Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5178/10.2TBCSC-B.L2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
PENHORA
GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES
PATRIMÓNIO
DEVEDOR
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
INOPONIBILIDADE DO NEGÓCIO
EFICÁCIA DO NEGÓCIO
INEFICÁCIA
VENDA JUDICIAL
EXEQUENTE
EXECUTADO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. A penhora deve ser entendida como a atividade prévia à venda ou à realização da prestação que consiste na apreensão, pelo Tribunal, de bens do executado ou na colocação à sua ordem de créditos deste valor sobre terceiros e na sua afetação ao pagamento do exequente, destinando-se a individualizar os bens e direitos que respondem pelo cumprimento da obrigação pecuniária através da ação executiva.

II. É de atribuir à penhora uma função de garantia, ou seja, beneficiar o credor que promoveu a execução perante outros credores, aqueles que não tenham garantia real anterior, sendo que esta garantia pressupõe, necessariamente, uma outra função atribuída à penhora, qual seja, a função conservatória, visando assegurar a viabilidade da venda executiva dos bens ou direitos sujeitos a penhora, pretendendo-se que o bem, objeto do direito penhorado, não seja desencaminhado ou diminuído no seu valor (indisponibilidade jurídica absoluta), outrossim, pretende-se que a faculdade de disposição do direito penhorado que incide sobre o bem apreendido, e que o executado mantém na sua esfera jurídica, não possa ser exercida de modo a privar a venda do seu objeto (indisponibilidade jurídica relativa).

III. Tendo em vista que o objeto do direito penhorado não pode deixar de satisfazer o crédito do exequente, mediante a respetiva venda coerciva, não se permitindo tampouco, diminuir o seu valor, importa reconhecer que o direito substantivo civil retira da esfera jurídica do executado o direito de, após a penhora, dar de arrendamento o bem penhorado, de tal sorte que, mesmo que o seja, o contrato não é oponível na execução, ou releva para a mesma, conforme decorre da impressão literal, acompanhada da interligação e valoração do preceituado no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida pelo art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

I. Foi instaurada execução para pagamento de quantia certa em 6 de julho de 2010 por BCP, SA. contra CC e DD, tendo sido apresentado como título executivo uma escritura de empréstimo com hipoteca, lavrada a 18 de agosto de 2003.

II. Por despacho de 27 de novembro de 2018 foram liminarmente admitidos os embargos de terceiro deduzidos por apenso à execução para pagamento de quantia certa, por parte de AA e BB.

III. Regularmente citado, o Embargado/Banco Comercial Português, SA. apresentou contestação.

IV. Por saneador-sentença de 23 de maio de 2022 foi dispensada a audiência prévia, saneada a causa, fixados o objeto do litígio e o valor da causa, tendo os embargos de terceiro sido julgados improcedentes.

V. A predita decisão foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de novembro de 2022, entretanto anulado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de maio de 2023.

VI. Por decisão liminar do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de junho de 2023 foi anulada a decisão de 23 de maio de 2022, e determinada a produção de prova quanto à celebração e validade do contrato de arrendamento.

VII. Calendarizada e realizada a audiência final, em 18 de dezembro de 2023, foi proferida sentença, em cujo dispositivo se consignou: “Pelo exposto, julgam-se procedentes os embargos.”

VIII. Inconformado, apelou o Banco Comercial Português, S.A., tendo o Tribunal a quo conhecido do recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo enunciou: “Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em julgar totalmente procedente a presente apelação e, revogando-se a sentença recorrida, em sua substituição, decide-se julgar totalmente improcedentes os embargos de terceiro.”

