Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERNANDO SAMÕES | ||
Descritores: | DELIBERAÇÃO SOCIAL INEXISTÊNCIA JURÍDICA REGIME APLICÁVEL | ||
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Data do Acordão: | 09/10/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | JULGAR O RECURSO DE REVISTA IMPROCEDENTE | ||
Área Temática: | DIREITO DAS SOCIEDADES – DELIBERAÇÕES DOS SÓCIOS / EFICÁCIA DO CASO JULGADO – SOCIEDADES POR QUOTAS / GERÊNCIA E FISCALIZAÇÃO / VINCULAÇÃO DA SOCIEDADE. | ||
Doutrina: | - CARLOS MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed. (8.ª reimp.), Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 608 e ss.; - CARLOS OLAVO, Impugnação das Deliberações Sociais, Colectânea de Jurisprudência, ano XIII, Tomo III, p. 21; - CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 1985, p. 289 e ss.; - GALVÃO TELLES, Manual dos Contratos em geral, 4.ª ed., p. 356 e ss.; - JORGE HENRIQUE DA CRUZ FURTADO, Deliberações de Sociedades Comerciais, Coimbra, Almedina, Coimbra, 2005, p. 498 e ss.; - MOITINHO DE ALMEIDA, Anulação e suspensão de deliberações sociais, p. 25; - OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito comercial, Vol. IV, 2000, p. 395 e ss.; - PINTO FURTADO, Deliberações de sociedades comerciais, 2005, p. 493 e ss.; - RAUL VENTURA, Sociedades por quotas (Comentário ao Código das Sociedades Comerciais), Vol. II, 1989, p. 246; - VASCO DA GAMA LOBO XAVIER, Anulação de Deliberação Social e de Deliberações Conexas, Coimbra, Atlântica Editora, 1976, p. 196 e ss.. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 61.º, N.º 2 E 260.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 23-09-2008, PROCESSO N.º 08A2239, IN WWW.DGSI.PT. | ||
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Sumário : | I - Apesar de o Código das Sociedades Comerciais não reconhecer a inexistência jurídica como categoria autónoma e distinta da nulidade, da anulabilidade ou da ineficácia stricto sensu das deliberações de sociedades comerciais, considera-se a mesma admissível. II - O regime jurídico a aplicar aos casos integrados na figura da inexistência jurídica, mormente no que concerne aos efeitos e da sua oponibilidade a terceiros é o regime previsto no CSC, nomeadamente o resultante dos seus arts. 61.º, n.º 2 e 260.º, n.º 1. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1130/11.9TBBJA.E1.S2[1] * Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:
I. Relatório
AA, Lda., instaurou acção declarativa, com processo ordinário, contra a BB, CRL, ambas melhor identificadas nos autos, pedindo que se “(…)declare ineficaz a escritura de constituição de hipoteca e respectivo registo a favor da R., celebrada em 5 de Setembro de 2005, para garantia dos mútuos a conceder até € 200.000,00, conforme dela consta, ordenando, consequentemente, o cancelamento do registo do referido ónus inscrito pela Apresentação nº 10 de 09.08.2005 no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 284 e Apresentação nº 10 de 09.08.2005 no prédio descrito na mesma Conservatória sob o n.º 285”. Para tanto, alegou, em síntese, no que interessa agora considerar, que, subjacente a tal acto, se encontra uma deliberação cuja inexistência já foi declarada noutra acção.
A ré contestou, por excepção, invocando a falta de interesse em agir e a ilegitimidade activa, bem como a ilegitimidade passiva, e por impugnação, pugnando pela improcedência da acção.
A autora replicou sustentado a improcedência das excepções suscitadas.
Realizada uma audiência prévia, após suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial, foi proferido despacho saneador, onde foram julgadas improcedentes as excepções dilatórias invocadas, e, conhecendo do mérito da causa, se decidiu julgar a acção improcedente com a absolvição da ré de “tudo o peticionado”.
