução está indissociavelmente ligada à função recuperatória-liberatória desse mecanismo, o que ajuda a perceber as limitações à eficácia retroactiva, nomeadamente, a consagrada no n.º 2 do artigo 432.º do Código Civil. 

Ora, não é esse o escopo nem o alcance da faculdade conferida pelo n.º 1 do artigo 1170.º do Código Civil, como vimos, sendo que inexiste qualquer interesse do mandante (autora) que justifique a reposição do status quo pré-existente à celebração do contrato de mandato.

Desta ordem de considerações resulta, desde logo, que a assimilação do acto de revogação unilateral à resolução preconizada pela autora/recorrente AA, Lda., carece, em absoluto, de sustentação dogmática, sendo claro que a atribuição de eficácia retroactiva ao acto de revogação unilateral do contrato não é susceptível de ser determinada pelas partes.

Ao contrário do que expressamente entende a recorrente AA, Lda., os efeitos da revogação unilateral não são aqueles que as partes entenderem conferir-lhe em ordem a regularem os seus interesses. Diferente seria se nos encontrássemos no campo do distrate ou da revogação do contrato por mútuo consenso.

Aliás, a valoração da facticidade provada não evidencia que subjacente à contratação da FF, Lda., tenha estado qualquer intenção de extinguir os efeitos do contrato antes ajustado réus/recorridos BB, Lda., e CC e com a recorrida “DD, Lda., tanto mais que a mesma não revela qualquer incumprimento contratual imputável a estes últimos.

De realçar que, aquando da celebração do contrato com contratação da FF, Lda., em 17 de Janeiro de 2012, não estava ainda aprovado o Plano de Pormenor. Tal só veio a acontecer em 28 de Setembro de 2012 (cfr. ponto de facto n.º 45), sendo certo que a aprovação não dependia da actuação dos réus, mas, antes e tão-só, do impulso da Câmara Municipal de … (cfr. ponto de facto n.º 43).

Tenha-se ainda em conta que o projecto de arquitectura e a realização estudos necessários ao início da obra estavam também dependentes da prévia aprovação daquele documento, conforme resulta dos pontos de facto n.º 40 e 41, pelo que mal se percebe o alegado pela autora na conclusão 15ª.

Não se apurou, de resto, qualquer desconformidade entre os documentos elaborados pelos réus/recorridos José Cardia Arquitectos, Lda., e CC e/ou pela recorrida DD, Lda., e a legislação vigente ou a falta de elaboração da necessária documentação.

Destarte, inexiste fundamento fáctico e dogmático para, no que tange à eficácia retroactiva, equiparar a revogação unilateral do contrato de prestação de serviços à sua resolução por incumprimento/cumprimento defeituoso do acordado.

Aliás, perante o alegado nas conclusões 11. a 15., não se descortina dos factos provados qualquer razão para a recorrente AA, Lda., não ter dirigido às suas contrapartes uma declaração resolutiva, como seria expectável em face do ali mencionado.

Assim, não se vê que, por força da revogação unilateral do contrato de prestação de serviços, impenda sobre os réus/recorridos BB, Lda., e CC (e ainda sobre a recorrida “DD, Lda.”) a obrigação de devolverem as quantias recebidas ao abrigo desse contrato.

      E tal obrigação também não pode assentar no instituto do enriquecimento sem causa.

É que, por um lado, a recorrente AA, Lda., apenas fez alusão a tal instituto em sede de recurso de revista, não tendo alegado, nos articulados, os pertinentes factos e o respectivo enquadramento.

Por outro lado, o enriquecimento sem causa não constitui questão de conhecimento oficioso. Assim, o facto de esse enquadramento apenas ter sido invocado no presente recurso transmuta-o em questão nova.

Ora, como se sabe, os recursos destinam-se a reapreciar as decisões proferidas pelos tribunais de hierarquia inferior e não a proferir decisões sobre matéria nova, que não foi objecto de prévia decisão na instância imediatamente inferior.

Como tal, essa questão está subtraída ao poder cognitivo deste Supremo.

Por outro lado, e ainda que assim não fosse, o certo é que o pretenso empobrecimento da recorrente AA, Lda., não seria desprovido de causa justificativa. Com efeito, a valoração da facticidade provada evidencia que os pagamentos das quantias aludidas no ponto n.º 33 do elenco factual assentou na existência de um contrato de prestação de serviços, sendo inviável, à luz do que expusemos acerca da revogação unilateral do mesmo, aquela recorrente obter, concomitantemente, com o efeito extintivo daquele ajuste, a restituição do que prestou.

Destarte, também por esta razão, inexistem motivos para reconhecer viabilidade à pretensão da recorrente AA, Lda.


3. Do direito dos recorrentes BB, Lda., e CC ao pagamento do remanescente dos honorários acordados e do valor dos trabalhos realizados.

Voltando ao recurso interposto por BB, Lda., e CC, perpassa das conclusões da sua alegação a ideia de que entendem que a Relação decidiu erradamente ao concluir que não tinham sido executados todos os trabalhos contratados e que a falta de reconhecimento do estatuto de “Projecto de Interesse Nacional” lhes era imputável.

Importa recordar que, como vimos, a AA, Lda., procedeu à revogação lícita do contrato firmado com aqueles recorrentes.

Resta, contudo, averiguar se, não obstante a revogação, lhes é ainda devido o pagamento da totalidade dos honorários acordados em contrapartida dos serviços acordados. É que a revogação unilateral do mandato não prejudica os direitos do mandatário que se hajam vencido em momento anterior (cfr. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, Almedina, 3ª ed., pág. 507).

