Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P4421
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: MOTIVAÇÃO
PRAZO
ADMISSÃO DO RECURSO
Nº do Documento: SJ200403030044213
Data do Acordão: 03/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 2140/03
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : 1º - O despacho que no processo e na interpretação que faz das disposições pertinentes, fixou os termos em que deve ser contado o prazo para a apresentação da motivação do recurso, fez o interessado adquirir o direito a apresentar a sua motivação nos termos estabelecidos.
2º - O processo justo, a boa-fé, a confiança e a lealdade processual impõem que os interessados devem poder confiar nas condições de exercício de um direito processual estabelecido em despacho do juiz, sem que possa haver posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que confiaram no rigor e na regularidade legal do acto do juiz.
3º - Deste modo, decidida no tribunal a quo que a motivação poderia ser apresentada em determinado, prazo, não pode o tribunal superior, invocando o artº 414º, nº 3, do CPP, rejeitar o recurso por extemporaneidade, fundamentada em interpretação diversa do decidido no tribunal recorrido.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A", identificado no processo, foi acusado pelo Ministério Público pela prática, em autoria material e concurso efectivo, dos seguintes crimes: um crime de furto, p. e p. pelo art.° 203.°, nº 1, do Código Penal; um crime de falsificação, p. e p. pelo art.° 256º, n° 1, alínea b), e nº 3, com referência ao art.° 255.°, alínea a), do Código Penal.; dois crimes pp. e pp. pelo art.° 3°, n° 1, do Decreto-Lei n.° 2/98, de 3 de Janeiro; um crime de roubo, p. e p. pelos art.°s 210.°, nºs. 1 e 2, e 211.°, com referência ao art.° 204.°, n.° 2, alínea e), todos do Código Penal.; e um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artº. 191º do Código Penal.
Julgado pelo tribunal colectivo, foi condenado, na procedência parcial da acusação, como autor material de um crime de furto de uso de veículo, p. e p. pelo artº 208.°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; como autor material de um crime de falsificação de documento, p.° e p.° pelos art.°s 256.°, n°s. 1, alínea b), e 3, com referência ao art.° 255.°, ambos do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão; como autor material de cada um de dois crimes de condução de veículo motorizado sem habilitação legal, p.°s e p.°s pelo artº 3.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 8 (oito) meses de prisão; e como autor material de um crime de roubo, p. e p. pelos art.°s 210º n.°s 1 e 2, alínea b), e 211.°, com referência aos art.°s 202º alínea e), e 204.°, n.° 2, alínea e), todos do Código Penal., na pena de 4 (quatro) anos de prisão. Em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2. Não se conformando com esta decisão, o arguido interpôs recurso para o tribunal da Relação de Coimbra.
Este tribunal, porém, decidiu rejeitar o recurso, por considerar que a motivação do recorrente não fora apresentada no tempo determinado nos artigos 411º e 414º do Código de Processo Penal.
Desta decisão vem interposto recurso pelo arguido, que motivou, terminando com as seguintes conclusões:
1ª Os despachos da Exmª Juiz da 1ª Instância, proferidos a fls. 261 e 332, e datados, respectivamente, de 8/02/03 e 31/03/03, não se podem subsumir ao circunstancialismo prescrito pelo artigo 414°, n° 3, do C. Proc. Penal, uma vez que nenhum deles se refere à admissão do recurso, determinação do efeito do mesmo, e ao seu regime de subida;
2ª Não podia o Tribunal a quo, com base em tais considerandos, ter decidido, pela rejeição do recurso;
3ª Por outro lado, quando da subida do presente recurso, já aqueles despachos haviam transitado em julgado, o que equivale a dizer que o prazo de interposição de recurso foi respeitado, por banda do arguido – recorrente;
4ª - Por outro lado, e pese embora ao Digno Magistrado do Ministério Público não tivessem sido notificados os despachos de fls. 261 e 332, os mesmos consideram-se-lhes notificados aquando da notificação que lhe foi feita, a fls. 343, da apresentação da motivação do recorrente, já que, nesta data, tomou contacto com o processo;
5ª - E se aquele Exm° Magistrado a eles não reagiu, então foi porque com eles concordou, como, aliás, resulta da sua motivação que não se refere aos mesmos despachos.
6ª O acórdão da Relação não respeitou o disposto nos artigos 84°, 414°, n°s. 1 e 3, 420°, n° 1, 3 e 4, e 421° do C. Proc. Penal.
Pede, em consequência, que se decida que o tribunal a quo deve receber o recurso interposto.
O magistrado do Ministério Público, respondendo à motivação, defende que o recurso não merece provimento.
3. Neste Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto considera que nada obsta ao conhecimento do recurso.
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
Os elementos relevantes, essencialmente pela cronologia dos actos processuais, vêm assim referidos na decisão recorrida:
«O acórdão foi lido em 24-02-2003, e efectuado o depósito do mesmo em 25-02-2003.
Conforme consta da respectiva acta, a fIs. 258, após a leitura do acórdão, o mandatário do arguido interpôs recurso para a acta e requereu que após o depósito lhe fosse entregue uma cópia, e que [por] o prazo para a motivação do recurso ser demasiadamente curto, se deslocaria á secretaria no dia 3 de Março a fim de lhe ser entregue a transcrição da audiência.
Ainda em acta, o Colectivo admitiu o recurso (...) e relegou-se para a juiz titular dos autos a decisão sobre as restantes questões.
Em 28-02-2003 foi proferido o despacho de fls. 261, no qual a senhora juiz refere "na sequência do recurso interposto, solicitando a transcrição das gravações da prova produzida em audiência, ficando suspenso o prazo para a apresentação das motivações do recurso até que tal transcrição se mostre efectuada e notificada aos sujeitos processuais."
Datado de 31-03-03 foi proferido o despacho de fIs. 332, do seguinte teor: "Remeta cópia da transcrição constante de fls. 274 a 331 ao Ilustre Defensor do arguido, iniciando-se o prazo para apresentação do recurso, na data da notificação de tal transcrição."
A motivação do recurso apresentado em acta de 24-02-03, deu entrada na secretaria do tribunal em 22-04-03».
4.. O direito ao recurso em matéria penal, no sentido de direito à reapreciação da declaração de culpabilidade e da condenação por uma segunda jurisdição, está inscrito no artigo 32º, nº 1, da Constituição, como direito fundamental: a lei assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
A definição do direito como integrante e componente do direito fundamental de defesa relativamente a uma acusação penal, impõe que a lei assegure um regime (no sentido de um duplo grau de jurisdição), prevendo e tornando efectiva tanto a modelação processual de um sistema coerente e acessível de recursos, como os tipos organizatórios adequados e suficientes para concretizar as imposições constitucionais.
Por isso, toda a modelação processual do regime dos recursos em processo penal tem de ser compreendida na perspectiva da injunção constitucional, com uma dupla ordem de pressupostos e consequências. A modelação (pressupostos; prazos; conformação estritamente processual ou procedimental) supõe regras, e mesmo porventura regras estritas e objectivas, para o exercício do direito; mas também, por outro lado, as dúvidas de interpretação sobre os pressupostos devem ser sempre consideradas em favor do direito (e da garantia de defesa) e não contra o titular do direito. No domínio dos direitos e garantias é a regra do favor reo e o princípio favorabilia amplianda, odiosa restringenda.
O processo penal, por outro lado, tanto na estrutura dos modelos, como em cada situação concreta, deve apresentar e representar a realização de concordâncias práticas entre finalidades e meios, mediadas sempre pela realização, na maior amplitude possível, dos princípios estruturantes e constitucionais.
Entre os princípios estruturantes do processo penal democrático deve salientar-se o princípio do processo equitativo, integrado pelos elementos de densificação enunciados no artigo 6º, § 1º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e também no artigo 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos - instrumentos internacionais de que Portugal é Parte - e que comanda toda a formulação das garantias inscritas no artigo 32º da Constituição.
Princípio essencial, fundador e conformador do processo penal (de todos os modelos ou soluções particulares e mais ou menos idiossincráticas dos diversos sistemas processuais democráticos), o princípio do processo equitativo, na dimensão de "justo processo" ("fair trial"; "due process"), é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.
O processo equitativo, como "justo processo", supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa. Mas determina também, por correlação ou contraponto, que as autoridades que dirigem o processo, seja o Ministério Público, seja o juiz, não pratiquem actos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que depositaram confiança no rigor e na regularidade legal de tais actos.
A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.
O despacho de 31 de Março de 2003 que tem necessariamente uma determinada interpretação implícita, pressupõe, em tal interpretação, um certo modo de compreender o regime dos recursos em matéria de facto, na perspectiva de tornar compatível, em grau elevado, o recurso como garantia e direito de defesa com as implicações de ordem material, práticas e de organização, relativamente à disponibilidade das transcrições da gravação de audiência; ou seja, um certo modo de tornar efectivo o disposto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
Tal despacho situa-se, pois, na interpretação desta disposição processual.
Não constitui, assim, um despacho de mero expediente, mas, bem em diverso, fixou no processo uma certa interpretação do regime dos recursos que considerou a melhor adequada às circunstâncias do caso. Não se apresenta, pois, como acto que se insira na ordenação do processo segundo a prudente discricionariedade do juiz, apresentando-se antes como o resultado expresso de uma projecção interpretativa implícita sobre o regime do recurso, no que respeita ao modo de contagem do respectivo prazo de interposição aplicável a uma situação específica.
Nesta medida, não tendo sido impugnado, fixou, intraprocessualmente, o sentido da questão problemática que constituiu o seu objecto: o prazo para a apresentação do recurso [quis-se dizer, por certo, apresentação da motivação] só conta a partir da data da notificação da transcrição das gravações.
E, pelas dúvidas que o problema tem suscitado, e nas possíveis (e plausíveis) soluções que pode interpretativamente obter, não se poderá dizer que o despacho de 31 de Março de 2003 não assumiu uma interpretação ainda processualmente plausível.
E as indefinições interpretativas nesta matéria produziram consequentes posições variadas na discussão sobre os prazos de recurso, podendo suceder, como no caso e pela decisão da Relação, uma atitude de grande rigidez em desfavor do recorrente, que agiu sem culpa, confiando numa dada interpretação do tribunal (cfr., v. g., como exemplo das dúvidas de interpretação que a concreta questão suscita, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 10 de Julho de 2002, na "Colectânea de Jurisprudência", (STJ), Ano X, Tomo III, pág. 169; de 13 de Novembro de 2002, proc, nº 3192/02, e de 27 de Novembro de 2002, proc. 3212/02, e também, em outra perspectiva, o assento nº 2/2003, de 16 de Janeiro de 2003, no "Diário da República", I série, nº 25, de 30 de Janeiro de 2003).
Mas, sendo assim, os termos em que deve ser contado o prazo de interposição do recurso (recte, no caso, para a apresentação da motivação), na complexidade integradora da lei e da sua interpretação para dizer o direito do caso, ficaram processualmente fixados naquele despacho. O interessado, que razoavelmente confiou na interpretação (ou no dictum) do despacho de 31 de Março, adquiriu o direito processual a apresentar a motivação nos termos que o despacho fixou.
O processo justo e leal e a confiança como elementos do princípio do processo equitativo não permitem admitir outra solução.
Na verdade, pela respectiva inserção funcional no processo, e pelo objecto da questão que pretende regular e decidir, e efectivamente regulou e decidiu, o referido despacho não teve como objecto ou finalidade preparar o despacho de admissão do recurso (o interessado poderiam, porventura, até nem apresentar a motivação), mas definir, como elemento prévio, os termos em que as implicações de ordem prática, com reflexo processual, da transcrição das gravações da prova, influenciavam e conformavam, não o prazo do recurso (que é de lei), mas os tempos e momentos a quo de contagem do prazo da lei.
O referido despacho de 31 de Março de 2003 tem, pois, inteira autonomia processual.
E, por isso, não pode, enquanto tal, ser questionado na função e efeitos processuais que assumiu e determinou e nos quais o interessado inteiramente confiou.
Está, nesta medida, fora do âmbito da jurisdição do tribunal superior nos limites previstos no artigo 414º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Esta disposição permite ao tribunal superior, como competência necessária para decidir sobre a sua própria competência, não se considerar vinculado pela decisão do tribunal a quo que admitir o recurso e lhe fixe o respectivo regime.
Mas esta intervenção, no caso sob apreciação, ocorre ou pode ocorrer inteiramente, já que está sempre em aberto a possibilidade de (re)apreciar a admissibilidade do recurso, o regime, e mesmo a tempestividade: neste caso, verificar se o recorrente ainda se comportou processualmente dentro dos parâmetros interpretativos, nomeadamente em matéria de respeito dos prazos, contados pelo modo fixado no despacho de 31 de Março de 2003.
Não pode, também, e por último, ser deixado sem referência um elemento intra-sistemático que decisivamente aponta para a solução diversa da defendida na decisão da Relação.
Retira-se tal elemento da disciplina constante do artigo 161, nº 6, do Código de Processo Civil.
Na verdade, se os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial (por exemplo a errada indicação de um prazo para praticar um acto processual) não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes, por maioria de razão, em processo penal, quando esteja em causa uma garantia de defesa, os interessados têm de poder confiar na regularidade e correcção de um despacho do juiz que determinou o modo como deveria ser contado, rectius, os momentos relevantes para a contagem, no caso, do prazo que a lei fixa para a interposição de recurso (cfr., sobre idêntica questão, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 24 de Setembro de 2003, proc. 243/03).
5. Nestes termos, acordam em conceder provimento ao recurso de A, e revogar o acórdão recorrido, devendo, em consequência, a Relação decidir se o recurso interposto pelo recorrente do acórdão do Tribunal Colectivo respeitou os termos do despacho de 31 de Março de 2003, e, se for o caso, admiti-lo, seguindo-se os ulteriores termos.
Não é devida taxa de justiça

Lisboa, 3 de Março de 2004
Henriques Gaspar
Antunes Grancho
Silva Flor