Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98S086
Nº Convencional: JSTJ00036200
Relator: JOSÉ MESQUITA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
HORÁRIO DE TRABALHO
ABUSO DE DIREITO
RESCISÃO PELO TRABALHADOR
Nº do Documento: SJ199902240000864
Data do Acordão: 02/24/1999
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N484 ANO1999 PAG246
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 415/97
Data: 11/24/1997
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR TRAB - CONTRAT INDIV TRAB. DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 334.
DL 409/71 DE 1971/09/27 ARTIGO 11 N1 ARTIGO 12 N3.
LCCT89 ARTIGO 35 N1 A.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1977/07/07 IN BMJ N268 PAG174.
Sumário : I - Constitui abuso de direito a alteração, não proibida, do horário de trabalho para uma hora que obriga o trabalhador a um percurso de 5 quilómetros a pé para apanhar transporte que só permita a sua apresentação no local de trabalho após a nova hora fixada, quando o trabalhador só aceitou a alteração se lhe fosse fornecido transporte, inicialmente concedido e depois retirado.
II - Esta situação de abuso de direito tem de se considerar culposa e determina que a entidade empregadora seja obrigada a pagar a retribuição correspondente aos dias em que o trabalhador compareceu no local de trabalho.
III - Aquela alteração e recusa de entrada nas instalações do empregador constitui justa causa para rescisão do contrato por parte do trabalhador.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. A, e B, com os sinais dos autos, intentaram no Tribunal do Trabalho de Barcelos a presente acção com processo ordinário, emergente de contrato individual de trabalho, contra:
C, também devidamente identificada nos autos, pedindo:
- que seja declarado ilícito o seu despedimento e a Ré condenada a reintegrá-las, salvo opção de indemnização de antiguidade e a pagar-lhes os salários e subsídios desde o despedimento até à data da sentença e, a título de danos morais, 3317000 escudos, à primeira, e 2996000 escudos, à segunda,
- que seja declarado terem rescindido o contrato de trabalho com justa causa e a Ré condenada a pagar-lhes, respectivamente 1685500 escudos e 1498000 escudos, acrescidas das seguidas indemnizações a título de danos morais, tudo com juros.
Alegaram, em síntese, e para o que aqui importa:
- Ter-lhes a Ré alterado o começo do horário de trabalho que era às 8 horas e passou para as 6 horas da manhã;
- Ter-lhes proporcionado transporte apenas durante dois meses;
- Findos estes e porque não dispunham de transporte público que lhes permitisse chegar ao local de trabalho às 6 horas, apresentaram-se às 8 horas, cumprindo o horário anterior;
- A Ré recusou-lhes a entrada por vários dias em que continuaram a apresentar-se por volta das 7 horas e 30 minutos.
Configurando esta atitude um despedimento sem justa causa e, portanto, ilícito ou, sempre teria fundamento para invocar, como realmente invocaram, por mera cautela, rescisão do contrato com justa causa, por carta datada de 23 de Junho de 1994, com efeitos a partir de 24.
2. Contestou a Ré, alegando, em resumo:
- que nunca despediu as Autoras, tendo o seu contrato de trabalho caducado apenas em 24 de Junho de 1994, por força das cartas que lhe enviaram a comunicar a rescisão unilateral;
- que a alteração do horário foi ditado para fazer face a imperativos de concorrência no sector;
- que o transporte facultado, sempre o foi com carácter transitório, o que as A.A. aceitaram;
- estavam, pois, vinculadas a iniciar o trabalho às 6 horas da manhã;
- não há justa causa para a rescisão pelas Autoras que, por isso, incorreram em sucessivas faltas não justificadas;
- a rescisão devia ser comunicada com 60 dias de antecedência.
Conclui pedindo que as acções sejam julgadas improcedente e, em reconvenção, que cada uma das Autoras seja condenada a pagar-lhe 107000 escudos de indemnização devida pela falta de aviso prévio.
3. Responderam as Autoras, invocando a inaptidão da reconvenção, por falta de indicação dos valores, o que foi suprido pela Ré.
