Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO (CÍVEL) | ||
Relator: | ILÍDIO SACARRÃO MARTINS | ||
Descritores: | DIREITO CANÓNICO IGREJA CATÓLICA ASSOCIAÇÃO PÚBLICA PERSONALIDADE JURÍDICA BENS PRÓPRIOS APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO INICIATIVA PRIVADA FIM ESTATUTÁRIO | ||
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Data do Acordão: | 10/08/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - O actual Código de Direito Canónico de 1983 , promulgado pelo Papa João Paulo II, faz uma distinção, que não constava do anterior Código de Direito Canónico (de 1917), das associações de fiéis ligadas à Igreja Católica, entre as associações públicas e privadas. II - As primeiras adquirem a personalidade jurídica, quer pelo próprio direito, quer por decreto da autoridade competente, e as segundas adquirem essa personalidade apenas por decreto especial da autoridade competente que expressamente a conceda, correspondendo essa distinção aos dois modos de actuação de tais associações: as primeiras fazem-no em nome da igreja e comprometendo-a como instituição social, e as segundas actuam em nome próprio, ainda que visando uma e outra o bem da Igreja. III - Esta distinção tem relevância na autonomia de umas e outras. Enquanto as associações públicas estão sob a efectiva direcção da autoridade eclesiástica e se consideram os respectivos bens como bens eclesiásticos, as associações privadas apenas estão sujeitas a vigilância da autoridade eclesiástica, pertencendo-lhes a livre administração dos bens próprios. IV - A associação Pia União foi erigida canonicamente, e hoje as associações privadas não carecem de erecção canónica. V - No ano de 1959 o Código não fazia distinção entre associações de fiéis públicas e privadas e aquela era a única forma de conferir personalidade moral ou jurídica, a uma associação de fiéis. VI - Se a situação tivesse ocorrido na vigência do Código de 1983, estariam reunidos os pressupostos do reconhecimento de uma associação privada, por a sua origem se achar numa iniciativa espontânea de fiéis. VII - A intervenção da autoridade eclesiástica – que se consubstanciou no decreto episcopal de 15 de julho de 2008 – afigura-se ilegítima dado que ignora aquela natureza privada da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus” – cujos textos, e entrando em contradição nos seus próprios termos, acabam por admitir que é privada – e apresenta-se como própria de uma intervenção sobre uma pessoa jurídica canónica pública, claramente exorbitantes dos limitados e excecionais poderes patrimoniais que o Código de Direito Canónico lhe confere, circunstâncias que aqui não se verificam. VIII - O CDC de 1983 quis abstrair-se do facto que deu origem às associações de fiéis (artigo 12º nº 2 do Código Civil), passando a qualificá-las como públicas ou privadas, em função da iniciativa da sua constituição e dos fins prosseguidos, não ressalvando nada do que constava do CDC de 1917. IX - A Pia União foi constituída por convénio privado, a partir de uma iniciativa das Senhoras que se juntaram para esse fim, pelo que nenhuma dúvida se pode colocar quanto ao facto da Pia União ter resultado de uma iniciativa privada (cfr. artº 1º dos Estatutos da Pia União – fls. 11 a 15 e facto provado nº 2). X - Por outro lado, os fins prosseguidos – a santificação individual, a evangelização dos pobres e a prática das obras de misericórdia (artº 2º dos Estatutos da Pia União) – inscrevem-se nos fins gerais previstos no Cân. 298 para todas as associações de fiéis, não se incluindo nos fins reservados às associações públicas, nos termos do Cân. 301, §1. XI - Como associação privada de fiéis, a Pia União administra livremente os bens que possui, nos termos do Cân. 325, §1 – e bem assim do Cân. 323, §1 –, sem prejuízo do direito da autoridade eclesiástica vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação. XII - Neste contexto, as associações privadas de fiéis designam livremente os seus responsáveis, de acordo com os respectivos estatutos, nos termos do Cân. 324, §1, sem prejuízo da assistência espiritual exercida por sacerdotes por si escolhidos, desde que exerçam legitimamente o seu ministério, nos termos do seu § 2. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – RELATÓRIO Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, AA intentaram acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra: 1ª - Diocese de Leiria Fátima, 2º - BB, 3º - CC e 4º - DD, pedindo: A - Que seja declarado nulo e de nenhum efeito o “decreto” do Bispo de … - … , de 15 de Julho de 2008 que designou os 3º e 4º RR, comissário e comissário adjunto para administrarem bens da 1ª A, e bem assim todos os actos praticados ao abrigo do referido decreto, nomeadamente termos de desistência ou confissão, procurações, revogações de procurações, escrituras ou quaisquer outros dele resultantes; B - Que os RR. sejam solidariamente condenados: (i) - Os dois 1ºs pela totalidade dos danos causados, e (ii) - Os 3º e 4º na medida da respectiva intervenção directa, a pagar às AA uma indemnização pelos danos patrimoniais causados à 1ª, resultantes dos efeitos judiciais ou notariais dos actos praticados ao abrigo do acto a que se refere a al. A) relativos à propriedade de prédios urbanos, despesas judiciais, honorários e quaisquer outras despesas em que as AA. tenham que incorrer para acautelaram os seus direitos; C) – Serem os réus condenados, solidariamente, a pagar à 2ª R, a título de reparação pelos danos morais sofridos em consequência dos actos impugnados, a quantia de € 2.500,00 que destinará à sua obra assistencial”. Em síntese, alegaram que a 1ª A. é uma associação privada de fiéis erigida canonicamente nos termos dos cânones 321, 325 parágrafo 1º e 1257 parágrafo 2º do Código de Direito Canónico (CDC), sendo sua representante a 2ª A., eleita por todas as associadas com direito de voto, administrando livremente os seus bens, os quais não são bens públicos ou eclesiásticos, mas bens privados. O 2º R. sabe, enquanto autoridade eclesiástica que é, que não pode em nenhum caso substituir-se à vontade da Associação livremente expressa em eleições entre pares, na designação da superiora, muito menos podendo adoptar medidas de tutela substitutiva relativamente à administração e disposição dos seus bens que não são bens eclesiásticos. Apesar disso o 2º R., enquanto Bispo da Diocese 1ª R., emitiu um “decreto” datado de 15 de Julho de 2008, designando o 3º R. ecónomo diocesano, como comissário, e o 4º R. como comissário adjunto, invocando norma habilitante o cânone 318, aplicável exclusivamente a associações públicas e bens eclesiásticos. Tal acto é nulo porque fundamentado em norma que não lhe é aplicável, já que a 1ª A. é uma associação privada e só tem as limitações à sua autonomia que constam do Código de Direito Canónico, nos termos do artigo 11º da Concordata. Com base naquele acto foram praticados diversos actos jurídicos, nomeadamente para constituição de mandatários, revogação de procurações, desistências, e confissões em acções em que a A. é A. ou R. Com tais actos visou-se prejudicar patrimonialmente a 1ª A. causando-lhe a perda de propriedade de três prédios urbanos. Mesmo que a A. venha a conseguir impugnar os actos ilícitos praticados pelos RR tal obriga a despesas avultadas com taxas de justiça, honorários, despesas com deslocações e pedidos de certidão e outros prejuízos decorrentes da actuação ilícita dos RR. cujo valor e liquidação só poderão ser apurados em liquidação de sentença. A 2ª A. é pessoa idosa, tendo sofrido profundamente com a constatação de que a Igreja tem no seu seio também quem se mova por meros interesse materiais e que não olha a meios ou instrumentos para acrescentar o respectivo património. Os RR contestaram por excepção, invocando a incompetência material dos Tribunais Estaduais para dirimir o litígio; a falta de representação e ilegitimidade da 1ª A.; a natureza da A. de associação pública de fiéis por ter sido erecta canonicamente pelo Bispo de … em 02/03/1959. Além disso, defenderam-se por impugnação. Terminam com a procedência das excepções dilatórias e a consequente absolvição dos RR da instância. Assim não podendo ser, com a improcedência da acção e a absolvição da Ré do pedido. Houve réplica na qual, entre o mais, foi requerida a intervenção espontânea de terceiros, intervenção da qual as autoras vieram a desistir posteriormente. As autoras defendem a natureza jurídica da Pia União, como sendo uma associação privada de fiéis de acordo com as normas dos Cân. 299 §§ 1 e 2 do CDC. No despacho saneador de 06.08.2009, (Vol. I fls 245 a 247) foi julgada procedente a incompetência material dos tribunais judiciais para apreciarem o litígio e absolvidos os RR. da instância. Em 01 de Setembro de 2009, as AA procederam à ampliação do pedido em virtude de em 13 de Julho de 2009 o Sr. Bispo de … ter emitido novo “decreto” a prorrogar por mais um ano o mandato conferido aos comissários, igualmente prorrogando o mandato da superiora, esta apenas quanto a aspectos religiosos, impetrando que também esse novo “decreto” seja declarado nulo ou anulado. Por acórdão da Relação de 31 de Maio de 2011 foi o despacho saneador revogado e, em função disso, declarada a competência dos Tribunais Estaduais Judiciais para a apreciação do litígio. Por sentença de 28.11.2017, foi a acção julgada improcedente por não provada e os RR. absolvidos de todos os pedidos contra si formulados. As autoras recorreram e a Relação, por acórdão de 12.10.2018, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida. Não se conformando com tal acórdão, recorreram as autoras, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES: A) O acórdão recorrido funda-se – no essencial da sua argumentação – em posições jurídicas novas em que se não fundara a confirmada sentença de 1.ª instância, a saber: i) A impossibilidade da Relação conhecer da invalidade dos efeitos civis patrimoniais dos decretos bispais em apreço, maxime quanto à representação da PIA UNIÃO, porque, à luz da separação jurisdicional consagrada na Concordata, isso implicaria uma inadmissível pronúncia sobre uma relação de direito canónico, estabelecida entre a PIA UNIÃO e o BISPO da DIOCESE de --- - ---; ii) A natureza jurídica da PIA UNIÃO – como associação pública de fiéis – resultaria de ter nascido na vigência do C.D.C. de 1917, à luz do qual tal natureza deve ser avaliada, mesmo na vigência do C.D.C. de 1983. B. Todavia, o Tribunal não deu a oportunidade aos ora recorrentes de se pronunciarem sobre tais teses, o que viola o princípio do contraditório, tal como estabelecido no art. 3.º, n.º 3, do C.P.C., tendo impedido os ora Recorrentes de as discutir, circunstância que gera a nulidade do acórdão recorrido, o que se deixa arguido. C. Porém, o mais grave é que a argumentação central que levou ao juízo de improcedência da apelação funda-se numa tese – a de que os tribunais judicias/estaduais não poderiam apreciar a validade dos decretos bispais para o efeito de julgar a invalidade dos efeitos civis/patrimoniais deles decorrentes – que consubstancia uma ostensiva violação do caso julgado, tal como o mesmo se encontra consubstanciado no acórdão da mesma Relação, proferido nestes autos a fls. 503 e ss., transitado em julgado, constituindo caso julgado formal, nos termos do art. 620.