Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | ARAÚJO BARROS | ||
| Nº do Documento: | SJ200210170022607 | ||
| Data do Acordão: | 10/17/2002 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 1974/01 | ||
| Data: | 01/17/2002 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Sumário : | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: "A" e mulher B instauraram, no 9º Juízo Cível do Tribunal da comarca do Porto, contra C e mulher D acção declarativa com processo ordinário, na qual alegaram, em síntese, que são donos e possuidores de uma fracção autónoma de um prédio sito na Rua ........., .... a ...., na cidade do Porto; que, por contrato outorgado em 28/03/94, entre os autores e o réu marido, aqueles prometeram vender e este prometeu comprar a referida fracção; que lhes foi entregue como sinal e princípio de pagamento do preço a quantia de 9.000.000$00; que para pagamento do restante sinal e parte restante do preço, o réu entregou um cheque de 7.500.000$00 que, apresentado a pagamento, não obteve provisão; nos termos acordados, o autor marcou a escritura para o dia 30/12/94 no Cartório Notarial de Ermesinde; porém, a solicitação do réu, a escritura ficou adiada para 13/01/95, no Cartório Notarial da Vila da Feira; que o réu, embora comparecesse no Cartório nesse dia, recusou-se a outorgar na escritura, alegando que não existia licença de habitabilidade do prédio objecto do contrato; os réus, a pretexto de visitarem a fracção, passaram a ocupar a mesma; e que a referida fracção colocada no mercado do arrendamento habitacional renderia mensalmente 130.000$00. Concluíram pedindo: a) que fosse declarado resolvido o contrato promessa celebrado e, em consequência, reconhecido aos autores o direito de fazerem seu tudo quanto receberam a título de sinal e princípio de pagamento; b) que fosse reconhecido o direito de propriedade dos autores à referida fracção; c) que fossem os réus condenados a entregá-la aos autores livre de pessoas e bens; d) que fossem os réus condenados a pagar-lhes a quantia de 2.860.000$00, acrescida da quantia mensal de 130.000$00 até que a fracção seja entregue aos autores. Contestando, também em resumo, sustentaram os réus que ocorrem as excepções de litispendência ou causa prejudicial; que possuem a fracção desde Julho de 1994, onde instalaram a sua residência, por a mesma lhes ter sido entregue pelos autores na decorrência do contrato-promessa, sem qualquer condição remuneratória e para que os réus passassem a dispor dela como que de coisa sua se tratasse; que se recusaram a outorgar na escritura face à falta da licença de utilização, documento que consideram essencial para a existência legal do prédio e cuja falta lhes foi deliberadamente ocultada pelos autores; que sempre quiseram e querem cumprir o contrato-promessa, sendo os autores que se encontram na situação de incumprimento. Em reconvenção peticionaram a condenação dos autores a devolverem as verbas entregues a título de sinal, bem como a pagar-lhes a título de sanção pelo incumprimento, o valor da fracção ao tempo do incumprimento, que era de 16.500.000$00. Findos os articulados, foi exarado despacho saneador, onde se julgaram as excepções improcedentes e foram elaborados a especificação e o questionário. Teve, depois, lugar a audiência de discussão e julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, vindo a ser proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente e improcedente a reconvenção, condenou os réus a liquidar aos autores a quantia de 130.000$00/mês, desde Janeiro de 1995 a Fevereiro de 2001, declarou reconhecido o direito de propriedade dos autores sobre a fracção autónoma, absolveu os réus dos demais pedidos formulados e absolveu os autores dos pedidos reconvencionais. Da sentença apelaram os autores e os réus, tendo, na sequência, o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 17 de Janeiro de 2002, na procedência do recurso dos réus e na improcedência da apelação dos autores, alterado a sentença recorrida por forma a absolver os réus do pagamento da indemnização, mantendo tudo o demais decidido. Inconformados, interpuseram os réus recurso de revista, pretendendo a revogação do acórdão recorrido, fazendo-se agora correcta aplicação