4. Foi proferido despacho saneador a admitir a reconvenção, organizada a especificação e o questionário, prosseguindo o processo para julgamento, realizado e qual foi proferida a douta sentença de folhas 160 e seguintes, na qual se decidiu:
- absolver a Ré de todos os pedidos principais;
- julga parcialmente procedentes cada um dos pedidos subsidiários e a Ré condenada a pagar a cada uma das Autoras a quantia de 1658500 escudos, com juros de mora à taxa de 15 por cento, desde a citação até 30 de Setembro de 1995 e à taxa de 10 por cento de 1 de Outubro de 1995 até ao pagamento;
- absolver a Ré dos demais pedidos subsidiariamente;
- absolver as Autoras do pedido reconvencional formulado pela Ré.
5. Desta sentença recorreu a Ré de apelação para a Relação do Porto que por seu acórdão de folhas 200 e seguintes lhe negou provimento pelos fundamentos da decisão recorrida e, assim, inteiramente confirmada.
II
1. É deste aresto que vem o presente recurso de revista, interposto pela Ré, no qual começa por arguir a nulidade do acórdão da Relação, por violação das conjugadas disposições dos artigos 158, ns. 1 e 2, 659, n. 2, 660, n. 3 e 668, n. 1, alínea b), todos do Código de Processo Civil, por falta de motivação e, apresenta depois as seguintes CONCLUSÕES:
1. As recorridas deixaram de receber qualquer remuneração a partir de 14 de Abril de 1994 e na comunicação que dirigiram à recorrente a rescindirem os seus contratos de trabalho, que teve lugar cerca de dois meses depois, aí referiram também que o não pagamento dos salários se verificava desde 15 de Abril de 1994, estando há muito excedido o prazo de 15 dias subsequente ao conhecimento dos factos, pelo que, por força do n. 2 do artigo 34, do Decreto-Lei 64-A/89, era devido às recorridas e ao tribunal justificarem as rescisões dos contratos com arrumo nesses factos.
2. Por outro lado, a legitimidade de rescisão dos contratos de trabalho das recorridas só podia ser apreciada com base no fundamento por elas invocado, a falta de pagamento de salários com louvação no disposto no artigo 3 da Lei n. 17/86 e nunca a partir das alíneas a) e h) do n. 1, do artigo 35 do Decreto-Lei n. 64-A/89.
3. Para que a rescisão de um contrato de trabalho possa ser feita, a partir do n. 1 do artigo 35 do Decreto-Lei 64-A/89, tem que existir justa causa assente num comportamento culposo da entidade patronal.
O abuso de direito pressupõe a existência do próprio direito exercido sem culpa e esgota-se no plano da ilicitude, com a única consequência de determinar a não tutela do direito assim exercido, sem que se invista o lesado num direito de sinal contrário. Consequentemente, o imposto abuso de direito por parte da recorrente não é culposo e, por essa via o artigo 334 do Código Civil não é aplicável ao caso dos autos e nunca constituiria justa causa de rescisão dos contratos de trabalho das recorridas ao abrigo do artigo 35 do Decreto-Lei 64-A/89.
4. De qualquer modo, a recorrente não abusou do seu direito de determinar às recorridas num horário de trabalho semanal, já que o mesmo foi imposto por exigências do seu funcionamento e de sobrevivência e actuou de boa fé e na prossecução do escopo económico e social desse seu direito "que vem previsto no artigo 11 do Decreto-Lei n. 409/71, de 27 de Setembro, e, por seu turno o único interesse dos recorridos que foi aplaudido, a falta de transporte, não tem qualquer relevância jurídica.
5. E, não havendo abuso do direito, a sentença recorrida fez uma indevida interpretação e aplicação do direito na medida em que a factualidade sub judice não é subsumível à previsão do artigo 334 do Código Civil, e do n. 1, do artigo 35 do Decreto-Lei 64-A/89 e seria, quando muito, enquadrável na previsão da alínea b) do n. 2, do artigo 35 do mesmo diploma, que não confere direito a qualquer indemnização, conforme resulta o seu artigo 36.
Conclui pedindo a revogação do acórdão e da sentença da 1. instância.
2. As recorridas contra-alegaram sustentando o julgado.
3. Neste Supremo, a Excelentíssima Procuradora Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da concessão da revista, por entender não se verificar a justa causa invocada pelas Autoras para a rescisão dos seus contratos de trabalho.