º do C.P.C., e tendo por isso força obrigatória neste processo. D. O acórdão recorrido reconhece que o objectivo da acção é o de declarar a irregularidade/validade da representação da PIA UNIÃO pelos decretos bispais, mas sustenta não o poder fazer, por lhe estar vedado, à luz da Concordata, pronunciar-se sobre a relação de direito canónico estabelecida entre a PIA UNIÃO e o BISPO da DIOCESE de … - ….. Entende, porém, que não está a pôr em crise o acórdão da Relação de Coimbra de fls. 503, uma vez que sustenta que poderia apreciar os efeitos civis em pauta se não tivesse que interferir no pressuposto da validade da relação jurídica canónica consubstanciada na emissão dos decretos bispais, o que o caso dos autos não poderia fazer. E. Ressalvado o devido respeito, o acórdão recorrido joga com as palavras para, através desse jogo, tentar contornar o efeito do caso julgado. É que o acórdão da Relação de fls. 503 e ss. já decidiu – através de decisão transitada em julgado – que os tribunais judiciais/estaduais podem apreciar os efeitos civis/materiais/patrimoniais dos decretos bispais em apreço, maxime no que diz respeito à representação da PIA UNIÃO em acções judiciais e outros actos civis (procurações, revogações de procurações, escrituras ou outros) que interferem na sua vida civil/material/patrimonial, como acontece no caso dos autos. F. Deste modo, não procede a argumentação do acórdão recorrido no sentido da improcedência da acção por não poder declarar a invalidade dos decretos bispais – mesmo quanto à dimensão dos efeitos civis em discussão nesta acção –, violando tal decisão o caso julgado formal consubstanciado nestes autos. G. Mesmo que não houvesse violação do caso julgado – o que só por cautela se pondera –, a verdade é que o entendimento normativo adoptado pelo acórdão recorrido, fundado numa alegada separação de poderes entre o Estado e a Igreja, acaba por ofender os princípios do Estado de Direito ínsitos à Constituição da República, à luz dos quais é impensável que os efeitos civis/materiais/patrimoniais de actos emanados pelas autoridades eclesiásticas não estejam sujeitos a um controlo de legalidade por parte dos tribunais judiciais/estaduais; acresce que a Concordata – maxime nos seus arts. 2.º e 11.º – não impõe a solução adoptada pelo acórdão recorrido e a lei do processo – maxime arts. 62.º, b), 63.º, a) e 91.º, n.º 1, todos do C.P.C. – estabelece as regras que permitem aos tribunais comuns o julgamento do caso dos autos, razão pela qual o acórdão recorrido faz, neste item, uma aplicação errónea de tais preceitos legais. H. Ademais, o entendimento normativo do art. 11.º da Concordata – por si só ou conjugado com o art. 2.º da mesma Concordata ou com quaisquer outras regras legais, designadamente os arts. 62.º, b) e 63.º, a), devidamente conjugados com o art. 91.º, n.º 1, todos do C.P.C. –, no sentido de que está vedado aos tribunais estaduais portugueses pronunciarem-se sobre a validade de decretos emitidos por autoridades eclesiásticas que estabeleçam poderes de representação a favor de comissários por si nomeados em associações de fiéis canonicamente constituídas – maxime quando são da iniciativa dos fiéis e não prosseguem fins exclusivos das autoridades eclesiásticas –, mesmo que apenas para a validação dos efeitos civis/patrimoniais desses decretos, é inconstitucional, por violação do princípio da separação de poderes entre o Estado e a Igreja, ínsito ao Estado de Direito Democrático, consagrado nos arts. 2.º e 41.º, n.º 4, ambos da C.R.P., do direito a um processo equitativo, previsto no art. 20.º da C.R.P. e ainda da liberdade de associação, consignada no art. 46.º da C.R.P. A NATUREZA JURÍDICA DA PIA UNIÃO; DA INVALIDADE, QUANTO AOS EFEITOS CIVIS, DOS DECRETOS BISPAIS EM APREÇO I. O acórdão recorrido sustenta o entendimento de que a natureza jurídica da PIA UNIÃO deve ser vista à luz do quadro vigente aquando da sua constituição, pelo que, tendo nascido na vigência do C.D.C. de 1917 – onde não se reconheciam associações privadas de fiéis –, se teria de concluir pela imutabilidade da sua natureza pública, mesmo após a entrada em vigor do C.D.C. de 1983. J. Mas tal entendimento é manifestamente insubsistente. É o que resulta do art. 12.º, n.º 2, do C.C., que rege a aplicação das leis no tempo, onde se estabelece que, dispondo a lei directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas. Ora, o C.D.C. de 1983 quis precisamente abstrair-se do facto que deu origem às associações de fiéis, passando a qualifica-las como públicas ou privadas, em função da iniciativa da sua constituição e dos fins prosseguidos, não ressalvando nada do que constava do C.D.C. de 1917. K. É, aliás, aquilo que se retira dos princípios enunciados no prefácio do Código, onde se explica o objectivo de dar à luz um C.D.C. iluminado pelos valores do Concílio Vaticano II, o que justifica que o novo C.D.C. tenha procedido a uma revogação total do Código de 1917, mandando apenas que se tenha em conta a tradição canónica quando os Cânones do novo código reproduzam os do direito antigo. Que esta foi a vontade do legislador canónico é também o entendimento da consagrada anotação da edição do Código de Direito Canónico da Universidade de Navarra, anotada por PEDRO LOMBARDIA e JUAN IGNACIO ARRIETA, traduzida e publicada em português em 1997 (Braga), propriedade da Conferência Episcopal Portuguesa, tendo tido revisão científica, entre outros, do BISPO DOM SERAFIM – precisamente aquele que outorgou a credencial de fls. 23 e do facto provado n.º 19 –, onde, na anotação ao Cân. 6, §1, se escreve o seguinte: “Ao contrário daquilo que estabelece o c. 6 do CIC 17, o CIC não afirma a sua vontade de conservar em princípio a disciplina anterior, uma vez que tem como um dos seus objectivos fundamentais, modificar a legislação para que corresponda às linhas estabelecidas pelo Concílio Vaticano II. Por outro lado, o CIC pretende substituir por completo o CIC 17 e a sua legislação complementar: daí, as fórmulas derrogatórias do §1.”. L. Deste modo, o acórdão recorrido, ao considerar que a natureza da PIA UNIÃO se deve ver à luz do C.D.C. de 1917, interpretou erroneamente o Cânone 6 do C.D.C. de 1983, por si só ou conjugado com o art. 12.º, n.º 2, do C.C.. M. Vejamos então qual é a natureza jurídica da PIA UNIÃO à luz do C.D.C. de 1983, o que deve ser visto à luz dos seus Câns. 298 a 300 e 323 a 325, decorrendo a avaliação da sua natureza privada assentar em dois critérios fundamentais: i) Por um lado, a iniciativa da sua constituição; ii) Por outro lado, os fins prosseguidos, uma vez que, de acordo com o Cân. 301, § 1, só às associações públicas cabe ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou prosseguir outros fins cuja função esteja reservada à autoridade eclesiástica. N. Ora, in casu, a PIA UNIÃO foi constituída por convénio privado, a partir de uma iniciativa das Senhoras que se juntaram para esse fim, pelo que nenhuma dúvida se pode colocar quanto ao facto da PIA UNIÃO ter resultado de uma iniciativa privada (cfr. art. 1.º dos Estatutos da PIA UNIÃO – cfr. fls. 11 e ss. e facto provado n.º 2). Por outro lado, os fins prosseguidos – a santificação individual e a evangelização dos pobres pelo exemplo e a prática das obras de misericórdia (cfr. art. 2.º dos Estatutos da PIA UNIÃO) – inscrevem-se nos fins gerais previstos no Cân. 298 para todas as associações de fiéis, não se incluindo nos fins reservados às associações públicas, nos termos do Cân. 301, §1. Ademais, o art.55.º das Normas Gerais das Associações de Fiéis refere expressamente que a evangelização e a realização de obras de piedade e de caridade podem constituir fins das associações privadas, só lhes estando vedados a promoção do culto público e a transmissão da doutrina cristã em nome da Igreja, o que as Irmãs nunca fizeram, nem se provou que tivessem feito. O. Assim sendo, quer pela iniciativa da sua constituição, quer pelos fins prosseguidos, é incontornável que a PIA UNIÃO é uma associação privada de fiéis. A intervenção da autoridade eclesiástica no sentido da nomeação de comissários que passem a dirigir a associação está prevista no Cân. 318, § 1, quando razões graves o exigirem, mas essa prerrogativa só existe para as associações públicas de fiéis, não podendo ocorrer no âmbito das associações privadas de fiéis, relativamente às quais não está previsto esse tipo de intervenção. P. É quanto basta para considerar inválida a nomeação dos comissários designados pelo DECRETO BISPAL de 15 de Julho de 2008, escolhidos para administrarem os bens da PIA UNIÃO e praticar os demais actos aí previstos, razão pela qual é nulo e inválido tal decreto, quando nomeia tais comissários com os poderes ali estabelecidos, invalidade essa que deve ser declarada para os efeitos civis que ora estão em causa. Pelo exposto, o acórdão recorrido desconsiderou erroneamente as regras aplicáveis às associações privadas de fiéis, particularmente os Câns. 321, 323, 324 e 325 do Código de Direito Canónico, sufragando uma intervenção da autoridade bispal feita ao abrigo do Cân. 318, que lhes era inaplicável. Q. Finalmente, cumpre ainda arguir a inconstitucionalidade do entendimento normativo dado ao Cân. 318, §1, devidamente conjugado com os arts. 2.º e 11.º da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, no sentido de que, em relação a associações de fiéis, constituídas a partir da iniciativa dos associados, e que não prossigam fins exclusivos das autoridades eclesiásticas, tais autoridades possam designar comissários com funções de administração do património dessas associações, por violação da liberdade de associação, consagrada no art. 46.º da C.R.P., , uma vez que tal intromissão – atenta a natureza dessas associações – se revela desproporcionada e atentatória do direito dos cidadãos promoverem livremente a vida das associações que integram. R. O acórdão recorrido baseou-se na argumentação já supra analisada e refutada, mas, ainda que de uma forma vaga e imprecisa, o acórdão recorrido pronunciou-se no sentido da procedência “da realidade (?) dos restantes argumentos avançados pela sentença [da 1.ª instância], designadamente quanto a condutas posteriormente adoptadas pela gestão privativa da A. PIA UNIÃO”, pelo que importa igualmente refutar a argumentação da sentença do Tribunal de …, quando, avaliando a situação à luz do C.D.C. de 1983 (o que está certo), concluiu no sentido da natureza pública da PIA UNIÃO. S. A tese do Tribunal de … assenta numa distorcida aplicação das regras canónicas aos factos provados, como decorre do seguinte: i) A circunstância da PIA UNIÃO ter resultado de uma iniciativa de Senhoras que a constituíram – o que manifestamente decorre do art. 1.º dos seus Estatutos, bem como de decreto de erecção – é absolutamente decisivo para afirmar a natureza privada da associação de fiéis, nos termos consagrados pelo Código Canónico de 1982, o qual se aplica às relações pré-instituídas, razão pela qual não é irrelevante a forma como elas se constituíram sob a égide C.D.C. de 1917; importa apurar se, quando constituídas, decorreram de uma iniciativa privada ou se, pelo contrário, resultaram de uma iniciativa da autoridade eclesiástica; por seu turno, a circunstância de terem sido recomendadas por autoridade eclesiástica, ou de terem de ver os seus Estatutos aprovados por uma autoridade eclesiástica, não interfere na sua natureza jurídica, como taxativamente resulta do Cân. 299, §2, e 322, §2. ii) É verdade que a PIA UNIÃO solicitava à DIOCESE de ... - … credenciais para atestar a qualidade de quem a representa – designadamente a que consta de fls. 23, facto provado n.º 9 –, o que obviamente não tem qualquer interferência na sua natureza jurídica; a autoridade eclesiástica funciona como entidade registral, a quem a Concordata e a legislação em vigor confere os poderes necessários a certificar a existência e conformidade à lei das associações que estão sob a sua égide. iii) É igualmente verdade que são fins da PIA UNIÃO a santificação individual e a evangelização dos pobres como exemplo e prática de obras de misericórdia, o que é consentâneo com os fins previstos no Cân. 298, de raiz religiosa, uma vez que se trata de pessoas morais de direito canónico. Idem, relativamente ao art. 55.º das Normas Gerais das Associações de Fiéis; porém, o que releva é que esses fins não se inscrevem no âmbito da previsão do Cân. 301, §1, o qual define os fins que são privativos e exclusivos das associações públicas, a saber: o ensino da doutrina cristã em nome da Igreja, a promoção do culto público ou a prossecução de outros fins reservados à autoridade eclesiástica; ora, a PIA UNIÃO não tinha como fim ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja, limitando-se, nas suas casas, a assegurar às crianças que a elas recorriam o ensino pré-primário, primário e preparatório (cfr. facto provado n.