IX. É contra este acórdão, proferido no Tribunal da Relação de Lisboa, que os Embargantes/AA e BB se insurgem, formulando as seguintes conclusões:

“1) Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que revogou a douta sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, que havia julgado procedentes os embargos de terceiro deduzidos pelos Recorrentes, por meio dos quais os Recorrentes procuram fazer valer os seus direitos enquanto arrendatários do imóvel penhorado, pugnando pela manutenção da vigência do contrato de arrendamento;

2) Baseia-se a fundamentação do douto acórdão recorrido no art. 819º do CC, que determina a inoponibilidade à execução do arrendamento de bens penhorados, e no art. 822º do CC, que consagra a penhora enquanto direito real de garantia, traduzido na apreensão e conservação do bem penhorado para, por meio do produto da sua venda, obter o cumprimento coercivo da obrigação exequenda;

3) Não obstante o douto acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 2/2021, de 5 de Agosto, se refira a uma situação em que o contrato de arrendamento foi celebrado após a hipoteca mas ainda antes da penhora do locado, a verdade é que as razões que então levaram o Tribunal a decidir pela prevalência do arrendamento habitacional sobre a hipoteca aplicam-se, no essência, também à penhora;

4) O art. 824º, n.º 2, do CC não se aplica ao contrato de arrendamento, desde logo por este não constituir um direito real de garantia, nem ter com essa figura similitudes suficientes para que se lhe pudesse aplicar o mesmo regime jurídico, mas ser pelo contrário um direito pessoal de gozo (como qualquer locação – Cfr. art. 1022º do CC, cuja redacção salienta o carácter obrigacional do contrato, ao estabelecer que o locador se obriga a proporcionar ao locatário o gozo temporário de uma coisa);

5) O art. 1306º, n.º 1 do CC, consagra expressamente o princípio da tipicidade dos direitos reais, proibindo assim a criação de direitos reais não previstos na lei, sendo que o arrendamento, conforme já acima referido, é um direito obrigacional, e não um direito real;

6) Ainda que se considerasse o arrendamento um ónus ou encargo – o que não se concede – a verdade é que o art. 695º do CC não impede titular de um imóvel hipotecado de o alienar ou onerar, e que assim sendo, tendo a hipoteca e a penhora a mesma natureza de direitos reais de garantia destinados a proteger a posição de um determinado credor sobre um determinado bem do devedor, este preceito legal deve aplicar-se também à penhora, por identidade de razão;

7) Sublinhe-se ainda o disposto no art. 109º, n.º 3, do CIRE, segundo o qual, mesmo em caso de insolvência do senhorio - situação bem mais gravosa do que uma execução singular - a alienação do imóvel arrendado no âmbito do processo de insolvência não prejudica os direitos do arrendatário, mantendo-se o contrato de arrendamento em vigor;

8) De sublinhar que, sendo o art. 109º do CIRE mais recente (18 de Março de 2004) do que qualquer das disposições do CC que possam ser invocadas no sentido da confirmação do douto acórdão recorrido, prevalece sobre as mesmas, que se deverão considerar derrogadas, ou mesmo parcialmente revogadas;

9) No sentido aplicabilidade do art. 1057º do CC à venda judicial de imóveis arrendados, sublinhe-se que no n.º 1 do art. 824º do CC se determina que “A venda em execução transmite para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida”, disposição legal da qual também se retira que o adquirente, tal como o proprietário original, ocupará a posição de senhorio no contrato de arrendamento;

10) Além de que, o art. 1051º do CC, que elenca as causas de caducidade do contrato de locação, não inclui a venda do imóvel;

11) É certo que o já mencionado art. 819º do CC determina a inoponibilidade à execução do arrendamento de bens penhorados, e que no caso em apreço o arrendamento foi celebrado posteriormente à penhora e ao seu registo;

12) Mas o mencionado preceito legal não deverá ser interpretado no sentido da sua aplicação a arrendamentos habitacionais, sob pena de pôr em causa direitos fundamentais dos arrendatários, aqui Recorrentes, nomeadamente os seus direitos à habitação e à intimidade e privacidade pessoais e da sua vida familiar, bem como ao desenvolvimento da sua personalidade (Cfr. arts. 65º, n.º 1, e 26º, n.º 1, da CRP), incorrendo dessa foram em inconstitucionalidade a norma nele contida, se interpretada no sentido da sua aplicação a arrendamentos habitacionais;