4. Notificadas as partes deste Parecer, responderam as Autoras discordando da posição aí sustentada e repetindo o pedido de confirmação do decidido pelas instâncias.
III
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
1. Começar-se-á por dizer que não se verifica a arguida nulidade da falta de motivação, uma vez que, como se disse no acórdão de folha 256, a este propósito proferido pela Relação ao caso é aplicável o regime do n. 5 do artigo 713, do Código de Processo Civil, introduzido na Revisão operada pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro.
A sentença da 1. instância tem a data de 5 de Fevereiro de 1997 - cit. folha 176 -, e por isso, vale o disposto no artigo 25 daquele diploma: 1. É aplicável aos recursos interpostos de decisões proferidas nos processos pendentes após a entrada em vigor do presente diploma o regime estabelecido pelo Código de Processo Civil, na redacção dele emergente, com excepção..." (as excepções não respeitam ao caso em apreço).
Crê-se que só por não terem atentado no novo regime a recorrente terá arguido esta nulidade, até pelo silêncio que guarda sobre as alterações trazidas pela Reforma.
Nestes termos se desatende a invocada nulidade.
2. Entremos agora na apreciação das questões de fundo e que são fundamentalmente:
- o abuso de direito na alteração do horário de trabalho e a justa causa para a rescisão dos contratos.
3. A arguição da nulidade por excesso de pronúncia, levada à apelação, parece ter sido abandonada na revista, embora a folha 237, in fine, timidamente se vá deixando a alegação de que "... o tribunal a quo conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento.
Porém, este ponto não foi levado às conclusões, ao contrário do que sucedeu na apelação - v. folha 207 - o que só pode ter o significado de o ter abandonado.
De resto, o acórdão recorrido deu-lhe adequado e cabal tratamento. E basta atentar na matéria de facto provada, designadamente os pontos 14 e 15, onde se reproduzem as cartas de folha 19, deste processo e de folha 18 do apenso, para logo se condenar que a arguição não tinha o mínimo fundamento.
4. Por outro lado, também a questão da caducidade, por terem decorrido mais de 15 dias sobre o conhecimento dos factos - artigo 34, n. 2, do Decreto-Lei n. 64-A/89 - trazida à 1. conclusão da revista, não pode ser conhecida, por se tratar de questão nova, não colocada às instâncias, sabido como é que os tribunais superiores estão vocacionados para a reapreciação das questões decididas nos tribunais de que se recorre e não para criar decisões novas. A menos que a caducidade fosse de conhecimento oficioso, o que não é o caso, uma vez que, patentemente, se trata de direito disponível - v. artigo 333 do Código Civil.
Se percorrermos os autos veremos que uma tal questão nunca foi antes abordada; não o foi na contestação e, por isso, a decisão da 1. instância a não aprecia; não o foi nas alegações da apelação e, naturalmente, o acórdão da Relação lhe não faz referência.
Só nas alegações para este Supremo, a recorrente aflora a questão - cit. folha 237 - e ainda assim sem grande demora.
Não pode, pois, ser objecto de apreciação neste momento e, por isso, dela se não toma conhecimento.
5. Vejamos agora a matéria de facto que vem fixada pelas instâncias, com transcrição dessa parte da sentença da 1. instância que foi recebida intocada pelo acórdão em recurso e que este Supremo Tribunal não pode deixar de acatar - cfr. o artigo 729, ns. 1 e 2 do Código de Processo Civil não ocorrendo as excepções aí ressalvadas.
São os seguintes os factos provados:
1- A sociedade R. dedica-se à actividade de indústria têxtil, possuindo e explorando um estabelecimento fabril de malhas, no local da sua sede, girando sob a designação comercial de Fábrica Barcelense.
2- Em 13 de Setembro de 1963 admitiu a A. A para esta, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, mediante remuneração, exercer as funções correspondentes à categoria profissional de fechadeira, das 8 às 18,15 horas.
3- Pelo menos desde 1 de Janeiro de 1966, a B exercia idênticas funções para a R., também mediante remuneração e sob as ordens, direcção e fiscalização desta, também das 8 às 18,15 horas.