º 32), o que corresponde ao ensino oficial; por outro lado, também não tinha por fim promover o culto público, o que é exclusivo de outras pessoas de direito canónico (associações públicas e outras). Não há qualquer facto provado que permita sustentar o contrário. iv) Havia um relacionamento de proximidade da PIA UNIÃO com a autoridade eclesiástica e outras pessoas religiosas, como é natural entre pessoas morais de direito canónico; é nesse âmbito que se compreende que, nas eleições para a Superiora, estivesse presente um religioso, em representação do BISCO da DIOCESE de … - …., o qual confirmava as eleições – verificando a sua regularidade – e aceitava o juramento de fidelidade da Superiora às normas da Santa Igreja. E bem assim que as associações pudessem recorrer a um assistente espiritual (sacerdote), nos termos previstos no Cân. 324, §2; é um relacionamento que o Código de Direito Canónico prevê para a vida das associações privadas de fiéis como resulta do Cân. 322, §2, 323 e 324, §2, 325 e 326, §1, donde decorrem poderes de vigilância que bem se compreendem, uma vez que estamos perante pessoas de direito canónico; mas isso não interfere nos critérios que servem para qualificar a associação como privada, os quais se circunscrevem à iniciativa da constituição, às finalidades prosseguidas e ao seu sistema de governo, sendo incontornável que, no caso da PIA UNIÃO, se mostram preenchidos os requisitos que devem levar à inapelável conclusão de que se trata de uma associação privada de fiéis – cfr. factos provados n.ºs 27, 28 e 29; v) As casas da PIA UNIÃO tinham capelas onde eram rezadas missas, a que assistiam as Irmãs e, por vezes, familiares e vizinhos, sendo certo que nalguns dos oratórios havia exposição do Santíssimo Sacramento. E daí? Oratórios e capelas podem ter uma natureza privada, como aqui acontecia e está expressamente previsto nos Câns. 1123 a 1125 e 1226 a 1229, respectivamente; de resto, in casu, o documento relativo à visita canónica à PIA UNIÃO, que teve lugar em 31/10/2000, a fls. 589, remete expressamente para o Cân. 1224, §1, que se reporta aos oratórios privados. vi) Quanto à circunstância de as associações privadas de fiéis também estarem sujeitas a vigilância da autoridade eclesiástica, não se discute que assim seja. O que acontece é que tal vigilância é para ser exercida no quadro das regras aplicáveis às associações privadas de fiéis e não através da imposição de comissários, ao abrigo do Cân. 318, como aconteceu in casu, uma vez que tal regime só é admissível nas associações públicas de fiéis. POR ANTECIPAÇÃO, A QUESTÃO DA AUTORIDADE DO CASO JULGADO T. Não foi até ao momento colocada qualquer questão relativa à autoridade de um caso julgado. E compreende-se que assim seja, porque, nas várias acções em que os diferentes temas deste recurso têm sido incidentalmente abordados, não há identidade de causa de pedir, do pedido e de partes processuais. Porém, a questão poderia suscitar-se em relação aos acórdãos do S.T.J. de 10/12/2003 e 01/01/2016, ambos citados no texto, os quais incidentalmente se referem à natureza pública da PIA UNIÃO; acontece, todavia, que foram acórdãos que decidiram questões relativas a um pressuposto processual relativo à competência do tribunal – problema que nestes autos já foi resolvido pelo acórdão da Relação de Coimbra de 31/05/2011, transitado em julgado –, não incidindo sobre a relação material controvertida, ou seja, sobre o mérito da causa, pelo que – ademais, não havendo identidade de causa de pedir, pedido e partes processuais e num contexto fáctico significativamente diferente – não é admissível que se convoque a solução desses acórdãos a título de autoridade de caso julgado, como decorre do regime dos arts. 619.º, 620.º e 621.º, todos do C.P.C. De qualquer forma, mesmo que se julgasse possível convocar a autoridade do caso julgado decorrente desses acórdãos do STJ, então, nessa hipótese, e de acordo com o regime do art. 625.º, n.º 1 do CPC, deveria ter-se em conta a supremacia da autoridade de um caso julgado anterior, consubstanciado no também já citado Acórdão do S.T.J. de 22/02/2011, proc. n.º 332/09.2…., que julgou no sentido de que a PIA UNIÃO é uma associação privada de fiéis. U. O entendimento normativo de que o fundamento utilizado em determinada decisão judicial proferida sobre um pressuposto processual se pode impor com autoridade de caso julgado, num outro processo, sem identidade de causa de pedir, pedido e partes processuais, constitui a consagração de um regime de precedente ou de assento, o que é inconstitucional, por desrespeito ao princípio da separação de poderes, ínsito ao Estado de Direito, tal como consagrado no art. 2.º da C.R.P.. DA REVISTA EXCEPCIONAL E DO JULGAMENTO AMPLIADO DA REVISTA V. O presente recurso deve ser admitido como revista normal, porquanto: a) Quanto à questão dos tribunais judiciais/estaduais não se poderem pronunciar sobre os efeitos civis dos decretos bispais em apreço, ocorre violação do caso julgado, pelo que o recurso é admissível nos termos do art. 629.º, n.º 2, a), do C.P.C.; b) Quanto à questão da natureza jurídica da PIA UNIÃO, existe manifesta contradição do acórdão recorrido com aqueles outros supra citados, quer das Relações, quer do Supremo Tribunal – maxime o acórdão do S.T.J., de 22/02/2011, Proc. n.º 332/09.2…, o qual se convoca para o efeito da demonstração da contradição –, pelo que o recurso é admissível nos termos do art. 629.º, n.º 2, d), do C.P.C. W. Caso assim se não entenda, o recurso deverá ser admitido como revista excepcional, porquanto: a) As questões controversas – a saber: i) quanto à possibilidade dos tribunais civis se pronunciarem sobre os efeitos civis dos decretos emanados de autoridades eclesiásticas; ii) quanto à aplicação ao caso dos autos do C.D.C. de 1917 ou do C.D.C de 1983; iii) quanto à natureza da PIA UNIÃO à luz do C.D.C. de 1983) – carecem manifestamente, pela sua relevância jurídica, de uma nova avaliação em ordem a uma melhor aplicação do direito – cfr. art. 672.º, n.º 1, a), do C.P.C.; b) A situação da PIA UNIÃO é semelhante à de muitas outras associações de fiéis, constituídas antes de 1983 por iniciativas destes e onde não são prosseguidos fins exclusivos das autoridades eclesiásticas, razão pela qual estão em causa interesses de particular relevância social – cfr. art. 672.º, n.º 2, b), do C.P.C.; c) O acórdão recorrido está em contradição com acórdãos já transitados em julgado, designadamente o acórdão da Relação de Coimbra proferido nestes autos – quanto à questão da competência dos tribunais judiciais/estaduais para os efeitos em pauta – e o acórdão do S.T.J. de 22/02/2011, proferido no proc. n.º 332/09.2… – quanto à questão da natureza privada da PIA UNIÃO – cfr. art. 672.º, n.º 2, c), do C.P.C.. X. O acórdão do S.T.J. convocado para os efeitos da Conclusão V., b), encontra-se junto aos autos a fls. 480 e ss., o qual transitou em julgado, nos termos de certidão que se protesta juntar, requerendo-se para o efeito prazo de 10 dias. Nesse acórdão, o S.T.J. pronunciou-se no sentido de que a PIA UNIÃO é uma associação privada de fiéis, devendo essa avaliação fazer-se à luz do C.DC. de 1983, enquanto que o acórdão recorrido conclui no sentido de que a PIA UNIÃO é uma associação pública de fiéis, razão pela qual a contradição é manifesta. No que respeita à contradição entre os acórdãos referidos na Conclusão W, c), com referência à questão da natureza pública ou privada da PIA UNIÃO, dá-se por reproduzido o que já se disse no parágrafo anterior; na parte relativa à questão da competência dos tribunais judiciais/estaduais para se pronunciarem sobre os efeitos civis dos decretos emanados das autoridades eclesiásticas, o acórdão da Relação de … de 2011 transitou em julgado nestes autos e a contradição com o acórdão recorrido decorre da circunstância do acórdão de 2011 ter entendido que os tribunais judiciais/estaduais se podem pronunciar sobre os efeitos civis de actos emanados de autoridades eclesiásticas, designadamente quanto à representação externa das associações de fiéis, julgando o acórdão recorrido em sentido contrário. Y. Por tudo o quanto vai exposto nas presentes alegações, requer-se que o presente recurso seja julgado pelo Plenário das Secções Civis, ao abrigo do art. 686.º, n.º 1, do C.P.C.; parece incontornável que é conveniente e até mesmo necessário que se assegure a uniformidade da jurisprudência quanto à natureza jurídica das associações de fiéis constituídas antes de 1983, por iniciativa destes e quando não prossigam fins exclusivos das autoridades eclesiásticas – como é o caso da PIA UNIÃO –, o que implica apurar qual o Código de Direito Canónico que se aplica ao conflito dos autos, se o de 1917, se o de 1983; ademais, se for necessário revisitar o tema da competência dos tribunais estaduais para apreciar a (in)validade dos efeitos civis/patrimoniais dos decretos emanados por autoridade eclesiástica, também parece fundamental – conveniente e obrigatório – assegurar tal uniformidade. Z. A resposta ao diferendo revela-se da maior importância para densificar o princípio da liberdade de associação das associações de fiéis, quando constituídas a partir da iniciativa destes e não prossigam fins exclusivos das autoridades eclesiásticas, como é o caso. E é absolutamente decisiva para saber se a vida das associações de fiéis é iluminada pelos valores do Concílio Vaticano II, ou se ainda se deve considerar subordinada às regras da velha ordem eclesiástica pré-conciliar. E acaba por ser crucial para assegurar a laicidade da justiça, quando se trata de disputas patrimoniais entre as autoridades eclesiásticas e associações de fiéis. Terminam pedindo que o recurso seja julgado procedente, com as legais consequências, revogando-se o acórdão recorrido e julgando-se procedente o primeiro pedido formulado na acção: Os réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido. ** Não tendo sido admitida a revista normal, foi deduzida reclamação na qual este Supremo Tribunal de Justiça confirmou a não admissão. A Formação a que alude o artigo 672º nº 3 do Código de Processo Civil, por acórdão de 03.10.2019, admitiu a revista excepcional. A Exmª Conselheira e anterior Relatora, por despacho de 10.01.2020, foi de parecer que o julgamento ampliado não se mostrava necessário. O Exmº Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 23.01.2020, não admitiu o julgamento ampliado da revista requerido pelas autoras, recorrentes. Colhidos os vistos, cumpre decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO A) Fundamentação de Facto Mostram-se provados os seguintes factos: 1º- A “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus” foi erecta canonicamente por Decreto de 02 de Março de 1959, emitido pelo Bispo de …, Dom …., tendo posteriormente sido feita a comunicação de participação de erecção ao Governador Civil de … e registada na Secretaria do Governo Civil de … sob o nº 181 em 06 de Março de 1959. 2º- Dos estatutos da Pia União, para além do mais que aqui se dá por reproduzido, consta: “Do Nome Art. 1º- “Escravas do Divino Coração de Jesus” é o nome de família das Senhoras que, por sua livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos Pobres, em todas as Obras de Caridade. Dos fins Art. 2º- O fim desta Pia União é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja; em segundo lugar, a evangelização dos Pobres pelo exemplo e a prática das Obras de Misericórdia. Da dedicação Art. 3º – Esta Pia União será consagrada aos Sagrados Corações de Jesus e Maria e propõe-se desagravá-los pela oração, penitência e caridade. … Dos meios de manutenção Art. 12º - As escravas devem viver da caridade pública. Não podem aceitar heranças, nem exigir qualquer remuneração de seus trabalhos. Nesta matéria, seguirão à risca a Vida do Mestre, o divino pobre que nasceu no Presépio e morreu na cruz. … Da superiora Art. 15 – A Pia União das Escravas deve ter uma Superiora eleita por três anos e por todas as associadas já com votos. Art. 16- Uma vez eleita, a Superiora deve apresentar-se imediatamente ao seu Prelado a quem prestará juramento de fidelidade absoluta às normas da Santa igreja. Art. 17- Depois de eleita, a Superiora deve escolher, entre as associadas já com votos, duas ou três que sejam suas auxiliares na direcção das Casas que tiverem à sua conta. Art. 18- A superiora nunca poderá ser eleita por mais de dois mandatos sucessivos. Art. 19 – À superiora, as Escravas devem obedecer como a Virgem à voz do anjo. Devem ser cegas, surdas e mudas para só ouvirem a Deus na ordem da sua Superiora. …” 3º- No decreto de erecção a que se alude em 1 deixou-se escrito: “Dom João Pereira Venâncio, por Graça de Deus e da Santa Sé Apostólica, Bispo de Leiria. Tendo-Nos sido pedida a erecção canónica da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus” depois de termos examinado atentamente os Estatutos que nos foram presentes e julgando que a mesma Pia União, se for fiel, como esperamos, ao espírito que presidiu à sua organização e fins que se propõe, será de grande utilidade para as almas, Havemos por bem: 1ª – Erigir canonicamente em Pessoa Moral, segundo a norma do Can. 100 do Código de Direito Canónico, a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus; 2ª- Aprovar à Experiência os seus estatutos. Esperamos confiadamente que o Sagrado Coração de Jesus e o Coração da Imaculada Maria cujas intenções de misericórdia as Escravas prometem fazer suas, tomem sob a Sua protecção e amparo esta Pia União e a façam crescer e desenvolver-se no espírito da Mensagem de Fátima. Dada em Leiria, sob o Nosso sinal e selo da Diocese aos dois dias do mês de Março de 1959. E eu, P. José de Oliveira Rosa, Chanceler da Cúria a subscrevi. + JOÃO, Bispo de Leiria” 4º- Em 19 de Dezembro de 1959, na presença de Monsenhor EE, em representação do Bispo de Leiria, e enquanto reitor do Santuário de Fátima, procedeu-se à eleição da, em religião irmã FF, como madre superiora da A. Pia União. 