Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
Descritores: | AUTORIDADE DO CASO JULGADO EXTENSÃO DO CASO JULGADO OFENSA DO CASO JULGADO NULIDADE DE SENTENÇA CASO JULGADO FORMAL RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL TEMAS DA PROVA DESPACHO SANEADOR DECISÃO INTERLOCUTÓRIA RECURSO DE REVISTA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO REQUISITOS REVISTA EXCECIONAL DUPLA CONFORME | ||
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Data do Acordão: | 12/14/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA (RECURSO DE REVISTA REGIME REGRA); REMETER À FORMAÇÃO (RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL) | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - O recurso interposto com fundamento na indevida extensão a terceiros da autoridade de caso julgado não preenche a previsão da terceira alternativa da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC (ofensa de caso julgado). II - As nulidades da sentença, bem como outras irregularidades ou erros de julgamento cometidos pelo tribunal de 1.ª instância, não podem ser objeto de recurso de revista. III – Não se verifica identidade de sujeitos, nos termos do artigo 581.º, n.º 2, do CPC, entre o autor de uma ação cível de responsabilidade civil extracontratual e a parte que, em processo criminal, deduz indemnização cível, uma vez que sendo o primeiro o pai da vítima e a segunda a sua mãe, cada um dos cônjuges pediu indemnização pelo dano da morte do filho ( e outros danos patrimoniais e não patrimoniais) produzidos na esfera pessoal de cada um. IV - O despacho de identificação do objeto do litígio e o despacho que enuncia os temas da prova podem ser modificados posteriormente, não constituindo, por isso, caso julgado formal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório
1. AA propôs ação declarativa com forma comum contra BB (1.º Réu) e CC (2.º Réu), em que peticionou a condenação dos réus a pagar-lhe, solidariamente, as seguintes quantias: a) €200.000,00 (duzentos mil euros), acrescidos de juros moratórios calculados à taxa supletiva legal desde a citação e até efetivo pagamento, pela perda do direito à vida do seu filho; b) €30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pelo autor, em consequência da morte do seu filho DD, acrescidos de juros moratórios calculados à taxa supletiva legal desde a citação e até integral e efetivo pagamento; c) €36.000,00 (trinta e seis mil euros) a título de danos patrimoniais sofridos, acrescidos de juros moratórios calculados à taxa supletiva legal desde a citação e até integral e efetivo pagamento; d) €2.455,50 (dois mil quatrocentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta cêntimos) a título de despesas suportadas com o funeral, acrescidas de juros moratórios calculados à taxa supletiva legal desde a citação e até integral e efetivo pagamento.
2. Por acórdão transitado em julgado, os réus foram condenados, em co-autoria, pela prática do crime de homicídio qualificado de que foi vítima DD, filho do autor; o autor sofreu uma grande dor e desgosto com a morte de DD, passando a padecer de uma depressão; o falecido DD vivia com os seus pais, contribuindo mensalmente com €300, 00, para as despesas da casa; com o falecimento de DD o Autor deixou de dispor de meios para prover a todas as despesas, uma vez que está desempregado; o autor gastou € 2.455,50 em flores e preparativos do funeral do seu filho DD; o mencionado DD faleceu no estado de solteiro e sem deixar descendentes, sucedendo-lhe como únicos herdeiros os seus pais, AA e EE.
3. O 1 ° réu apresentou contestação, impugnando a factualidade alegada pelo autor, pugnando pela improcedência da ação, com a consequente absolvição do pedido; invocou, nomeadamente, que os factos alegados pelo autor “não estão provados e não está dispensada a prova dos factos invocados” (art. 12º da contestação). O 2° réu aderiu e fez sua a contestação apresentada pelo co-réu BB – cfr. fls. 239.
4. Foi proferido o despacho de fls. 253-254, em 03-05-2016, na sequência do qual as partes se pronunciaram conforme consta de fls.255, 256 e 257. Em 21-11-2016 dispensou-se a realização de audiência prévia e proferiu-se despacho saneador, julgando-se verificados todos os prossupostos processuais, com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (despacho de fls. 260-261). Posteriormente e em face da reclamação apresentada pelo autor foi proferido o despacho de fls. 280-281, em 28-03-2017, na sequência do qual foi realizada a audiência prévia, em 19-04-2017, conforme ata de fls. 282 a 289 dos autos [1].
5. Realizou-se a audiência final, em 24-10-2017. No início da audiência o réu CC fez juntar procuração forense outorgada a favor da mandatária FF, pela qual lhe atribui poderes forenses para o representar (fls. 376) na sequência do que foi proferido despacho julgando cessada a intervenção da patrona nomeada, GG, mais se determinando que fica “a mesma dispensada de estar presente na presente audiência” (fls. 378 dos autos)[2].
Tendo-lhe sido concedida, no seu uso disse o seguinte: «Corroboro o quanto foi dito no requerimento que antecede pelo meu Ilustre colega Dr. HH e reforço o quanto referido, acrescentando que desde que a Defensora Oficiosa foi nomeada ate à presente data, houve sempre impedimento da mesma para representar o Réu CC, impedimento esse que está consignado no artigo 94º, nº 6, do Estatuto da Ordem dos Advogados, porquanto a defensora, Dra. GG, exerce actividade no mesmo escritório do Dr. II, Ilustre Advogado e que foi advogado da família da vitima no âmbito do processo-crime, bem como no pedido de indemnização cível enxertado nos autos de processo crime, nº 78/12...., que correu termos no Tribunal Judicial de ... - ... Juízo. Sublinhe-se que o nº 6 da citada norma estatutária tem no seu propósito prevenir situações que, em abstracto, potenciem e no caso concreto não há dúvida que efectivaram a afectação independência a isenção bem como violação do segredo profissional da advogada e tal resultou notório na audiência preliminar em que a Advogada/Defensora interveio contra os interesses do Réu nos termos do que encontra gravado. Tal artigo 96º, nº 6, também tem como propósito evitar situações de indefesa material, pelo que, com a actuação perpetrada foram lesados os artigos 4º do Código de Processo Civil, o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, artigo 6º, nº 1 da Convenção Europeia do Direito do Homem, artigo 47º paragrafo 1º e 2º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, pelo que, atento o quanto exposto em nome do estado de direito e em respeito pelo principio da dignidade da pessoa humana, não resta outra alternativa ao Tribunal, que não a declaração de nulidade de todos os actos praticados pela defensora, bem como conceder ao Réu a prorrogativa de exercer toda a sua defesa que, a partir da nomeação da sua defensora não foi efectuada, nomeadamente, complementar o requerimento de prova. Frise-se que a defensora jamais por momento algum, conforme nos foi referido pelo Réu e que é facilmente aferido nos registos do Estabelecimento Prisional, para questioná-lo acerca de indicação probatórias, tendo a defensora indicado duas testemunhas, cujo depoimento é ante visivelmente desfavorável ao Réu. Pede-se deferimento”».
Pela FF foi dito que “substabelece no Dr. HH, com reserva, os poderes que lhe foram conferidos pelo réu CC, ao abrigo da procuração junta aos autos”. Após o que pelo mandatário Dr. HH, foi peticionado como segue: “O Reu, CC retira a eficácia aos actos praticados pela sua Defensora Oficiosa que esteve presente em situação de indiciada incompatibilidade, não o consultou quanto à prova a produzir ou à matéria em debate fazendo da sua presença uma situação de ausência material de defesa efectiva até agora e que assim se põe termo”. Mais foi consignado em ata como segue:
“De seguida, pela Ilustre Mandatária Dra. FF, foi pedida a palavra, tendo-lhe sido concedida, no seu uso disse o seguinte:
Corroboro o quanto foi dito no requerimento que antecede pelo meu Ilustre colega Dr. HH e reforço o quanto referido, acrescentando que desde que a Defensora Oficiosa foi nomeada ate à presente data, houve sempre impedimento da mesma para representar o Réu CC, impedimento esse que está consignado no artigo 94º, nº6, do Estatuto da Ordem dos Advogados, porquanto a defensora, Dra. GG, exerce actividade no mesmo escritório do Dr. II, Ilustre Advogado e que foi advogado da família da vitima no âmbito do processo-crime, bem como no pedido de indemnização cível enxertado nos autos de processo crime, nº 78/12...., que correu termos no Tribunal Judicial de ... - ... Juízo. Sublinhe-se que o nº 6 da citada norma estatutária tem no seu propósito prevenir situações que, em abstracto, potenciem e no caso concreto não há dúvida que efectivaram a afectação independência a isenção bem como violação do segredo profissional da advogada e tal resultou notório na audiência preliminar em que a Advogada/Defensora interveio contra os interesses do Réu nos termos do que encontra gravado. Tal artigo 96º, nº6, também tem como propósito evitar situações de indefesa material, pelo que, com a actuação perpetrada foram lesados os artigos 4º do Código de Processo Civil, o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, artigo 6º, nº 1 da Convenção Europeia do Direito do Homem, artigo 47º paragrafo 1º e 2º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, pelo que, atento o quanto exposto em nome do estado de direito e em respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana, não resta outra alternativa ao Tribunal, que não a declaração de nulidade de todos os actos praticados pela defensora, bem como conceder ao Réu a prorrogativa de exercer toda a sua defesa que, a partir da nomeação da sua defensora não foi efectuada, nomeadamente, complementar o requerimento de prova. Frise-se que a defensora jamais por momento algum, conforme nos foi referido pelo Réu e que é facilmente aferido nos registos do Estabelecimento Prisional, para questioná-lo acerca de indicação probatórias, tendo a defensora indicado duas testemunhas, cujo depoimento é ante visivelmente desfavorável ao Réu. Pede-se deferimento”.
Foi de seguida proferido o seguinte despacho:
“O Réu, CC, esteve até ao momento regularmente representado pela advogado nos presentes autos, o qual representou-o nas diligências já efectuadas, tendo apresentado requerimento probatório oportunamente, não tendo sido invocado qualquer irregularidade nessa representação aquando da prática de tais actos ou do conhecimento dos mesmos, não tendo sido apresentada qualquer prova do ora alegado por forma a demonstrar os fundamentos do incidente, razão pela qual se indefere a requerida ineficácia dos actos praticados pela referida defensora, sem prejuízo de eventual responsabilidade que se venha a apurar em termos disciplinares em sede própria. Mais se diz que o referido Réu não está impedido de requerer a substituição das testemunhas que foram arroladas pela sua patrona, verificados os pressupostos legais, caso os seus novos representantes nestes autos assim o entendam conveniente para a sua defesa. Em face do exposto indefere-se o requerido. Notifique”.