4- De 14 de Fevereiro de 1994 a 13 de Abril de 1994, porém, ambas as A.A. exerceram as suas funções das 6 às 14 horas de 2. a sexta-feira e das 6 às 10 horas aos sábados.
5- Neste período (de 14 de Fevereiro de 1994 a 13 de Abril de 1994) a R. forneceu às A.A. transporte de e para o emprego.
6- Tal transporte cessou neste dia 13 de Abril de 1994 por orem da R.
7- Em 14 de Abril de 1994, as A.A. apresentaram-se ao trabalho às 8 horas, com intenção de cumprirem o horário inicial, tendo-lhes a R. recusado tal prestação laboral, impedindo-as de entrarem na empresa.
8- Em 15 de Abril de 1994 voltou a ter lugar o que se verificou em 14 de Abril.
9- Em 9 de Maio de 1994, a R. enviou a cada uma das Autoras a carta de folha 10 destes autos e de folha 10 do apenso, com o seguinte conteúdo: "Excelentíssima Senhora; Com os nossos melhores cumprimentos, formulamos a presente para lhe comunicar que esta Empresa, a partir de 14 de Abril de 1994, está a marcar-lhe faltas injustificadas ao trabalho, implicando as consequências daí decorrentes nos termos da Lei. Sem mais de momento somos com estima e elevada consideração. De V. Exa, Respeitosamente " seguido de carimbo da empresa, "A Administração" e rubrica ilegível.
10- À carta de 9.5 respondeu a autora A através da carta registada com a/r, datada de 13 de Maio de 1994 e recebida pela Ré em 17 de Maio de 1994, junta a folhas 12, com o seguinte teor: "No seguimento da nossa comunicação datada de 18 de Abril de 1984 e de 24 de Abril de 1994, e para que não subsistam dúvidas, venho mais uma vez lembrar essa empresa e em especial os seus responsáveis, designadamente o Sr. Machado, que só não trabalhamos nem prestamos a nossa actividade porque este senhor nos tem impedido de o fazermos, como aconteceu naquele dia 15 de Abril de 1994. (parágrafo) Por isso, a vossa comunicação de 9 de Maio de 1994, para além de representar uma atitude de muito mau gosto, pretende dar forma a um despedimento que na sua essência e da parte da empresa está consumado, e, de certa forma, justificar um comportamento inaceitável. (parágrafo) Para que não subsistam dúvidas acerca da nossa posição e vontade de trabalhar, informo que estarei na empresa no próximo dia 19, aguardando que as portas me sejam abertas. Com os melhores cumprimentos, data e assinatura".
11- À carta de folhas 10 do apenso respondeu a B, através da carta de folhas 12 do mesmo processo, com o seguinte teor "No seguimento da nossa comunicação datada de 18 de Abril de 1994 e de 22 de Abril de 1994, e para que não subsistam dúvidas, venho mais uma vez lembrar essa empresa e em especial os seus responsáveis, designadamente o Sr. Machado, que só não trabalhamos nem prestamos a nossa actividade porque este senhor nos terem impedido de o fazermos, como aconteceu naquele dia 15 de Abril de 1994. (parágrafo) Por isso, a vossa comunicação de 9 de Maio de 1994, para além de representar uma atitude de muito mau gosto, pretende dar forma a um despedimento que na sua essência e da parte da empresa está consumado, e, de certa forma, justificar um comportamento inaceitável. (parágrafo) Para que não subsistam dúvidas acerca da nossa posição e vontade de trabalhar, informo que estarei na empresa no próximo dia 19, aguardando que as portas me sejam abertas. Com os melhores cumprimentos, data e assinatura".
12- Na sequência das cartas constantes de folha 2 (de ambos os processos) as A.A. apresentaram-se para trabalhar nos dias 18 de Maio de 1994 e 19 de Maio de 1994, cerca das 7,30 horas - 8 horas, tendo-lhes novamente sido recusada pela R. a prestação laboral.
13- Ao efectuar as ditas recusas, a R. sustentou sempre que tinham lugar por pretender que as A.A. cumprissem o horário referido no n. 4 (supra).