do preceituado nos artigos 804º, nº 1, 442º, nº 2 e 808º do CC, e em vez dele serem os réus condenados a liquidarem aos autores a quantia de 130.000$/mês desde Janeiro de 1995 e até que a fracção autónoma em causa nos autos seja entregue aos autores livre de pessoas e coisas, assim como seja declarado resolvido o contrato-promessa em causa nos autos por incumprimento culposo dos réus e, consequentemente, reconhecido aos apelantes o direito de fazerem seu tudo quanto receberam a título de sinal e princípio de pagamento, condenando-se ainda os réus a reconhecerem esse direito aos autores e no demais peticionado na inicial. Em contra-alegações pugnaram os recorridos pela improcedência do recurso e pela manutenção do acórdão em crise. Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos os vistos legais, cumpre decidir. Nas alegações formularam os recorrentes as conclusões seguintes (por cujo teor se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil): 1.0 presente recurso vem interposto do acórdão que julgou totalmente improcedente a apelação interposta pelos autores e parcialmente procedente a apelação dos réus. 2. Considerou e bem aquele acórdão que os réus recusaram a sua prestação debitória - concluindo, portanto, pelo não cumprimento. 3. Porém, e a nosso ver erradamente, considerou que esse não cumprimento não pode ser considerado culposo pelo facto de a recusa da outorga no contrato prometido ser legítima em face da não exibição da licença de habitabilidade. Concluindo ainda que, em face das circunstâncias concretas do caso, não era exigível ao réu outro comportamento. 4. Ora, com o artigo 44º, nº 1, da Lei nº 46/85, na sua redacção actual, visou o legislador continuar o combate à construção clandestina sem criar entraves à transmissão da propriedade de prédios urbanos de construção legalizada. 5. Para a prossecução desse desiderato estabeleceu a obrigatoriedade de, na celebração de escrituras de transmissão da propriedade de prédios urbanos, ser feita prova, perante o Notário, em alternativa, da existência de licença de construção ou de habitação. 6. A expressão "quando exigível" visou ressalvar os casos em que não é exigível existir qualquer daquelas das licenças relativamente aos prédios objectos da transmissão. 7. Atendendo a que consta da matéria provada que o imóvel prometido vender tinha licença de construção, necessariamente a exigência prevista no artigo 44º, nº 1, da Lei nº 46/85 estava cumprida, tanto mais que o Notário se contentou com a exibição daquela - e a propriedade sobre o mesmo imóvel poderia ser validamente transmitida. 8. O réu não tinha intenção de cumprir o prometido não por causa de uma licença, mas sim porque, não obstante estar já a fruir e usufruir do imóvel, solicitou o adiamento da realização da escritura pública prometida e não procedeu ao pagamento da quantia acordada e titulada por cheque. 9. É pois manifesto que ao réu era exigível outro comportamento apreciando a culpa deste em função do bónus pater famílias - é claro que o réu devia ter tido outro comportamento e devia ter outorgado no contrato promessa como, de resto, se tinha comprometido. 10. Resulta pois manifesto e nesse sentido deve ser decidido, revogando-se assim o acórdão recorrido, que a recusa dos réus em outorgar no contrato prometido consistiu em incumprimento faltoso e, consequentemente, os réus constituíram-se em mora, nos termos do previsto no nº 2 do artigo 804º do CC, a partir desse momento, o que expressamente se requer. 11. É verdade que o acórdão da Relação partiu de um pressuposto que não se aceita nem se concede - a de que o incumprimento dos réus não era culposo - e, portanto, julgou inútil pronunciar-se sobre as outras questões levantadas pelos autores na apelação julgada improcedente. 12. Porém, demonstrado que está que os réus incumpriram culposamente o contrato e se constituíram em mora - porquanto a prestação era possível e não foi cumprida no tempo devido (artigo 804º, nº 2 do CC) - teremos que reafirmar todas as conclusões já expressas no recurso anterior e que não foram, pelos motivos expostos, devidamente apreciadas. 13. O acórdão ora recorrido revogou a sentença que julgou procedente o pedido dos apelantes na condenação dos apelados a pagarem-lhe 130.000$00 por mês, mas apenas até Fevereiro de 2001. 