Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | HENRIQUES GASPAR | ||
Descritores: | ESCUSA JUIZ PRESSUPOSTOS | ||
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Nº do Documento: | SJ200504130011383 | ||
Data do Acordão: | 04/13/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Decisão: | |||
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Sumário : | 1. O pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe, e só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do artigo 40 do Código de Processo Penal - artigo 43, ns. 1, 2 e 4 do mesmo diploma. 2. A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que num interessado - ou, mais rigorosamente, num homem médio colocado na posição do destinatário da decisão possam razoavelmente suscitar-se dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão. 3. As aparências são, neste contexto, inteiramente de considerar, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção. 4. A relação de mandato processual em que o juiz constitui um advogado pressupõe um contexto e gera um ambiente de necessária confiança - profissional, mas também pessoal - que, para além de poder ser vista, objectivamente, como susceptível de criar dúvidas sobre a posição de inteira equidistância do juiz em processo em que intervenha o mesmo advogado, por poder ser entendida, pelo lado externo das aparências dignas de tutela, como potenciadora de um espaço de dúvida quanto à existência de riscos para a apreensão objectiva da imparcialidade. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. "A", juíza desembargadora do Tribunal da Relação do Porto, vem formular pedido de escusa de intervir no recurso n° 2801/04, da 4ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo do disposto no artigo 43°, n° 4, do CPP, invocando os seguintes fundamentos: 1º. Foi-lhe distribuído o recurso n° 28U1/04, da 4.a secção, tendo por objecto o recurso interposto pela arguida B do acórdão da 3ª Vara Criminal do Porto no processo 4716/98.1JAPRT, cujo julgamento foi presidido pelo Exm° Juiz E. 2º. A arguida constituiu sua bastante procuradora a sociedade de advogados "C" e tem sido o sócio da sociedade Exm° Sr.° Dr. D quem tem pessoalmente assegurado a defesa e subscreve o recurso. 3º. A requerente foi a relatora do acórdão, de 25 de Junho de 2003, tirado no recurso n.° 2638/03, da 4.a secção criminal do tribunal da Relação do Porto, que recaiu sobre acórdão da 3.a Vara Criminal do Porto. 4º. Com base nele, o Exm° Juiz da 3.a Vara Criminal do Porto, que presidiu ao julgamento na 1ª instância - Exm.° Juiz E - entendeu participar criminalmente da requerente pêlos crimes de denúncia caluniosa e difamação. Remeteu a participação ao Exm.° Procurador-Geral da República e cópia ao Conselho Superior da Magistratura. 5º. Na sequência, a requerente foi constituída arguida, ouvida nessa qualidade e sujeita a prestação de termo de identidade e residência no inquérito n.° 19/2004 dos Serviços do Ministério Público do Supremo Tribunal de Justiça. 6º. Ainda na sequência foram-lhe instaurados dois processos disciplinares: O primeiro (n° 235/2004), por deliberação do Conselho Permanente, de 23.06.2004, «com base no teor da participação remetida à Procuradoria-Geral da República pelo Exm.° Juiz de Direito Dr. E», entretanto arquivado, por deliberação do Conselho Plenário, 16.11.2004, por falta de competência do Conselho Permanente, no deferimento parcial de reclamação apresentada pela requerente. O segundo (n.° 7/2005), por deliberação do Conselho Plenário, de 14.12.2004. De novo, o CMS, mas, agora, em Plenário, terá sido motivado pela participação enviada à Procuradoria-Geral da República pelo Exm.° Juiz de Direito E. 7º. Quer no inquérito quer nos processos disciplinares a requerente constituiu procuradora a sociedade de advogados "C" e, por causa dos poderes conferidos, tem mantido estreitos contactos pessoais com o sócio da sociedade Exm.° Sr. Dr. D, que subscreveu, aliás, a reclamação dirigida ao Conselho Plenário, antes referida. 8º. O inquérito n.° 19/2004 e o processo disciplinar n.° 7/2005 encontram-se pendentes (do contrário ainda não foi notificada) e por isso, neste momento, ainda não é previsível a extensão da actividade que a sua defesa venha a reclamar da sua curadora. 9º Pela especial delicadeza dos processos referidos, que têm tido ampla divulgação no meio judiciário, afigura-se-lhe que o facto de neles ter constituído procuradora a sociedade que é a procuradora da recorrente, neste processo, pode ser tido - ou invocado - como motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Pede, pois, a escusa de intervir no processo referido, «para prevenir o perigo de a sua intervenção ser encarada com desconfiança e suspeita». 2. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir. 3. O artigo 43º do Código de Processo Penal, ao dispor sobre recusa e escusa do juiz, estabelece um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida a imparcialidade do juiz. Tem, como os impedimentos, uma função de garantia da imparcialidade, aliás assim expressamente referida na epígrafe do Capítulo VI do Título II, artigos 122º a 136º do Código de Processo Civil. Concretizando esta finalidade, o artigo 43º do diploma de processo penal prevê modos processuais que o legislador considerou com aptidão para realizar a garantia de imparcialidade do tribunal, que constitui um direito fundamental dos destinatários das decisões judiciais; a imparcialidade do tribunal constitui um dos elementos integrantes e de densificação da garantia do processo equitativo, com a dignidade de direito fundamental, ou, na linguagem dos instrumentos internacionais, com um dos direitos humanos - artigo 6º, par. 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. A imparcialidade do juiz (e, por isso, do tribunal), constitui, pois, uma garantia essencial para quem submeta a um tribunal a decisão da sua causa. 