14- Em 24 de Junho de 1994, a R. recebeu da A. A a carta de folha 19, com o seguinte teor: "No passado dia 14 de Abril, cerca das 7,30 horas, fui impedida de trabalhar pelo Sr. Machado, Chefe de pessoal ou Chefe de exportação da empresa. (parágrafo) Inconformada com esta atitude, para a qual não me foi dada qualquer justificação, apresentei-me normalmente para trabalhar no dia seguinte (15 de Abril de 1994), acompanhada de duas testemunhas (não fossem invocar abandono do trabalho...), mas o Sr. Machado manteve a mesma posição, impedindo-a de entrar na empresa. (parágrafo) Apesar de ter manifestado, por diversas vezes, vontade e intenção de trabalhar, disponibilizando-se para exercer o seu serviço, mesmo por escrito, tal foi-lhe sempre recusado. A última vez foi nos passados dias 18 e 19 de Maio do corrente ano, depois de o ter avisado por carta, e mais uma vez me impediram - sempre o Sr. Machado e agora o porteiro - de trabalhar e de entrar nas instalações e não lhe pagando os salários desde aquele dia 15 de Abril de 1994. (parágrafo) Não restam dúvidas que a empresa, na pessoa dos seus representantes, assume um comportamento claramente ilegal, de forma consciente e culposa, violando os mais elementares direitos da signatária, designadamente as cláusulas do contrato, o direito ao trabalho e o direito à ocupação efectiva, descriminando-a de uma forma ilegítima, comportamento que configura uma manifesta vontade em fazer cessar unilateralmente e sem justa causa, o aludido contrato de trabalho, com efeitos a partir da data da recepção desta carta. (parágrafo) Por mera cautela, e porque esta situação é insustentável para a signatária, dados os prejuízos patrimoniais e morais que lhe acarreta, obviamente, vem subsidiariamente invocar a rescisão do contrato com justa causa, nos termos das disposições legais aplicáveis, designadamente nos termos do disposto no artigo 3 da Lei 17/86 de 14 de Junho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n. 402-/91 de 16 de Outubro, e no artigo 35 do R.J.C.C.I.T., pois torna-se evidente que a empresa violou culposamente as garantias legais e convencionais, não lhe paga as retribuições, retirou-lhe o transporte e mudou-lhe o horário sem a mínima justificação, não lhe oferecendo condições para que a signatária pudesse continuar a trabalhar. (parágrafo) Aproveitando a oportunidade para solicitar a Vs. Exas. a passagem do modelo 43722 e 346 que se seguem em anexo e que os enviem na volta do correio (artigo 3 da referida lei). data e assinatura".
15- Em 24 de Junho de 1994, a R. recebeu da A. B a carta de folhas 18 do processo apenso, com o seguinte teor: "No passado dia 14 de Abril, cerca das 7,30 horas, fui impedida de trabalhar pelo Sr. Machado, Chefe de pessoal ou Chefe de exportação da empresa. (parágrafo) Inconformada com esta atitude, para a qual não me foi dada qualquer justificação, apresentei-me normalmente para trabalhar no dia seguinte (15 de Abril de 1994), acompanhada de duas testemunhas (não fossem invocar abandono de trabalho...), mas o Sr. Machado manteve a mesma posição, impedindo-a de entrar na empresa. (parágrafo) Apesar de ter manifestado, por diversas vezes, vontade e intenção de trabalhar, disponibilizando-se para exercer o seu serviço, mesmo por escrito, tal foi-lhe sempre recusado. A última vez foi nos passados dias 18 e 19 de Maio do corrente ano, depois de o ter avisado por carta, e mais uma vez me impediram - sempre o Sr. Machado e agora o porteiro - de trabalhar e de entrar as instalações e não lhe pagando os salários desde aquele dia 15 de Abril de 1994. (parágrafo) Não restam dúvida que a empresa, na pessoa dos seus representantes, assume um comportamento claramente ilegal, de forma consciente e culposa, violando os mais elementares direitos da signatária, designadamente as cláusulas do contrato, o direito ao trabalho e o direito à ocupação efectiva, descriminando-a de uma forma ilegítima, comportamento que configura uma manifesta vontade em fazer cessar, unilateralmente e sem justa causa, o aludido contrato de trabalho, com efeitos a partir da data da recepção desta carta. (parágrafo) Por mera cautela, e porque esta situação é insustentável para a signatária, dados os prejuízos patrimoniais e morais que lhe acarreta, obviamente, vem subsidiariamente invocar a rescisão do contrato com justa causa, nos termos das disposições legais aplicáveis, designadamente nos termos do disposto no artigo 3 da Lei 17/86 de 14 de Junho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 402/91 de 16 de Outubro, e no artigo 35 do R.J.C.C.I.T., pois torna-se evidente que a empresa violou culposamente as garantias legais e convencionais, não lhe paga as retribuições, retirou-lhe o transporte e mudou-lhe o horário sem a mínima justificação, não lhe oferecendo condições para que a signatária pudesse continuar a trabalhar. (parágrafo) Aproveito a oportunidade para solicitar a Vs. Exs. a passagem do modelo 43722 e 346 que se seguem em anexo e que os enviem na volta do correio (artigo 3 da referida lei). data e assinatura":
16- Auferia cada uma das A.A., ao tempo dos factos aludidos (nos ns. 7 a 15 supra) 53500 escudos por mês.