5º - As eleições posteriores, até à eleição de 25 de Maio de 2008, sempre foram acompanhadas por padres representantes da Diocese que funcionavam como guias espirituais das irmãs, e que redigiam as actas da eleição, sendo que as eleitas posteriormente solicitavam a respectiva confirmação junto da Diocese. 6º- Em 2008 sem a presença de qualquer elemento do clero foi eleita pelos seus pares e para o triénio 2008/2011, a aqui A. AA, em religião irmã FF. 7º- Em 03 de Novembro de 1991 FF, remete missiva ao Bispo da Diocese de … … em que refere “…apresentámos à Direcção Geral de Contribuições e Impostos o pedido de isenção da contribuição autárquica para o prédio de … onde temos a Casa Mãe. Para completar o processo é necessário uma declaração do Senhor Bispo em que nos reconhece como instituição religiosa de utilidade pública. Solicitamos ao Senhor D. GG a caridade de nos mandar passar o documento referido, que nos tornará possível a isenção deste encargo…” 8º- Em Agosto de 1993 a pedido da 1ª A. o Bispo de … … emitiu um documento onde refere, relativamente à 1ª A que “…goza de personalidade jurídica nos foros canónico e civil e é representada em juízo e fora dele, em todos os assuntos referentes à mesma instituição segundo as normas de direito, pela Sua Superiora Geral, AA, em religião irmã FF. Mais fazemos saber que desejando a referida Instituição fazer a justificação de posse de um prédio urbano situado no lugar de …, freguesia de …, inscrito na matriz respectiva sob o artigo 1.494 será do mesmo modo representada pela Sua Indicada Superiora Geral, a qual poderá no entanto, substabelecer na Irmã HH”. 9º- Em Outubro de 2005, o Bispo de …, Dom II, emitiu a favor das AA que lho haviam pedido, o documento com o seguinte conteúdo: “Fazemos saber que a Associação de Fiéis, ou Pia União (…) goza de personalidade jurídica do foro canónico civil e é representada, em juízo ou fora dele em todos os assuntos referentes à mesma Associação, segundo as normas de direito, pela sua Superiora Geral, AA, (…) que tem os seguintes poderes: praticar os actos necessários à criação de uma fundação de natureza social que garanta, no futuro, a permanência do espírito que presidiu à organização e fins daquela Pia União, bem como assegurar a continuidade da sua acção social, afectando património para o efeito; aceitar doações, vender e adquirir quaisquer propriedades, nos termos e condições que entender, outorgando escrituras e contratos, proceder a quaisquer actos de registo, provisórios ou definitivos, averbamentos e cancelamentos, representá-la em quaisquer organismos ou repartições públicas, nomeadamente em Repartições de Finanças, Câmaras Municipais, Cartórios Notariais e Conservatórias do Registo Predial; exercer poderes genéricos de administração, designadamente arrendar, receber rendas, passar e assinar recibos, renovar e prorrogar ou rescindir os respectivos contratos, requerer avaliações fiscais, liquidar impostos, contribuições ou taxas, receber ou pagar quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos e vincendos, passando recibos e dando quitações, depositar e levantar capitais em bancos e outros estabelecimentos de crédito, assinando recibos ou cheques; exercer direitos da Pia União, incluindo os que a ela respeitam como pessoa moral ou colectiva, ou que por inerência, herança ou disposição dos seus membros, lhe pertençam ou venham a pertencer por qualquer via ou título, designadamente imóveis ainda não registados a seu favor; exercer poderes especiais para justificar tanto para primeira inscrição como para reatamento do trato sucessivo de imóveis; exercer direitos que lhe assistam ou representar em qualquer acto ou contrato; exercer poderes de representação em juízo usando, para o efeito, de todos os poderes em direito permitidos, os quais poderá substabelecer em advogado ou procurador habilitado sempre que deles tenhas que usar, requerendo, prestando declarações complementares, praticando e assinando tudo o mais que seja necessário para os indicados fins. Como Superiora Geral pode ainda conferir idênticos poderes ao Senhor Dr. JJ, titular do bilhete de identidade nº ….., de 15.04.05, emitido em Lisboa, residente em “…” …,, …, …-… …, …, na qualidade de procurador da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus.” 10º- No dia 09 de Novembro de 2005 no Cartório de Ourém compareceu a A. AA, em representação da Pia União, a qual segundo se refere em tal documento apelidado de “doação”, goza de personalidade jurídica no foro canónico e civil, e tem sede no lugar de …, conforme credencial emanada do Bispo da Diocese de … – …, como 1ª outorgante; JJ como 2º outorgante, tendo a 1ª e aqui A. efectuado a favor do 2º outorgante, doação do prédio urbano destinado a habitação, composto de rés-do-chão e primeiro andar, com a superfície coberta de trezentos cinquenta e quatro metros quadrados, e quintal, com a área de duzentos e quarenta e sete metros quadrados, sito na Rua …, número …, na cidade e concelho da …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número duzentos setenta e quatro da Freguesia de Matriz, com registo de aquisição a favor da sua representada pela inscrição G-Dois e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 833 com o valor tributável de 30.386,75 € (fls. 616 e seguintes). 11º- A referida doação foi sujeita às seguintes obrigações por parte do donatário: - destinar a área ou áreas do prédio a fins sociais que o mesmo considere convenientes: - facultar o direito de residência às irmãs actualmente pertencentes à Congregação doadora; - Promover todo o tipo de apoio às referidas irmãs quer na saúde quer na doença destas. O doador (2º outorgante) declarou aceitar. 12º - No dia 22 de Junho de 2006 em Cartório Notarial de …, compareceu como outorgante JJ, na qualidade de procurador, em nome e representação da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Lisboa” qualidade e poderes verificados por públicas formas de procuração e da credencial aludida em 9º, que em tal acto constituiu uma fundação com a denominação de “Fundação Divino Coração de Jesus”, aqui se dando por integralmente reproduzido o demais constante em tal documento de constituição de fundação que se encontra a fls. 129 e seguintes dos autos. 13º- No mesmo dia e no mesmo cartório foram elaborados dois documentos complementares, sendo o 1º relativo à descrição de prédios e o segundo relativo aos estatutos da aludida fundação, cujo seu integral conteúdo aqui se dá por reproduzido e que consta de fls. 135 e seguintes dos autos. 14º - Foi nomeado presidente do Conselho de Administração da Fundação acima aludida JJ, e presidente do conselho fiscal a A. AA. 15º - No dia 03 de Outubro de 2006 a A. redigiu, assinou e remeteu ao R. BB uma missiva, cujo seu integral conteúdo que se encontra a fls. 24 se dá aqui por reproduzida. 16º- Nessa sequência o R. acima aludido remeteu à A. em religião irmã FF, uma missiva, cujo seu integral conteúdo que se encontra a fls. 25 se dá aqui por reproduzida. 17º- Em 15 de Julho de 2008 o R. BB na qualidade de Bispo da Diocese de … emitiu o documento com o seguinte conteúdo: “BB, Bispo da Diocese de …, faz saber quanto segue: Sendo necessário providenciar ao bem da Diocese e das suas instituições, e tendo em consideração que: - A Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, Pessoa Colectiva Religiosa com o n. …., com sede no lugar de …l, freguesia de …, concelho de …, desta diocese, erecta canonicamente pelo Bispo de … com decreto de 2 de Março de 1959, está sujeita à nossa autoridade, conforme determinam as leis canónicas, por ser uma Associação de Fiéis (cf Código de Direito Canónico cân 303); -A mesma Pia União criou, com finalidade social, a Fundação Divino Coração de Jesus, com escritura pública de 22 de Junho de 2006, mas sem existência canónica, e para ela transferiu os seus bens, o que acarreta sério prejuízo no património daquela pessoa colectiva; -Os Estatutos da Fundação criada não asseguram de modo algum os fins religiosos da Pia União, nem na forma nem no espírito nem na substância, o que traduz inobservância dos Estatutos desta pessoa Colectiva Religiosa e das normas canónicas; - Terminou em 11 de Junho último o mandato de três anos estabelecido nos Estatutos, da Superiora Geral, irmã FF, com o nome civil AA; Exercendo o dever de vigiar sobre a administração das pessoas jurídicas sujeitas ao Ordinário diocesano, conforme os cânones 305, 1276 e outros aplicáveis do Código de Direito Canónico, e o artigo 7º das Normas Gerais das Associações de Fiéis, da Conferência Episcopal Portuguesa. Decreta o seguinte: Designar, nos termos do cân. 318§ 1 e do artigo 23º das Normas Gerais das Associações de Fiéis, da Conferência Episcopal Portuguesa, o ecónomo diocesano, Padre CC (…) como comissário, e o Dr. DD (…) como comissário adjunto, a fim de representarem a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, ficando desde já o Dr. DD, mandatado singular e especificamente para a prática dos seguintes actos em Juízo e fora dele: - intentar, no Tribunal ou Tribunais competentes, acção judicial destinada a declaração de nulidade da Escritura Pública de Constituição da Fundação do Divino Coração de Jesus (…) bem como, Providências Cautelares (…); - intentar no Tribunal Competente acção judicial destinada à declaração de nulidade ou anulação da Escritura Pública de Doação do imóvel sito na …, outorgada pela Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus a favor de JJ (…); - desistir do pedido e confessar o pedido reconvencional na Acção Ordinária nº 2153/06.5…, que corre termos na 2ª Secção das Varas de Competência Mista e Juízos Criminais de …, em que é Autora a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus e Réu o Seminário Pio XII; -confessar, desistir e transigir na Acção Ordinária nº 635/07.0…, que corre termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de … onde é Autor o Seminário Pio XII e Ré a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus; - revogação de todos e quaisquer mandatos forenses constituídos e que venham a ser constituídos e notariais que tenham sido conferidos, ou que venham a ser conferidos pela Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, designadamente a procuração outorgada em 19/10/2005 no Cartório Notarial de Ourém, em que foi mandatário o Dr. JJ (…) - revogação do mandato judicial conferido ao mandatário da Autora, o Dr. LL (…) na Acção Ordinária 2153/06.5… (…) em que é Autora a Pia União do Divino Coração de Jesus e Réu o Seminário Pio XII; - revogação do mandato judicial conferido ao mandatário da Autora, o Dr. LL (…) na Acção Ordinária 635/ 07.0… (…) em que é Autor o Seminário Pio XII e Ré a Pia União do Divino Coração de Jesus; - para conferir mandatos forenses a favor de Advogado ou Advogados, a fim de representar a Pia União do Divino Corão de Jesus em Juízo. E para constar se lavrou o presente decreto que assim e autentica com selo branco que usa. Leiria, 15 de Julho de 2008. Consta a assinatura BB. BB Bispo de …” 18º - No processo 2153/06.5… em que era A. a aqui A. Pia União e R. Seminário Pio XII, por decisão de 15 de Julho de 2008 foi decidido: - declarar aquela A. como proprietária do prédio urbano, composto de edifício para habitação de rés-do-chão, primeiro e segundo andares e logradouro, sito em …; - condenar o R. a reconhecer a A. como dona desse prédio; - ordenar-se o cancelamento da inscrição no registo do direito de propriedade sobre esse imóvel a favor do R. 19º- No processo aludido em 18º, no dia 18 de Julho de 2008 compareceu na 2ª Sessão da Vara Mista e Juízos Criminais de …, do Tribunal Judicial daquela cidade, DD que naquele acto juntou instrumentos de representação emitidos pelo Chefe de Gabinete Episcopal da Diocese de …, … e que disse “revoga o mandato conferido nos autos ao mandatário da Autora, Dr. LL e que, em representação da Autora, desiste do pedido e confessa o pedido reconvencional apresentado pelo Réu Seminário Pio XII”. O aludido “termo de desistência do pedido” foi assinado pelo comparecente e por funcionário judicial. 20º- Em 29 de Outubro de 2008 foi por decisão judicial considerado revogado o mandato conferido ao Dr. LL no processo aludido em 18º, decisão essa confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de Setembro de 2009. 21º- Em 24 de Março de 2010 foi por decisão judicial no processo acima mencionado, já transitada em julgado: - reconhecido o Seminário Pio XII como legítimo proprietário do prédio urbano sito em … (…); - condenada a reconvinda Pia União das Escravas do Coração de Jesus a entregá-lo imediatamente ao Seminário Pio XII, livre e devoluto de pessoas e bens. 22º- No processo nº 635/07.0… em que era A. o Seminário Pio XII e R. Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, em 21 de Julho de 2008 compareceu no 2º Juízo do Tribunal Judicial de …, DD, o qual por “termo de confissão do pedido” e apresentado as credenciais já referidas em 19º, confessou o pedido naquela acção e bem assim no apenso B tendo ainda dito que revogava os mandatos judiciais conferidos naquele processo. 23º- Por decisão judicial de 23 de Julho de 2008 foi julgada válida a confissão aludida em 22º, condenando-se a R. no pedido e considerado revogado o mandato a favor do Dr. LL. 24º- Em acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça e relativo ao processo indicado em 22º foi confirmado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que não havia admitido recurso interposto pela Fundação Divino Coração de Jesus dos despachos judiciais da 1ª instância de 02 de Fevereiro e 10 de Fevereiro de 2009. 25º- Em 13 de Julho de 2009 o R. BB na qualidade de Bispo da Diocese de … emitiu o documento com o seguinte conteúdo: “BB, Bispo da Diocese de …, faz saber quanto segue: Tendo em consideração que: - A associação de fiéis, denominada Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, Pessoa Colectiva Religiosa com o nº …, com sede no lugar de …, freguesia de …, concelho de …, desta diocese foi erecta canonicamente pelo Bispo de … – …, com decreto de 02 de Março de 1959, estando por isso sujeita à sua autoridade, conforme o cânone 305 do Código de Direito Canónico e o artigo 7º das Normas Gerais das Associações de Fiéis, da Conferência Episcopal Portuguesa; - Pelos decretos de 15 e 29 de Julho de 2008, foram designados comissário e um comissário adjunto a fim de representarem a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, ficando mandatados para a prática de actos em juízo e fora dele e para, em nome do bispo diocesano, administrarem temporariamente os bens da Pia União, assegurando os seus membros os meios adequados à sua digna subsistência e apostolado; - Pelo decreto de 29 de Julho de 2008 foi prolongado, por um ano renovável, o mandato da Superiora cessante, apenas para os aspectos religiosos e apostólicos da Pia União e o cuidado da vida dos seus membros; - Se mantém inalteradas as circunstâncias especiais que determinaram a nomeação dos mencionados Comissário e Comissário Adjunto como representantes da Pia União; - Se torna necessário a prorrogação do mandato dos ditos Comissários e Comissário Adjunto, a fim de serem acautelados os interesses da dita Pia União e as finalidades indicadas nos Decretos de nomeação; E exercendo o dever de vigilância sobre as associações de fiéis sujeitas a autoridade do Ordinário diocesano, conforme os cânones 305, 1276 e outros aplicáveis do Código de Direito Canónico, e o artigo 7º das Normas Gerais das Associações de Fiéis, da Conferência Episcopal Portuguesa; Decreta o seguinte: 1 - Prorrogar, por mais um ano, o mandato que, nos termos do cân 318 § 1 e do artigo 23º das Normas Gerais das Associações de Fiéis, da Conferência Episcopal Portuguesa, e pelos mencionados decretos de 15 e 29 de Julho de 2008, conferiu ao ecónomo diocesano, Padre CC (…) como comissário, e ao Dr. DD (…) como comissário adjunto. 2 - Prorrogar, por mais um ano, o mandato que foi conferido à irmã FF pelos referidos Decretos, apenas para os aspectos religiosos e apostólicos da Pia União e o cuidado da vida dos seus membros. 3 - O presente decreto entre em vigor na data de hoje. E para constar emite o presente decreto que assina e autentica com selo branco que usa. Leiria, 13 de Julho de 2009 Consta a assinatura BB BB Bispo de …” 26º- Em 02 de Setembro de 2008 em Cartório Notarial de …, compareceu como primeira outorgante a aqui A. AA, aí se dizendo no aludido documento de “compra e venda” que a mesma “outorga na qualidade de Superiora da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus”, associação privada de fiéis, com personalidade jurídica no foro canónico….qualidade e poderes que verifiquei pelo artigo quinze dos estatutos da associação, pelos cânones trezentos e vinte e um, trezentos e vinte e cinco parágrafo primeiro e pelo cânone mil duzentos e cinquenta e sete parágrafo segundo do Código de Direito Canónico e pelas Públicas-Formas das actas número dezassete de vinte e cinco de Maio de dois mil e oito e número dezoito de quinze de Junho de dois mil e oito (…)” Igualmente compareceu como segunda outorgante, MM, em representação e nome da sociedade Lusa & Luxo Lda. Em tal documento a 1ª outorgante declarou vender pelo preço já recebido de € 140.0000,00 (cento e quarenta mil euros) à sociedade representada da segunda outorgante; pelo preço de € 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros) o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 305 da freguesia e Concelho de …, e descrito na respectiva conservatória sob o número três mil trezentos e noventa e dois, com o valor patrimonial tributário de € 3.059,57; pelo preço de € 20.000,00 (vinte mil euros), o prédio rústico inscrito na matriz sob artigo 8327 da freguesia e Concelho da …, e descrito na respectiva conservatória sob o número três mil trezentos e noventa e três, com o valor patrimonial tributário de € 375,71. A segunda outorgante declarou aceitar a venda nos termos exarados. 27º - As casas da Pia União possuem capela que é usada pelas residentes, e bem assim pelos respectivos familiares e vizinhos. 28º - Pelo menos desde 1991 e por autorização do respectivo Bispo da Diocese de …, foi autorizada a conservação permanente e a bênção do santíssimo sacramento no oratório em casa da Pia União, localizada na paróquia de …. 29º - E igualmente na cidade da …, possuía a casa das irmãs no oratório o santíssimo sacramento. 30º - Em 16 de Abril de 2009 o Bispo da Diocese de … remeteu à A. AA, uma missiva na qual refere “porque persiste na falta de comunhão com a igreja, na pessoa do Bispo, cumpre-me informá-la, de acordo com o Biso de …, que suspendo a licença de oratório, na vossa residência da cidade da …”. 31º - A Pia União sempre movimentou as suas contas bancárias por intermédio das irmãs, mormente da madre superiora, e nunca prestou contas de qualquer gestão de seus bens à diocese (facto complementar que foi sujeito a contraditório em audiência – artigo 5º nº2 alínea b do CPC-). 32º - Nas casas da Pia União sempre existiu ensino pré-primário, primário e preparatório, sendo as aulas leccionadas pelas irmãs e também por alguns padres estes leccionando religião e moral (facto complementar que sujeito a contraditório em audiência – artigo 5º nº2 alínea b do CPC-). 33º - A A. AA nasceu em … de Janeiro de 1930. 34º - Tem dedicado a sua vida a missões de apoio a crianças e jovens desfavorecidos. B) Fundamentação de direito A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, consiste em apreciar a validade ou invalidade do Decreto Bispal que nomeou comissários às recorrentes, conferindo-lhes poderes de representação. Pretendem as autoras, ora recorrentes que seja revogado o acórdão recorrido e julgado procedente o primeiro pedido formulado na acção: a declaração de nulidade do Decreto Bispal de 15 de Julho de 2008 que designou os 3º e 4º RR, comissário e comissário adjunto para administrarem bens da 1ª autora, e bem assim todos os actos praticados ao abrigo do referido decreto, designadamente quanto aos poderes de representação da Pia União. Para fundamentar essa pretensão, alegam que a PIA UNIÃO, quer pela iniciativa da sua constituição, quer pelos fins prosseguidos, é uma associação privada de fiéis. A parte contrária pugnou pela improcedência do recurso e pela manutenção do acórdão da Relação que manteve a decisão da 1ª instância, com o fundamento de que a PIA UNIÃO é uma associação pública de fiéis, que está sujeita à vigilância e à autoridade do Bispo de … que, em circunstâncias especiais, poderá intervir na sua vida e organização interna, designando – como fez – comissário que em seu nome dirija temporariamente a Associação. A questão nuclear (regularidade da representação) pressupõe a análise preliminar de uma outra, que é a da validade do referido Decreto Bispal. E esta, por seu turno, suscita a avaliação prévia da natureza pública ou privada da associação de fiéis, «Pia União». ** Importa, pois, saber da natureza jurídica da Pia União: É uma associação privada de fiéis ou uma associação pública de fiéis? O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre esta qualificação em sentido divergente. Assim: No acórdão de 22.02.2011[1] conclui-se pela natureza privada da Pia União: “O actual Código de Direito Canónico, promulgado pelo Papa João Paulo II, faz uma distinção, que não constava do anterior Código de Direito Canónico (de 1917), das associações de fiéis ligadas à Igreja Católica, entre as associações públicas e privadas, sendo que as primeiras adquirem a personalidade jurídica, quer pelo próprio direito, quer por decreto da autoridade competente, e as segundas adquirem essa personalidade apenas por decreto especial da autoridade competente que expressamente a conceda, correspondendo essa distinção aos dois modos de actuação de tais associações: as primeiras fazem-no em nome da igreja e comprometendo-a como instituição social, e as segundas actuam em nome próprio, ainda que visando uma e outra o bem da Igreja. Esta distinção tem relevância na autonomia de umas e outras. Enquanto as associações públicas estão sob a efectiva direcção da autoridade eclesiástica e se consideram os respectivos bens como bens eclesiásticos, as associações privadas apenas estão sujeitas a vigilância da autoridade eclesiástica, pertencendo-lhes a livre administração dos bens próprios”. No acórdão de 10.12.2013[2] conclui-se pela natureza pública da referida associação de fiéis: “Nos termos do artº 10º da Concordata de 2004, “A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil”, as quais podem assumir a natureza de Associações Públicas ou Privadas de Fiéis. Estando em causa a (abstenção da) prática de actos de representação da segunda requerente – em violação de um Decreto Bispal de nomeação de uma comissão, à luz do Cân. 318 do Código de Direito Canónico – como sejam os de conferir mandatos, administrar bens, ou onerar bens de uma associação pública de fiéis, como é o caso da Pia União, a qual prossegue estatutariamente fins religiosos, como a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja e a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia, e em que se prova que os respectivos membros sempre observaram e cumpriram, na sua actividade, as normas do Direito Canónico, os tribunais judiciais portugueses não podem interferir na apreciação daqueles actos, quando praticados em conformidade com o Direito Canónico, sendo ,por isso, internacionalmente e em razão da matéria incompetentes (cfr.arts.65º nº1e 66º do CPC)”. No acórdão de 01.03.2016[3], conclui-se no mesmo sentido do acórdão anterior: “Reconhecendo o Estado Português personalidade jurídica à Igreja Católica e autonomia no que respeita às suas actividades de culto, magistério e ministério, bem como a sua jurisdição em matéria eclesiástica, remanesce para a competência material dos Tribunais do Estado a apreciação de litígios que não se enquadrem em tais actividades, a par daqueles que constituam sua competência exclusiva“. A questão da natureza da Pia União foi tratada naqueles acórdãos a título incidental e consistiu em