Após o que a FF, formulou o seguinte requerimento: “A prova do domicílio profissional da advogada/defensora oficiosa encontra-se documentada nos presentes autos. A coincidência da morada profissional da mesma com a do Defensor Oficioso da vítima na acção do processo-crime é facilmente e aferível pelo tribunal agora, neste momento, se assim o entender, através de mera consulta ao site da Ordem dos Advogados. Relativamente à falta de arguição até então deste impedimento pelo Réu CC, é preciso ter presente que o mesmo se encontra em situação de reclusão e que só teve conhecimento destes factos muito recentemente, através de informação que lhe fora transmitida por outro recluso, que conhece ambos os advogados, bem como o seu domicílio profissional. Após receber esta informação a Mandatária teve o cuidado de confirmar tal informação, pelo que não pode ser motivo justificativo para o Tribunal o quanto referido para o conhecimento do impedimento e incompatibilidade alegada pelos Mandatários. Quanto à faculdade de alterar o requerimento probatório conferida pelo Tribunal, deverá a mesma abranger a prova na sua integralidade, incluindo-se aí a possibilidade de requer perícia e audição de perita médico-legal”.
Sobre esse requerimento incidiu o seguinte despacho: “O incidente suscitado no início desta audiência não foi acompanhado de qualquer indicação probatória, conforme exige o disposto no artigo 293º, nº 1, do Código de Processo Civil, razão pela qual se decidiu nos termos acima indicados, sendo que discordando o Réu de tal situação deverá recorrer da mesma, caso assim o entenda. Quanto à alteração do requerimento probatório, esclarece que o Tribunal considerou que tal faculdade não é admissível nesta fase processual, sem prejuízo da faculdade da inquirição oficiosa de testemunhas que se revelem importantes para a decisão da causa, ou de substituição de testemunha ao abrigo do artigo 508º, nº 3, do Código de Processo Civil. Notifique”.
Retomada a audiência da parte da tarde, a FF formulou o seguinte requerimento: “Vimos pelo presente requer, ao abrigo do artigo 423º, nº 3, do Código de Processo Civil, a junção de documentos, cuja junção até à data não foi possível, porquanto a mandatária desconhecia os factos que apenas no dia de ontem lhe foram reportados pelo Réu CC, já no final do dia e, que substanciam impedimento e incompatibilidade da anterior defensora, constar no processo como tal, bem como ainda se alega que a apresentação dos mesmos apenas se tornou efectivamente necessária, em virtude do mandato conferido, sendo que tais documentos correspondem a registo da Advogada GG no site da Ordem dos Advogados, onde consta o seu domicilio profissional, o qual corresponde ao documento que se junta como doc. nº 1, e registo do Dr. II So também no referido site, onde também consta o seu domicílio profissional o que coincide com o da Defensora Oficiosa, que se junta sob doc. nº 2. É de evidenciar que só através da junção dos referidos documentos, conseguimos fazer prova de que ambos os advogados têm o mesmo domicílio profissional, sendo a mesma absolutamente necessária para demonstrar, não só o impedimento, bem como para atestar a insuficiência ou ausência de defesa do Réu, CC”.
Sobre esse requerimento incidiu o seguinte despacho:
“Os documentos ora apresentados nada têm a ver com o objecto em discussão dos presentes autos, mas sim com eventuais problemas existente entre o Réu e a sua Patrona, situação que, como já se referiu na sessão da manhã, não é apreciada nos presentes autos, mas caso se entenda existir qualquer situação disciplinar será matéria da competência disciplinar da Ordem Advogados. Mas se acrescenta, que o referido Réu, CC, tendo sido representado por patronos ao longo dos presentes autos, tendo inclusive aderido à contestação e como tal ao requerimento probatório apresentado pelo co-réu JJ, conforme resulta do requerimento apresentado em 26/03/2016, fls. 239 pelo Dr. LL, razão pela qual nada temos a acrescentar ao já decidido, não se admitindo os documentos agora apresentados, em face da sua irrelevância para a decisão da matéria de facto em discussão”.
6. Finda a audiência de julgamento foi proferida sentença, em 08-10-2019, que concluiu como segue: “Pelo exposto julgo parcialmente procedente, por provada, a presente acção e, em consequência: - condena-se os réus a pagar solidariamente ao autor a quantia de €26.000,00 (vinte e seis mil euros), respeitante a quota parte de que este é titular, pela indemnização do dano morte e perda do direito à vida do seu filho, DD;
- condena-se os réus a pagar solidariamente ao autor a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), a título de indemnização dos danos morais por este sofridos, em consequência da morte do seu filho, DD; - condena-se os réus no pagamento de juros, sobre as quantias acima mencionadas, à taxa legal, desde a presente data até integral pagamento; - absolve-se os réus do demais peticionado.
Custas do processo a cargo do autor e dos réus, na proporção do respectivo decaimento
Registe e notifique”.
7. Não se conformando o 1.º réu, BB, apelou, suscitando, segundo o tribunal recorrido, as seguintes questões:
«- Do “princípio de adesão”: art. 71.º do Cód. de Processo Penal (CPP); - Da exceção de caso julgado; - Da nulidade de sentença por omissão de pronúncia; - Da litigância de má-fé do autor; - Da revisão de sentença (art. 449.º, nº 1, alínea c) do CPP); - Da “nulidade do despacho saneador proferido”; - Da oponibilidade da decisão penal condenatória: o alcance do art. 623.º do CPC; - Da atuação da patrona oficiosa do Réu CC: do incidente suscitado em audiência final; - Da fixação dos “temas da prova”; - Da ausência de apreciação probatória pelo tribunal recorrido».
8. O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu julgar improcedente a apelação interposta pelo réu BB, confirmando a sentença recorrida.
9. O réu, BB, inconformado, interpôs recurso de revista geral, ao abrigo do artigo 629.º n.º 1, in fine, e n.º 2, al. c), do CPC e, subsidiariamente, recurso de revista excecional, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPC, em que formulou prolixas e pouco claras conclusões, que aqui se consideram integralmente transcritas em virtude da sua extensão, e nas quais suscita várias nulidades da sentença e do acórdão recorrido, violação de regras de direito probatório material (artigo 674.º, n.º 3, do CPC) e do princípio da adesão obrigatória (artigos 71.º e 72.º do CPP), bem como violação do caso julgado, identificando assim o objeto do recurso de revista: «Questões a Dirimir 1. Pode o Despacho Saneador não conhecer de questões de Direito que são de conhecimento oficioso (por contenderem com Direitos e Garantias Constitucionais, e de Direito Europeu, bem como com Direitos Processuais) apesar de terem sido suscitadas e expressamente arguidas em peças processuais e em sede de audiência, como foram no caso dos autos? 2. Pode o Julgador decidir, conforme decidiu no caso sub judice, contra a sua própria convicção e contra legem, fundando a sua decisão meramente em adesão a jurisprudência que não tem força obrigatória geral? 3. Pode o despacho saneador proferido restringir Direitos Fundamentais, com violação dos requisitos formais e materiais pevistos no art.º 18 da CRP, também aplicável aos Direitos Fundamentais adquiridos por via do Direito Internacional ex vi do art.º 16 e 17 da CRP? 4. A interpretação do art.º 623.º do CPC, no sentido de ser considerada “presunção inilidivel” quanto aos factos provados em acção penal, quando os mesmos sejam reputados aos RR, deve ou não ser considerada inconstitucional? 5. É, ou não é, proibida a aplicação analógica (à contrário) do art.º 623.º do CPC, tendo presente o art.º 11.º do CC e tendo em conta que aquela norma (623.º) é norma excepcional ao regime do contraditório e princípio da igualdade das partes instituído na prática processual civil? 6. É ou não é proibida a interpretação restritiva e a contrario de norma excepcional do art.º 623.º do CPC? 7. É possível considerar-se legal despacho saneador que tem intento ilegal, ou seja, que visa expressamente impedir o exercício de Direitos, Liberdades e Garantias consagrados pela CRP e Direito da União Europeia? 8. É permitido aplicar presunção inilidível que não esteja expressamente prevista na lei, em violação do disposto no art.º 350 n.º 2 do CC? E no caso da resposta ser negativa (como julgamos ser) com que base pode o julgador aplicar o 623.º para daí extrair presunção inilidível aos RR? 9. Podem ser importados factos que sustentaram decisão penal transitada e aplicar-lhes força de caso julgado, com o propósito de impedir a sua discussão em posterior acção civil autónoma? 10. Pode o julgador impedir a produção de prova pelos RR, com a justificação de que os factos dos autos já se encontram provados noutra acção, e impedir a produção de nova prova que assegure de forma superior a verdade material dos factos que importam a esta nova acção?
Sendo também sobre estas questões que nos debatemos na fundamentação de recurso infra explanada.
- Por outro lado, também se recorre do acórdão na parte relativa a despachos proferidos em audiência de julgamento de 24.10.2017, nomeadamente: - do despacho que indeferiu a requerida ineficácia dos atos praticados pela defensora oficiosa do Réu CC, por impedimento da advogada/defensora oficiosa para representá-lo nos presentes autos, porquanto a Dra. GG (defensora deste Réu) exerce actividade no mesmo escritório que o advogado Dr. II, que representou a família da vítima, no pedido de indemnização cível enxertado nos autos de processo crime n.º 78/12..... - do despacho proferido em audiência de julgamento que após pedido de esclarecimento de qual seria o objecto do litígio - por haver discrepância entre a despacho saneador, e despacho de 19.04.2017 que definiram que o dano vida estaria fora do objecto do litígio, e o despacho do tribunal a quo que indeferiu o recurso do despacho saneador -determinou que do objecto de litígio também fazia parte o dano vida. E por fim,
- da Sentença que condenou os RR. – sem análise das questões que se suscitou préviamente, e sem que fizesse análise probatória que se impunha, recorrendo à importação de factos de sentença proferida nos autos crime, com sonegação da prova produzida em audiência, e de outra prova requerida, a que obstou com o despacho saneador - de que também se recorre – ao definir que o dano vida estaria fora do objecto de litígio».