17- Desde a data referida no n. 8 supra e ressalvado o referido no n. 2, nunca mais as A.A. se apresentaram ao serviço, referindo pela primeira vez nas cartas aludidas em 14 e 15 a sua intenção de rescindirem os seus contratos de trabalho.
18- Desde 14 de Abril de 1994, a R. nada mais lhes pagou.
19- A B foi admitida em 1 de Janeiro de 1966.
20- Até ao dia 14 de Abril de 994, as A.A. sempre trabalharam com zelo, assiduidade e obediência, nunca tendo sido punidas ou disciplinarmente advertidas.
21- Desde a sua admissão na R. organizaram elas toda a respectiva vida pessoal e familiar em função do horário de trabalho das 8 às 18,15 horas, tendo feito com sacrifício o horário aludido no n. 4 supra.
22- Quando foi necessário proceder à alteração do horário para o referido em 4, as A.A. aceitaram-no, com a condição de R. lhes fornecer transporte desde as respectivas residências em carrinha da empresa, enquanto vigorasse tal horário, sendo certo que a R. sempre pretendeu fornecer-lhes tal transporte só nos dois meses seguintes e que elas, não obstaste a condição referida aceitaram ir trabalhado, na expectativa de, findos esses dois meses, continuar tal transporte enquanto vigorasse tal horário.
23- A aceitação do horário referido em 4 teve lugar, no pressuposto, por parte das A.A., de que se tratava de uma situação transitória.
24- A cessação da relação pessoal causou às A.A. profundo desgosto e transtorno psíquico, deixando-as em situação de enorme angústia e preocupação quanto ao futuro.
25- São elas pessoas consideradas e conhecidas, quer na empresa quer no meio onde vivem.
26- As residências das A.A. distam cerca de 5 quilómetros do local ode trabalhavam.
27- O primeiro transporte público, vindo das respectivas residências chega a esta cidade (onde se situa o referido local) só por volta das 7.30 horas.
28- Face à competitividade que o sector das malhas vinha a atravessar, a R., teve necessidade de reestruturar e rentabilizar a sua actividade.
29- Para incrementar, com tal objectivo, a produção da secção de peúgas, articulando-a com a do sector de cerzir, houve necessidade de se alterar o horário de trabalho de 4 trabalhadoras daquela secção, devendo duas delas passar a praticar o horário referido no n. 4 (supra) e as outras duas passar a trabalhar das 13.30 às 22, de segunda a sexta-feira e das 10 às 14, ao sábado.
30- A solicitação da R., nenhuma das 4 trabalhadoras aceitou qualquer mudança de horário, sendo, porém, certo que, depois de a R. escolher as A.A., estas aceitaram, nos termos supra referidos.
31- Escolheu ela, assim, as A.A. para o turno aludido (em 4), devido à sua capacidade profissional, sendo, porém, certo que o facto de elas morarem na mesma localidade e poderem vir juntas (independentemente do modo de vida) também pesou na escolha.
32- De tudo informou a R. às A.A.
33- A R. sempre disse às A.A. que o transporte era transitório, sendo certo que elas foram cumprindo o novo horário, sempre convencidas que a mesma R. alteraria a sua posição em ordem ao preenchimento da condição supra aludida (de fornecimento de transporte enquanto tivesse lugar o referido horário).