14. Entendem os autores, como demonstraram, que o acórdão ora recorrido violou o disposto nos artigos 804º, nº 1, 442, nº 2 e 808º, todos do CC. 15. No que concerne à indemnização pelos lucros cessantes, a boa interpretação do artigo 804º, nº 1, em face da factualidade dada como provada, designadamente o reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre a fracção prometida vender, e o demonstrado direito de uso e fruição ilegítimo e oneroso que os réus exercem, até hoje, sobre a fracção autónoma, conduziria a que, necessariamente, os réus fossem condenados no pagamento da quantia de Esc. 130.000$00 até à data da entrega da referida fracção. 16. E isto porque esse (data da devolução da fracção aos autores) é o momento em que os autores, credores, cessam de sofrer danos provocados pela mora dos réus devedores e é o momento em que cessa, igualmente, o exercício daquele direito de uso e fruição ilegítimo e oneroso causador daqueles danos - a partir desse momento os autores podem então retirar todas as utilidades do bem, sua propriedade, e que estiveram impedidos de o fazer até então. 17. Assim, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 804º, nº 1 do CC, pois que não deveria ter revogado a sentença da primeira instância, antes a deveria ter mantido e condenado ainda os réus no pagamento da quantia de Esc. 130.000$/mês desde Janeiro de 1995 e até que a fracção autónoma em causa nos autos seja entregue aos apelantes livre de pessoas e bens. 18. A Relação, igualmente sem mais considerações, julgou que os autores não tinham o direito de resolver ou pedir a resolução do contrato promessa, embora com fundamentos diferentes da sentença proferida na primeira instância. 19. Igualmente nesta parte, consideramos, ao contrário do que naquele acórdão é referido, que assiste aos autores o direito a resolver o contrato promessa. 20. Com efeito, o acórdão recorrido manteve a absolvição dos réus dos demais pedidos, designadamente, não considerou resolvido o contrato promessa de compra e venda em causa nos autos por incumprimento culposo dos réus e não reconheceu aos autores o direito de fazerem suas todas as quantias entregues a titulo de sinal e princípio de pagamento, conforme o previsto no nº 2 do artigo 442º do CC. 21. Tendo sido demonstrado que os réus se constituíram em mora ao incumprirem culposamente a sua prestação debitória, nada impedia os autores de converterem essa mora em incumprimento definitivo culposo por parte dos réus, sem necessidade de recorrer aos mecanismos previstos no artigo 808º do CC, designadamente a interpelação admonitória nele prevista. 22. Por um lado, pode e deve entender-se que a mora (amplamente demonstrada) se pode converter em incumprimento definitivo, face ao disposto no artigo 442º, nº 2 do CC: o argumento da letra da lei (se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação) e o argumento de que a propositura da acção equivale a uma resolução tácita do contrato promessa, deveriam ter sido atendidos e não foram - neste sentido, cfr. Ac. STJ de 02/04/92, in BMJ 416, pág. 605. 23. Por outro lado, deve entender-se que funciona, no caso dos contratos promessa um regime excepcional face ao disposto no artigo 808º do CC (regime geral) que permite ao credor, uma vez verificada a mora, exercer o direito potestativo de transformá-la, de imediato, em incumprimento sem observar os pressupostos previstos no artigo 808º do CC (neste sentido os autores Almeida Costa e Antunes Varela, entre outros; ainda os Acs. do STJ de 28/01/99 e do TRP de 21/12/00 in www.dgsi.pt). 24. Assim, deveria o acórdão recorrido declarar resolvido o contrato promessa por incumprimento culposo dos réus e, consequentemente, reconhecer aos autores o direito de fazerem seu tudo quanto receberam a titulo de sinal e principio de pagamento. 25. Acresce que o contrato promessa celebrado foi sujeito a um termo essencial (conforme consta da cláusula V deste contrato que consta da factualidade dada como provada) e cláusula resolutiva expressa que, nos termos do previsto nos artigos 236º e seguintes do CC, eram perfeitamente perceptíveis a um declaratário normal e tinham, como se demonstrou, correspondência no texto escrito. 