Invocou, ainda, como fundamentos da revista, o seguinte: «Ordem de razões, que consubstanciam fundamento de revista :
1- No caso em apreço há erro de julgamento, que resultou em concreto numa distorção do direito aplicável, de tal forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou à normativa existente, havendo violação da lei substantiva, que consiste tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável; 2- A violação ou errada aplicação da lei de processo; 3- Por haver nulidades na sentença devidamente alegadas e que não foram consideradas ou que se entendeu inexistir no acórdão e que efectivamente existem. 4- Os fundamentos do próprio acórdão estão em oposição com a própria decisão, ou se assim não se entender pelo menos haverá ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível». 10. Termina as suas conclusões de recurso, peticionando o seguinte: «Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. proficientemente suprirão, requer-se que seja concedido provimento ao recurso, e que: a) Sejam conhecidas as questões suscitadas a título prévio que determinam erro na aplicação do Direito e Nulidade de Sentença e do Acórdão. Não obstante as questões colocadas a título prévio sejam suficientes para determinar a absolvição da instância e do pedido, a qual se requer, requer-se outrossim que o tribunal se pronuncie sobre todas as outras questões colocadas, porquanto está em causa a violação de Direitos Fundamentais, que obriga ao conhecimento oficioso das mesmas, sendo que do conhecimento e apreciação de tais questões poderá resultar a reparação de Direitos, que foram vedados aos arguidos, que com a reapreciação prova e matéria de facto, poderá suscitar recurso de revisão, o qual a lei prevê, e não cabe ao tribunal vedar. Pelo que sem prescindir da absolvição da instância e do pedido, nos termos pedidos em a), Requer-se concomitantemente: b) Que seja Declarada a Ineficácia dos atos praticados pela Defensora Oficiosa do R. CC, que agiu em situação de conflito de interesses, tornando a representação deste R. irregular numa causa em que era obrigatório o pratrocínio de advogado. c) Que declare a ilegalidade e invalidade do despacho que em audiência de julgamento declarou o dano vida como integrante do objecto do litígio, em contradição com depachos proferidos anteriormente nos autos. d) Que declare a invalidade do Despacho saneador, por erro na aplicação do Direito, por o mesmo restringir a aplicação de Direitos Fundamentais da União Europeia, ao aplicar a interpretação conferida ao art.º 623.º do CPC que viola as normas suscitadas (designadamente arts.º 20.º, 47.º, parágrafo segundo da CDFUE e art.º 6.º da CEDH); e) Declare verificadas as nulidades arguidas nos termos das als. b), c) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, e consequentemente a nulidade do despacho Saneador. E também, f) Declare a inconstitucionalidade e erro da interpretação conferida ao art.º 623.º do CPC, pelo tribunal à quo, por violar normas imperativas de Direito Constitucional (nos termos supra aduzidos- art.º 1.º,ART.º 2.º art.º 20.º, da CRP); g) Declarar a inconstitucionalidade e erro da interpretação conferida ao art.º 623.º, por tal interpretação restringir Direitos Fundamentais em violação dos requisitos formais e materiais exigidos pelo art.º 18.º da CRP, também aplicável aos Direitos Fundamentais adquiridos do Direito Internacional ex vi do art.º 16.º e art.º 8 da CRP. h) Declarar a ilegalidade da interpretação conferida ao art.º 623.º do CPC (error iuris), no sentido de que a presunção sobre os factos provados em penal em relação aos Réus, deva ser considerada presunção inilidivél, por tal contender com as regras de interpretação por aplicação analógica e de interpretação extensiva (que é estrita e não admite interpretação a contrario) cfr. art.º 11.º do Código Civil. i) Declarar a ilegalidade da interpretação conferida ao art.º 623.º do CPC (por error iuris), quando interpretada no sentido de que a presunção sobre os factos provados em penal em relação aos Réus, deva ser considerada presunção inilidível, por tal interpretação declinar o regime estatuído no art.º 350.º n.º 2 do CC, que consagra que as presunções inilidíveis são casos excepcionais, que têm de estar expressamente previstas na lei. j) Declarar ilegal (por error iuris) e inconstitucional o despacho e sentença que tem por real fundamento impedir o acesso ao duplo grau de jurisdição, por tal contender com art.º 32.º n.º 1 e art.º 10 da CRP, art.º 3.º, 5.º e 6.º da CEDH, art.º 6.º, art.º 20.º, art.º 47 parágrafo primeiro, e art.º 48.º parágrafo segundo, da CDFUE, por tal motivação ser ilegal e imoral face ao ordenamento jurídico vigente, pondo ainda em causa a independência e dever de administrar a justiça que sobre os tribunais impende (cfr art.ºs 202.º e 203.º da CRP). k) Julgar a impossibilidade de importar factos julgados e que sustentaram decisão em acção penal, para atribuir-lhes força de caso julgado uma vez que a força do caso julgado é relativa à decisão proferida e não quanto aos factos que justificaram a mesma, quando autonomizados em acção diversa. l) Julgar a impossibilidade do juiz a quo impedir a produção de prova sempre que a mesma assegure de forma superior a verdade material dos factos, e principalmente sempre que a prova dos factos se demonstre prova que padece de erro grosseiro (Relatório de autópsia) E por fim, sem contender com o quanto requerido, m) Requer-se que o Tribunal ad quem, reaprecie a prova produzida nos presentes autos civis, e conheça do erro grosseiro do relatório de autópsia e que serviu de prova aos factos fixados e importados do processo-crime, erro da apreciação da matéria de facto dada por provada em Sentença, com recurso a mera importação de autos crime, matéria essa que resulta infirmada com a prova produzida nos presentes autos e por contradição de factos entre si».
10. O recorrido não apresentou contra-alegações.
11. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e que admitem recurso de revista normal (artigo 671.º, n.º 1, do CPC), salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar as questões que fiquem prejudicadas pela decisão dada a outras, nem todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – artigo 5.º, nº 3, do Código de Processo Civil (CPC). Uma vez que estamos perante uma situação de dupla conformidade, este Supremo só conhecerá no âmbito da revista normal, a violação do caso julgado (artigo 629.º, n.º 2, al. a), 2.ª parte, do CPC) e as nulidades do acórdão recorrido que se relacionam com esta questão, competindo a apreciação da admissibilidade do recurso das restantes questões à formação prevista no artigo 672.º, n.º 2, do CPC.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação A – Os factos Releva o seguinte circunstancialismo, que o tribunal de primeira instância deu por assente:
2.1.1.- No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal coletivo n° 78/12...., do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial da Comarca ......, por decisão transitada em julgado, BB foi condenado como co-autor material de um crime de homicídio qualificado de que foi vítima DD e de um crime de furto, previstos e puníveis pelos artigos 131°, 132°, nºs 1 e 2, alínea e) e 203°, nº 1, do Código Penal, nas penas de 20 anos de prisão e 3 meses de prisão, sendo em cúmulo jurídico aplicada a pena de 20 anos e 2 meses de prisão. 2.1.2.- No âmbito do referido processo comum com intervenção do tribunal coletivo n° 78/12...., do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial da Comarca ......, por decisão transitada em julgado, CC foi condenado como co-autor material de um crime de homicídio qualificado de que foi vítima DD e de um crime de furto, previstos e de 20 anos de prisão e 3 meses de prisão e ainda pela prática, como autor, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 4 meses de prisão, sendo em cúmulo jurídico aplicada a pena de 20 anos e 4 meses de prisão. 2.1.3.- No processo comum coletivo acima referido em 2.1.1. e 2.1.2. o acórdão condenatório, transitado em julgado, julgou provados os seguintes factos da acusação: a) No dia ...-02-2012, cerca das 18h00, os arguidos dirigiram-se à casa do MM (doravante também MM), sita na ..., 153, no .... b) O arguido BB levava consigo uma navalha. c) Os arguidos entraram no quintal e na garagem da casa do MM, onde encontraram o DD (doravante apenas DD) e o NN (doravante apenas NN), que ali estavam a trabalhar numas obras. Estes disseram aos arguidos não saber do paradeiro do MM. d) Perante esta resposta, os arguidos derrubaram para o chão vários objetos que se encontravam na garagem e bateram no DD. e) O DD e o NN fugiram para o café anexo ao posto de gasolina da ..., na ..., tendo os arguidos seguido atrás deles. Ali o arguido CC bateu no DD. O DD e o NN fugiram em direção ao .... f) Os arguidos voltaram à casa do MM, de onde retiraram um berbequim, uma rebarbadora, 3 holofotes, um subwoofer, uma máquina de serrar, um corta-arame, um alicate, uma chave de parafusos e quatro rolos de fita adesiva. Estes objetos têm o valor de 43 euros. Os arguidos meteram tais objetos na bagageira do carro onde seguiam e levaram-nos consigo, com o propósito de os fazerem seus, contra a vontade do respetivo proprietário. Os objetos foram recuperados. g) Depois dos arguidos terem abandonado o local, o DD e o NN voltaram a casa do MM. O MM e a sua namorada, OO (doravante apenas OO), também chegaram, entretanto, a casa. h) Na sequência duma troca de telefonemas entre o MM e o arguido BB, cerca das 19:50 do mesmo dia (.../2/12), os arguidos voltaram a casa do MM. i) Quando aí chegaram, o MM, a OO e o NN refugiaram-se dentro de casa, enquanto o DD se escondeu no quintal atrás da casa. j) Os arguidos entraram novamente no quintal da referida residência. k) À sua chegada, a OO veio à porta munida de uma faca de cozinha sendo agredida pelo arguido CC que lhe desferiu uma pancada com uma acha de madeira, no braço esquerdo. 