Inconformada, a autora apelou para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 17/1/2019, deliberou negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica. «A - A questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, se torna claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, para efeitos de admissibilidade do presente recurso extraordinário de acordo com a alínea a) do nº 1 do artigo 672º do NCPC, é a de saber se, no seio dos vícios de que conduzem às ineficácias em sentido amplo, a “Inexistência jurídica” constitui ou não uma categoria jurídica autónoma da “Nulidade”, com um regime diferenciado daquela, ou não constitui uma categoria jurídica autónoma, absorvendo-se o seu regime no da nulidade. B - Concretamente, trata-se de saber se a inexistência é uma categoria jurídica operante, cujo regime, que a diferencia da nulidade, implica a não produção de quaisquer efeitos, mesmo colaterais ou secundários, tornando-se oponível mesmo a terceiros de boa fé e representando, consequentemente, o exercício legítimo da correspondente posição jurídica, e não admitindo a vinculação da sociedade pela gerência em atos de execução de deliberação atingida por tal vício, ou se, pelo contrário, segue o regime da nulidade, tornando-se inoponível a terceiros de boa fé, nos termos do nº 2 do artigo 61º do CSC e admitindo-se a vinculação da sociedade por atos da gerência praticados em sua execução, nos termos do nº 1 do artigo 260º do CSC, caso em que ela não é diferenciável da nulidade. C – A doutrina vai maioritariamente no sentido de reconhecer que não estando compreendida no vício de nulidade, encerrado na enumeração taxativa do nº 1 do artigo 56º CSC, representa, no entanto, um vício “bem mais grave e importante do que o legalmente descrito como causa de nulidade”, como refere Pinto Furtado (in “Deliberação dos Sócios”, Comentários ao Código das Sociedades Comerciais, Livraria Almedina, Coimbra 1993, pág. 237 e 239), para quem podem “ocorrer pseudo deliberações cuja submissão ao enquadramento de inexistência jurídica oferecerá real relevância – pois, de outro modo, não cabendo elas na enumeração taxativa do artigo 56º, acabariam por ser relegadas indevidamente, para a mera anulabilidade”. D – A doutrina vai ainda maioritariamente no sentido de reconhecer que à deliberação inexistente não podem corresponder a produção de quaisquer efeitos, nem mesmo os colaterais ou secundários que a nulidade sempre produz, incluindo, o artigo 61º do CSC, pois que “os seus efeitos são distintos dos resultantes da invalidade ou da ineficácia stricto sensu – pois são de tal modo graves que não admitem sequer alguma espécie de eficácia secundária ou colateral que sempre subsistirá em face da própria nulidade” (in Pinto Furtado, “Deliberações dos Sócios (artigos 53 a 63)” – Comentários ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 1993, ponto IV pag. 549 e 550). E – Se, consequentemente, e de acordo com a doutrina expressa, a “inexistência” de uma deliberação não permite que esta produza quaisquer efeitos, nem sequer secundários ou colaterais, então a sentença proferida nos autos que correram termos com o nº processo 1033/11.7TBBJA do juízo central cível e criminal de ... – Juiz 2, que declarou a “inexistência da deliberação de dia 18 de junho de 2005, consignada na ata nº 13 …”, prejudica a vinculação da sociedade pelos gerentes que outorgaram a escritura de “Constituição de Hipoteca” – documento nº 9 da p.i. - “com poderes para o ato, conforme ata da assembleia geral que arquivo” (a ata nº 13) – com decorre da última linha do 2º parágrafo da referida escritura -, dado que se assim não fosse, ter-se-ia de reconhecer que a “inexistência” sempre poderia produzir algum tipo de efeitos secundários ou colaterais. F - E o mesmo se diga em relação ao nº 2 do artigo 61º do CSC, dado que, se não fosse oponível a terceiros, mesmo de boa fé, então o seu regime diluía-se no