26. A Relação viola a lei substantiva ao afirmar surpreendentemente e sem mais considerações que o facto de a escritura não se ter realizado dentro do prazo previsto no contrato promessa - 30/12/94 - não se "ficou a dever a conduta culposa dos réus, dado que o réu compareceu no Cartório Notarial da Vila da Feira, não lhe podendo ser exigida essa outorga pelos motivos já referidos". 27. Desde logo, o motivo porque a escritura não foi outorgada no prazo contratual foi a cedência, em má hora é certo, por uns dias, dos autores. 28. Assim, expirado que foi o prazo nele estabelecido (Dezembro de 1994) e não tendo sido outorgada a escritura pública por culpa exclusiva dos réus (conforme demonstrado e ao contrário do que é afirmado no acórdão recorrido), sempre os autores podiam exercer, como exerceram, o seu direito de resolver o contrato por incumprimento culposo definitivo do réu, sem necessidade de interpelação admonitória ou invocação de perda de interesse nos termos do previsto no artigo 808º do CC (neste sentido, ver os Acs. do STJ de 24/01/95 e de 15/12/98, ambos em www.dgsi.pt). 29. Pelo que também por este motivo o acórdão recorrido deveria ter julgado procedente o peticionado pelos autores na declaração de resolução do contrato promessa, com a consequência de lhes ser reconhecido o direito de fazerem suas todas as quantias que lhes tinham sido entregues a título de sinal e principio de pagamento. 30. Finalmente e sem prescindir, ainda que não se entendesse como possível a transformação da mora em incumprimento culposo por parte dos réus, ou a resolução por verificação da cláusula resolutiva expressa, sempre se diga que, face à factualidade dada como provada, e em consequência da mora dos réus, deveria ter sido declarada a perda de interesse por parte dos autores na prestação dos réus, nos termos do previsto no artigo 808º, nº 1 e 2 do CC. 31. Com efeito, a perda do interesse na prestação por parte do credor em consequência da mora do devedor deve ser apreciada objectivamente (nº 2 do artigo 808º), com recurso ao critério da razoabilidade própria do comum das pessoas e em face das circunstâncias de facto provadas. 32. Porém, o M.mo. Juiz da 1ª instância apenas atendeu à circunstância de os autores quererem receber a restante parte do preço que fazia, na sua perspectiva parte do sinal, para declarar que não tinha havido, objectivamente, perda de interesse. 33. Não obstante, deveria ter atendido a outras circunstâncias provadas - o prazo estipulado para a celebração da escritura, as vezes que foi marcada pelos autores, a recusa na outorga desta e a interposição da presente acção - para proferir a sua decisão que não poderia ser noutro sentido que não a de reconhecer que o credor, ora autor, tinha perdido objectiva e justificadamente e em consequência do retardamento do devedor no cumprimento da sua prestação, o interesse na prestação do devedor, dado que este negócio já não satisfazia o objectivo com que foi celebrado. 34. Assim, ao verificar que estava preenchido um dos pressupostos previstos no artigo 808º do CPC (perda do interesse do credor na prestação do devedor em consequência da mora deste), deveria o acórdão, também por este motivo, ter declarado o contrato resolvido por incumprimento culposo do réu e, consequentemente, ter reconhecido aos autores o direito de fazerem suas as quantias que lhe tinham sido entregues a titulo de sinal e princípio de pagamento. Encontra-se, em definitivo, assente a seguinte matéria de facto: a) - a fracção autónoma designada pela letra "J", correspondente a uma habitação ao nível do 2º andar esquerdo, com entrada pelo nº .... da Rua ......., Porto, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua ......., nº s .... a ...., freguesia de Ramalde, Porto, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 6.608º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00554/210590, freguesia de Ramalde, está inscrita, através da Ap. 28/090692, no Registo Predial a favor dos autores; b) - por contrato outorgado em 28 de Março de 1994, entre os autores e o réu marido, aqueles prometeram vender a este, que prometeu comprá-la, a referida fracção autónoma, designada pela letra "J"- nos termos de fls. 17/18 dos