saber se os tribunais judiciais portugueses eram competentes para apreciar os pedidos que aí foram concretamente deduzidos ou, pelo contrário, se tal competência devia ser deferida aos tribunais eclesiásticos. Mais recentemente, foi proferido o acórdão de 05.12.2019[4] onde, pela primeira vez, o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou sobre a qualificação da Pia União para resolução material do litígio (e já não a título incidental e para resolução de questões processuais), qualificando-a como associação privada. A questão concreta desses autos consistiu em saber se era válida uma doação feita pela Pia União, tendo sido decidido “revogar o acórdão recorrido que declarou a invalidade do contrato de doação e dos registos subsequentes sustentada na falta da licença especial do cân. 1298º do CDC de 1983, julgando a ação totalmente improcedente e absolvendo as RR. de todos os pedidos nela formulados”. Também a Relação de Coimbra no seu acórdão de 17.05.2011 [5]se pronunciou sobre o assunto nos seguintes temos: “Deles[6] ressalta desde logo que, embora constituída no seio da Igreja, o seu escopo não é incrementar ou promover o culto público. Por isso, não actua “ em nome da Igreja”. A finalidade da sua constituição por fiéis cristãos foi o exercício de obras de piedade ou de caridade. Daí, a sua índole privada. Acresce, outrossim, a circunstância de a mesma ter surgido por livre iniciativa de fiéis (Senhoras que quiseram viver em comunidade), ainda que carecendo da aprovação pela competente autoridade eclesiástica que sobre ela exercerá vigilância. Se tivesse sido criada pela autoridade eclesiástica, então seria do tipo público. (…) Em suma, conjugando os cânones citados e os fins prosseguidos pela «Pia União», esta é de considerar como uma associação privada de fiéis, porque votada a piedade, oração e prática de actos de caridade”. O acórdão da Relação de Lisboa de 24.06.2010[7], confirmado pelo citado acórdão do STJ de 22.02.2011 decidiu que: “Sendo estes os elementos relevantes, julga-se que deve ser reconhecida razão aos apelantes quando defendem a natureza privada da Pia União (…). Pois que a mesma prossegue fins que não estão reservados à autoridade eclesiástica e, tendo sido erigida numa data em que o Código de Direito Canónico não fazia distinção entre associações públicas e privadas, a sua constituição resultou de uma iniciativa dos seus membros. Ou seja, se fosse constituída na vigência do Código de 1983, sê-lo-ia nos termos dos respectivos cânones 298 e 322. É essa a conclusão formulada, em termos muito claros e convincentes, nos pareceres juntos aos autos, subscritos pelos Prof. Jorge Miranda e Vieira de Andrade. Não vai no mesmo sentido o parecer, também junto aos autos, subscrito pelo Prof. Saturnino Gomes, mas, com todo o respeito, a argumentação desenvolvida não convence. Vem invocado o facto de a Pia União ter sido canonicamente erecta, mas já acima se desvalorizou o argumento. No ano de 1959 o Código não fazia distinção entre associações de fiéis públicas e privadas e aquela era a única forma de conferir personalidade moral, ou jurídica, a uma associação de fiéis. Como se referiu, se a situação tivesse ocorrido na vigência do Código de 1983, estariam reunidos os pressupostos do reconhecimento de uma associação privada de fiéis. Também vem invocada vivência das irmãs, que se comportariam como uma comunidade religiosa e pretenderiam tornar-se um Instituto religioso, mas, para além de se tratar de factos não adquiridos nos autos, não é esse o critério do Código para distinguir entre associações públicas e privadas. A Pia União não se tornou um Instituto religioso e viver em comunidade não é um elemento diferenciador de uma associação pública de fiéis. É também invocado o relacionamento da Pia União com a autoridade eclesiástica, traduzido no reconhecimento da sua autoridade e dependência, bem como no cumprimento das normas de direito canónico aplicáveis às associações públicas de fiéis. Mas, voltando a não ser este o critério diferenciador, e não se duvidando que as servas da Pia União sempre cumpriram os preceitos que lhes eram aplicáveis, não se vê que os autos evidenciem o cumprimento de qualquer preceito que fosse exclusivo das associações públicas de fiéis. Conclui-se, assim, que a Pia União deve ser considerada uma associação privada de fiéis”. A doutrina também se pronunciou sobre a questão da natureza da Pia União, qualificando-a como associação pública ou associação privada de fiéis. A favor da tese das rés foi por estas junto o parecer da autoria de Saturnino Costa Gomes, ( fls 207 a 215que, no essencial, refere: “51. A Pia União prossegue e prosseguiu ao longo da sua vida fins religiosos, bem como o modo de vida em comunidade e a actividade das irmãs, são manifestamente religiosos, sempre sujeitas à tutela do ordinário do Lugar, que no caso em apreço é o Bispo de Leiria-Fátima. O estilo de vida, as obrigações, o apostolado que exerciam são consequência de uma pessoa moral cujos membros querem assumir uma consagração total de vida. 52. Nas casas da Pia União havia e há uma capela/oratório para a oração, a celebração da Eucaristia, e com reserva eucarística. A autorização da SS Eucaristia na própria casa era uma concessão da hierarquia, e neste caso, demonstra também a ligação intrínseca da Pia União à missão da Igreja. As normas do CIC 1917 eram nem exigentes e explícitas a este propósito, sendo necessária a licença do Ordinário do Lugar (cân.1265, §1,2º; §2). O CIC 1983 prescreve do seguinte modo: «A comunidade religiosa deve habitar numa casa legitimamente constituída sob a autoridade do Superior designado nos termos do direito; cada casa possua ao menos um oratório, onde se celebre e conserve a Eucaristia para ser verdadeiramente o centro da comunidade» (cân.608). 53. O relacionamento das Irmãs com a Autoridade Eclesiástica, em especial o Bispo de Leiria, no reconhecimento da sua autoridade e dependência, bem como no cumprimento das normas de Direito Canónico aplicáveis às Associações Públicas de Fiéis. (…) 56. O CIC 1917, cân.506 § 4, é explícito no referente ao exposto no número anterior. O CIC 1983 segue este preceituado no cân.625§2. As Normas Gerais da Conferência Episcopal Portuguesa determinam que nas Associações públicas de fiéis compete à autoridade eclesiástica confirmar o presidente e os titulares dos órgãos de governo (art. 22º, 2). 57. A Superiora eleita deve apresentar-se imediatamente ao seu Prelado a quem prestará juramento de fidelidade absoluta das normas da Santa Igreja (Estatutos, art. 18º). 58. Na conformidade com as normas canónicas aplicáveis, Dom NN, então Bispo da Diocese de …, nomeou seu Delegado para a primeira eleição da Madre Superiora da Pia União, o Reverendo Monsenhor EE. Para as eleições seguintes, seguiu-se o mesmo processo, com o envio de acta para o Bispo diocesano, sua confirmação da nova Superiora, juramento perante o Prelado. 59. Se não houvesse confirmação episcopal, a Irmã FF não poderia ter-se mantido como Superiora em dez mandatos consecutivos, tendo em consideração a restrição estatutária de dois mandatos: «A superiora nunca poderá ser eleita por mais dois mandatos sucessivos» (Art. 18º). 60. A sua última eleição como Superiora foi confirmada pelo Bispo de …, o que ocorreu em 11 de Junho de 2005, tendo assim caducado em 11 de Junho de 2008. 61. A Pia União, no âmbito da sua actividade apostólica, apoiou uma outra Instituição da Igreja Católica, denominada Seminário PIO XII, com sede em …, estando este sujeito à autoridade da Diocese …. 62. E no âmbito do apoio mútuo e na prossecução do seu apostolado, os membros daquele Instituto, mais concretamente os Srs Padres 00 e o Padre PP, exerceram, desde a primeira eleição da Madre Superiora as funções de assistente espiritual, por nomeação do Sr Bispo de …, até à morte de ambos. 63. A Irmã FF na qualidade de ao tempo representante da Pia União e no exercício das suas funções, solicitou em 1991 junto do Ordinário do Lugar – o Sr Bispo de … – a emissão de documento que reconhecesse que a sua representada Pia União, era uma instituição religiosa de utilidade pública, com vista a obter isenção fiscal. 64. Ora, nos termos do artigo 8º da Concordata de 1940 então em vigor, a mencionada isenção fiscal só poderia ser concedida relativamente a bens e entidades eclesiásticas. (…) 67. A Pia União actualmente é composta por quatro irmãs em idade avançada, todas com mais de 80 anos, que vivem em comunidade na cidade da …. 68. O Bispo da Diocese de …, confrontado com a dissipação do património eclesiástico para fins pessoais e no âmbito do dever de vigilância que lhe é conferido pelas normas canónicas e, perante a existência de várias irregularidades e face à caducidade do mandato da Superiora, emitiu decreto em 15 de Julho 2008, no âmbito da sua autoridade canónica, nomeando uma comissão para administrar a Pia União, mandatando-a também para a prática de actos no sentido de proteger os bens eclesiásticos da Pia União. 69. Tendo já terminado, em Junho de 2008, o mandato da Irmã FF como Superiora, o Bispo de … convocou-a para uma reunião onde lhe deu conhecimento do Decreto e dos novos representantes da requerente Pia União, autorizando-a apenas a dirigir os aspectos religiosos e apostólicos e de cuidado das irmãs. 70. Face a esta decisão episcopal, todos os actos praticados pela Irmã FF no foro civil e canónico, e que digam respeito à administração dos bens, são considerados nulos. 71. Convém sublinhar que o Bispo de … não confirmou a eleição da Irmã FF para um ulterior mandato, eleição essa que teve lugar no dia 25 de Maio de 2008 e que não respeitou as formalidades canónicas vigentes e seguidas nos processos eleitorais anteriores. 72. Face ao acima descrito, a Irmã FF, não está habilitada canónica e civilmente a representar a Pia União e a agir em seu nome, pelo que todos os actos praticados são nulos. 73. Do estudo dos Estatutos da PIA UNIÃO DAS ESCRAVAS DO DIVINO CORAÇÃO DE JESUS encontramos vários aspectos que nos levam a concluir que esta Associação de senhoras é pública, devido ao seu estilo de vida como Instituto religioso e à sua dependência do Bispo da Diocese de …. 74. Não restam dúvidas de que a Pia União referida é uma Associação de Fiéis que se reveste de natureza pública, tal como definido pelas normas do Direito Canónico” Os réus juntaram ainda um parecer de Jorge Miranda (fls 223 a 242), no que agora releva, entende que a Pia União deve ser considerada uma associação privada de fiéis: “Quando foi constituída a Pia União entrava na categoria única das pessoas jurídicas morais contemplada no Código de Direito Canónico de 1917. Se tivesse sido criada na vigência do Código de 1983 situar-se-ia no âmbito das associações canónicas privadas por a sua origem se achar numa iniciativa espontânea de fiéis. E deverá agora ser considerada associação privada, com as inerentes consequências, em face da regra constante de aplicação de normas jurídicas no tempo constante do Código Civil (art. 12.º, n.º 2).” – cfr. fls. 237. Vieira de Andrade, entendendo que a Pia União é uma associação privada de fiéis, como consta do seu parecer junto a fls161 a 187, emitiu as seguintes conclusões: “1. A Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus é uma associação de fiéis de direito privado canónico, tendo em conta que a sua constituição resultou da livre iniciativa dos fiéis e não de um acto unilateral da Hierarquia da Igreja, e que prossegue, em nome próprio e não em nome da Igreja, fins relacionados com a missão desta que não são reservados à autoridade eclesiástica. 2. A Pia União, enquanto associação privada de direito canónico, tem, com base na Concordata entre o Estado Português e a Santa Sé, a dupla natureza de associação religiosa e de associação de direito privado português, cabendo ao ordenamento jurídico canónico e às respectivas autoridades regular as questões, designadamente espirituais, referentes à sua actuação jurídico-canónica, e cabendo ao ordenamento civil nacional e às autoridades nacionais a regulação de aspectos relacionados com a sua capacidade jurídica de direito civil. 3. A Pia União, enquanto associação de direito privado, goza da liberdade de associação constitucionalmente garantida, que, na vertente patrimonial, inclui a liberdade de administração e de disposição dos bens próprios, sem prejuízo das restrições justificadas constantes do Código Canónico. 