4. A imparcialidade do juiz e do tribunal, no entanto, não se apresenta sob uma noção unitária. As diferentes perspectivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito ao tribunal imparcial, reflectem dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva. Na perspectiva ou aproximação subjectiva ao conceito, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão. A perspectiva subjectiva, por princípio, impõe que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjectiva presume-se até prova em contrário. Neste aspecto, a função dos impedimentos constitui um modo cautelar de garantia da imparcialidade subjectiva. Mas a dimensão subjectiva não basta à afirmação da garantia. Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objectiva, que é consequencial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, por tradição, muito chegado à cultura jurídica continental: a aparência, que é traduzida no adágio "justice must not only be done; it must also be seen to be done", que revela as exigências impostas por uma sensibilidade acrescida dos cidadãos às garantias de uma boa justiça. Na abordagem objectiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si. Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz. A imparcialidade objectiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o "ser" e o "parecer". Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objectiva, que poderia ser devastadora, e para não cair na "tirania das aparências" (cfr., Paul Martens, "La tyrannie des apparences", "Revue Trimestrielle des Droits de L´Homme", 1996, pag. 640), ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é, a respeito da densificação do conceito de imparcialidade, de assinalável extensão (cfr., v. g., entre muitas outras referências possíveis, Renée Koering-Joulin, "La notion européenne de «tribunal indépendant et impartial» au sens de l’article 6º, par. 1 de la Convention européenne de sauvegarde des droits de l’homme", in Revue de science criminelle et de droit pénal comparé, nº 4, Outubro-Dezembro 1990, págs. 766 e segs.). 5. As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção. O pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe, e só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do artigo 40º do Código de Processo Penal - artigo 43º, nºs 1, 2 e 4 do mesmo diploma. É nesta perspectiva de enquadramento que deve ser apreciado o caso sub specie. O motivo de escusa vem suscitado pela Senhora Juíza desembargadora inteiramente no plano da imparcialidade objectiva: «para prevenir o perigo de a sua intervenção ser encarada com desconfiança e suspeita». Para além dos motivos taxativamente enunciados na lei - e que constituem os impedimentos (artigo 39º do Código de Processo Penal), com a absoluta interdição de intervir, por revelarem situações em que a confluência de interesses ou circunstâncias pessoais são de tal modo que não permitem garantir a imparcialidade quer do ponto de vista subjectivo quer objectivo - a multiplicidade das situações submetidas a apreciação, em conjugação com a vivência dos magistrados podem fazer revelar casos em que a projecção externa da imparcialidade suscite reparos no público em geral e, particularmente, nos destinatários das decisões. Dominam aqui as aparências, que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça que seja mas também pareça ser. Os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que do juiz e do "ser" relevam do "parecer", têm de se apresentar, nos termos da lei, «sério» e «graves». As noções, com a carga de relevância que lhes está inerente, no limite mesmo da meta-linguagem, supõem, pois, que não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco da existência de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente («encarado com desconfiança», na expressão do pedido) e ser adequado a afectar (gerar desconfiança) sobre a imparcialidade. O motivo «sério» e «grave», por regra, deve surgir e revelar-se numa determinada situação concreta e individualizada, pois é aí que se manifestam os elementos, processuais ou pessoais, que podem fazer nascer dúvidas sobre a imparcialidade e que têm, por isso, de ser apreciados nessas (nas suas próprias) circunstâncias. A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vistas pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão. 6. Perante a perspectiva de enquadramento do problema, e os módulos que a lei e o conteúdo das noções oferecem à decisão, pode dizer-se que o caso sub specie é, verdadeiramente, um caso limite. Por um lado, a qualidade de advogado em determinado processo, em actuação objectiva preordenada também à realização da justiça, afasta a situação do plano das configurações de natureza pessoal e das apreensões que um determinado inter-relacionamento pessoal entre sujeitos processuais possa fazer suscitar. E também, como a situação se não pode resumir (hipoteticamente) a um caso isolado, mas, pelas contingências, pode tocar com todos os processos em que o advogado e a Senhora Desembargadora tenham intervenção simultânea, a situação tende, no rigor das coisas, a aproximar-se da demarcação de um impedimento para além daqueles que a lei taxativamente refere. E se a lei apenas refere os impedimentos do artigo 39º do Código de Processo Penal, terá sido certamente porque não entende que outras situações lhes devam, em geral, ser equiparadas. No entanto, e em outra perspectiva, dir-se-á que a relação de mandato processual em que a Senhora Desembargadora constituiu o Senhor advogado pressupõe um contexto e gera um ambiente de necessária confiança - profissional, mas também pessoal - e que, para além de poder ser vista, objectivamente, como susceptível de criar dúvidas sobre a posição de inteira equidistância do juiz, por exemplo, por referência à natureza e qualidade técnica da intervenção do advogado, pode ser entendida, pelo lado externo das aparências dignas de tutela, como potenciadora de um espaço de dúvida quanto à existência de riscos para a apreensão objectiva da imparcialidade (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de 12/10/2000, proc. 2178/00). E a garantia da boa justiça, que seja mas também pareça ser, deve ser o critério fundamental de decisão. 7. Nestes termos, concede-se a escusa pedida pela Senhora Juíza Desembargadora A. Lisboa, 13 de Abril de 2005 Henriques Gaspar, Antunes Grancho, Políbio Flor. |