1) Nessa altura o DD veio da parte de trás do logradouro e deu com uma pá nas costas do arguido BB tendo atingido igualmente o arguido CC. O arguido BB tirou a pá das mãos do DD. Ambos os arguidos se envolveram em luta com o DD. O arguido BB empunhou a navalha que trazia e o arguido CC apercebeu-se disso. m) Durante a luta, o arguido BB deu duas navalhadas ao DD na zona do tórax enquanto o arguido CC deu várias pancadas ao DD com a acha de madeira. n) As referidas navalhadas provocaram no DD as feridas inciso perfurantes mencionadas infra, atingindo-lhe o saco pericárdico e o ventrículo direito do coração, dando origem a um processo de hemorragia interna. o) O DD fugiu em direção ao centro comercial da ... (...), indo os dois arguidos atrás dele. O arguido CC levou a acha de madeira e o arguido BB levou a pá. Os arguidos seguiram o DD com a intenção de o espancarem até à morte. p) O DD entrou no centro comercial da ... combalido e sentou-se no chão do corredor, perto duma caixa de multibanco, local onde os arguidos o encontraram em estado de debilidade. q) Quando os arguidos chegaram perto dele, o DD não fez qualquer gesto para replicar ou para se defender. r) Os arguidos continuaram a agredir o DD, alternadamente: enquanto um agredia o outro impedia o segurança do centro comercial de se aproximar. s) Desta forma, o arguido CC deu sucessivas pancadas ao DD com a acha de madeira e o arguido BB deu sucessivas pancadas ao DD com a pá. t) O DD continuou sem reagir estendido no chão. u) Seguidamente, os arguidos abandonaram o centro comercial. v) O DD foi socorrido e levado para o Hospital do ..., tendo falecido às 20h45 do dia .../2/12. w) Em consequência das agressões acima descritas, o DD sofreu as seguintes lesões: 1. Ferida inciso contusa transversal, na metade direita da região parietal medindo 4,5 cm de comprimento (na cabeça); 2. Ferida inciso contusa, longitudinal na metade esquerda da região parietal, medindo 3 cm de comprimento (na cabeça); 3. Escoriação arredondada na região malar direita, com 0,7 cm de diâmetro (na cabeça); IV. Ferida inciso perfurante, medindo 10 mm de comprimento, com afastamento dos bordos de 2 mm e com a profundidade de 35 mm, na porção inferior da face lateral esquerda do tórax (no tórax); V. Ferida inciso perfurante, medindo 15 mm de comprimento, com maior afastamento dos bordos de 30 mm e com a profundidade de 50 mm de profundidade, situada imediatamente abaixo da região correspondente ao apêndice xifóide e ligeiramente à esquerda (no tórax); VI. Escoriação longitudinal, oblíqua de cima para baixo e de dentro para fora, medindo 40 mm de comprimento por 10 mm de largura, na metade direita da porção inferior da região para vertebral (no tórax); VII. Na metade esquerda da região dorsal, escoriações paralelas entre si, a maior medindo 10 cm de comprimento e a menor medindo 2 cm de comprimento (no tórax); VIII. Na região lombar direita, escoriação ovalar medindo 25 mm de maior eixo por 20 mm de menor eixo (no tórax); IX. Na região lombar direita, escoriação ovalar medindo 25 mm de maior eixo por 20 mm de menor eixo (no abdómen); X. Área de escoriação na metade esquerda da região dorsal, com escoriações paralelas entre si, a maior medindo 10 cm de comprimento e a menor 2cm de comprimento (no abdómen); XI. Escoriação retangular, medindo 6 cm de comprimento por 2 cm de largura, na região lombar esquerda, apresentando num dos ângulos escoriação linear de 2,5 cm (no abdómen); XII. Duas escoriações na face posterior do cotovelo do membro supenor esquerdo, a maior com 2,5cm de maior eixo por 1,5 cm de menor eixo e a menor com 1,5 cm de diâmetro (no membro superior esquerdo); XIII. Ferida incisa, transversal, medindo 1 cm de comprimento e com 0,5 cm de afastamento dos bordos, no terço inferior da face externa da coxa direita (membro inferior direito); XIV. Escoriação ovalar medindo 3 cm de comprimento por 2,5 cm de largura na face anterior da perna direita (membro inferior direito); XV. Escoriação retangular no terço superior da face externa da coxa esquerda, medindo 2,5 cm de comprimento por 2 cm de largura (membro inferior esquerdo); XVI. Presença de maceração plantar em ambos os pés (membros inferiores). x) As feridas inciso perfurantes na zona do tórax, acima mencionadas, provocaram: 1. Na clavícula, cartilagens e costela esquerda: infiltração sanguínea no 5° espaço intercostal; solução de continuidade com infiltração sanguínea no 7° espaço intercostal; 2. No pericárdio e cavidade pericárdica: laceração do pericárdio; presença de 900 cc de sangue (hemopericárdio); 3. No coração: solução de continuidade na porção inferior do ventrículo direito com infiltração sanguínea; e infiltração sanguínea na parede direita do septo interventricular. y) As feridas inciso contusas na zona da cabeça, acima mencionadas, provocaram nas partes moles da cabeça: duas soluções de continuidade com infiltração sanguínea; infiltração sanguínea e bolsa sero hemática na metade esquerda da região occipital; infiltração sanguínea na metade direita da região occipital. z) A morte de DD foi causada pelas lesões traumáticas inciso perfurantes torácicas, supra descritas, provocadas pelas navalhadas acima referidas. aa) Os arguidos deslocaram-se a casa do MM a pretexto dum desentendimento prévio havido entre o arguido BB e o MM. O DD era alheio a este desentendimento. bb) Os arguidos dirigiram-se à casa do MM num veículo de ... de matrícula ...-...-HM, acompanhados pelo PP, pela namorada deste último, QQ, e pela RR, namorada do arguido BB. cc) Os arguidos estavam alcoolizados. Tinham-se encontrado para festejar o aniversário do arguido CC. dd) O MM e a OO, na altura em que chegaram a casa, chamaram os ... para socorrerem o DD que ficou ferido após as agressões dos arguidos ocorridas na primeira ocasião (em casa do MM e no bar anexo à bomba de gasolina). ee) Compareceram no local os ... SS e TT que tentaram fazer parar as agressões ocorridas cerca das19:50 desse dia (15/2/12). Um dos ... chamou a polícia. ff) O arguido CC deixou o pedaço de madeira usado nas agressões junto ao centro comercial. gg) Ambos os arguidos quiseram, em comunhão de esforços, agredir o DD até à morte mediante o uso de violência sádica e exacerbada contra a vítima. hh) Os arguidos agiram livre, consciente e deliberadamente, sabendo que as suas condutas eram proibidas. 2.1.4.- No processo comum coletivo acima referido em 2.1.1. e 2.1.2, EE deduziu pedido de indemnização civil contra BB e CC, pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhe a quantia de €200.000,00 (duzentos mil euros) acrescida de juros moratórios calculados à taxa supletiva legal desde a citação e até integral e efectivo pagamento, a titulo de danos patrimoniais relacionados com as despesas suportadas com o funeral a quantia de €6.400,00 (seis mil quatrocentos euros) e a título de danos não patrimoniais por direito próprio, a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), acrescida dos respetivos juros moratórios calculados à taxa supletiva legal desde a data de citação e até efetivo e integral pagamento, o que se peticiona. 2.1.5. - No processo comum coletivo acima referido em 2.1.1. e 2.1.2. o acórdão condenatório, transitado em julgado, julgou provados os seguintes factos relativos ao pedido cível deduzido naqueles autos: a) A demandante é mãe do DD. b) O DD faleceu no estado de solteiro, sem ascendentes. c) Os arguidos agiram com crueldade. d) O DD no decurso das agressões praticadas pelos arguidos, apercebeu-se que a sua vida corria perigo. e) O DD, quando fugiu para o centro comercial, depois de ter sido ferido a navalha, teve consciência de que ia morrer. Sofreu dores, angústia e terror a morte. f) O DD tinha 35 anos na data em que morreu, era saudável, unido à família. Trabalhava e morava com os pais, ajudando nas despesas da casa. g) A demandante sofreu desgosto com a morte do DD. Chora e lamenta o sucedido. Recorda permanentemente o filho falecido. Imagina a angústia e o sofrimento deste causados pelos arguidos. h) Devido à morte do DD a demandante ficou deprimida, a sua saúde piorou e frequenta acompanhamento psicológico. i) O ambiente familiar alterou-se com a morte do DD. j) Os pais do DD (a demandante EE e a testemunha UU) sentem tristeza, passam noites sem dormir devido à morte do filho. 2.1.6.- No processo comum coletivo acima referido em 2.1.1. e 2.1.2. o acórdão condenatório, transitado em julgado, decidiu julgar parcialmente procedente o pedido cível efetuado por EE, mãe da vítima DD, condenando-se solidariamente os arguidos/demandados BB e CC, a pagarem à demandante a quantia de €12.000,00, pelo dano moral por esta sofrido; a quantia de €1.500,00 pelo dano moral da própria vítima e a quantia de €26.000,00 como indemnização do direito à vida, correspondendo estas duas últimas quantias “à metade da indemnização que é devida à demandante como herdeira”. 2.1.7.- DD nasceu a .../.../1976. 2.1.8.- DD, falecido no dia ...-02-2012, era filho de UU e de EE. 2.1.9.- O mencionado DD faleceu no estado de solteiro e sem deixar descendentes, sucedendo-lhe como únicos herdeiros o A. e a sua esposa EE. 2.1.10.- O falecido DD vivia com os pais na casa destes. 2.1.11.- O falecido DD fazia alguns trabalhos ocasionais como servente de ..., não tendo um rendimento mensal certo, ajudando no pagamento de algumas despesas da casa. 2.1.12. - O falecido DD era uma pessoa forte e saudável. 2.1.13. - O A. sofreu uma grande dor e desgosto com a morte do seu filho DD, fechando-se na sua dor. 2.1.14. - O A. recorda permanentemente o seu filho, imaginando o sofrimento e a angústia deste nos momentos que precederam a sua morte. 2.1.15. - No referido processo 78/12.... o aqui autor não foi ouvido no decurso do inquérito pela autoridade policial ou pelo M.P, nem foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 75° do Código de Processo Penal.