autos (doc. 3 da petição); c) - o preço acordado para a compra e venda prometida foi de Esc. 16.500.000$00; d) na data da outorga desse contrato, o réu marido, a título de sinal e principio de pagamento, entregou ao autor a quantia de 2.200.000$00; e) - foi acordado que a restante parte do preço seria paga nos termos da cláusula IV) do contrato - conforme fls. 17/18 dos autos; f- conforme acordado nessa cláusula, o réu pagou aos autores, a título de sinal e principio de pagamento, as seguintes importâncias: em 30/04/1994, Esc. 300.000$00, em 28/06/1994, Esc. 5.000.000$00 e em 20/09/1994, Esc. 1.500.000$00; g) - para pagamento da restante parte do preço, o réu entregou ao autor o cheque nº 2234182777, sacado sobre o Banco Totta & Açores, SA, no valor de 7.500.000$00, com data de 30/12/1994; h ) - os 7.500.000$00 desse referido cheque constituíam apenas a "restante parte do prego"; i) - apresentado a pagamento pelo autor, esse cheque foi devolvido por falta de provisão em 03/01/95; j) - foi acordado que a escritura pública de compra e venda "será celebrada até 30/12/94, em dia e Cartório Notarial a designar pelo primeiro contraente", o aqui autor, por carta registada a enviar com a antecedência mínima de 15 dias"; k) - a 9 de Dezembro de 1994, o autor enviou ao réu a carta com cópia a fls. 22, que este recebeu, comunicando-lhe: "de acordo com a cláusula nº 5 do contrato promessa celebrado com V. Exa, venho informá-lo que a escritura terá lugar no próximo dia 30 de Dezembro de 1994 no Cartório Notarial de Ermesinde, pelas 14h 30 minutos. Solicito ainda a V. Exa que me forneça os documentos necessários à celebração da escritura"; l) - o autor, previamente à data de 30/12/94, foi contactado pelo réu, tendo-lhe solicitado adiar a escritura por alguns dias, ao que aquele acedeu; m) - os autores marcaram a realização da escritura pública para o dia 09/01/95; n) - a escritura acabou por ser designada para o dia 13 de Janeiro de 1995, pelas 14h 30m, no 1º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira; o) - a designação da data de 13/01/95, para a outorga da escritura pública, apenas foi comunicada ao réu em 11/01/95; p) - naquele dia (13/01/95) compareceram, no Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, os autores e o réu, tendo este recusado outorgar a escritura de compra e venda, alegando "que não existia licença de habitabilidade do prédio objecto do contrato"; q) - o Senhor Notário desse Cartório Notarial não exigiu nem solicitou a exibição dessa licença aos autores; r) - para a construção do prédio referido em a) "foi emitida pela CMPorto a licença de construção nº 445/83, cuja validade terminou em 10/09/91, prazo este concedido pela prorrogação nº 19609/90" - conforme fls. 86 dos autos; s) - não foi emitida licença de habitabilidade da fracção prometida vender nem solicitada a vistoria do prédio, com vista à emissão daquela; t) - após a celebração do contrato referido em b), os réus passaram a ocupar a fracção, com consentimento dos autores; u) - os réus, desde Janeiro de 1995, vêm ocupando, até hoje, a dita fracção prometida vender, nela residindo sem pagar qualquer quantia aos autores; v) - por os réus habitarem a fracção "J", prometida vender, estão os autores impossibilitados de colher as utilidades da mesma, a qual poderia ser colocada no mercado da habitação por uma renda mensal de Esc. 130.000$00; w) - os autores deixarão de auferir o montante de Esc. 130.000$00 até que os réus desocupem essa fracção; x) - desde a data da ocupação referida em u), os réus passaram a viver na fracção; y) - em Junho de 1995, os aqui réus intentaram contra os autores a acção cuja petição consta, por certidão, a fls. 111/113, a qual foi decidida nos termos de fls. 133/136 e 154/160; z) - os réus pagaram o imposto de Sisa, a que se refere o "conhecimento de fls. 65 dos autos"; aa) - os autores, por si e antepossuidores, desde há mais de 30 anos e sem solução de continuidade, têm vindo a "possuir" a fracção autónoma referida em a) e, antes, o terreno onde foi construído o prédio em que essa fracção se integra habitando-a, pagando as contribuições e impostos a ela referentes, nela fazendo obras, arrendando-a, recebendo as respectivas rendas e praticando todos os