Da concatenação entre o teor dos pontos n.º 34 e 44 dos factos provados resulta que a recorrente BB, Lda., por intermédio de CC, prestou à Autora/recorrida os serviços que integravam o objecto do contrato celebrado entre ambas, tendo, depois, sobrevindo a contratação da FF, Lda., para o mesmo efeito.

Sabemos, por outro lado, que a recorrida AA, Lda., pagou um total de € 216.000,00 por conta daquele contrato, sendo que o montante global dos honorários ajustados ascendia a € 375.912,90, acrescidos de IVA (cfr., respectivamente, pontos de facto n.º 31 e n.º 27).

Assim, seria de considerar que estava em dívida o montante € 159.912,90, como, aliás, sustentam aqueles recorrentes.

Todavia, nos termos acordados na alteração contratual de 29 de Abril de 2009 (ponto de facto n.º 32), as quantias de € 100.000,00 e de € 75.712,90 apenas seriam devidas pela recorrida AA, Lda., respectivamente, (…) no prazo de 20 dias a contar da data da apresentação perante o organismo competente da totalidade dos documentos exigidos pela legislação vigente e aplicável e pela administração ou demais organismos competentes para que o projecto apresentado pela primeira outorgante possa ser declarado como projecto de potencial interesse nacional (…) e (…) no prazo (…) de 10 dias a contar da data da aprovação pele Administração da resolução definitiva do projecto apresentado pela primeira outorgante como Projeto de Potencial Interesse Nacional.

Não consta do elenco factual provado que algum dos supra aludidos factos se tenha verificado antes de ter ocorrido a revogação tácita do mandato. Aliás, o que decorre dos factos provados é que o “Plano de Pormenor do Sector da Jagunda” foi aprovado pela Assembleia Municipal da Câmara Municipal de … no dia 28 de Setembro de 2012, logo em momento subsequente à contratação da FF, Lda.

Assim, da concatenação dos termos acordados com o momento em que se deu a revogação tácita, torna-se claro não haver lugar ao pagamento da totalidade das prestações em que foi fraccionado o montante global dos honorários acordados.

Entendem ainda os mesmos recorrentes ser-lhes devido o valor dos serviços que prestaram, mas sem que exista base factual respeitante ao valor atribuído aos mencionados trabalhos. Não se apurou ainda que esse putativo valor tivesse merecido a concordância da recorrida AA, Lda., e, menos ainda, que correspondesse à valia objectiva dos mesmos.

Daí que se possa concluir, desde já, que tal valor é indevido.

Mas mesmo que existisse base factual para essa pretensão, o certo é que seria dogmaticamente incorrecto reconduzi-la ao pagamento dos honorários acordados, sendo antes mais ajustado enquadrá-lo no contexto de uma indemnização contratual.

Assim e na esteira do já expendido acerca da aplicação subsidiária das regras do contrato de mandato, há que considerar a questão à luz da previsão do artigo 1172.º do Código Civil, independentemente de não ter sido esse o enquadramento convocado na reconvenção. Trata-se, como se sabe, de matéria em que o juiz não está sujeito às alegações das partes (n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil).

A obrigação de indemnizar prevista naquele preceito da lei substantiva civil constitui um contrapeso face ao exercício da faculdade de revogação conferida pelo n.º 1 do artigo 1170.º do Código Civil (Acórdão deste Supremo Tribunal de 10.12.2013, proc. nº 6329/06.7TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt). Trata-se de um caso de responsabilidade objectiva por factos lícitos, que pode derivar da vontade das partes (al. a) do artigo 1172.º do Código Civil) ou do incumprimento de deveres contratuais (restantes alíneas do mesmo preceito).

No caso vertente, poder-se-ia conjecturar a aplicabilidade da previsão da alínea c) daquele preceito, tendo em atenção, por um lado, a supra aludida onerosidade do contrato e o facto de o mesmo ter por objecto a elaboração dos documentos de planeamento e gestão urbanística identificados na cláusula 2.ª –uma prestação dirigida a assunto determinado – e, por outro, a inexistência de factos que evidenciem que a revogação se baseou em justa causa.

Nesse contexto, o prejuízo adveniente da revogação determina-se em função da compensação que o mandato deveria, na normalidade das coisas, propiciar ao mandatário, a tal correspondendo o respectivo lucro cessante.

Tal não significa, porém, que a medida do ressarcimento deva, sem mais, corresponder às retribuições contratualmente previstas, cabendo antes à parte afectada com o exercício desta faculdade o ónus de alegar e provar quais os prejuízos efectivamente sofridos para o que relevarão, ademais, as despesas em que não se incorreu em virtude da cessação intempestiva do vínculo contratual, já que a indemnização visa repor a situação que existiria se o mandato não tivesse sido revogado, isto é, visa indemnizar o interesse contratual negativo.

Ora, no caso em apreço, os recorrentes BB, Lda., e CC não alegaram quaisquer factos – como se lhes impunha (cfr. n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil) – reveladores de que sofreram danos com a revogação tácita do contrato de prestação de serviços e, muito menos, invocaram qualquer razão para serem ressarcidos através do pagamento do valor que atribuem aos trabalhos de arquitectura em questão.

E mesmo que equacionássemos a questão à luz da responsabilidade contratual (artigo 798.º do Código Civil), a solução não seria diversa, justamente porque, mesmo nesse enquadramento, prevaleceriam as mesmíssimas razões.

Logo, também por este prisma, não lhes seja devido o montante a esse título peticionado.


III. Decisão:

     Pelo exposto, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em negar as revistas e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 12 de Julho de 2018


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado