Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4.ª SECÇÃO | ||
Relator: | DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS | ||
Descritores: | ISENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO ACORDO CONTRATO VERBAL FORMALIDADE AD SUBSTANTIAM | ||
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Data do Acordão: | 10/19/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
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Sumário : | I- O acordo de isenção de horário de trabalho deve ser reduzido a escrito, constituindo formalidade ad substantiam. II- O acordo verbal é nulo, mas produz efeitos como se fosse válido em relação ao tempo da sua duração. III- O empregador que beneficia da prestação funcional de trabalhador, ao abrigo de acordo de isenção de horário de trabalho declarado nulo, fica obrigado a pagar-lhe a correspondente compensação. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3807/20.9T8MTS.P1.S1 Origem: Tribunal da Relação do Porto Recurso de revista Relator: Conselheiro Domingos Morais Adjuntos: Conselheiro Mário Belo Morgado Conselheiro Júlio Gomes Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça I. – Relatório 1. - AA instaurou ação declarativa com processo comum contra Qualified Integration – Sistemas e Tecnologias da Informação, alegando, em resumo, que durante 15 anos trabalhou ao serviço da Ré sem qualquer horário estabelecido, por vezes mais de 14 horas por dia e com uma disponibilidade de 24 horas/7 dias por semana, exercendo na prática as suas funções em regime de isenção de horário; e que todo o enquadramento de conflito lhe provocou um estado de ansiedade e depressão, durante o qual, mesmo em situação de baixa médica, era coagido pela Ré para continuar a trabalhar. Terminou, pedindo que a ação seja julgada procedente e, em consequência, seja: a) A Ré condenada ao pagamento da compensação devida a título de isenção de horário, pelo valor de € 90.000,00 reconhecendo ao Autor esse direito, assim como dos juros vencidos e vincendos à taxa legal. b) E, condenada ao pagamento de indemnização a título de danos não patrimoniais sofridos, em valor nunca inferior a €30.000,00 indemnização esta que visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido, devendo ser significativa, e não meramente simbólica, atendendo ao justo grau de compensação, e fixada segundo critérios de equidade, atendendo às circunstâncias referidas no artigo 494º do C.C.. 2. A ação foi julgada improcedente na 1ª instância. 3. - O autor apelou, impugnando a matéria de facto e de direito, tendo o Tribunal da Relação do Porto decidido: “Pelo exposto, acorda-se em rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, mas, não obstante, julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a sentença sob recurso na parte em que absolveu a ré do pagamento do subsídio de isenção de horário de trabalho, que se substitui pelo presente acórdão, condenando-se a ré no pagamento do valor global a tal título da quantia de € 19.168,13 (dezanove mil cento e sessenta e oito euros e treze cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma das prestações referidas na fundamentação supra e até integral pagamento. No mais confirma-se a sentença sob recurso.”. 4. – A ré interpôs recurso de revista, alegando, em resumo, nas suas conclusões: - O Exmo. Tribunal a quo, começa primeiramente por julgar necessário aferir se se pode concluir da matéria de facto provada a existência de acordo de isenção de horário de trabalho. Conclui erradamente que sim, em desrespeito das regras de valoração de prova e entendendo que a atividade do autor, vendo-se englobada na previsão do art. 177º, n.