13) Deve por isso fazer-se uma interpretação restritiva da norma contida no art. 819º do CC, excluindo a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, sob pena de a referida norma incorrer em inconstitucionalidade, por violação do disposto nos arts. 65º, n.º 1, e 26º, n.º 1, da CRP, que por serem normas constitucionais, devem naturalmente prevalecer sobre o direito ordinário;

14) Por todas as razões acima elencadas, deveria o Tribunal recorrido ter decidido, como fez o Tribunal de primeira instância, no sentido da aplicação do art. 1057º do CC ao caso sub judice, e dessa forma, no sentido da procedência dos embargos de terceiro.”

10. O Embargado/Banco Comercial Português, SA. apresentou contra-alegações, aduzindo as seguintes conclusões:

“A. Vêm os Recorrentes interpor recurso de revista do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-09-2024, o qual, julgou procedente a apelação deduzida pelo ora impetrante, revogando a sentença do Tribunal de Primeira Instância, julgando totalmente improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pelos Embargantes e aqui recorrentes AA e BB.

B. Invocam os Recorrentes que deve fazer-se uma interpretação restritiva da norma contida no artigo 819.º do Código Civil (doravante CC), excluindo a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, sob pena de a referida norma incorrer em inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 65.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) (cfr. conclusão 13).

C. Ora, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, aqui posto em crise não merece qualquer censura, ao contrário do que alegam os Recorrentes.

D. Em primeiro lugar e, como ponto prévio, os Recorrentes não recorreram da sentença do Tribunal de Primeira Instância, nem colocaram em crise a matéria de facto.

E. A Sentença do Tribunal de Primeira Instância deu como provado que tanto a hipoteca como a penhora são anteriores ao contrato de arrendamento, a saber:

- A Exequente detinha hipoteca voluntária sobre o imóvel registada em 2006/06/05;

- Foi registada penhora sobre o imóvel a favor dos presentes autos em 2011/07/11;

- Foi celebrado contrato de arrendamento entre os Executados e os Embargantes em 2012/07/30.

F. Pelo que, bem decidiu o Acórdão aqui recorrido que “Um arrendamento constituído após penhora, não pode ser oposto ao exequente para efeitos de obstar a que este satisfaça o seu crédito mediante a venda coerciva do imóvel, nem tão pouco ao levantamento da penhora”. Isto nos termos do disposto no artigo 819.º do CC.

G. E a alegação dos Recorrentes de que se deve fazer uma interpretação restritiva da norma contida no artigo 819.º do CC, excluindo a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, não tem qualquer enquadramento na lei, nem tão pouco qualquer acolhimento jurisprudencial.

H. O artigo 819.º do CC, na redação original do DL n.º 47344/66, de 25 de novembro, previa que “Sem prejuízo das regras do registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados.”

I. Nos termos do artigo 1024.º, n.º 1 do CC “A locação constitui, para o locador, um acto de administração ordinária, excepto quando for celebrada por prazo superior a seis anos.”

J. Pelo que, e numa interpretação a contrario sensu do artigo 819.º do CC, era comummente entendido que o arrendamento até seis anos podia ser contratado pelo executados, mesmo após o decretamento da penhora.

K. O Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08 de março, veio alterar o artigo 819.º incluindo expressamente a menção ao arrendamento, significando assim que o legislador o quis integrar no lote dos atos jurídicos e contratos outorgados pelos executados, após a penhora, os quais são inoponíveis na execução.

L. Acresce que, na presente situação o contrato de arrendamento celebrado em 30/07/2012, teve início em 01/08/2012 e término em 30/07/2032, isto é, foi celebrado pelo prazo de 20 (vinte) anos.

Assim, o contrato celebrado entre os embargantes e os executados é um ato de disposição, nos termos do artigo 1024.º, n.º 1 do CC.

Assim, mesmo que não tivesse sido incluído o arrendamento no artigo 819.º do CC, sempre se diria que o mesmo era inoponível à execução.

M. Mas mais, o artigo 819.º do CC é reforçado pela função de garantia atribuída à penhora pelo artigo 822.º do CC, que é complementada pela sua função conservatória, que se divide em conservação material (pretendendo-se que o bem, objeto do direito penhorado, não seja desencaminhado ou diminuído no seu valor) e em Conservação jurídica (pretendendo-se que a faculdade de disposição do direito penhorado que incide sobre o bem apreendido, e que o executado mantém na sua esfera jurídica, não possa ser exercida de modo a privar a venda do seu objeto).

N. Assim, no artigo 819.º do CC o legislador foi claro ao pretender retirar da esfera jurídica dos executados o direito de, após a penhora, darem de arrendamento o bem penhorado. E, caso o façam, tal não é oponível à execução.

O. E, nem se diga que tal viola o disposto nos artigos 65.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1 da CRP, como alegam os Embargantes. O direito de habitação previsto no artigo 65.º da CRP diz respeito a prestações diretas ou indiretas do Estado e não se impõe a outros particulares. E o direito à habitação está dependente de concretização legal. Ora, o legislador consagrou expressamente no artigo 819.º do CC que o contrato de arrendamento celebrado após a penhora é inoponível à execução. Pelo que, o artigo 65.º da CRP não impõe qualquer interpretação restritiva ao artigo 819.º do CC, conforme invocam os Embargantes.

P. Adicionalmente, alegam os Embargantes que o artigo 109.º, n.º 3 do CIRE prevê que em caso de insolvência do senhorio a alienação do imóvel arrendado não prejudica os direitos do arrendatário, mantendo-se o contrato de arrendamento em vigor. E que sendo o artigo 109.º, n.º 3 do CIRE mais recente que o artigo 819.º do CC, prevalece sobre as mesmas.

Q. Ora, o mencionado artigo aplica-se a contratos de arrendamento celebrados previamente à declaração de Insolvência do Senhorio e pretende proteger os inquilinos que desconheciam a situação de Insolvência no momento da celebração do contrato.

R. Ora, tal não é a situação dos presentes autos. Nem tao pouco pode ser aplicada analogicamente. Repete-se, nos presentes autos, o contrato de arrendamento é posterior tanto à hipoteca como à penhora.

S. Quando os Embargantes celebraram o contrato de arrendamento com os Executados a penhora já se encontrava registada. Assim, os Embargantes assumiram o risco de que o imóvel poderia ser vendido para garantir o crédito do Exequente. E conformaram-se com o mesmo. E, ainda que não tivessem conhecimento da penhora, o que não se concede, tal apenas lhes seria imputável, uma vez que a penhora se encontrava registada na certidão permanente do imóvel.

T. Em face do exposto, forçoso se torna concluir que o acórdão recorrido não enferma dos vícios assacados pelos Recorrentes.

Termos em que se requer seja negado provimento ao recurso interposto e, consequentemente, mantido o Acórdão recorrido.

11. Foram cumpridos os vistos.

12. Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pelos Recorrentes/Embargantes/AA e BB, consiste em saber se:

(1) Considerada a facticidade adquirida processualmente, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, na medida em que, contrariamente ao sentenciado, impõe-se reconhecer o direito dos Embargantes/AA e BB à manutenção da vigência do ajuizado contrato de arrendamento, enquanto arrendatários do imóvel penhorado, mesmo que a outorga deste tenha ocorrido posteriormente à penhora, repristinando-se o decidido em 1ª Instância?

II. 2. Da Matéria de Facto

Factos Provados:

“1 - Em 3-IX-77 foi registada a favor dos executados a aquisição do prédio (‘Moradia de cave, r/c, 1º andar e garagem’) descrito na 2ª C.R.P. de ... com o nº ..81.

2 - Em 18-VIII-03 executados e exequente outorgaram a escritura apresentada como título executivo. (rectificado no despacho que admitiu o recurso)

3 - Em 5-VI-06 foi registada a favor da exequente hipoteca sobre o prédio supra.

4 - Em 11-VII-11 foi registada a penhora sobre o prédio supra.

5 - Em 30-VII-12 executados e embargantes assinaram o “CONTRATO DE ARRENDAMENTO COM PRAZO CERTO” junto a fls 5-6 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativo a cave do prédio supra.

6 - Em 5-VII-17 o prédio supra foi adjudicado à exequente – aquisição registada em 21-XII-17.”

Factos não provados:

“7 - Os embargantes residem desde 2006 na cave do nº 145 da rua ... – e pagaram a renda mensal desde 30-VII-12.

8 - Os embargantes tiveram conhecimento da penhora em 18-X-18, quando os cunhados os informaram. 9 - Os embargantes tiveram conhecimento da penhora através dos editais afixados em 11-VII-11 e 31-V-17.”

II. 3. Do Direito

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes/Embargantes/AA e BB, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

II. 3.1. Considerada a facticidade adquirida processualmente, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, na medida em que, contrariamente ao sentenciado, impõe-se reconhecer o direito dos Embargantes/AA e BB à manutenção da vigência do ajuizado contrato de arrendamento, enquanto arrendatários do imóvel penhorado, mesmo que a outorga deste tenha ocorrido posteriormente à penhora, repristinando-se o decidido em 1ª Instância? (1)

Cotejado o acórdão recorrido, anotamos que o Tribunal a quo, perante a facticidade demonstrada nos autos, concluiu, no segmento decisório, e para o que aqui interessa, atento o thema decidendum da presente revista, revogar a decisão proferida em 1ª Instância, e, em sua substituição, decidiu julgar totalmente improcedentes os embargos de terceiro.

O aresto escrutinado ao problematizar a questão a apreciar, qual seja, saber se o arrendamento celebrado posteriormente à penhora do respetivo imóvel é oponível ao exequente, sopesando as conclusões formuladas pelas Apelantes/Embargantes/AA e BB, no confronto com a sentença recorrida e com a pretensão jurídica formulada e respetivos fundamentos, sustentou que, se, após a penhora, o executado dispuser, onerar, ou der de arrendamento, o bem penhorado, o negócio jurídico é inoponível no âmbito da execução, não relevando para a mesma, conforme decorre do direito substantivo civil - art.º 819º do Código Civil - que determina a inoponibilidade à execução do arrendamento de bens penhorados, e do art.º 822º do mesmo diploma legal que consagra a penhora, enquanto direito real de garantia, traduzida na apreensão e conservação do bem penhorado para, por meio do produto da sua venda, obter o cumprimento coercivo da obrigação exequenda.

O Tribunal recorrido apreendeu a real conflitualidade subjacente à demanda trazida a Juízo tendo proferido aresto, fazendo apelo a um enquadramento jurídico-normativo posto em crise com a interposição da presente revista, sustentação jurídica que, de resto, adiantamos desde já, acompanhamos.

O nosso ordenamento jurídico, assumindo o princípio segundo o qual o património do devedor é a garantia ge­ral do credor, estabelece que pelo cumprimento de uma obrigação respondem, em regra, todos os bens do devedor suscetíveis de penhora - art.º 601º do Código Civil - .

A responsabilidade patrimonial do devedor não atribui ao credor a direito de se apropriar dos bens daquele ou de se substituir ao devedor na recuperação dos seus créditos sobre terceiras, isto é, não lhe concede faculdade de se satisfazer diretamente à custa do património do devedor mediante a apropriação dos bens ou a exigência da satisfação dos créditos que pertencem a este sujeito, mas, tão só, concede ao credor a faculdade de executar o património do devedor, isto é, de fazer penhorar bens e direitos deste titular passivo com vista à sua posterior venda ou cobrança - art.º 817º do Código Civil - .

Entendemos a penhora como a atividade prévia à venda ou à realização da prestação que consiste na apreensão, pelo Tribunal, de bens do executado ou na colocação à sua ordem de créditos deste valor sobre terceiros e na sua afetação ao pagamento do exequente.

A penhora destina-se a individualizar os bens e direitos que respondem pelo cumprimento da obrigação pecuniária através da ação executiva, significando que a penhora só se justifica enquanto a obrigação exequenda subsistir e a execução estiver pen­dente.

Decorre também do direito substantivo civil - art.º 822º do Código Civil - atribuir à penhora uma função de garantia, ou seja, beneficiar o credor que promoveu a execução perante outros credores, aqueles que não tenham garantia real anterior, sendo que esta garantia pressupõe, necessariamente, uma outra função atribuída à penhora, qual seja, a função conservatória, visando assegurar a viabilidade da venda executiva dos bens ou direitos sujeitos a penhora, pretendendo-se que o bem, objeto do direito penhorado, não seja desencaminhado ou diminuído no seu valor (indisponibilidade jurídica absoluta), outrossim, pretende-se que a faculdade de disposição do direito penhorado que incide sobre o bem apreendido, e que o executado mantém na sua esfera jurídica, não possa ser exercida de modo a privar a venda do seu objeto (indisponibilidade jurídica relativa).

Donde, se após a penhora, o executado der de arrendamento, o bem penhorado, e assumindo que o objeto do direito penhorado não pode deixar de satisfazer o crédito do exequente, mediante a respetiva venda coerciva, ou, tampouco, pode ser diminuído o seu valor, importa considerar o normativo substantivo civil que, claramente, retira da esfera jurídica do executado o direito de, após a penhora, dar de arrendamento o bem penhorado, de tal sorte que, mesmo que o seja, o contrato não é oponível na execução, ou releva para a mesma.

Na verdade, como bem adianta o Tribunal recorrido, “Estatui o art. 819º do Código Civil: “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.”

Esta redação resulta da reforma de 2003, acrescentando-se aos anteriores atos de “disposição” e “oneração” já no artigo consagrados, o contrato de “arrendamento”.

A consagração expressa do contrato de arrendamento no preceito significou assim que o legislador o quis integrar no lote dos atos jurídicos e contratos realizados/outorgados pelo executado, após a penhora, os quais considera inoponíveis na execução.

O que bem se compreende, pois que este negócio tem virtualidade para frustrar ou, ao menos, prejudicar os efeitos que se pretendem para o ato da penhora.”

Em abono do reconhecimento desta orientação, importa realçar que na interpretação das leis, conforme decorre do direito substantivo civil: “o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” - art.º 9º n.º 3 do Código Civil - .

A este propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil anotado, Volume I, página 16, em anotação ao aludido preceito substantivo civil sustentam que “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios”, destacando-se, por isso, que na exegese da lei, descortinando o respetivo sentido e alcance, não se deverá atender somente à letra da lei, sendo pacificamente aceite que na respetiva interpretação também intervêm elementos lógicos, de ordem sistemática (condizente à ordem jurídica em que se integra a norma jurídica a interpretar, importando a consideração da unidade do sistema jurídico), histórica (reconhecimento e consideração dos acontecimentos históricos que aclaram a criação da lei, concretamente, os trabalhos preparatórios e todo a realidade social que envolveu o seu aparecimento) e racional ou teleológica (a razão de ser da lei sustentada na respetiva justificação e no objetivo pretendido com a sua criação).

A interpretação da lei exige, assim, a consideração do elemento literal que necessariamente encerra o primeiro passo, todavia, importa atender que deverá ser obrigatoriamente acompanhado daqueles enunciados elementos lógicos, que integram “todos os restantes factores a que se pode recorrer para determinar o sentido da norma”, nas palavras de Oliveira Ascensão, in, O Direito Introdução e Teoria Geral, 13ª Edição Refundida, página 407, que afirma ainda, a propósito, “Antes devemos distinguir uma apreensão literal do texto, que é o primeiro e necessário momento de toda interpretação da lei, pois a letra é o ponto de partida. Procede-se já a interpretação, mas a interpretação não fica ainda completa. Há só uma primeira reacção em face da fonte, e não o apuramento do sentido, E ainda que venha a concluir-se que esse sentido é de facto coincidente com a impressão literal, isso só se tomou possível graças a uma tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal”, ibidem, página 406, o que, de resto, se identifica com o pensamento de Baptista Machado, in, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1994, páginas 181 e 182 quando declara “Convém salientar, porém, que o elemento gramatical (“letra da lei”) e o elemento lógico (“espírito da lei”) têm sempre que ser utilizados conjuntamente. Não pode haver, pois, uma modalidade de interpretação gramatical e uma outra lógica; pois é evidente que o enunciado linguístico que é a “letra da lei” é apenas um significante, portador de um sentido (“espírito”) para que nos remete.”

Interiorizados estes ensinamentos, e revertendo ao caso sub iudice, acentuamos que o legislador disse o que queria ao incluir, aditando, no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida pelo art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, aos anteriores atos de “disposição” e “oneração” dos bens penhorados, inoponíveis em relação à execução, o contrato de “arrendamento” que tem por objeto aqueles mesmos bens penhorados.

Ou seja, a impressão literal, acompanhada da interligação e valoração do preceituado no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), impõe o reconhecimento de que, se, após a penhora, o executado der de arrendamento o bem penhorado, o negócio jurídico é inoponível no âmbito da execução, não relevando para a mesma.

E não se diga, salvo o devido respeito por opinião contrária, como sustentam os Recorrentes/Embargantes/AA e BB que, a não ser levada a cabo uma interpretação restritiva da norma contida no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), excluindo a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, incorrer-se-á em inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artºs. 65º n.º 1 e 26º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

A vertente mais significativa do direito a habitação enquanto “direito económico social e cultural” contém-se na sua dimensão positiva, isto é, no direito dos cidadãos às medidas e prestações estaduais adequadas à concretização do objetivo ali enunciado, o direito a obter uma habitação adequada e condigna a realização da condição humana, em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

Ao contrário, a chamada dimensão negativa do direito a habitação, traduz-se num mero dever de abstenção do Estado e de terceiros em ordem a não praticarem atos que possam prejudicar a efetiva realização daquele direito.

O Tribunal Constitucional vem afirmando, repetidamente, que, no plano desta vertente do direito a habitação não pode aceitar-se como constitucionalmente exigível que a realização daquele direito esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos de terceiros (que não o Estado), direitos esses, porventura também constitucionalmente consagrados.

Seja qual for a natureza de direito à habitação, ele não confere ao cidadão um direito imediato a uma prestação efetiva, tendo como único sujeito passivo o Estado - e as regiões autónomas e os municípios - e nunca, ao menos em princípios, os proprietários ou senhorios, para além de que o cidadão só pode exigir o seu cumprimento nas condições e termos definidos pela lei, no caso, impor-se-á o acatamento da lei substantiva civil - art.º 819º do Código Civil - como vimos de discretear. O reconhecimento do direito à habitação não pode implicar que os arrendatários disponham das mesmas, sem qualquer limitação.

De igual modo, não distinguimos como se pode apontar a inconstitucionalidade do art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), quando não interpretado restritivamente, excluindo a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, por violação do disposto no art.º 26º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que textua: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”

Não divisamos, com a interpretação e aplicação da norma que vimos de consignar, qualquer violação de outros direitos pessoais consagrados constitucionalmente (art.º 26º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).

A leitura jurisdicional do art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), com a interpretação dela feita, no sentido de não excluir a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, que, no fundo, coincide com a solução legalmente expressa, não afronta qualquer norma, princípio ou parâmetro constitucional.

Pelo exposto, na improcedência das conclusões retiradas das alegações, trazidas à discussão pelos Recorrentes/Embargantes/AA e BB, não reconhecemos à respetiva argumentação, virtualidade bastante no sentido de alterar o destino da demanda, traçado no Tribunal recorrido.

III. DECISÃO

Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente o recurso interposto, e, consequentemente, nega-se a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas em todas as Instâncias e neste Supremo Tribunal de Justiça pelos Embargantes/AA e BB.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 13 de fevereiro de 2025

Oliveira Abreu (relator)

Arlindo Oliveira

Ferreira Lopes