34- A mesma R. chegou a pedir-lhes que assinassem um documento onde declaravam estar cientes de que o transporte era provisório e facultativo, tendo-se elas recusado a assinar o mesmo por discordarem de que tal transporte acabasse antes do fim do período correspondente ao novo horário e de que não fosse obrigatório.
35- Desde o transporte que chega a esta cidade pelas 7.30 horas, existem vários transportes públicos da zona da residência das A.A. para o local onde trabalhavam.

4. O abuso do direito.
Assentando no preceito do n. 1 do artigo 11 do Decreto-Lei 409/71, de 27 de Setembro, que atribui às entidades patronais o direito de estabelecerem o horário de trabalho do pessoal ao seu serviço, dentro dos condicionalismos legais, decidiram as instâncias... "que a Ré, neste caso, abusou do direito que tinha de alteração do horário, violando o artigo 334, do Código Civil" cit. folha 173.
Em doutas, eruditas e esforçadas alegações procura a recorrente sustentar que "se cingiu ao exercício legítimo de um direito, sem que, para tanto, excedesse - e muito menos manifestamente - os limites axiológicos e materiais impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito de que é titular".
Sem razão.
São bem conhecidas as posições doutrinais e jurisprudenciais sobre o conceito de abuso do direito, apropositadamente citadas nas alegações e não é esse conceito que está em causa.
O que está em causa é a subsunção a esse conceito do circunstancionalismo factico do caso em apreço, tal como emerge da matéria de facto provada.
Na verdade:
- durante cerca de 30 anos com o horário das 8 horas às 18 horas e 15 minutos, as A.A. viram alterar-se esse horário para das 6 horas às 14 horas;
- obrigado-as a efectuar a Ré um percurso de cerca de 5 quilómetros e a sair de casa, por caminhos pouco povoados, por volta das 5 horas da manhã;
- já que o primeiro transporte público só lhes permitia chegar por volta das 7 horas e 30 minutos.
Por tudo o que isto objectivamente significa de penosidade, de sacrifício e de perigo, não pode deixar de considerar-se manifestamente excessivo e, como tal abusivo, o exercício do direito da fixação do horário de trabalho por parte da entidade patronal.
Mas note-se, para melhor clarificação da posição assumida que não está em causa, em rigor, a alteração do começo da prestação do trabalho, das 8 horas para as 6 horas, ao que também vem provado, determinada por razões de reestruturação e rentabilização da actividade da Ré e, portanto, por legítimos, ponderosos e respeitáveis interesses da Ré.
O que está em causa, e as Autoras sempre deixaram isso bem claro, é o fornecimento de transporte pela entidade patronal.
Nada mais do que isso.
Ora, é no cotejo dos resultados e das consequências, das utilidades e dos encargos, dos valores e dos desvalores que, verdadeiramente há-de buscar-se e encontrar-se a qualificação do abuso de direito.
É aqui que o jogo dos direitos e dos deveres, dos interesses e dos sacrifícios, se joga a caracterização do excesso, como manifesto e abusivo.
Como se escreveu lapidarmente no acórdão deste S.T.J., de 7 de Julho de 1977, no B.M.J. 268, 174 "o abuso do direito abrange o exercício de qualquer direito por forma anormal, quanto à intensidade ou à sua execução de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do seu titular e as consequências que outros têm que suportar".
E, no caso, a desproporção é manifesta.
A menos que se descanse em concepções da vida, do mundo e dos outros que levem a afirmar, sem ironia, que o único prejuízo que as Autoras invocaram foi o de terem de caminhar 5 quilómetros desde as suas residências até à empresa. Diariamente e às 5 horas da manhã!
Acrescente-se que a Ré não invocou a impossibilidade, dificuldade ou onerosidade do fornecimento de transporte, que até foi proporcionado durante dois meses.
Não se quer finalizar o tratamento desta questão, sem deixar uma referência à alteração introduzida ao n. 3 do artigo 12, do Decreto-Lei n. 409/71, pela Lei n. 21/96, de 23 de Julho (portanto, inaplicável ao caso dos autos) em cuja alínea b) se diz que
"Não podem ser unilateralmente alterados os horários acordados individualmente".
Sem aplicação ao caso, como se disse, não deixa de significar uma relativização do direito de fixação do horário de trabalho pela entidade patronal, onde se entendia compreendido o direito da sua alteração - cfr. Monteiro Fernandes, "Direito do Trabalho", 9. edição, página 320.
Vejamos agora a justa causa para a rescisão.
Adquirindo que houve exercício abusivo do direito de fixação do horário de trabalho por parte da entidade patronal, não é difícil a conclusão da ocorrência de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho por parte dos Autores.
Na verdade, a partir do momento em que a Ré deixou de fornecer transporte, deixou também de poder exigir a prestação de trabalho às 6 horas, resultando ilícita a recusa que se lhe seguiu, quer da entrada nas instalações, quer do recebimento da prestação laboral, quer do pagamento da retribuição.
Já deixamos dito que a medida do abuso do direito coincide com a medida do excesso concretamente verificado, num critério de normalidade, regrabilidade e proporcionalidade, o que vem a significar que as Autoras ficaram obrigadas a comparecer ao serviço à hora que o primeiro transporte público lhes permitisse.
Vem provado que isso aconteceria por volta das 7 horas e 30 minutos e também que as Autoras se apresentaram dentro desse condicionalismo nos primeiros dois dias - 14 e 15 de Abril de 1994 sendo-lhes vedada a entrada e interditas de trabalhar. Não eram obrigadas a mais, pelo que não há que falar em faltas e, muito menos ainda, injustificadas.
Daí que a retribuição lhe fosse devida.
Verificou-se, assim, falta de pagamento da retribuição e violação das garantias legais ou convencionais do trabalhador, previstas nas alíneas a) e b) do n. 1, do artigo 35 do Decreto-Lei n. 64-A/89, a forma culposa.
Com assinalável perspicácia, defende a Ré, nas suas alegações que, tal conduta, enquadrada à luz do instituto do abuso de direito, não é susceptível, por imperativo lógico, de um juízo de censura ético-jurídico, não tendo, assim, cabimento imputar um comportamento culposo a quem age no exercício de um direito. O abuso de direito esgota-se no plano da ilicitude e tem como única consequência a não tutela do direito assim exercido, paralisando-se o direito do seu titular.
É exacta a afirmação da ideia de não tutela e de paralisação do direito, mas já não é exacta a afirmação de incompatibilidade com um juízo de censura ético-jurídico.
É que, como acentua CUNHA DE SÁ: "... a qualificação legal de ilegitimidade para o exercício em excesso manifesto dos limites axiológico-materiais do direito subjectivo acarreta para o respectivo titular mais do que a possível obrigação de ressarcir o dano produzido pelo acto abusivo: impõe-lhe o dever de actuar no exercício do direito não só dentro dos respectivos limites lógico-formais, como também em conformidade com o elemento valorativo que o fundamenta e lhe preside. A imposição do dever de não abusar do direito próprio vai implícita no juízo de anti-juridicidade sobre o comportamento abusivo", "Abuso de Direito" reimpressão, 1997, página 640.
Nesta conformidade, o artigo 334 do Código Civil contém a proibição de o titular de um direito o exercer para lá de certos limites e é o desrespeito dessa proibição que, assumindo a forma intencional e voluntária vem a suportar o juízo de censura em que se analisa a culpa.
Ora, essa voluntariedade está intensamente patenteada nos autos, como resulta do que atrás ficou dito - ficou provado, quanto à repetida recusa da prestação de trabalho e até de entrada nas instalações, apesar de bem conhecidas as razões dos atrasos e a impossibilidade, sem incomparável sacrifício e penosidade, de as Autoras se apresentarem mais cedo ao trabalho.
De resto, o fornecimento de transporte durante dois meses revela bem esse conhecimento.
Apesar disso, a Ré, nem sequer adoptou a solução de considerar em falta apenas o tempo do atraso e antes se decidiu logo pela recusa da prestação de trabalho e do pagamento da retribuição.
Ficou assim, bem caracterizada a natureza censurável e, portanto, culposa desse comportamento.
Improcedem, assim, as conclusões das alegações, termos em que se acorda na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista confirmando o douto acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 1999
José Mesquita,
Padrão Gonçalves,
Almeida Deveza.