actos "inerentes" a um normal possuidor e proprietário; ab) - o que fazem à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na convicção do exercício do seu direito próprio e sem lesar direitos a terceiros. A questão nuclear do recurso é a de saber se, ao recusar a outorga da escritura de compra e venda definitiva, com fundamento na falta de licença de habitabilidade da fracção autónoma objecto do contrato promessa, o réu marido tinha o direito de adoptar tal comportamento (tal como se entendeu no acórdão recorrido) ou, pelo contrário, a sua atitude traduz incumprimento, ao menos atempado, do contrato-promessa (como sustentam os recorrentes). É que todas as demais questões suscitadas pelos recorrentes - direito à indemnização prevista no art. 442º, nº 2, do C.Civil em caso de simples mora dos réus, ou conversão da mora em incumprimento definitivo face à aposição no contrato-promessa de um termo essencial ou por perda do interesse dos autores, assim como a qualificação de ilegítima da ocupação pelo réus da fracção em causa, susceptível de justificar o direito a indemnização por danos sofridos pelos autores - dependem da solução dada à primeira, somente se impondo a sua apreciação no caso de se considerar que houve incumprimento (ou mora) dos réus pelo facto da recusa de outorga daquele contrato de compra e venda. Está provado (respigamos alguns dos factos acima enunciados) que por contrato outorgado em 28 de Março de 1994, entre os autores e o réu marido, aqueles prometeram vender a este, que prometeu comprá-la, uma fracção autónoma, designada pela letra "J" de um prédio sito na cidade do Porto, pelo preço convencionado de 16.500.000$00, tendo o réu marido, a titulo de sinal e principio de pagamento, entregue ao autor a quantia de 2.200.000$00. Acresce que, no dia 13/01/95, aprazado para a escritura do contrato definitivo, o réu recusou outorgar a escritura de compra e venda, alegando que não existia licença de habitabilidade do prédio objecto do contrato, sendo certo que o notário não exigiu nem solicitou a exibição dessa licença aos autores. Verdade é que, para a construção do prédio em que se inseria a fracção foi emitida pela Câmara Municipal do Porto a licença de construção nº 445183, cuja validade terminou em 10/09/91, prazo este concedido pela prorrogação nº 19609190 (conforme fls. 86 dos autos) e não foi emitida licença de habitabilidade da fracção prometida vender nem solicitada a vistoria do prédio, com vista à emissão daquela. Quer em 28 de Março de 1994 (data em que foi celebrado o contrato-promessa), quer em 13 de Janeiro de 1995 (altura em que o réu recusou a outorga da escritura de compra e venda), estava em vigor ao art. 44º da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro (1), que prescrevia que "não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial, e da existência da correspondente licença de construção ou de utilização, quando exigível, da qual se fará sempre menção na escritura". É o próprio diploma que revogou o art. 44º da Lei nº 46/85 que, no respectivo preâmbulo, nos dá conta das interpretações opostas daquela norma: "segundo uns, a expressão licença de construção ou de utilização, quando exigível, significa que a escritura pública que envolva a transmissão da propriedade de prédios urbanos pode ser celebrada desde que uma das licenças seja exibida, aludindo a expressão quando exigível, aos prédios para cuja construção a lei não obrigava a licenciamento (2); segundo outros, a mesma expressão não atribui valor equivalente àquelas licenças, querendo significar que deve ser exibida a licença que, em concreto, couber, ou seja: a de construção, no caso de a compra incidir sobre prédio em construção; a de utilização, se respeitar a prédio já concluído". (3) Inspira-se aquela norma do art. 44º da Lei nº 46/85, sem dúvida, na vontade do legislador de compaginar a construção e transmissão de prédios urbanos com as necessidades de defesa do equilíbrio ambiental, por forma, a além do mais, combater a construção clandestina, ademais da intenção de não inviabilizar a transmissão de prédios urbanos e de pôr termo à incerteza em que se encontram numerosos adquirentes de fracções autónomas transmitidas apenas mediante licença de