da nulidade e sempre produziria, tal como esta, efeitos secundários ou colaterais. G - E se ela é oponível a terceiros, mesmo que de boa fé, ao contrário da nulidade, então significa que a sua arguição perante esses terceiros, afastando o disposto no nº 2 do artigo 61º CSC, representa o exercício legitimo da respetiva posição jurídica, afastando, consequentemente a aplicação do artigo 334º do CC. H – Assim, erra o acórdão da Relação ora em revista, quando aplica ao caso dos autos o disposto no nº 1 do artigo 260º e nº 2 do artigo 61º, ambos do CSC e artigo 334º do CC, considerando o A, ora Recorrente, vinculado pelos seus gerentes à escritura de “Constituição de Hipoteca” – documento nº 9 da p.i. -, e a inexistência da deliberação inoponível ao R em virtude de este se constituir como terceiro de boa fé, quando, em virtude da declaração de “inexistência da deliberação de dia 18 de junho de 2005, consignada na ata nº 13 …”, proferida nos autos que correram termos com o nº processo 1033/11.7TBBJA do juízo central cível e criminal de ... – Juiz 2, tais efeitos não são admissíveis, nos termos da doutrina supra explanada. Nestes termos requer a V.Exª que admita o presente recurso extraordinário, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 672º do NCPC: a) reconhecendo a necessidade de clarificação do regime da inexistência das deliberações sociais, designadamente se permite ou não a vinculação pela gerência em atos de execução das mesmas, nos termos do artigo 260 CSC e se é ou não oponível a terceiros de boa fé, nos termos do nº 2 do artigo 61º do CSC, b) Declare o presente recurso procedente, anulando, em consequência, o acórdão da relação, concluindo pela insusceptibilidade de a deliberação inexistente produzir quaisquer efeitos, incluindo os secundários ou colaterais que a nulidade sempre produz, afastando a vinculação da sociedade pela gerência em actos de execução da mesma, nos termos do nº 1 do artigo 260º CSC e sendo oponível a terceiros de boa fé, afastando nº 2 do artigo 61º do CSC, pelo que constitui um exercício legítimo da respetiva posição jurídica ao qual a proteção da confiança cede, afastando o artigo 334º do CC..» A ré contra-alegou pugnando pela rejeição da revista excepcional e, caso ela não ocorra (como não ocorreu), pela sua improcedência, com a consequente confirmação do acórdão recorrido.
II. Fundamentação
As instâncias consideraram provada a seguinte factualidade: «1. No Juízo Central Cível e Criminal de ..., J2 correu termos o proc. n.º 1033/11.7TBBJA em que era A. Autor CC, R. AA, Lda., e Opoente BB, com sede no Largo ... .... 2. No âmbito desse processo foi proferida sentença, transitada em julgado no dia 07.02.2018, tendo sido proferida a seguinte decisão: “Pelo exposto, o Tribunal julga a acção procedente por provada e em consequência declara a inexistência da deliberação de 18 de Julho de 2005 consignada na Acta n° 13 da Assembleia Geral da Ré com o seguinte teor: “autorizar a gerência a contrair empréstimo no montante máximo de quinhentos mil euros, dando como garantia hipotecária (…) o prédio misto denominado Herdade do ... (…), freguesia de ..., concelho de ... descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 284, freguesia de ... e prédio misto denominado Herdade do ... (…), freguesia de ..., concelho de ..., de que esta Sociedade é proprietária na freguesia de ..., concelho de ..., junto da BB ou de qualquer outra instituição financeira, podendo assinar tudo que necessário for para esse fim, nomeadamente contratos e escrituras de mútuo”. 3. Foram considerados provados os seguintes factos: “1. A Ré é uma sociedade civil sob forma comercial que tem por objecto a transformação e comercialização de produtos resultantes da exploração agrícola ou de produtos adquiridos para esse fim; 2. Em 18 de Junho de 2005 eram sócias da Ré DD e EE; 3. A sócia DD outorgou em 24 de Setembro de 2001 uma procuração a favor de FF a qual caducou em 24 de Setembro de 2002; 4. A sócia EE outorgou em 24 de Setembro de 2001 a favor do mesmo FF, uma procuração que caducou em 24 de Setembro de 2002 e outra em 11 de Julho de 2003, a favor deste e de GG, a qual caducou em 11 de Julho 2004; 5. Da acta n.