º 1, alínea c) do Código do Trabalho de 2003, a isenção de horário existe. - Depois e partindo para a segunda etapa - tendo assente no seu espírito que existira acordo de isenção de horário de trabalho - considerando que a relação laboral entre autor e ré teve início em 2005 e sendo, portanto, de considerar o regime do Código do Trabalho de 2003, conclui que importa analisar da validade do alegado acordo, face à exigência legal do acordo escrito e da comunicação de tal acordo à Inspeção Geral do Trabalho e mais uma vez e numa errada interpretação e aplicação do direito, presumindo-se uma má fé da entidade empregadora e olvidando-se que o Autor é também sócio da Ré e que em nada se via desprotegido com a aplicação do regime laboral comum, conclui-se erradamente que a entidade empregadora não pode escusar-se do pagamento que lhe vem a ser exigido, escudando-se na inexistência de acordo escrito e de falta da sua remessa para a administração do trabalho, reconduzindo a atitude da mesma e inexplicavelmente à figura do abuso de direito. - O acórdão em crise, ao decidir como decidiu, fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 334º e 393º, n.º 1 do Código Civil e 177º, n. º1 e 3 do Código do Trabalho de 2003. - Ora, compreende-se, desde já, que a questão que é aqui trazida, e que está subjacente ao caso dos autos, é, pois, uma discordância quanto à interpretação e aplicação do Direito. - Com efeito, no entendimento da Recorrente, o Acórdão do TRP objeto do presente recurso traduz, evidentemente, uma situação de violação de lei substantiva e processual, tal como exigido pelo n.º 1 do artigo 674º do CPC. - Por tal motivo, não pode o Recorrente concordar com o teor e com sentido do Acórdão recorrido, nem com os fundamentos em que o mesmo se louva, porquanto enferma de erro de julgamento de direito, por errónea interpretação e aplicação dos artigos 393º, n.º 1 e 334º do Código Civil, 177º, n.º 1 e 3 do Código do Trabalho de 2003. - Da correta interpretação e aplicação das referidas normas legais, resultará uma decisão equitativa e materialmente justa desta causa - a que o tribunal está vinculado pelo artº 7º, nº 1 do CPC-, devendo revogar-se e substituir-se a sentença em crise por outra, que desobrigue a Ré de pagar qualquer montante ao Autor. - Concretamente, o trabalhador, qui Autor, nunca prestou o seu trabalho em regime de isenção de horário, quer porque nunca houve qualquer acordo em tal sentido, seja porque a existir acordo teria que obedecer às formalidades legais previstas. - Na verdade, o artigo 177.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, em vigor ao início de prestação da atividade do Autor (2005), estipulava que tal isenção deveria constar de acordo escrito e que tal acordo deveria ser enviado à Inspeção-geral do Trabalho. - Repare-se que nos autos não se provou a existência de um qualquer encontro de vontade das partes na sujeição do contrato de trabalho ao regime da isenção de horário de trabalho, tendo antes o autor, atenta a própria especificidade de funções e de área de atividade da Ré que obrigava a uma maior flexibilidade, a liberdade de organizar o seu horário de trabalho, da forma que fosse mais conveniente à prestação da sua atividade. - Conforme o próprio Autor reconhece não era possível ter um horário fixo e concreto, sendo que a empresa tinha trabalho, quando a assistência por parte dos clientes era solicitada. Pelo contrário, quando não era solicitada, o que acontecia muitas vezes, dado o espaçamento temporal que se provara existir entre as chamadas dos técnicos informáticos por parte dos clientes da Ré, não havia trabalho efetivo e o Autor ficava naturalmente desobrigado de o prestar. - No demais, o Autor era pago para a responsabilidade que carregava, auferindo uma retribuição acima da média, recebendo prémios e participando nos lucros da sociedade, enquanto seu sócio. - Assim, ainda que se provasse que o Autor trabalhava sem sujeição a qualquer horário de trabalho, não pode tal situação de facto beneficiar do regime jurídico que é próprio da isenção de horário de trabalho legalmente constituída, mormente para efeitos retributivos, na medida em que simultaneamente não se prova a existência de qualquer acordo nesse sentido. - Isto é, o Autor tinha uma disponibilidade de 24horas por dia para atender os clientes da Ré e que tinha liberdade de organizar o seu horário de trabalho, repartindo a suas horas de trabalho semanal pelos diferentes dias da semana. - Mas esta situação de facto por si só não dá o direito ao Autor de receber retribuição correspondente, mas sim a aplicar-se o regime comum da lei laboral. Ou seja, sempre se obedeceria ao regime de trabalho