construção. (4) Mas não se lhe podem recusar outras intenções, designadamente a de preservar o interesse especial dos consumidores (5), normalmente impedidos (ou extremamente dificultados) de conseguirem os documentos que, posteriormente, lhes vão permitir a livre fruição, oneração ou mesmo alienação dos prédios adquiridos. Não sendo despiciendo, em sede interpretativa do preceito, o recurso ao disposto no art. 45º da mesma Lei, que, embora revogado, nos permite ver a verdadeira intenção do legislador quando usou, no art. 44º, a dicotomia licença de construção/licença de utilização, quando exigível. Na verdade, desse art. 45º constava que "as actualizações anuais e a correcção extraordinária da renda, previstas, respectivamente, nos arts. 6º e 11º, não têm lugar se não tiver sido emitida licença de construção ou de utilização, quando uma delas seja exigível (sublinhado nosso). Justificando-se, ainda, o apelo, por identidade de razão, ao Regime do Arrendamento Urbano, entrado em vigor em 15 de Novembro de 1990, que passou a referir-se à licença de utilização, exigindo-a expressamente para que possam ser objecto de arrendamento urbano edifícios ou suas fracções (art. 9º, nº 1). Ora, da conjugação destas normas parece dever concluir-se que a dicotomia constante do citado art. 44º não é uma pura alternativa em sentido técnico do termo: a apresentação de uma ou outra das licenças não é equivalente, devendo apenas fazer-se a prova daquela que, no momento da escritura, for exigível. Consequentemente, haverá que concluir que a expressão quando exigível constante do art. 44º da Lei nº 46/85 se refere tão só a cada uma das licenças de construção ou de utilização, quando cada uma delas for exigível, com exclusão da outra. E assim resulta claro, ainda da análise do preceito mencionado, que sempre que a escritura de transmissão se reporta a prédio urbano em construção, deverá fazer-se a prova da exibição da respectiva licença de construção; em contrapartida, se se refere a prédio já construído, haverá que demonstrar-se a exibição da licença de utilização ou de habitabilidade. É certo que se pode argumentar com o facto de esta interpretação não permitir a viabilização das transmissões de prédios urbanos, intenção expressamente referenciada no Dec.lei nº 281/99, que revogou o art. 44º da Lei nº 46/85. Só que, por um lado, temos que avaliar a intenção manifestada como pretendendo abranger apenas e tão só os casos em que os contraentes (acordados, por premência ou ignorância nessa transmissão, aceitando o comprador proceder à obtenção das necessárias licenças) se encontram já numa situação de incerteza a que é necessário pôr cobro. Não pode - seria claramente contrário aos princípios da boa fé que devem presidir à celebração e execução dos contratos - é admitir-se que, contra a vontade do comprador, venha este a ser obrigado, mais tarde, numa altura em que o vendedor está livre de responsabilidades (6), a requerer a vistoria do prédio (e não só da fracção que adquiriu) e a solicitar a licença de utilização, com os inerentes dificuldades e encargos. Mostra-se, desta forma, líquido que o réu, quando recusou outorgar a escritura de compra e venda, o fez legitimamente, uma vez que, sem a exibição da licença de habitabilidade, a escritura não poderia (por isso não deveria) ser celebrada. E nem se argumente com o facto de o notário não ter exigido a exibição de tal licença de utilização, dispondo-se a celebrar a escritura sem esse requisito. Desde logo (será usual outorgar-se uma escritura de compra e venda de uma fracção autónoma de um prédio situado no Porto, no Cartório Notarial da Vila da Feira ?) porque o notário não pode afastar a invalidade de qualquer negócio jurídico, nulo por disposição imperativa da lei (7), apenas por nele ter intervindo sem exigir a observância das formalidades legais. Doutro passo, e sobressai neste caso a ilegalidade da dispensa de exibição da licença necessária, já havia, até, na altura em que a celebração da escritura foi tentada, sido emitido e publicado o Parecer do Conselho Técnico da Direcção Geral dos Registos e Notariado, de 24 de Março de 1993 (8), devidamente homologado pelo Director Geral e com despacho de concordância da Secretária de Estado da Justiça, como