O tribunal de primeira instância consignou ainda como segue: “2.2. Factos não provados Com relevo para a sua decisão, não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente: 2.2.1. - O A. em consequência do falecimento do seu filho DD, padece de uma depressão estando a receber acompanhamento psiquiátrico e psicológico no ....... 2.2.2. - O falecido DD auferia mensalmente a quantia de €600,00, contribuindo todos os meses com a quantia de €300,00 para as despesas da casa onde vivia com os pais. 2.2.3. - O A. não tem qualquer trabalho, não tendo qualquer rendimento 2.2.4. - O A. e a sua esposa vivem actualmente do ordenado desta última, no montante de cerca de 500,00€ (quinhentos euros) líquidos. 2.2.5. - Com a morte do seu filho o A. deixou de ter meios para prover a todas as suas despesas. 2.2.6. - Desde o fatídico dia 15/02/2012 que o A. não faz uma noite de sono descansado. 2.2.7. - O A. gastou em flores e preparativos do funeral o montante de 2.455,50€ (dois mil, quatrocentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta cêntimos)”.
B – O Direito
1. - Questão prévia da admissibilidade do recurso: Importa, previamente, apreciar se estão reunidos os pressupostos gerais de recorribilidade e se é admissível, ainda que parcialmente, a revista normal. O acórdão recorrido, na parte em que conheceu da sentença de mérito proferida pela 1.ª instância, integra, indubitavelmente, a previsão do n.º 1 do artigo 671.º do CPC. 1.1. No entanto, relativamente à apreciação do despacho que indeferiu a ineficácia dos atos praticados pela defensora oficiosa do Réu CC, por impedimento da mesma para representá-lo nos presentes autos, nessa parte estamos perante uma decisão interlocutória, que recaiu unicamente sobre a relação processual, em concreto, a regularidade do patrocínio exercido pela defensora oficiosa do Réu CC, por alegado impedimento da mesma para representá-lo nesta ação. Assim, em relação a esta questão, o recurso de revista apenas seria admissível nos casos previstos nas als. a) e b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC. No seu requerimento de interposição de recurso, o recorrente faz alusão à al. c) do n.º 2 do artigo 629.º, do CPC, para a qual remete a al. a) do n.º 2 do artigo 671.º do mesmo código, prevendo aquela disposição legal a admissibilidade de recurso das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça. Porém, nas suas alegações de recurso, o recorrente não faz alusão a qualquer acórdão uniformizador, nem explicita qualquer contradição do acórdão recorrido contra jurisprudência uniformizada. O recorrente invocou também a contradição do acórdão recorrido com várias decisões do Supremo Tribunal de Justiça, juntando com as suas alegações cópia de decisões destes Tribunais Superiores, o que poderia integrar os fundamentos previstos na al. b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC e na al. d) do n.º 2 do artigo 629.º (neste último caso, caso se entenda que esta disposição legal está abrangida pela remissão da al. a) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, permitindo-se que a revista de decisões interlocutórias tenha como fundamento a contradição do acórdão recorrido com acórdão de Tribunais da Relação, o que é controverso na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça). Porém, nenhuma dessas decisões cuja cópia foi junta aos autos diz respeito à matéria da alegada irregularidade do exercício do patrocínio forense, nem tampouco o recorrente demonstrou a existência de qualquer contradição do acórdão recorrido com outra qualquer decisão nesta matéria. Apesar de o recorrente ter invocado a ofensa do caso julgado como fundamento de recurso, também essa alegada ofensa não diz respeito a esta decisão interlocutória. Assim, podemos concluir que não foi devidamente invocado qualquer dos fundamentos previstos no n.º 2 do artigo 671.º do CPC, não sendo admissível, nessa parte, a revista. Não sendo admissível o recurso de revista geral, não se reenvia, nesta parte, o processo para conhecimento da formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, pois, de acordo com jurisprudência firmada deste Supremo Tribunal, a admissão da revista excecional pressupõe que o recurso reúna os requisitos gerais da admissibilidade da revista ordinária, o que, conforme acima exposto, não é o caso no que diz respeito ao despacho de indeferimento da eficácia dos atos praticados pela defendo do 2.º réu, por se tratar de uma decisão interlocutória. Neste sentido, por todos, o Acórdão deste Supremo tribunal de Justiça, de 28-04-2021 (proc. n.º 3499/11.6TBPTM-A.E2-A.S1 ) em cujo sumário se afirma que «Interposto recurso de revista excepcional, ao abrigo da disciplina prevista pelo art. 672º do CPC, para as situações de “dupla conformidade decisória” das instâncias (art. 671º, 3, do CPC), não se dispensa a verificação dos pressupostos do recurso de revista como espécie (art. 215º, 1.ª, CPC) – ou, numa outra perspectiva, dos requisitos gerais e especiais da revista normal (…)» 1.2. Quanto à parte restante do recurso ora interposto, nos termos do disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, não é admissível revista normal do acórdão que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível. No presente caso, o acórdão recorrido confirmou integralmente a sentença de 1.ª instância sem qualquer voto de vencido. Todavia, há que indagar se, apesar da Relação ter confirmado a decisão de 1.ª instância, o fez com uma “fundamentação essencialmente diferente”. De acordo com a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, o conceito de fundamentação essencialmente diferente não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação no iter jurídico que suporta o acórdão da Relação em confronto com a sentença de 1.ª instância, sendo antes indispensável que, naquele aresto, ocorra uma diversidade estrutural e diametralmente diferente no plano da subsunção do enquadramento normativo da mesma matéria litigiosa – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-02-2020, Revista n.º 1003/13.0T2AVR.P1.S1. Segundo esta decisão “(…) só pode considerar-se estarmos perante uma fundamentação essencialmente diferente quando ambas as instâncias divergirem, de modo substancial, no enquadramento jurídico da questão, mostrando-se o mesmo decisivo para a solução final: ou seja, se o acórdão da Relação assentar num enquadramento normativo absolutamente distinto daquele que foi ponderado na sentença de 1.ª instância. Ou, dito ainda de outro modo: quando o acórdão se estribe definitivamente num enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado do perfilhado na 1.ª instância” Ora, analisada a fundamentação da sentença e do acórdão do Tribunal da Relação, verifica-se que as questões são idênticas e foram decididas nos termos da mesma legislação e com fundamentos semelhantes, pelo que estamos perante uma situação de dupla conformidade. Tanto a 1.ª instância, como a Relação, concluíram pela inexistência de violação do princípio da adesão obrigatória ao processo criminal e pela admissibilidade da dedução pelo autor do pedido de indemnização civil em separado, nesta ação. Afastaram também, de forma inteiramente coincidente, a verificação de qualquer exceção de caso julgado, uma vez que o autor não deduziu qualquer pedido de indemnização civil no referido processo-crime, não havendo por isso qualquer decisão judicial que tenha conhecido dos danos sofridos pelo mesmo. Na fixação da factualidade provada, tanto a 1.ª instância, como a Relação, afirmaram a eficácia probatória extraprocessual, nos termos do disposto no artigo 623.º do CPC, dos factos provados pelo acórdão proferido no processo criminal n.º 78/12…, já transitado em julgado, no qual os aqui réus foram condenados pela prática de um crime de homicídio qualificado na pessoa de DD, filho do aqui autor, sendo peticionado nestes autos o ressarcimento dos danos decorrentes da prática desse crime. As instâncias consideraram, de forma coincidente, que a possibilidade de ilidir a presunção prevista no referido artigo 623.º do CPC nunca é concedida ao arguido condenado mas, apenas, em homenagem ao princípio do contraditório, aos sujeitos processuais não intervenientes no processo penal, para lhes dar a oportunidade de demonstrar que afinal, o arguido, não obstante ter sido condenado definitivamente não atuou com culpa e, portanto, não praticou os factos integradores da infração pela qual foi condenado. A Relação concluiu ainda pela inexistência de qualquer nulidade da sentença recorrida ou do despacho saneador proferido nos autos, concluiu pela inexistência de qualquer má-fé processual do autor e estipulou que a presente ação cível não pode constituir nenhum expediente ou forma de o réu recorrente lograr obter um novo julgamento na parte criminal. A Relação confirmou ainda um despacho de indeferimento de incidente proferido pela 1.ª instância durante a audiência final e declarou não existir qualquer invalidade do despacho que fixou o objeto do litígio e os temas da prova. Por último, concluiu-se no acórdão recorrido que “não sendo suscitadas pelo apelante quaisquer questões alusivas à verificação dos demais pressupostos do direito de indemnização de que o autor se arroga titular, mormente quanto ao dano, não questionando sequer o mérito do quantum indemnizatório fixado, mais não resta senão concluir pela manutenção da sentença recorrida.” O cerne da argumentação das duas decisões e a solução jurídica dada ao caso dos autos são, assim, totalmente idênticos, ou seja, a fundamentação das decisões das instâncias é inteiramente convergente, tendo a Relação apreciado questões que o recorrente suscitou no recurso de apelação, confirmando inteiramente as decisões proferidas em 1.ª instância. Em conclusão, no caso em apreço, compulsado o teor do acórdão recorrido, não se vislumbra que o “âmago fundamental do respetivo enquadramento jurídico, seja diverso daqueloutro assumido e plasmado pela 1.ª instância”, ou seja, “a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação não foi inovatória, nem ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a decisão proferida na sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada” (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 28-02-2019, Revista n.º 424/13.3T2AVR.P1.S1). Assim, em suma, uma vez que se entende que as instâncias se “moveram” no âmbito dos mesmos institutos jurídicos e que o iter prosseguido por cada uma não é suficiente para considerar que existiu a este respeito fundamentação essencialmente diferente, será de entender que se verifica o obstáculo da dupla conforme à admissão da revista, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC.
1.3. No seu requerimento de interposição de recurso, o recorrente faz alusão à al. c) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC que prevê a admissibilidade de recurso das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do STJ. Porém, como acima já se referiu, nas suas alegações de recurso, o recorrente não faz alusão a qualquer acórdão uniformizador, nem explicita qualquer contradição do acórdão recorrido contra jurisprudência uniformizada.