4. Os tribunais judiciais são competentes para resolver o litígio relativo ao direito, que a Pia União pretende exercer, de constituir uma Fundação com os bens que fazem parte do seu património próprio, dedicada aos fins que têm vindo a ser prosseguidos por aquela associação. 5. Os tribunais judiciais são igualmente competentes para decidir a questão prévia relativa à qualificação jurídico-canónica da Pia União como associação privada, na medida em que nessa questão está envolvida a delimitação entre o ordenamento jurídico canónico e o ordenamento jurídico nacional. 6. No contexto da colisão entre os referidos ordenamentos, é erróneo o entendimento de que, nos litígios sobre bens imóveis sitos em território nacional que oponham à Igreja associações de fiéis reconhecidas como pessoas jurídicas de direito civil português, os tribunais judiciais não podem decidir a questão da qualificação de pessoas jurídicas privadas de direito canónico, com fundamento em que os tribunais competentes para julgar a capacidade destas associações seriam exclusivamente os tribunais eclesiásticos. 7. Esse entendimento deve, aliás, considerar-se inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito democrático, e, concretamente, por violação da liberdade de associação na vertente da liberdade de administração e disposição dos bens por parte das associações privadas, bem como por violação da garantia da tutela jurisdicional efectiva, consubstanciada numa denegação prática do acesso ao direito, maxime, do acesso a um tribunal independente.” 2. No mesmo sentido, se pronunciou Bacelar Gouveia, no parecer junto a fls 1003 a 1039, cujas conclusões são do seguinte teor: “a) O novo Código de Direito Canónico, promulgado pelo Papa São João Paulo II, veio introduzir a distinção – já de si implícita no anterior Código do Direito Canónico de 1917 – entre as associações públicas e privadas de fiéis, distinção que assenta nas finalidades prosseguidas, na sua estrutura de governo e no modo da criação dessas instituições, decorrendo desta separação importantes consequências de regime, com uma mais intensa intervenção da autoridade eclesiástica sobre as primeiras do que sobre as segundas; b) A “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus”, criada em 1959 por ereção canónica ainda ao abrigo do Código de Direito Canónico de 1917, não pode deixar de se integrar num destes dois termos desta nova contraposição trazida pelo Código de Direito Canónico de 1983, sendo fácil perceber que esta associação deve ser qualificada como uma associação privada de fiéis, em atenção às finalidades prosseguidas ((não sendo nenhuma delas daquelas finalidades canonicamente reservadas às associações públicas de fiéis), à estrutura do seu governo – e também se julgando que não pode tal qualificação, na decorrência da dicotomia estabelecida, deixar de ter aplicação imediata, mesmo para as associações que tenham sido erguidas ao abrigo do anterior ordenamento canónico, caso em que o critério do tipo de ato de criação não tem qualquer valia porque o mesmo já ocorreu na altura em que o novo Código de Direito Canónico entrou em vigor, sendo este diploma insuscetível de aplicação retroactiva; c) A intervenção da autoridade eclesiástica – que se consubstanciou nos decretos episcopais de 15 e de 29 de julho de 2008 – afigura-se ilegítima dado que ignora aquela natureza privada da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus” – cujos textos, e entrando em contradição nos seus próprios termos, acabam por admitir que é privada – e apresenta-se como própria de uma intervenção sobre uma pessoa jurídica canónica pública, claramente exorbitantes dos limitados e excecionais poderes patrimoniais que o Código de Direito Canónico lhe confere, circunstâncias que aqui não se verificam; d) A discrepância entre julgados no Supremo Tribunal de Justiça a respeito de saber se a jurisdição do Estado tem competência para intervir em litígios em que estão presentes actos regidos pelo Direito Canónico deve ser solucionada à luz das relações jurídicas controvertidas, as quais têm que ver não apenas com a titularidade de direitos reais de imóveis sitos em Portugal como com o reconhecimento de pessoas coletivas sediadas em território português, justificando tipos de competência internacional que são inequivocamente atribuídos aos tribunais portugueses pelo Código de Processo Civil, mesmo havendo a possibilidade de uma conexão de outros ordenamentos jurídicos, como seria o caso do Direito Canónico; e) Nem mesmo esta regra é posta em causa por a Concordata de 2004 reconhecer a exclusividade da jurisdição dos tribunais eclesiásticos em matéria de casamento católico, com base no pressuposto da superioridade de tratado internacional – a Concordata – sobre uma lei ordinária – o Código de Processo Civil – por força de àquele restrito âmbito se reconduzir tal reserva, não possuindo as outras expressões de jurisdição um idêntico significado; f) Daí que pareça que a solução processual a adotar só possa ser determinada pela solução substantiva correspondente – ainda que nem sempre se imponha tal simetria – segundo a qual a jurisdição competente é a estadual por estarem em causa actos jurídicos regulados pelo Direito Civil, e não pelo Direito Canónico, sendo manifesto que a intervenção da autoridade eclesiástica extravasou do seu restrito domínio; g) Ainda que assim se não entendesse, sempre restariam fundadas dúvidas e reservas de constitucionalidade de uma intervenção prévia e exclusiva dos tribunais eclesiásticos em face da possibilidade de se colocar em crise os princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático porque a estrutura da jurisdição eclesiástica não obedece ao princípio da separação dos poderes, nem sequer garante – se existisse nesses termos – os direitos fundamentais conexos com a atividade de uma associação privada de fiéis, como é manifestamente o caso da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus”[8]. ** Analisemos a questão de fundo atinente à representação da Pia União, ou seja, à validade ou invalidade do Decreto Bispal que nomeou comissários às recorrentes, conferindo-lhes poderes de representação. Ora, a validade do referido Decreto Bispal suscita a avaliação prévia da natureza pública ou privada da associação de fiéis, «Pia União». A fundamentar o decidido, a Relação considerou que a natureza jurídica da Pia União deve ser vista à luz do quadro vigente aquando da sua constituição, pelo que, tendo nascido na vigência do C.D.C de 1917 – onde não se reconheciam associações privadas de fiéis –, se teria de concluir pela imutabilidade da sua natureza pública, mesmo após a entrada em vigor do C.D.C. de 1983. Discordamos deste entendimento. O artigo 12º do Código Civil (Aplicação das leis no tempo. Princípio geral), preceitua no seu nº 2, segunda parte, que quando a lei “dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”. O C.D.C. de 1983 quis precisamente abstrair-se do facto que deu origem às associações de fiéis, passando a qualificá-las como públicas ou privadas, em função da iniciativa da sua constituição e dos fins prosseguidos, não ressalvando nada do que constava do C.D.C. de 1917. A requerente Pia União foi erecta canonicamente em Pessoa Moral, em 2.3.1959, pelo Bispo de … que aprovou os respectivos estatutos, e segundo os cânones do Código de Direito Canónico, primeiro código de leis da Igreja Católica promulgado em 1917. Em 27.11.1983 entrou em vigor um novo Código de Direito Canónico para a igreja latina, promulgado através da Constituição Apostólica em 25.1.1983. No prefácio do novo Código de Direito Canónico, explica-se o seu objectivo, iluminado pelos valores do Concílio Vaticano II. Deve ter-se presente, no que releva para o caso sub judice, sobretudo os princípios 1º e 6º. Princípios 1º: “Na renovação do direito deve ser conservada a índole jurídica do novo Código que é exigida pela própria natureza social da Igreja.” (Princípio 6º: “Por causa da igualdade fundamental de todos os fiéis e da diversidade de ofícios e de funções, baseada na própria ordem hierárquica da Igreja importa que se definam adequadamente e se tutelem os direitos das pessoas. Daqui resulta que o exercício do poder apareça mais claramente como serviço, se robusteça mais o seu uso, e se afastam os abusos”[9]. E na parte final do Prefácio esclarece-se que “Agora, porém, a lei já não pode ser mais ignorada; os Pastores têm normas seguras para dirigirem bem o exercício do ministério sagrado; desde agora cada um tem a possibilidade de conhecer os seus próprios direitos e deveres, e está vedado o caminho à arbitrariedade na acção”[10]. O CDC de 1983 passou a assumir uma distinção entre associações públicas de fiéis e associações privadas de fiéis, com consequências de ordem diversa, designadamente em termos de governo e de autonomia relativamente a actos de alienação de bens. Como refere Silva Marques[11]: “A maior novidade no tema associativo da Igreja consiste precisamente na admissão e reconhecimento do direito de associação aos fiéis com o consequente reconhecimento das associações privadas no Direito canónico”. Uma vez que o acto impugnado ocorreu em 15 de Julho de 2008, em plena vigência do CDC de 1983 e depois da aprovação da Concordata de 2004, deve ser integrado nas normas de direito canónico e de direito civil que nessa ocaisão vigoravam. No Cân 6, § 1º estabelece-se que: “Com a entrada em vigor deste Código, são ab-rogados: 1º - O Código de Direito Canónico promulgado no ano de 1917” O acórdão recorrido, tal como bem observam as recorrentes, ao considerar que a natureza da Pia União se deve ver à luz do C.D.C. de 1917, interpretou erroneamente o Cânone 6 do C.D.C. de 1983, por si só ou conjugado com o art. 12.º, n.º 2, do Código Civil. Qual é, então, a natureza jurídica da Pia União à luz do C.D.C. de 1983? O actual Código veio distinguir, nos cânones 298 a 329, as associações de fiéis em públicas e privadas. No § 1º do cân. 298 dispõe-se: “Na Igreja existem associações, distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, nas quais os fiéis, quer clérigos quer leigos, quer em conjunto clérigos e leigos, em comum se esforçam por fomentar uma vida mais perfeita, por promover o culto público ou a doutrina cristã, ou outras obras de apostolado, a saber, o trabalho de evangelização, o exercício de obras de piedade ou de caridade, e por informar a ordem temporal com o espírito cristão”. Por sua vez, dispõe o cân. 299: § 1. “Podem os fiéis, por meio de convénio privado, celebrado entre si, constituir associações para alcançarem os fins referidos no cân. 298 § 1, sem prejuízo do prescrito no cân. 301 § 1”. § 2. “Essas associações, ainda que louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, chamam-se associações privadas”. O cân. 301 § 1 determina: “Pertence unicamente à autoridade eclesiástica competente erigir associações de fiéis, que se proponham ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou que prossigam outros fins, cuja prossecução pela sua natureza, está reservada à mesma autoridade eclesiástica”. E o § 3. define que “As associações de fiéis erectas pela competente autoridade eclesiástica designam-se associações públicas”. Pelo cân. 312 § 1, é autoridade competente para erigir associações públicas, a Santa Sé, a Conferência episcopal e o Bispo diocesano. Nos termos do cân. 321, “Os fiéis dirigem e governam as associações privadas segundo as prescrições dos estatutos”. De harmonia com o cân. 322 § 1, “A associação privada de fiéis pode adquirir personalidade jurídica por decreto formal da autoridade eclesiástica competente mencionada no cân.312”. Embora as associações privadas de fiéis gozem de autonomia, nos termos do cân. 321, estão no entanto sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica nos termos do cân.305, bem como à dependência da mesma autoridade. (cân.323 § 1). No caso concreto, a Pia União foi constituída por convénio privado, a partir de uma iniciativa das Senhoras que se juntaram para esse fim, pelo que nenhuma dúvida se pode colocar quanto ao facto da Pia União ter resultado de uma iniciativa privada (cfr. artº 1º dos Estatutos da Pia União – fls. 11 a 15 e facto provado nº 2). Por outro lado, os fins prosseguidos – a santificação individual, a evangelização dos pobres e a prática das obras de misericórdia (cfr. art. 2.