suplementar ou noturno, mas caberia ao Autor alegar e provar factos que permitissem concluir por tal prestação de trabalho, uma vez que são factos constitutivos do direito que se arroga. - Por outro lado, nunca contenderia com o princípio da justa remuneração o facto de o trabalhador laborar, de facto, em regime de isenção de horário de trabalho, quando é certo que nunca exigiu à sua entidade empregadora a observância dos requisitos legais para o efeito. - Se não existia qualquer obrigação (contratual) de prestar atividade num suposto regime de isenção que o Autor agora diz desde sempre existir, este só tinha mais era que se recusar. - Mais, o acordo de isenção de horário trata-se de uma Formalidade ad substantiam, ficando vedada a produção e valoração de prova testemunhal da existência de acordo verbal sobre tal regime - cfr. 393º, n.º 1 CC. 5. - O autor contra-alegou, defendendo a confirmação do Acórdão recorrido, por entender que “Os acórdãos citados pelo recorrente vão precisamente no sentido apontado. Ou seja, provando-se o acordo de isenção de horário de trabalho, não pode a entidade patronal que não diligenciou pela redução a escrito de tal acordo, invocar a nulidade do mesmo, por incumprimento do formalismo legal, por abuso de direito. Isto mesmo é referido por Francisco Liberal Fernandes na passagem citada e é pacífico na jurisprudência.”. 6. - O Ministério Público emitiu parecer, no sentido de “que deve ser negada a Revista, uma vez que a Ré beneficiou da prestação funcional do Autor conforme descrito cerca de 4 anos, e que lhe incumbia em primeira linha providenciar pelo contrato escrito e não o fez, afigura-se-nos defensável o entendimento por que enveredou o acórdão recorrido, ou seja que a entidade empregadora não se pode escudar na inexistência de acordo escrito para se eximir ao pagamento do subsídio, o que configura uma situação de abuso de direito.”. 7. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir. II. - Fundamentação de facto 1. - Nas instâncias foi fixada a seguinte matéria de facto: 1. - O autor trabalhava na empresa ré desde 2005 como informático nas áreas de sistemas e redes, e também passagem de cabo. 2. Na sua atividade laboral, o autor prestava ainda serviços comerciais dentro dessa área a vários clientes da Ré. 3. Autor e ré nunca reduziram a escrito as condições da relação de trabalho que acordaram. 4. O autor tinha de estar disponível 24 horas por dia, dado os contratos de atendimento permanente que a ré mantinha com determinados clientes, nomeadamente a S..., a A..., Lda. e a T..., Lda. 5. Desde 2005 que o autor sempre trabalhou sem um horário definido, chegando mesmo a atender clientes em período de férias. 6. O autor esteve em situação de incapacidade temporária para o trabalho por doença de 24/1/2019 a 22/5/2019. 7. No dia 31 de janeiro de 2020 o autor reuniu com o legal representante da Ré, Sr. BB, acompanhado pela mandatária Dra. CC, e que o contrato de trabalho cessaria nessa data. 8. Nessa reunião foi ainda discutida a possibilidade de, mediante acordo, ser devolvido ao autor ou pago o valor correspondente a ferramentas que pertenciam ao autor e este disponibilizou à ré no início da relação laboral. 9. Por email datado de 21/12/2017 remetido ao gerente da ré, BB, o autor mostrou-se grato àquele por ter feito mais por ele do que alguma vez a sua própria família fez ou faria e mostrando-lhe a sua profunda admiração e agradecimento pelo apoio e ensinamentos que lhe havia transmitido. 10. Com datas de 1 e de 3 de fevereiro de 2020 o autor enviou emails ao gerente da ré e seus trabalhadores, que intitulara de “despedida”, a engrandecer o projeto da ré, bem como as pessoas com que trabalhara, em especial o Sr. Eng. DD, considerando que o fizeram crescer como homem e profissional e que mereciam o seu agradecimento, bem como a pedir desculpa por algum mal que tenha causado à equipa, mas que não foi propositado, e a considerar que tem uma amizade de 26 anos com o gerente da Ré, com quem sempre ultrapassara dificuldades e vivera muitas alegrias. 11. O autor tinha a liberdade de organizar o seu horário de trabalho, da forma que fosse mais conveniente à prestação da sua atividade, repartindo as suas horas de trabalho semanal pelos diferentes dias da semana. 