1.4. Nas suas conclusões, o recorrente invoca também a verificação da exceção de caso julgado, afastada pelas instâncias, alegando que nesta ação se repete a ação cível enxertada no processo criminal n.º 78/12...., invocando que o autor interveio como parte nessa ação, na qualidade de herdeiro da vítima falecida, ainda que representado pela cabeça-de-casal aí demandante. O recorrente também invoca a eventual ofensa do caso julgado formal formado pelo despacho saneador, alegando que nessa decisão, foi decidido que o “dano vida” não faria parte do objeto do litígio, algo que foi contrariado por um despacho subsequente e pelo acórdão recorrido. A alegada ofensa do caso julgado invocado pelo recorrente constitui o fundamento previsto na alínea al. a) do n.º 2 do art.º 629.º do CPC. Como se defendeu no Acórdão de 13-09-2018 (Revista n.º 679/14.6TBALQ.L1.S1), no que respeita ao fundamento de recurso baseado na ofensa de caso julgado, basta a possibilidade de a ofensa ocorrer para que o recurso seja admissível (ainda que circunscrito à apreciação dessa questão). Sendo que a admissibilidade da revista, neste caso, não é afetada pela verificação de dupla conforme entre as decisões das instâncias como decorre da ressalva constante da parte inicial do n.º 3 do artigo 671.º do CPC.
1.5. O recorrente também alega no seu recurso que o acórdão recorrido considerou erradamente que o caso julgado da decisão final proferida no processo criminal n.º 78/12.... se estende à matéria factual considerada provada nesses autos. Porém, nesta parte, independentemente de considerarmos que o disposto no artigo 623.º do CPC respeita aos efeitos do caso julgado formado pela sentença criminal ou, ao invés, ao valor extraprocessual das provas produzidas no processo penal, o que é certo é que, segundo a alegação do recorrente, nesta parte, estará em causa, não a ofensa do caso julgado, mas sim a indevida extensão do caso julgado da decisão proferida no processo criminal aos factos considerados provados nestes autos. Tem sido decidido de forma uniforme neste Supremo Tribunal que a alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, ao reportar-se “(…) à “ofensa do caso julgado” como fundamento de admissibilidade de recurso independentemente do valor da causa e da sucumbência, pressupõe uma verdadeira violação do caso julgado, ficando excluídas da previsão dessa normal legal as situações em que o tribunal afirme a existência da excepção do caso julgado ou assuma os efeitos da autoridade de caso julgado” (cfr. Acórdão do STJ de 23-05-2019, Revista n.º 5629/17.5T8GMR.G1.S2). Neste sentido e a título meramente exemplificativo, se pronunciaram os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-02-2021 (Revista n.º 26151/16.1T8LSB.L1.S1), de 04-07-2019 (Revista n.º 2010/12.6T8GMR-E.G1.S1), de 14-05-2019 (Revista n.º 6454/15.3T8VIS.C1.S1), de 28-03-2019 (Revista n.º 15398/16.0T8LSB.L1.S1), de 12-02-2019 (Revista n.º 6090/17.0T8GMR.G1.S1), de 18-10-2018 (Revista n.º 3468/16.0T9CBR.C1.S1) e de 21-06-2018 (Revista n.º 2034/15.1T8GMR.G1.S1. Por todos, vide Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 28-03-2019 (Revista n.º 15398/16.0T8LSB.L1.S1), onde se afirmou que «O recurso interposto com fundamento na indevida extensão a terceiros da autoridade de caso julgado não preenche a previsão da terceira alternativa da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC (ofensa de caso julgado)».
Neste sentido também Abrantes Geraldes (“Recursos em processo Civil”, 6.ª ed., Almedina, 2020, p. 54), em anotação à al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, na parte respeitante à “ofensa do caso julgado”, defende que «Estão (...) excluídas desta previsão especial [do art. 629.º, n.º 2, alínea a)] as situações em que se afirme a existência da excepção de caso julgado ou se assumam os efeitos da autoridade de caso julgado emergente de outra decisão. Efectivamente, nestes casos, não se verifica qualquer violação do caso julgado, antes a prevalência de outra decisão já transitada em julgado, situação que fica sujeita às regras gerais sobre a recorribilidade (art. 629.º, n.º 1) e oportunidade da impugnação (arts. 644.º e 671.º)». Tal é o que sucede no caso dos autos, em que ambas as instâncias coincidiram na fixação da matéria de facto, como consequência do alargamento da autoridade do caso julgado aos factos considerados provados no processo criminal, em que os aqui réus foram condenados, por sentença transitada em julgado, pela prática do crime de homicídio qualificado, que originou os danos que são peticionados nesta ação pelo pai da vítima. Assim, não sendo aplicável, nesta parte, o disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, a discussão das questões suscitadas pelo recorrente, em torno da interpretação/aplicação e constitucionalidade do artigo 623.º do CPC, está sujeita às regras gerais sobre a recorribilidade e, verificando-se dupla conforme, a sua admissibilidade estará dependente da verificação de alguma das situações previstas no n.º 1 do artigo 672.º do CPC (revista excecional), competindo a apreciação da verificação dos respetivos pressupostos à Formação de Apreciação Preliminar prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC. A revista normal, será, assim, apenas admissível no que respeita à apreciação da alegada ofensa do caso julgado.
1.6. Quanto às nulidades do acórdão recorrido invocadas pelo recorrente, a argumentação do recorrente é confusa e tanto se reporta a nulidades do acórdão recorrido, como a nulidades de outras decisões proferidas pela 1.ª instância ao longo do processo, nomeadamente do despacho saneador. Ora, conforme tem sido vindo a ser decidido por este Supremo Tribunal, as nulidades da sentença, bem como outras irregularidades ou erros de julgamento cometidos pela 1.ª instância, não são cognoscíveis por este Supremo, mas antes pela Relação (cfr. Acórdão do STJ de 14-04-2011, Revista n.º 603-B/2001.G1.S1). No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do STJ de 24-03-2011 (Revista n.º 491/05.3TBSLV.E1.S1), 16-04-2009 (Revista n.º 138/09), de 07-07-2009 (Revista n.º 7614/05.0TBVNG-A.S1) e de 16-03-2017 (Revista n.º 568/11.6TCFUN.L1-A.S1). Por todos, veja-se o sumário do Acórdão deste Supremo Tribunal, de 16-03-2017 (Revista n.º 568/11.6TCFUN.L1-A.S1) em que se afirmou «A questão apreciada no acórdão recorrido sobre a arguida nulidade da sentença constitui matéria fora da apreciação do STJ, o qual não conhece dos eventuais vícios da sentença proferida em 1.ª instância, mas sim de vícios apontados ao acórdão da Relação, em caso de admissibilidade de recurso». Assim, no que respeita à apreciação de nulidades decisórias, que não respeitem ao acórdão recorrido, tal questão não pode ser objeto, nem de revista normal, nem de revista excecional.
1.7. Quanto às restantes nulidades, sem prejuízo da revista excecional poder vir a ser admitida pela Formação, a apreciação da revista normal apenas abrangerá a apreciação das nulidades do acórdão recorrido que diretamente estejam conexionadas com o objeto da revista normal, ou seja, as nulidades que sejam conexas com a alegada ofensa do caso julgado e não quaisquer outras nulidades que afetem o acórdão recorrido. A apreciação das restantes nulidades poderá caber ao Supremo Tribunal de Justiça, na hipótese de esses vícios respeitarem a questões que integrem o objeto da revista excecional definido pela Formação, caso essa revista venha a ser admitida. Se a Formação não admitir a revista excecional, tais vícios, que extravasem o objeto da revista, deverão ser apreciados pelo tribunal a quo nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 615.º do CPC. Neste sentido se pronunciaram, a título exemplificativo, os acórdãos do STJ de 07-09-2020 (Revista n.º 12651/15.4T8PRT.P1.S1), de 16-12-2020 (Revista n.º 12380/17.4T8LSB.L1.S1) e de 02-06-2021 (Revista n.º 2381/19.3T8CBR.C1.S1).
1.7. Pelo exposto e em conclusão, entendemos que a revista normal é admissível apenas no que respeita à apreciação da alegada exceção de caso julgado invocada pelo recorrente e à apreciação das nulidades do acórdão recorrido que se relacionem com a apreciação dessa questão, com exclusão da apreciação do despacho interlocutório, que indeferiu a ineficácia dos atos praticados pela defensora oficiosa do Réu CC, bem como da apreciação de nulidades decisórias respeitantes a decisões da 1.ª instância, questões em relação às quais não é, conforme acima exposto, admitido recurso de revista geral. No que respeita aos restantes fundamentos do recurso de revista, designadamente às questões colocadas pela interpretação e aplicação do artigo 623.º do CPC e à constitucionalidade da interpretação normativa adotada pelo tribunal recorrido, tendo o recorrente interposto, a título subsidiário, recurso de revista excecional, competirá à Formação de Apreciação Preliminar a verificação dos seus pressupostos específicos de admissibilidade, nos termos do artigo 672.º do CPC.
2. Objeto do presente recurso de revista A admissão do recurso ao abrigo da al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, com fundamento na ofensa de caso julgado, tem como consequência que o seu objeto fique circunscrito à apreciação da questão que está na base da sua admissão, não podendo alargar-se a outras questões (cfr. Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 04-07-2019, Revista n.º 1332/07.2TBMTJ.L2.S1, de 04-12-2018, Revista n.º 190/16.0T8BCL.G1.S1, de 22-11-2018, Revista n.º 408/16.0T8CTB.C1.S1, de 18-10-2018, Revista n.º 3468/16.0T9CBR.C1.S1, de 28-06-2018, Revista n.º 4175/12.8TBVFR.P1.S1), com a ressalva da apreciação das nulidades do acórdão recorrido conexas com a alegada ofensa do caso julgado. Por todos, vide, Acórdão deste Supremo Tribunal, de 02-06-2021 (Revista n.º 2381/19.3T8CBR.C1.S1), onde se afirmou o seguinte: «A questão da alegada ofensa do caso julgado configura uma das situações em que, nos termos do art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, o recurso é sempre admissível, independentemente do valor da causa e da sucumbência, centrado na apreciação dessa questão e das nulidades do acórdão recorrido que com ela se conexionem».
Assim, atentas as conclusões do recurso de revista, importa apreciar, neste momento, as seguintes questões: a) Nulidades do acórdão recorrido conexas com a alegada ofensa do caso julgado; b) Alegada exceção de caso julgado por repetição da causa julgada no processo criminal n.º 78/12....; c) Ofensa do caso julgado formal formado pelo despacho saneador e pelo despacho que indeferiu o requerimento probatório.