º 13 consta a deliberação de “autorizar a gerência a contrair empréstimo no montante máximo de quinhentos mil euros, dando como garantia hipotecária (…) o prédio misto denominado Herdade do ... (…), freguesia de ..., concelho de ... descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 284, freguesia de ... e prédio misto denominado Herdade do ... (…), freguesia de ..., concelho de ..., de que esta Sociedade é proprietária na freguesia de ..., concelho de ..., junto da ... ou de qualquer outra instituição financeira, podendo assinar tudo que necessário for para esse fim, nomeadamente contratos e escrituras de mútuo”; 6. A acta em questão corresponde a Assembleia Geral da Sociedade Ré de 18 de Julho de 2005, na qual se diz que ambos os sócios, titulares de 100% do capital, a saber, DD e EE, ambas com sede em ..., se faziam representar pelo Sr. Dr. FF; 7. A escritura de constituição de hipoteca foi outorgada a 05 de Setembro de 2005 entre a Ré e a BB, CRL, pela qual foram hipotecados os dois prédios mistos supra identificados para garantir “o bom e integral pagamento de todas e quaisquer obrigações e responsabilidades até ao montante de capital de duzentos mil euros (…)”; 8. Em tal acto a Ré foi representada pelos seus gerentes à data HH e II; 9. Em 2009 foi destituída a gerência que se encontrou em funções no período de Dezembro de 2003 e Abril de 2009, exercida por HH e II, tendo assumido as funções de gerentes JJ e LL; 10. Em 22 de Março de 2010, a Ré reuniu em assembleia geral, dando origem à acta n.º 3, tendo a assembleia deliberado a constituição de usufruto sobre os dois prédios mistos identificados a favor do então gerente da sociedade, LL, pelo valor de € 20.000,00 (vinte mil euros), sendo que “a constituição do presente usufruto se integra num compromisso de saneamento das dívidas sociais”; 11. Ainda nessa mesma data, a assembleia geral da Ré voltou a reunir, originando a acta n.º 4, de onde consta que o usufruto “não constitui qualquer dação em pagamento, limitando-se a fornecer garantia para, após a realização de apuramento à situação patrimonial da sociedade, através de “due deligence”, se virem a acertar formas negociais de saneamento das dívidas apuradas”; 12. A escritura de constituição de usufruto foi outorgada a 02 de Junho de 2010; 13. A sociedade foi representada pelo autor que declarou que “a sua representada, é dona e legítima proprietária do prédio misto denominado “Herdade do ...”, descrito na Conservatória do Registo predial de ... sob o número 284, inscrita na matriz rústica sob o artigo 1, da Secção E e a parte urbana sob o artigo 446 e que sobre o prédio incide registada, por apresentação dez de nove de Agosto de dois mil e cinco, uma hipoteca a favor da BB, CRL”; 14. Mais declarou que “a sua representada é dona e legítima proprietária do prédio misto denominado “Herdade do ...”, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 285, inscrita na matriz rústica sob o artigo 5, da Secção E e a parte urbana sob o artigo 447 e que sobre o prédio incide registada, por apresentação dez de nove de Agosto de dois mil e cinco, uma hipoteca a favor da BB, CRL”; 15. Já em Julho de 2011, em dia que a acta não precisa, a Ré reuniu em assembleia geral, dando origem à acta n.