12. Já em 1999 o autor tomava medicação por problemas depressivos. 13. Na sequência de acidente de trabalho sofrido pelo autor a 14/11/219, este ficou numa situação de incapacidade temporária absoluta até, pelo menos, ao fim do contrato de trabalho – 31/1/2020. 14. O autor auferia uma retribuição base de €1.670,00, com referência a 40 horas semanais. De resto não se provou: Da petição inicial: - que o autor fosse a única pessoa qualificada na ré para prestar serviços aos clientes relacionado com sistemas de rede; - que muitas vezes o autor trabalhasse mais de 14 horas por dia; - que o autor fosse manifestando descontentamento perante a ré por entender que devia estar a auferir valor correspondente à isenção de horário que praticava, e que lhe havia sido prometido; - que sempre que o sócio-gerente da Ré, o Sr. BB era confrontado com os descontentamentos do aqui Autor, mostrava imediatamente desagrado, vindo a relação laboral a deteriorar-se ao longo dos anos devidas as inúmeras promessas não realizadas; - que o gerente da ré afirmava que “não era política da empresa pagar horas extra”, que isso era uma obrigação dos trabalhadores para ajudar a empresa; - que se tratasse de situações cíclicas, que perduraram longos anos, vários desentendimentos entre o autor e a ré, tanto mais que havia uma relação de amizade além da laboral, atritos, pressão psicológica, que levaram o autor à doença e que tenha determinado a situação de incapacidade para o trabalho referida em 6.; - que mesmo estando em casa, e com recomendação médica para descansar, continuava a ser importunado pela Ré, na pessoa do Sr. BB (sócio-gerente), com serviços e tarefas a realizar, visto que era quem tinha as competências para tal; - que quando o autor estava no 3º mês de baixa médica, o gerente da ré iniciou manobras de coação sobre o autor retirando-lhe a viatura de serviço, e insinuando constantemente que iria passar as suas funções a outros colegas, que (supostamente) mais beneficiavam a empresa; - que quando o autor retomou o trabalho, após baixa médica, era diariamente humilhado, quer pela entidade patronal, quer pelos colegas; - que por força desse ambiente no trabalho o autor tenha começado e continue a tomar os seguintes fármacos: Zareflix, Escitalopram, Efexor (antidepressivos), e Xanax como ansiolítico; - que em outubro de 2019, por se aperceber que não conseguia aguentar a pressão psicológica e as condições laborais em que se encontrava, vendo o seu estado de saúde física e mental completamente a deteriorar-se, o autor tenha comunicado então à Ré, na pessoa do Sr. BB (sócio gerente) que pretendia cessar a relação laboral, sendo que nesta data, consegui-o a Ré, através de novas promessas, voltar a dissuadir o autor de o fazer; - que nessa reunião tenha ficado acordado que a ré pagaria ao autor os dois meses de férias em dívida, que devolveria as ferramentas do trabalhador no valor de cerca € 4500, e devolveria o número de telefone do autor que era seu e tinha sido cedido à empresa. - que às ferramentas referidas em 8. tivesse sido pelas partes atribuído o valor de €4.500,00 e que aquelas fossem constituídas por: - ... de ferramentas várias no valor total de €1000 - Máquina de conectorização de fibra ótica no valor de €1200 -Walkie Talkies no valor de €300 - Rebarbadora e máquina de furar no valor de €1700 - Máquina de etiquetas no valor de €150 - Pistola de cola quente da marca ... no valor de €150. - que esse acordo, que ficaram de transpor para um documento escrito, nunca chegou a ser assinado porque a Ré nunca mais atendeu o telefone ou respondeu a qualquer e-mail; Da contestação: - que em 9 de fevereiro de 2010 o aqui Autor se tenha tornado sócio da ré, por iniciativa do Eng. DD; - que no momento referido em 7. o gerente da ré tenha solicitado que fosse enviada carta de denuncia para a empresa, devendo abster-se desde aquele momento de contacto com os clientes da empresa e que “devolvesse” a quota que lhe pertence na estrutura societária da mesma, fazendo-se posteriormente, o competente acerto de contas; - que tenha sido o autor quem procurou o gerente da ré pedindo-lhe emprego no ano de 2005; - que o autor tivesse preferência em não trabalhar e certas horas do dia, para o fazer à noite ou preferindo trabalhar ao sábado de manhã, ao invés de o fazer nas folgas da sua, à altura, mulher, que trabalhava ao Sábado; - que o horário móvel acordado entre as partes evitasse a prestação de trabalho suplementar; - que houvesse dias que o autor trabalhasse menos de 8 horas diárias; - que nunca tivesse sido pedido ao autor que atendesse chamadas, respondesse a emails ou auxiliasse na resolução de qualquer problema em período de férias dias de descanso ou feriado; - e que o tenha feito com o desconhecimento da ré, apenas por boa vontade ou no seu próprio interesse; - que o autor tenha falado sobre um problema de depressão crónica com o Eng. DD, pedindo-lhe ajuda pois tratar-se-ia de problema hereditário, pelo que este o encaminhou para o seu irmão que é médico de profissão; - que o autor tenha sido acompanhado em várias consultas no Hospital ... e desde sempre tomara medicação, cuja falta se denotava de imediato; - que quando o autor não tomava a medicação, a sua relação com as chefias e com os colegas tornava-se insuportável. III. - Fundamentação de direito. 1. - Do objeto do recurso de revista. - Do regime de isenção de horário de trabalho, sem acordo escrito, e legais consequências. 2. - Questão prévia: legislação aplicável. A fundamentação jurídica da 1.ª instância foi desenvolvida a partir da citação do artigo 218.º do Código do Trabalho de 2009. No Acórdão recorrido foi consignado: “Tendo a relação laboral entre autor e ré tido início em 2005, importa, para análise desta questão em concreto, considerar o regime do Código do Trabalho de 2003”, passando a citar o artigo 177.º, n.º 1, do Código do Trabalho de 2003. Dado que as partes não suscitaram tal questão em sede de revista, será aplicado o regime jurídico do Código do Trabalho de 2003 (CT/2003). 3. - Do regime de isenção de horário de trabalho. 3.1. - A recorrente alega que “O acórdão em crise, ao decidir como decidiu, fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 334º e 393º, n.º 1 do Código Civil e 177º, n.º 1 e 3 do Código do Trabalho de 2003. Ora, compreende-se, desde já, que a questão que é aqui trazida, e que está subjacente ao caso dos autos, é, pois, uma discordância quanto à interpretação e aplicação do Direito.” E mais adiante acrescenta: “o Autor, nunca prestou o seu trabalho em regime de isenção de horário, quer porque nunca houve qualquer acordo em tal sentido, seja porque a existir acordo teria que obedecer às formalidades legais previstas.”. 3.2. - O artigo 177.º - Condições de isenção de horário de trabalho - n.ºs 1 e 3 do CT/2003 (actual artigo 218.º do CT/2009) dispunha: “1 - Por acordo escrito, pode ser isento de horário de trabalho o trabalhador que se encontre numa das seguintes situações: a) Exercício de cargos de administração, de direcção, de confiança, de fiscalização ou de apoio aos titulares desses cargos; b) Execução de trabalhos preparatórios ou complementares que, pela sua natureza, só possam ser efectuados fora dos limites dos horários normais de trabalho; c) Exercício regular da actividade fora do estabelecimento, sem controlo imediato da hierarquia. 2 - (…). 3 - O acordo referido no n.º 1 deve ser enviado à Inspecção-Geral do Trabalho.”. Por sua vez, o artigo 178.º (actual artigo 219.º) - Efeitos da isenção de horário de trabalho - previa: “1 - Nos termos do que for acordado, a isenção de horário pode compreender as seguintes modalidades: a) Não sujeição aos limites máximos dos períodos normais de trabalho; b) Possibilidade de alargamento da prestação a um determinado número de horas, por dia ou por semana; c) Observância dos períodos normais de trabalho acordados. 2 - Na falta de estipulação das partes o regime de isenção de horário segue o disposto na alínea a) do número anterior. 3 - A isenção não prejudica o direito aos dias de descanso semanal obrigatório, aos feriados obrigatórios e aos dias e meios dias de descanso complementar, nem ao descanso diário a que se refere o n.º 1 do artigo 176.º, excepto nos casos previstos no n.º 2 desse artigo. 4 - Nos casos previstos no n.º 2 do artigo 176.º deve ser observado um período de descanso que permita a recuperação do trabalhador entre dois períodos diários de trabalho consecutivos.” (negritos nossos) Neste particular, foi dado como provado que: 1. - O autor trabalhava na empresa ré desde 2005 como informático nas áreas de sistemas e redes, e também passagem de cabo. 2. Na sua atividade laboral, o autor prestava ainda serviços comerciais dentro dessa área a vários clientes da Ré. 3. Autor e ré nunca reduziram a escrito as condições da relação de trabalho que acordaram. 4. O autor tinha de estar disponível 24 horas por dia, dado os contratos de atendimento permanente que a ré mantinha com determinados clientes, nomeadamente a S..., a A..., Lda. e a T..., Lda. 5. Desde 2005 que o autor sempre trabalhou sem um horário definido, chegando mesmo a atender clientes em período de férias. 11. O autor tinha a liberdade de organizar o seu horário de trabalho, da forma que fosse mais conveniente à prestação da sua atividade, repartindo a suas horas de trabalho semanal pelos diferentes dias da semana. Resulta, em resumo, que as partes acordaram: desde o início do contrato, o Autor trabalhou para a Ré sem um horário definido, incluindo em férias, tendo a liberdade de organizar o seu horário de trabalho, da forma que fosse mais conveniente à prestação da sua atividade, repartindo as suas horas de trabalho semanal pelos diferentes dias da semana, sendo que tal acordo não foi reduzido a escrito. Mais se provou que o Autor, exercendo as funções de informático nas áreas de sistemas, redes e passagem de cabo, bem como a prestação de serviços comerciais dentro dessa área a vários clientes da Ré, tinha de estar disponível 24 horas por dia, por força dos contratos de atendimento permanente que a Ré mantinha com determinados clientes. Tal significa que, tendo que estar disponível 24 horas por dia, e atenta a natureza das suas funções, o Autor também trabalhava em casa, na sua residência (não está provado qual o número de horas que permanecia nas instalações da Ré), logo, sem o controlo imediato do seu superior hierárquico. A descrita factualidade permite, pois, concluir que a actividade desenvolvida pelo Autor ao serviço da Ré se enquadra na previsão do citado artigo 177.º, n.º 1, alínea c), do CT/2003. 3.3. - Afirmada a existência do acordo de isenção de horário de trabalho, invocado pelo Autor, coloca-se agora a questão da validade do mesmo, atenta a exigência legal do “acordo escrito” (artigo 177.º, n.º 1, do CT/2003) e da respectiva comunicação à Inspecção-Geral do Trabalho (IGT), nos termos previstos no n.º 3 do mesmo normativo. Sobre a intervenção da IGT importa, desde já, adiantar que o preceituado no citado artigo 177.º, n.º 3, se afastou da disciplina da isenção de horário de trabalho do artigo 13.º do DL 409/71, de 27/09 (LDT), que fazia depender a isenção por acordo das partes da autorização prévia da IGT. A partir da entrada em vigor do CT/2003, e actual CT/2009, essa autorização prévia foi substituída pela simples informação à IGT [actual ACT] da existência do acordo entre trabalhador e empregador, pelo que, no caso em apreço, a ausência de comunicação àquele organismo estatal perde qualquer relevância jurídica, salvo a prevista contra-ordenação leve. [cf., v.g., Pedro Romano Martinez, e Outros, in Código do Trabalho, Anotado, 2004, pág. 351]. E se esse acordo não tiver sido reduzido a escrito, como estipulava o n.º 1 do artigo 177.º (e estatui o actual artigo 218.º, n.º 1), quid iuris? O artigo 393.º - Inadmissibilidade da prova testemunhal -, n.º 1 do C. Civil estipula: “1. Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.”. E o artigo 220.º - Inobservância da forma legal - do mesmo diploma determina: “A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.” No dizer de Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, pág. 340, “Quando a declaração negocial deva ser reduzida a escrito e não o seja, o acto é nulo (art.º 220), sendo, portanto, irrelevante qualquer espécie de prova. Se a lei exige apenas que a declaração se prove por documento, está expressamente afastada a prova testemunhal”. E na pág. 210 anotam: “O artigo 220.