3. Nulidades do acórdão recorrido conexas com o caso julgado Nas suas alegações, o recorrente confunde frequentemente a ocorrência de nulidades da decisão recorrida com erros de julgamento, chegando a sustentar a verificação simultânea dessas duas situações que se reportam a realidades diferentes. Por outro lado, a argumentação do recorrente é confusa e tanto se reporta a nulidades do acórdão recorrido, como a nulidades de outras decisões proferidas pela 1.ª instância ao longo do processo, nomeadamente do despacho saneador. E conforme tem sido vindo a ser decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, as nulidades da sentença, outras irregularidades ou erros de julgamento cometidos pela 1.ª instância, não são cognoscíveis pelo Supremo Tribunal, mas antes pela Relação (cfr. Acórdão do STJ de 14-04-2011, Revista n.º 603-B/2001.G1.S1, e demais decisões acima citadas). Alega o recorrente que o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia “quanto ao erro na forma de processo que configura excepção peremptória insanável, de conhecimento oficioso, nos termos do disposto nos arts. 278.º n.º 1 al. b) , 577.º al b) e 576.º nºs 1 e 2, todos do CPC, por existir caso julgado, já que o A. interveio do pedido de indemnização civil, conforme demonstrado na certidão do PIC junta aos autos, ainda que representado por cabeça de casal (32 n.º 2 do CPC) cfr. 577, al. i) do CPC, o que impõe que o tribunal se tivesse abstido de conhecer do mérito da causa e daria lugar à absolvição da instância.” Ao invocar a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia relativamente ao alegado erro na forma de processo, o recorrente trata a questão como estando conexa com a alegada verificação da exceção de caso julgado. Tal matéria diz respeito à alegação do aqui recorrente de que o autor teve também intervenção no processo criminal n.º 78/12...., ainda que representado pela cabeça-de-casal. No acórdão recorrido, sobre esta matéria, concluiu-se, que “o que resulta do processo, inequivocamente, é que no referido processo de natureza criminal foi proferida decisão de condenação dos ora réus pela prática de um crime de homicídio voluntário, na pessoa de DD, filho do autor e de EE, decisão já transitada. Mais resulta que nesse processo teve intervenção, na qualidade de assistente e demandante cível a referida EE, tendo a sentença apreciado exclusivamente do pedido de indemnização civil formulado pela mesma, condenando os arguidos – aqui réus, incluindo o apelante – no pagamento de uma indemnização. O autor esteve completamente à margem desse processo, nunca tendo sido notificado para aí exercer os direitos que lhe assistiam, ao contrário do que sucedeu com a mãe da vítima.” E sobre o alegado erro na forma de processo foi dito que “a invocação subsequente feita pelo apelante quanto à competência do tribunal, ao erro na forma de processo e caducidade do direito de ação – cfr. a conclusão 28ª -, não tem qualquer sentido, partindo o apelante de pressupostos jurídicos que não se verificam. É assim, manifesto que no acórdão recorrido se considerou ser errada a conclusão do recorrente, segundo a qual o autor teve intervenção no referido processo criminal, pelo que, faltando esse pressuposto da argumentação do recorrente, ficou prejudicado o conhecimento do alegado erro da forma de processo. Não existe, assim, qualquer omissão de pronúncia, pois que o acórdão recorrido apenas não conheceu dessa matéria porque, como foi dito expressamente no texto da decisão, não se verificaram os pressupostos alegados pelo recorrente. O recorrente alega também a nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia (art.º 615.º n.º 1 al c) do CPC). Para o efeito, invoca que no que “ao objecto do litígio concerne, existem dois despachos que expurgam o dano vida do objecto do litígio. O primeiro despacho, é o despacho saneador que nos termos do preceituado no art.º 619.º n.º 1, quando transitado em julgado ( e no que respeita a essa questão do dano vida transitou, por não ter sido objecto de recurso), adquire força de caso julgado material, com força obrigatória dentro e fora do processo, nos limites fixados pelos art.s 580.º e 581.º. do CPC. O segundo despacho, que afirma que o “dano vida” não é objecto de litígio, é o despacho de indeferimento do requerimento probatório, o qual tem força obrigatória dentro do processo, por constituir caso julgado formal. Pelo que, atento o instituto do caso julgado nas suas duas vertentes, não poderia o tribunal a quo por despacho proferido em audiência de julgamento, contraditar o quanto antes decidido trazendo para o objecto do litígio o dano vida, que já havia excluído por dois despachos, ambos com valor de caso julgado. Pelo que o despacho proferido em audiência padece de erro na aplicação do direito, por violação e não aplicação dos preceitos supra aduzidos.” Mais sustenta o recorrente que “há nulidade de despacho, nos termos do disposto no art.º 615.º n.º 1 al. d) ex vi 613.º n.º 3 do CPC, por o mesmo conhecer de questão, e determinar a introdução de matéria para o objecto do litígio, em contravenção com caso julgado material e formal, matéria do seu conhecimento oficioso, que não poderia derrogar, não se admitindo a complacência do Tribunal da Relação em acórdão, com esta actuação.” Não podendo o recurso de revista ter como objeto a apreciação de nulidades de despachos proferidos pela 1.ª instância, quando houve recurso para Relação, como sucede no caso dos autos, importa aferir se se verifica o vício de excesso de pronúncia apontado ao acórdão da Relação. Segundo se entende da argumentação do recorrente, a Relação não poderia ter considerado os factos relativos ao que o mesmo denomina de “dano vida”, por tal matéria ter sido excluída do objeto do litígio por despachos proferidos nos autos que, segundo o recorrente, têm força de caso julgado. Esta matéria implica a apreciação da alegada ofensa do caso julgado invocada pelo recorrente, pelo que se relega a apreciação desta nulidade para o momento em que se apreciar a força de caso julgado das decisões proferidas pela 1.ª instância.
4. – Alegada verificação da exceção de caso julgado por repetição da causa julgada no processo criminal n.º 78/12.... O recorrente invoca que existe identidade de sujeitos, de pedido, de causa de pedir entre os presentes autos e a ação cível enxertada no processo criminal n.º 78/12..... Quanto ao facto do aqui autor não ter subscrito o pedido de indemnização civil deduzido naqueles autos, alega o recorrente que o autor interveio como parte nesse processo criminal, como herdeiro da vítima, representado pela cabeça-de-casal EE, que deduziu o referido pedido de indemnização civil no processo penal. Como fundamento dessa pretensão, o recorrente invoca o teor da certidão do pedido de indemnização civil formulado nos autos n.º 78/12.... pela referida EE, na qual esta declara que deduz o pedido cível “por si e na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por morte de DD”. A certidão dessa peça processual foi junta pelos réus durante a audiência de julgamento, na sessão realizada em 10-11-2017, tendo sido digitalizada pela Secretaria do tribunal de 1.ª instância e inserida no sistema Citius em 13-11-2017. No processo comum coletivo acima referido, EE deduziu pedido de indemnização civil contra BB e CC, pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhe a quantia de €200.000,00 (duzentos mil euros) acrescida de juros moratórios calculados à taxa supletiva legal desde a citação e até integral e efetivo pagamento, a titulo de danos patrimoniais relacionados com as despesas suportadas com o funeral a quantia de €6.400,00 (seis mil e quatrocentos euros) e a título de danos não patrimoniais por direito próprio, a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), acrescida dos respetivos juros moratórios calculados à taxa supletiva legal desde a data de citação e até efetivo e integral pagamento. Compulsado o teor desse pedido cível, é verdade que a demandante EE inicia o seu articulado, alegando que age por si e na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por morte do seu filho DD. Porém, tal não significa que a herança aberta por óbito de DD tenha figurado como demandante naquele processo, desde logo porque o cabeça-de-casal não detinha legalmente quaisquer poderes para deduzir aquele pedido em representação dos demais herdeiros – artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil. De acordo com esta disposição legal, os direitos relativos à herança, incluído o direito de indemnização decorrente da perda do direito à vida do autor da herança, só podem ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros. Ora, compulsado o teor da sentença transitada em julgado no referido processo criminal, é manifesto que o tribunal criminal apenas apreciou a pretensão da demandante EE limitada aos danos sofridos na sua esfera jurídica pessoal, excluindo expressamente a indemnização que seria devida aos restantes herdeiros, ou seja, ao pai da vítima, aqui autor. Tal resulta da seguinte passagem da fundamentação do acórdão proferido nos autos n.º 78/12....: “a vítima deixou dois herdeiros, os pais. Mas é unicamente um deles, a mãe, quem pede a indemnização. Pelo que o Tribunal fixa apenas os valores devidos a esta herdeira, correspondentes a metade do valor total do dano, não levando em conta na presente decisão a restante parte que seria devida ao pai da vítima (…) Em conformidade, afiguram-se equitativas as quantias de 26 000,00 euros como indemnização pelo direito à vida e 1 500 euros pelo dano moral da própria vítima, correspondendo estas quantias a metade da indemnização que é devida à demandante como herdeira”. Assim, como se afirma no acórdão recorrido, “o autor esteve completamente à margem desse processo, nunca tendo sido notificado para aí exercer os direitos que lhe assistiam, ao contrário do que sucedeu com a mãe da vítima.” Não tendo intervindo como parte no referido processo criminal, é manifesto que não existe qualquer identidade subjetiva necessária para a verificação da exceção de caso julgado. É também manifesto que não existe qualquer repetição do julgado, pois os danos, cujo ressarcimento o autor peticiona nesta ação, não foram apreciados no processo criminal conforme resulta expressamente do texto do acórdão final. Não se verifica, assim, qualquer ofensa ao caso julgado. 5. Ofensa do caso julgado formal formado pelo despacho saneador e pelo despacho que indeferiu o requerimento probatório O recorrente alega que nos dois despachos acima referidos (despacho saneador e despacho que indeferiu o requerimento probatório), foi decidido que o “dano vida” não faria parte do objeto do litígio, algo que foi contrariado por despacho subsequente e pelo acórdão recorrido, o que constitui uma ofensa ao caso julgado formal daquelas duas primeiras decisões. Alega para o efeito o recorrente que “no que ao objecto do litígio concerne, existem dois despachos que expurgam o dano vida do objecto do litígio. O primeiro despacho, é o despacho saneador que nos termos do preceituado no art.º 619.º n.