tal vinculativo para os notários. Bem se andou, pois, no acórdão recorrido, quando se concluiu não haver incumprimento contratual por banda dos recorridos. Em face da solução a que chegamos fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelos recorrentes, devendo, em consequência, o recurso improceder. Pelo exposto, decide-se: a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pelos autores A e mulher B; b)- confirmar inteiramente o acórdão recorrido; c)- condenar os recorrentes nas custas da revista. Lisboa, 17 de Outubro de 2002 Araújo Barros Oliveira Barros Diogo Fernandes ------------------------- (1) Tal norma, mantida em vigor pelo art. 3º, nº 6, do Dec.lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, veio apenas a ser revogada pelo Dec.lei nº 291/99, de 26 de Julho que, relativamente à matéria em questão, passou a dispor: Art. 1º - 1. Não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faca perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial, ou da respectiva participação para a inscrição, e da existência da correspondente licença de utilização, de cujo alvará, ou isenção de alvará, se faz sempre menção expressa na escritura. 2. Para efeitos do disposto no número anterior, nos prédios submetidos ao regime de propriedade horizontal, a menção deve especificar se a licença de utilização foi atribuída ao prédio na sua totalidade ou apenas à fracção autónoma a transmitir. Art. 20 - 1. A apresentação do alvará de licença de utilização, no caso de já ter sido requerido e não emitido, pode ser substituída pela exibição do alvará da licença de construção, independentemente do respectivo prazo de validade, desde que: a) o transmitente faça prova de que está requerida a licença de utilização; b) o transmitente declare que a construção se encontra concluída, que não está embargada, que não foi notificado de apreensão do alvará de licença de construção, que o pedido de licença de utilização não foi indeferido, que decorreram mais de 50 dias sobre a data do seu requerimento e que não foi notificado para o pagamento de taxas devidas. 2. Nas subsequentes transmissões de fracções autónomas, de prédios constituídos em regime de propriedade horizontal, o transmitente apenas tem de fazer prova de que foi requerida a licença de utilização e declarar que o pedido não foi indeferido nem a licença emitida no prazo de 50 dias sobre a data do seu requerimento e que não foi notificado para o pagamento das taxas devidas. 4. Na transmissão de prédios urbanos que o alienante declare como não concluídos, com licença de construção em vigor, ou na situação dos edifícios inacabados prevista no artigo 73º-A do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro, é bastante a exibição do alvará de licença de construção, independentemente do seu prazo de validade. 5. 0 disposto no artigo anterior não é aplicável à transmissão de fracções autónomas de prédios urbanos constituídos em propriedade horizontal nem a moradias unifamiliares. 5. 0 notário deve consignar no documento o número e a data de emissão da licença de construção e o respectivo prazo de validade, bem como a advertência aos outorgantes sobre o teor dos nº s 2 e 3 do presente artigo e do artigo seguinte. (2) Assim decidiu o Ac. RL de 24/04/96, in CJ Ano XXI, 2, pag. 125 (relator Santos Bernardino). (3) Neste sentido os Acs. RP de 12/12/95, in CJ Ano XX, 5, pag. 225 (relator Araújo Barros), e STJ de 20/03/2001, no Proc. 209/01 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos); de 09/07/2002, no Proc. 1311/02 da 6ª secção (relator Armando Lourenço). (4) Cfr. Preâmbulo do citado Dec.lei nº 281/99, revogatório do art. 44º da Lei nº 46/85. (5) Direito constitucionalmente consagrado (cfr. art.60º da Constituição da República Portuguesa - 4ª Revisão, aprovada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro (6) Tenha-se, no entanto, em consideração, que a falta da licença de utilização pode traduzir cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda (Cfr. Ac. STJ de 06/04/2000, no Proc.103/00 da 7ª secção (relator Dionísio Correia). (7) Cfr. Ac. STJ de 25/11/97, no Proc. 676/97 da 1ª secção (relator Pais de Sousa). (8) Boletim dos Registos e Notariado, nº 9/94, de Dezembro de 1994. |