º consagra explicitamente, como regra, a solução que considera as formalidades legais da declaração como formalidades ad substantiam (e não como meras formalidades ad probationem).”. Decorre do teor dos citados artigos 177.º e 178.º do CT/2003 [actuais 218.º e 219.º) a existência de vários regimes de isenção de horário de trabalho, cabendo às partes escolher a modalidade de isenção que desejam. Caso não o façam, a lei estabelece que o regime de isenção de horário será o da alínea a) do n.º 1 do artigo 178.º. Tal estipulação normativa permite concluir que as várias formalidades legais que podem integrar o “acordo escrito” consubstanciam formalidades ad substantiam e não, simplesmente, meras formalidades ad probationem. Daí a nulidade do acordo verbal estabelecido entre partes sobre o regime de isenção de horário de trabalho praticado pelo Autor enquanto ao serviço da Ré. 3.4. - No regime geral estatuído no artigo 289.º, n.º 1, do C. Civil, “Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”. No domínio do direito laboral vigora o princípio da não retroatividade dos efeitos da declaração de nulidade ou anulação do contrato de trabalho que tenha sido executado: “1 - O contrato de trabalho declarado nulo ou anulado produz efeitos como se fosse válido em relação ao tempo durante o qual esteve em execução.” – artigo 115.º do CT/2003 e artigo 122.º do CT/2009. No dizer de Maria do Rosário Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho, II, 4.ª edição, Coimbra, 2012, p. 187-188, “as razões de ser desta regra são a impraticabilidade da repetição das prestações laborais, (…), a necessidade de tutela do trabalhador nestas situações e (…) a conveniência de estabelecer um regime de aplicação escorreita num contrato que, apesar de inválido, pode ser executado durante largo tempo”. Em anotação ao citado artigo 115.º do CT/2003, Pedro Romano Martinez, e Outros, in ob. citada, pág. 258, escrevem: “entendemos que estamos perante um regime de invalidade atípico, mas não único, em que a lei reconhece a produção de efeitos a um negócio jurídico inválido. (...). A existência de outras situações em que são ressalvados efeitos já produzidos aponta claramente para uma solução atípica dos efeitos da invalidade que se julga estar associada à complexidade da destruição retroactiva dos efeitos do contrato de trabalho”. E, mutatis mutandis, dos efeitos de outros negócios jurídicos de índole laboral, decorrentes da celebração e execução do contrato de trabalho, como o acordo de isenção de horário de trabalho declarado nulo, por vício de forma, dada a impossibilidade de restituição do trabalho, efectivamente, prestado ao abrigo dessa isenção. A ré argumenta ainda que “o Autor tinha uma disponibilidade de 24horas por dia para atender os clientes da Ré e que tinha liberdade de organizar o seu horário de trabalho, repartindo a suas horas de trabalho semanal pelos diferentes dias da semana. Mas esta situação de facto por si só não dá o direito ao Autor de receber retribuição correspondente, mas sim a aplicar-se o regime comum da lei laboral. Ou seja, sempre se obedeceria ao regime de trabalho suplementar ou noturno, mas caberia ao Autor alegar e provar factos que permitissem concluir por tal prestação de trabalho, uma vez que são factos constitutivos do direito que se arroga.”. Dizer que “o Autor tinha uma disponibilidade de 24horas por dia para atender os clientes da Ré”, não significa o mesmo do que afirmar que “O autor tinha de estar disponível 24 horas por dia, dado os contratos de atendimento permanente que a ré mantinha com determinados clientes, nomeadamente a S..., a A..., Lda. e a T..., Lda.”, como consta no texto do ponto 4.º dos factos provados. Dito de outro modo: não era o autor que “escolhia” as horas de contacto com os clientes da ré, mas sim que estava obrigado a estar disponível 24 horas por dia para os atender, “dado os contratos de atendimento permanente que a ré mantinha com determinados clientes”. Neste contexto, pode afirmar-se que o autor não tinha descanso, nem diurno, nem noturno, pois, a qualquer hora do dia ou da noite (e em férias – ponto 5.º dos factos provados) podia ser contactado por qualquer um dos clientes da ré, com os quais outorgara contratos de atendimento permanente. Com todo o respeito, da redacção do ponto 14.º dos factos provados apenas se pode extrair que a retribuição mensal de €1.670,00 foi calculada tendo por base - referência/alusão - as 40 horas de trabalho por semana, o limite máximo previsto no artigo 163.º, n.º 1 CT/2003 (actual artigo 203.º, n.º 1 CT/2009) e não que o autor prestasse apenas 40 horas de trabalho por semana. O artigo 176.º - Descanso diário - do CT/2003 (actual artigo 214.º do CT/2009) estabelecia: “1 - É garantido ao trabalhador um período mínimo de descanso de onze horas seguidas entre dois períodos diários de trabalho consecutivos. 2 - O disposto no número anterior não é aplicável a trabalhadores que ocupem cargos de administração e de direcção ou com poder de decisão autónomo que estejam isentos de horário de trabalho, nem quando seja necessária a prestação de trabalho suplementar por motivo de força maior, ou por ser indispensável para prevenir ou reparar prejuízos graves para a empresa ou para a sua viabilidade devidos a acidente ou a risco de acidente iminente. 3 - A regra constante do n.º 1 não é aplicável quando os períodos normais de trabalho sejam fraccionados ao longo do dia com fundamento nas características da actividade, nomeadamente no caso dos serviços de limpeza. 4 - O disposto no n.º 1 não é aplicável a actividades caracterizadas pela necessidade de assegurar a continuidade do serviço ou da produção, nomeadamente as actividades a seguir indicadas, desde que através de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho sejam garantidos ao trabalhador os correspondentes descansos compensatórios: a) Pessoal operacional de vigilância, transporte e tratamento de sistemas electrónicos de segurança; b) Recepção, tratamento e cuidados dispensados em hospitais ou estabelecimentos semelhantes, instituições residenciais e prisões; c) Portos e aeroportos; d) Imprensa, rádio, televisão, produção cinematográfica, correios ou telecomunicações, ambulâncias, sapadores-bombeiros ou protecção civil; e) Produção, transporte e distribuição de gás, água ou electricidade, recolha de lixo e incineração; f) Indústrias em que o processo de laboração não possa ser interrompido por motivos técnicos; g) Investigação e desenvolvimento; h) Agricultura. 5 - O disposto no número anterior é extensivo aos casos de acréscimo previsível de actividade no turismo.”. (negrito nosso) Da matéria de facto dada como provada não resulta que a actividade da Ré se enquadre em alguma das actividades descritas no n.º 4 do citado artigo 176.º, como não resulta provado qualquer período de descanso do Autor (cujo ónus probatório é do empregador), pelo que se verificou uma violação, por parte da Ré, do disposto no n.º 1 do mesmo artigo. E tendo a Ré beneficiado da prestação funcional do Autor na descrita modalidade de isenção de horário de trabalho, sem ter provado o pagamento de qualquer compensação por essa maior disponibilidade e esforço, não tem qualquer cabimento legal a sua recusa de pagar com os argumentos invocados, em particular, de que “o acordo teria de obedecer às formalidades legais previstas”. Sibi imputet, a não redução a escrito das formalidades legais exigidas para o acordo de isenção de horário de trabalho, dado que compete ao empregador a elaboração do horário de trabalho, nos termos dos artigos 197.º e segs. do CT/2009 (anteriores 170.º e segs. do CT/2003). Em conclusão: tendo a Ré beneficiado da prestação funcional do Autor na descrita modalidade de isenção de horário de trabalho, está obrigada a pagar-lhe a respectiva compensação, como contrapartida por essa maior disponibilidade e esforço – cf. artigo 249.º do CT/2003 e actual artigo 258.º do CT/2009). Improcede, pois, o recurso de revista, ainda que com fundamentação diversa. III. - Decisão Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social: 1. - Julgar a revista improcedente e manter o acórdão recorrido. Custas a cargo da Ré. Lisboa 2022.10.19. Domingos José de Morais (Relator) Mário Belo Morgado Júlio Vieira Gomes
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