º 7, tendo deliberado sobre a venda da nua propriedade dos prédios mistos denominados “Herdade do ...” e “Herdade do ...”, com os ónus e encargos identificados, pelo valor de € 80.000,00 (oitenta mil euros), justificando o valor de venda apresentado “dados os ónus que sobre os referidos prédios já incidem e em virtude da constituição do usufruto, a nua propriedade forma hoje um activo fixo com valor residual o qual, dada a necessidade de liquidez da sociedade, poderá ser alienado, sem comprometer a continuidade da exploração, a qual é garantida através do usufruto, libertando-se assim fundos necessários para o reequilíbrio financeiro da sociedade”; 16. A proposta foi aprovada e votada por unanimidade, consignando-se a seguinte deliberação: “Determina-se a venda pelo valor global de € 80.000,00 (oitenta mil euros) da nua propriedade do prédio misto denominado “Herdade do ...” (…) e a nua propriedade do prédio misto denominado “Herdade do ...” (…) com todos os ónus e encargos que sobre eles incidem, e que se descriminam: a) Hipoteca voluntária, inscrita sob a apresentação 10 de 2005/08/09, que abrange ambos os prédios, com montante máximo garantido de € 269.5000, (…)”; 17. A escritura de compra e venda da nua propriedade foi outorgada a 02 de Agosto de 2011, tendo LL representado a Ré, na venda a favor da sociedade MM Limited; 18. Nessa escritura, LL identifica os dois prédios mistos, bem como todos os ónus e encargos que sobre os mesmos incidem, designadamente a hipoteca registada a favor da ..., pela apresentação dez de nove de Agosto de dois mil e cinco (…) e ainda, entre outras, uma penhora em que a quantia exequenda é de duzentos e vinte e um mil quinhentos e trinta e dois euros e setenta e seis cêntimos, também registada a favor da ... pela apresentação quatro mil novecentos e oitenta e nove de cinco de Novembro de dois mil e dez; 19. Da acta da assembleia geral da Ré realizada a 14 de Abril de 2009 consta a seguinte ordem de trabalhos: 1.º Deliberar sobre a destituição da gerência; 2.º Deliberar sobre a nomeação da nova gerência; 3.º Deliberar sobre outros assuntos de interesse para a sociedade, nomeadamente, o pagamento à ... do montante decorrente do empréstimo à sociedade; 20. No que toca ao terceiro ponto da ordem de trabalhos, consta em acta que “foi referido pelo Dr. CC a urgência em proceder a pagamentos aos credores da sociedade, nomeadamente à ..., cujo pagamento deverá ser efectuado através dos RPUS respeitantes aos anos de 2005 a 2008, pelo que foi deliberado também por unanimidade proceder à alteração da folha de assinaturas junto da instituição bancária, bem como indicar o NIB da ... a fim dos RPUS serem para aí encaminhados a fim, digo, com o objectivo de proceder ao pagamento da dívida”. 4. Corre termos na Comarca de ... – Juízo Central Cível e Criminal a execução com o n.º 804/09.9TBBJA na qual foram indicados à penhora os prédios hipotecados, não tendo sido deduzida oposição.» Tendo em vista a resolução da questão supra enunciada, importa começar por considerar que, segundo Carlos Olavo, as deliberações sociais “consistem no resultado da vontade dos titulares dos órgãos da pessoa colectiva, em termos de serem a esta normativamente imputáveis”[3]. São, assim, a materialização da vontade de uma sociedade, não só a nível interno, mas, também, perante terceiros. O Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC) disciplina para aquelas que chama deliberações dos sócios, a ineficácia (art.º 55.º), a nulidade (art.º 56.º) e a anulabilidade (art.º 58.º), enquanto categorias de vícios que as podem afectar. São estas as três categorias cujo reconhecimento é incontroverso. Mas já não prevê a inexistência jurídica, pelo que o seu reconhecimento não tem sido consensual na doutrina. A categoria conceitual da inexistência já foi discutida enquanto modalidade autónoma do vício de que um acto jurídico pode enfermar, sendo que a maioria da doutrina defende tal autonomia[4]. Entre os que reconhecem e admitem esta categoria, uns integram-na na invalidade, constituindo com a nulidade e a anulabilidade uma tríade de invalidades[5], enquanto outros se recusam a ver na inexistência uma invalidade, porque “falta todo o termo de comparação” com determinado tipo legal, para se poder estabelecer a sua relação de coincidência ou divergência com ele[6]. Essa mesma discussão foi importada para o específico domínio dos vícios de que as deliberações sociais podem enfermar, discutindo-se se, para além das três categorias tipicamente previstas nos art.ºs 55.º, 56.º e 58.º do CSC, se lhes deve juntar a inexistência jurídica[7]. Pinto Furtado, no âmbito dos vícios que podem afectar as deliberações sociais, defende tal autonomia enquanto categoria a se[8]. CARLOS OLAVO considera “indiscutível a admissibilidade de deliberações sociais juridicamente inexistentes, ainda que se reconheça que, as mais das vezes, a fronteira entre a inexistência jurídica e nulidade depende das circunstâncias do caso e consequentemente de um critério eminentemente casuístico e pragmático”[9]. Contudo, a tese contrária recusa, implícita e liminarmente, a aplicação da figura da inexistência jurídica enquanto categoria autónoma de vício que pode afectar as deliberações sociais[10]. No presente caso, tal discussão é irrelevante, porquanto a deliberação ao abrigo da qual foi celebrada a escritura de constituição de hipoteca cuja ineficácia a autora/recorrente sustenta já foi declarada inexistente por sentença transitada em julgado, à qual se deve obediência (cfr. n.º 2 dos factos provados e art.ºs 619.º, n.º 1, 621.º e 628.º, todos do CPC). Assente que tal deliberação é inexistente, importa saber qual o regime a aplicar à inexistência quanto aos seus efeitos e da sua oponibilidade a terceiros, tendo, para tanto, presente a disciplina prevista no CSC para os vícios. Pois bem, Pinto Furtado defende que podem “ocorrer pseudodeliberações cuja submissão ao enquadramento de inexistência jurídica oferecerá real relevância – pois, doutro modo, não cabendo elas na enumeração taxativa do artigo 56.º, acabariam por ser relegadas, indevidamente, para a mera anulabilidade”[11]. Se bem vemos as coisas, e considerando o argumento da certeza jurídica, não é fácil determinar com rigor, no âmbito do direito societário, quando estaremos perante uma concreta hipótese de falta de integração da facti species de deliberação (o que é dominado de grande subjectivismo), mas tal dificuldade só poderá ser ultrapassada com o paliativo que decorre da disciplina das categorias dos vícios positivadas no CSC, sendo certo que, para tanto, teremos que encontrar o regime jurídico a aplicar aos casos crismados (bem ou mal, agora não importa) na figura da inexistência jurídica, mormente no que concerne aos seus efeitos e da sua oponibilidade a terceiros. Considerando que a inexistência jurídica – regra geral – abrange situações mais gravosas do que aquelas a que teríamos diante de situações enquadráveis no âmbito de simples anulabilidade, parece-nos incontornável que o regime a seguir só pode ser o descrito para a nulidade. Em consequência, a “declaração de nulidade ou a anulação não prejudica os direitos adquiridos de boa-fé por terceiros, com fundamento em actos praticados em execução da deliberação; o conhecimento da nulidade ou da anulabilidade exclui a boa-fé” (art.º 61.º, n.º 2 do CSC). E “Os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios” (art.º 260.º, n.º 1 do mesmo diploma legal). Retornando ao caso concreto, a escritura in casu (como resulta da factualidade provada) foi outorgada pelos gerentes da recorrente, à data, e a aqui recorrida, não podendo esta deixar de ser considerada terceiro de boa-fé[12], não se descortinando, assim, qualquer fundamento para questionar a sua vinculação à escritura outorgada.
Destarte, o recurso soçobra.
Sumário a que alude o art.º 663.º, n.º 7, aplicável ex vi do art.º 679.º, ambos do CPC:
III. Decisão
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerandos, acorda-se em julgar o recurso de revista improcedente e confirmar o acórdão recorrido. * Custas pela recorrente. * Lisboa, 10 de Setembro de 2019
------------------------- [6] É a posição sustentada, inter alia, por GALVÃO TELLES, in Manual dos Contratos em geral, 4.ª ed., págs. 356 e seguinte. |