º 1, quando transitado em julgado (e no que respeita a essa questão do dano vida transitou, por não ter sido objecto de recurso), adquire força de caso julgado material, com força obrigatória dentro e fora do processo, nos limites fixados pelos art.s 580.º e 581.º. do CPC. O segundo despacho, que afirma que o “dano vida” não é objecto de litígio, é o despacho de indeferimento do requerimento probatório, o qual tem força obrigatória dentro do processo, por constituir caso julgado formal. Pelo que, atento o instituto do caso julgado nas suas duas vertentes, não poderia o tribunal a quo por despacho proferido em audiência de julgamento, contraditar o quanto antes decidido trazendo para o objecto do litígio o dano vida, que já havia excluído por dois despachos, ambos com valor de caso julgado. Pelo que o despacho proferido em audiência padece de erro na aplicação do direito, por violação e não aplicação dos preceitos supra aduzidos.” Em primeiro lugar, como se realça no acórdão recorrido, surge a dificuldade decorrente de determinar o que o recorrente denomina de “dano vida”, parecendo significar que se trata do dano decorrente da perda do direito à vida de DD, filho do autor. Em segundo lugar, parece que o recorrente confunde o objeto do litígio com os temas da prova. Compulsado o teor do despacho saneador proferido nos autos, verificamos que no mesmo foi fixado o objeto do litígio nos seguintes termos: “O OBJECTO DO LITÍGIO A verificação dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos e a eventual fixação de indemnização.” Ora, o dano constitui um dos pressupostos essenciais da responsabilidade civil, inexistindo essa responsabilidade se o facto ilícito não produzir qualquer dano. Assim, o dano decorrente da perda do direito à vida do falecido DD integra o conjunto de danos cujo ressarcimento foi peticionado nesta ação, pelo que o chamado “dano vida” foi abrangido pelo objeto do litígio fixado no despacho saneador. O recorrente terá confundido o objeto do litígio que se refere ao pedido, à causa de pedir da ação e eventual matéria de exceção, com os temas da prova que visam delimitar a matéria de facto que permanece controvertida após o fim dos articulados. Ora, no caso dos autos, após a 1.ª instância decidir as reclamações deduzidas contra o despacho inicial que delimitou os temas da prova, determinou que estes seriam delimitados da seguinte forma: “TEMAS DA PROVA A comprovação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo autor” Assim, o que o recorrente denomina “dano vida” integrou sempre o objeto do litígio, não integrando os temas da prova por se considerar que a matéria factual respeitante a esse dano se encontrava assente e não necessitava de produção de prova para a comprovação da sua realidade. E não necessitando de produção de prova, naturalmente que isso implicaria o indeferimento de requerimentos probatórios que incidissem sobre essa matéria factual. Tal é explicado pela 1.ª instância no despacho proferido durante a sessão da audiência de julgamento realizada em 24-10-2017, que o recorrente vem agora invocar que violou o caso julgado. Nesse despacho é dito o seguinte: “Muito embora a delimitação do objecto do litígio, bem como a fixação dos temas de prova tenha sido objecto de amplo debate na audiência prévia e, nos pareça que tenha ficado suficientemente clarificada tais questões, o Tribunal esclarece que tendo em conta o princípio de cooperação de intervenientes na audiência que, o dano vida faz parte do objecto do litígio, uma vez que foi pedida uma indemnização de 200.000,00 (duzentos mil) euros com esse fundamento, mas tal dano não é factualidade controvertida, uma vez que a morte de DD é um facto indiscutível, razão pela qual tal questão não faz parte dos temas de prova, ou seja, da factualidade controvertida. Com certeza, estando assente tal factualidade, a morte de DD, o Tribunal terá que valorar qual a indemnização é devida por esse dano, razão pela qual, tal questão faz parte do objecto do litígio. Quanto aos danos não patrimoniais da vítima, cumpre esclarecer que os mesmos não fazem parte do objecto do litígio nem dos temas de prova, tendo-se em conta os limites do pedido formulado pelo autor, razão pela qual, os temas de prova se limitaram à discussão aos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo Autor. Notifique.” É, assim, manifesto que não se verifica qualquer contradição entre o referido despacho e o despacho saneador ou qualquer outra decisão, porquanto nunca foi afirmado pelo Tribunal que o referido “dano vida” não integrava o objeto do litígio, mas tão somente que tal matéria não fazia parte dos temas da prova, o que é substancialmente diverso daquilo que o recorrente vem agora alegar no recurso de revista. Tanto mais que o recorrente não contesta que DD faleceu, pelo que não estará em causa a verificação dessa perda do direito à vida. O que o recorrente contesta é a imputação desse resultado morte à sua atuação ilícita e culposa. Mas tal matéria diz respeito à eficácia da decisão transitada em julgado no processo criminal na presente ação cível, nos termos do disposto no artigo 623.º do CPC, algo que apenas poderá ser apreciado pelo Supremo Tribunal, se for admissível a revista excecional. Acresce que, ainda que ocorresse alguma contradição do acórdão recorrido com despachos anteriores que fixaram o objeto do litígio e fixaram os temas da prova, o que pensamos que não sucede, constitui jurisprudência largamente dominante do Supremo Tribunal que tanto o despacho de identificação do objeto do litígio, como o da enunciação dos temas da prova não formam caso julgado formal, podendo ser modificados posteriormente. A título de exemplo, veja-se o sumário do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, 08-01-2019 (Revista n.º 4814/17.4T8GMR.G1.S1), onde se estipula que «O despacho que fixa os temas da prova é meramente instrumental da posterior instrução a efectuar nos autos – dispondo o mesmo da plasticidade necessária para serem considerados pelo julgador os factos complementares essenciais que resultem da instrução da causa, mesmo que não articulados pelas partes, desde que sobre eles estas tenham tido a possibilidade de se pronunciar (art. 5.º, n.º 1, al. b) e art. 602.º, ambos do CPC) –, razão pela qual o mesmo não constitui caso julgado formal, podendo o seu teor ser modificado no decurso da instrução da causa e mesmo em sede de recurso». No mesmo sentido, se orientou o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-04-2017 (Revista n.º 1204/12.9TVLSB.L1.S1), no qual se decidiu que: «V- A identificação e fixação dos temas da prova não conduz a caso julgado formal porque se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem importarem uma decisão substancial que interfira, em termos definitivos, no conflito de interesses entre as partes. VI - O tribunal de 1.ª instância pode, como fez, depois da enunciação dos temas da prova, entender que o processo contém todos os elementos para uma decisão de mérito, sem que isso represente violação de caso julgado formal. VII - Igualmente seria insuscetível de interferir, substancialmente, no conflito de interesses entre as partes, as quais dele não poderiam colher qualquer prejuízo, não constituindo, pois, caso julgado formal, o despacho de convite à pronúncia sobre a questão de direito nele concretamente enunciada e que, quando muito, se integrou na subsequente decisão sobre o mérito da causa». Ainda, reiterando esta tese, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 16-06-2016 (Revista n.º 3296/11.9TBLLE.E1.S1), «Tanto o despacho de identificação do objeto do litígio como o da enunciação dos temas da prova, podendo ser modificados posteriormente, não formam caso julgado formal», e o Acórdão de 17-05-2018 (Revista n.º 3811/13.3TBPRD.P1.S1). 6. É, assim, manifesta a inexistência de qualquer ofensa ao caso julgado ou exceção de caso julgado, não se verificando também qualquer nulidade por excesso de pronúncia por o acórdão recorrido ter confirmado a decisão da 1.ª instância, que condenou os réus a pagar uma indemnização ao autor, que inclui o ressarcimento do dano decorrente da perda do direito da vida do seu filho, sendo tal indemnização limitada à quota-parte de que o autor é titular como herdeiro da vítima. Em conclusão, improcede o recurso no que diz respeito ao objeto da revista normal – ofensa do caso julgado e nulidades do acórdão recorrido conexas com essa alegada ofensa – negando-se, pois, nesta parte, a revista. Após trânsito desta decisão, serão os autos remetidos à Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, para apreciação da revista excecional interposta, a título subsidiário, pelo recorrente. 7. Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC: I - O recurso interposto com fundamento na indevida extensão a terceiros da autoridade de caso julgado não preenche a previsão da terceira alternativa da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC (ofensa de caso julgado). II - As nulidades da sentença, bem como outras irregularidades ou erros de julgamento cometidos pelo tribunal de 1.ª instância, não podem ser objeto de recurso de revista. III – Não se verifica identidade de sujeitos, nos termos do artigo 581.º, n.º 2, do CPC, entre o autor de uma ação cível de responsabilidade civil extracontratual e a parte que, em processo criminal, deduz indemnização cível, uma vez que sendo o primeiro o pai da vítima e a segunda a sua mãe, cada um dos cônjuges pediu indemnização pelo dano da morte do filho ( e outros danos patrimoniais e não patrimoniais) produzidos na esfera pessoal de cada um. IV - O despacho de identificação do objeto do litígio e o despacho que enuncia os temas da prova podem ser modificados posteriormente, não constituindo, por isso, caso julgado formal. III – Decisão Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: 1 – Não admitir o recurso de revista normal em relação à decisão interlocutória que indeferiu a ineficácia dos atos praticados pela defensora oficiosa do Réu CC, nem às nulidades imputadas à sentença de 1.ª instância ou outras decisões do tribunal de 1.º grau. 2 – Negar a revista normal, declarando a improcedência da alegada exceção do caso julgado e indeferindo-se as nulidades imputadas ao acórdão recorrido, bem como negando-se a ofensa do caso julgado formal pelo despacho saneador e pelo despacho que indeferiu o requerimento probatório; 3 – Após trânsito desta decisão, sejam os autos remetidos à Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, para apreciação da revista excecional interposta, a título subsidiário, pelo recorrente, em relação às restantes questões das conclusões de recurso. Custas da revista normal pelo recorrente. Lisboa, 14 de dezembro de 2021 Maria Clara Sottomayor (Relatora) Pedro de Lima Gonçalves (...) Fernando Samões (2.º Adjunto) _________ [1] Com a presença da patrona do autor (Drª VV), dos mandatários do réu BB (Dr. HH e Drª FF) e do patrono do réu CC (Drª GG). Posteriormente, na audiência final, o réu CC fez juntar procuração forense outorgada a favor da mandatária Drª FF pelo que foi proferido despacho julgando cessada a intervenção da patrona nomeada, Drª GG (cfr. fls. 376 a 378 dos autos). |