º dos Estatutos da Pia União) – inscrevem-se nos fins gerais previstos no Cân. 298 para todas as associações de fiéis, não se incluindo nos fins reservados às associações públicas, nos termos do Cân. 301, §1. Por outro lado, o artigo 55º (Natureza e fins) das Normas Gerais das Associações de Fiéis preceitua: 1º - As associações privadas são constituídas por livre iniciativa dos fiéis, para fins de caridade ou de piedade, ou para fomentar a vocação cristã no mundo, não carecendo de erecção canónica (cf. cc. 215 e 299, § 1). 2.º Podem constituir fins das associações privadas: a.) Evangelização; b.) Obras de piedade e caridade; c.) Animação da ordem temporal com espírito cristão (cf. cân. 298, § 1)[12]. Deste modo, tal como concluem as recorrentes, quer pela iniciativa da sua constituição, quer pelos fins prosseguidos, é incontornável que a Pia União é uma associação privada de fiéis. Como associação privada de fiéis, a Pia União administra livremente os bens que possui, nos termos do Cân. 325, §1 – e bem assim do Cân. 323, §1 –, sem prejuízo do direito da autoridade eclesiástica vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação. Neste contexto, as associações privadas de fiéis designam livremente os seus responsáveis, de acordo com os respectivos estatutos, nos termos do Cân. 324, §1, sem prejuízo da assistência espiritual exercida por sacerdotes por si escolhidos, desde que exerçam legitimamente o seu ministério, nos termos do seu § 2. E foi assim durante mais de 50 anos, em que a Pia União elegeu livremente a sua Superiora, nos termos do Cân. 321 e do artº 15º dos seus Estatutos, tendo sempre administrado livremente os seus bens, como decorre do facto provado n.º 31. Ou seja, o sistema de governo da Pia União concretamente praticado durante toda a vida da instituição foi consentâneo com as regras previstas no Código de Direito Canónico para a gestão das associações privadas de fiéis, o que a Igreja nunca contestou até ter ocorrido a intervenção do Decreto Bispal em apreço. Ademais, foi isso mesmo que foi admitido pelo Bispo Dom II, quando, em credencial de 18/10/2005 (cfr. facto provado n.º 9), expressamente reconheceu que a Superiora da Pia União tem os poderes para praticar os actos não só relativos à constituição e dotação de uma fundação de natureza social, como para praticar os demais actos de administração patrimonial de natureza ordinária ou extraordinária. A intervenção da autoridade eclesiástica no sentido da nomeação de comissários que passem a dirigir a associação está prevista no Cân. 318, § 1, quando razões graves o exigirem, mas essa prerrogativa só existe para as associações públicas de fiéis, não podendo ocorrer no âmbito das associações privadas de fiéis, relativamente às quais não está previsto esse tipo de intervenção. É quanto basta para considerar inválida a nomeação dos comissários designados pelo Decreto Bispal de 15 de Julho de 2008, escolhidos para administraremos bens da Pia União e praticar os demais actos aí previstos, razão pela qual é nulo e inválido tal decreto, quando nomeia tais comissários com os poderes ali estabelecidos, invalidade essa que deve ser declarada para os efeitos civis que ora estão em causa. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2019, acima mencionado, também qualificou a Pia União como associação privada e mostra-se assim sumariado: “I. O Cód. de Direito Canónico de 1917 não estabelecia distinção entre as associações de fiéis, mas o Cód. de Direito Canónico de 1983 passou a distingui-las entre associações públicas ou associações privadas, distinção assente essencialmente em três elementos: natureza do ato constitutivo, iniciativa da constituição e fim prosseguido pela associação de fiéis (câns. 299º e 301º). II. O CDC de 1983 não contém, porém, qualquer norma transitória relativa à qualificação das associações de fiéis anteriormente constituídas como ocorria com a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus que foi erigida como pessoa jurídica canónica em 1959; por outro lado, depois da entrada em vigor do CDC de 1983, não foram introduzidas modificações nos Estatutos da Pia União, pelo que a sua qualificação como associação pública ou como associação privada de fiéis deve ser feita a partir dos critérios definidos pelo CDC de 1983, para o que releva, no essencial, os seguintes elementos: - Foi erigida por Decreto Episcopal, em 1959, na vigência do CDC de 1917; - A sua constituição partiu da iniciativa dos seus membros; - Tinha o objetivo de “santificação individual pelo cumprimento dos preceitos e conselhos evangélicos e normas da Igreja” e de “evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das obras da misericórdia”; - Consta dos seus Estatutos que, “uma vez eleita, a Superiora deve apresentar-se imediatamente ao seu Prelado a quem prestará juramento de fidelidade absoluta às normas da Igreja”. III. Face ao que agora dispõe no CDC de 1983, o facto de a Pia União ter sido constituída por iniciativa de fiéis (cân. 299º) e de a sua finalidade ser de natureza eminentemente particular concorrem para a qualificação como associação privada de fiéis, enquanto o ter sido erigida através de Decreto Episcopal (cân. 301º) e a relação com o Bispo Diocesano são típicos das associações públicas de fiéis. IV. A Conferência Episcopal Portuguesa publicou, em Abril de 1988, as “Normas Gerais para Regulamentação das Associações de Fiéis”, em cujo art. 116º §4, se previa, quanto às associações de fiéis constituídas antes da vigência do CDC de 1983, que seriam “públicas todas as associações eretas em pessoas moral pela Autoridade eclesiástica, antes da entrada em vigor deste (CDC de 1983), em 27-11-1983, e nomeadamente as denominadas Irmandades e Confrarias”. V. Porém, tais Normas não estavam sustentadas em qualquer autorização ou ratificação (“recognitio”) concedida pela Santa Sé (como veio a ocorrer com as “Normas Gerais das Associações de Fiéis” aprovadas pelo Decreto da CEP, de 4-4-2008), de modo que o seu teor e, mais concretamente, o teor daquele art. 116º §4, não interfere na qualificação jurídica da Pia União reportada à data em que foi praticado o ato impugnado, em Novembro de 2005. VI. Considerando exclusivamente o que decorre do CDC de 1983, em conjugação com os aspetos relacionados com a constituição, objetivos e funcionamento da Pia União, o que se mostra mais relevante para a sua qualificação é o facto de ter sido constituída por iniciativa dos seus membros, tendo como objetivos essenciais “a santificação individual pelo cumprimento dos preceitos e conselhos evangélicos e normas da Igreja” e “evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das obras da misericórdia”, não se verificando, por outro lado, que visasse prosseguir “a prática do culto público, em nome da Igreja”, fator que seria característico de uma associação pública de fiéis (cân. 301º §1). VII. O facto de ter sido formalmente erigida por Decreto Episcopal, em 1959, ao abrigo do cân. 100º do CDC de 1917, não determina, por si, a qualificação como associação pública de fiéis, em face do que agora prescreve o CDC de 1983, uma vez que, naquela ocasião, essa forma de constituição era condição necessária para que as associações de fiéis (ou outras pessoas jurídicas) tivessem personalidade jurídica perante o CDC de 1917 e a Concordata de 1940, objetivo essencial que esteve na base do Decreto Episcopal de erecção”. Terminando, para concluir, diremos, tal como as recorrentes deixaram alegado na revista, o seguinte: O acórdão recorrido desconsiderou erroneamente as regras aplicáveis às associações privadas de fiéis, particularmente os Câns. 321, 323, 324 e 325 do Código de Direito Canónico, sufragando uma intervenção da autoridade bispal feita ao abrigo do Cân. 318, que lhes era inaplicável. Deve assim também ser revogado nesse segmento, devendo ser declarado procedente o primeiro pedido formulado na acção: a declaração de nulidade do Decreto Bispal de 15 de Julho de 2008, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse decreto, para os efeitos civis competentes. Nesta conformidade merece proceder a revista excepcional SUMÁRIO I - O actual Código de Direito Canónico de 1983 , promulgado pelo Papa João Paulo II, faz uma distinção, que não constava do anterior Código de Direito Canónico (de 1917), das associações de fiéis ligadas à Igreja Católica, entre as associações públicas e privadas. II - As primeiras adquirem a personalidade jurídica, quer pelo próprio direito, quer por decreto da autoridade competente, e as segundas adquirem essa personalidade apenas por decreto especial da autoridade competente que expressamente a conceda, correspondendo essa distinção aos dois modos de actuação de tais associações: as primeiras fazem-no em nome da igreja e comprometendo-a como instituição social, e as segundas actuam em nome próprio, ainda que visando uma e outra o bem da Igreja. III - Esta distinção tem relevância na autonomia de umas e outras. Enquanto as associações públicas estão sob a efectiva direcção da autoridade eclesiástica e se consideram os respectivos bens como bens eclesiásticos, as associações privadas apenas estão sujeitas a vigilância da autoridade eclesiástica, pertencendo-lhes a livre administração dos bens próprios. IV - A associação Pia União foi erigida canonicamente, e hoje as associações privadas não carecem de erecção canónica. V - No ano de 1959 o Código não fazia distinção entre associações de fiéis públicas e privadas e aquela era a única forma de conferir personalidade moral ou jurídica, a uma associação de fiéis. VI - Se a situação tivesse ocorrido na vigência do Código de 1983, estariam reunidos os pressupostos do reconhecimento de uma associação privada, por a sua origem se achar numa iniciativa espontânea de fiéis. VII - A intervenção da autoridade eclesiástica – que se consubstanciou no decreto episcopal de 15 de julho de 2008 – afigura-se ilegítima dado que ignora aquela natureza privada da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus” – cujos textos, e entrando em contradição nos seus próprios termos, acabam por admitir que é privada – e apresenta-se como própria de uma intervenção sobre uma pessoa jurídica canónica pública, claramente exorbitantes dos limitados e excecionais poderes patrimoniais que o Código de Direito Canónico lhe confere, circunstâncias que aqui não se verificam. VIII - O CDC de 1983 quis abstrair-se do facto que deu origem às associações de fiéis (artigo 12º nº 2 do Código Civil), passando a qualificá-las como públicas ou privadas, em função da iniciativa da sua constituição e dos fins prosseguidos, não ressalvando nada do que constava do CDC de 1917. IX - A Pia União foi constituída por convénio privado, a partir de uma iniciativa das Senhoras que se juntaram para esse fim, pelo que nenhuma dúvida se pode colocar quanto ao facto da Pia União ter resultado de uma iniciativa privada (cfr. artº 1º dos Estatutos da Pia União – fls. 11 a 15 e facto provado nº 2). X - Por outro lado, os fins prosseguidos – a santificação individual, a evangelização dos pobres e a prática das obras de misericórdia (artº 2º dos Estatutos da Pia União) – inscrevem-se nos fins gerais previstos no Cân. 298 para todas as associações de fiéis, não se incluindo nos fins reservados às associações públicas, nos termos do Cân. 301, §1. XI - Como associação privada de fiéis, a Pia União administra livremente os bens que possui, nos termos do Cân. 325, §1 – e bem assim do Cân. 323, §1 –, sem prejuízo do direito da autoridade eclesiástica vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação. XII - Neste contexto, as associações privadas de fiéis designam livremente os seus responsáveis, de acordo com os respectivos estatutos, nos termos do Cân. 324, §1, sem prejuízo da assistência espiritual exercida por sacerdotes por si escolhidos, desde que exerçam legitimamente o seu ministério, nos termos do seu § 2. III - DECISÃO Atento o exposto, concede-se provimento à revista e revoga-se o acórdão recorrido, declarando-se procedente o primeiro pedido formulado na acção: a declaração de nulidade do Decreto Bispal de 15 de Julho de 2008, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse decreto, para os efeitos civis competentes. Os restantes pedidos são julgados improcedentes. Custas da revista e nas instâncias a cargo dos réus e das autoras, na proporção do vencimento. Lisboa, 08 de Outubro de 2020 Ilídio Sacarrão Martins (Relator) Nuno Manuel Pinto Oliveira Ferreira Lopes _______ [1] Procº nº 332/09.2TBPDL.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj |