Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
110/13.4PEBRR.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO CLEMENTE LIMA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CRIMINALIDADE ORGANIZADA
GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS ILÍCITAS
PROVA PROIBIDA
PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 02/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO O RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Não constitui prova proibida aquela recolhida, através de gravação de imagem, no interior da garagem em que o arguido acondicionava o produto estupefaciente que destinava à venda a terceiros, autorizada nos termos do disposto no art. 6.º da Lei n.º 5/2002.
II - Não suscita reparo a declaração de perdimento de veículo utilizado pelo arguido, como batedor, na transferência do produto estupefaciente, conforme o disposto no art. 35.º, do DL 15/93.
III - No quadro delitivo apurado, em que releva o manuseio de 210 kg de haxixe, durante três anos, em grupo, de forma organizada, sob liderança do arguido, consumidor de tal substância, com pretérito delitivo (também) por crimes de tráfico de estupefacientes, revelando acentuados factores de inserção familiar e laboral, a pena de 7 anos (a tanto se reduzindo a pena de 9 anos de prisão concretizada nas instâncias), na moldura abstracta de 4 a 12 anos de prisão, figura-se adequada e suficiente para satisfazer as necessidades de prevenção, respeitando os limites da culpa.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 110/13.4PRBRR.E1.S1

Recurso penal

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Nos autos de processo comum em referência, o arguido, AA

– filho de BB e de CC, natural da freguesia …….., ………, nascido a 00 de ... de 1973, solteiro, empregado ……, com residência na Rua ……. (………), n.º …., ……., ……, ……… –,

de par com outros, foi condenado pelo Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal ………., pela prática de factos consubstanciadores da co-autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto no artigo 21.º n.º 1, e tabela I-C, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (DL 15/93), na pena de 9 anos de prisão.

2. O arguido interpôs recurso do acórdão condenatório para o Tribunal da Relação …….., fazendo subir com este o recurso interlocutório que interpusera, suscitando, designadamente, as questões atinentes à validade da prova obtida através de vigilâncias, da legalidade da decretada perda de veículo automóvel e da escolha e medida da pena.

3. No Tribunal da Relação ……., os Senhores Juízes, por acórdão de 28 de Abril de 2020, decidiram anular uma sessão de recolha de voz e imagem, confirmando, no mais, a decisão recorrida.

4. O arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça daquele acórdão do Tribunal da Relação ………. .

Extrai da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

«1. O recorrente questionou, sem sucesso, a validade dos registos de voz e imagem dentro de um espaço vedado ao público.

a. Desde logo, questiona-se a posição do acórdão recorrido quando afirma que o recorrente não reagiu processualmente à decisão tomada em sede de decisão instrutória que indeferiu a arguição desta proibição de prova.

i. Foi neste sentido que decidiu o tribunal constitucional nos acórdãos 482/2014 e 477/2011.

ii. Sendo que, além do mais, nos termos do artigo 310º do CPP, resulta como legalmente inadmissível o recurso dessa parte da decisão instrutória.

b. De todo o modo, coloca-se em causa a posição do acórdão recorrido ao considerar que o artigo 6º da lei 5/2002 de 11.1, permite a colocação de dispositivos de gravação de vídeo

dentro de espaços vedados ao público, e, não apenas, como defende o recorrente, em espaços públicos.

c. Este modo de obtenção de prova é muito mais invasivo do que uma busca autorizada, pois o período em que a privacidade do cidadão, sem o seu conhecimento, é trespassada, podia, no caso concreto, ascender a 30 dias, ou seja, cerca de 720 horas.

d. Já na busca, tal violação esgota-se no momento em que é realizada, necessitando de ser renovada a autorização caso se deva repetir.

e. Está em causa a violação do artigo 126º do CPP e 18º, 26º e 34º da CRP.

f. A captação de imagem e voz, isto é a gravação com agentes policiais dentro de um espaço vedado ao público e/ou com um câmera de vídeo é de tal forma intrusiva, que não pode ser ponderada ao abrigo do n.º 6 da lei 5/2002 de 1.11 como aqui aconteceu.

2. Não se encontram preenchidos os requisitos para o perdimento a favor do estado do veículo automóvel de matrícula …..-….-SV.

a. Desde logo porque não se provou, em concreto, o que fez o arguido com este veículo automóvel na prossecução do transporte de haxixe executado pela arguida DD.

b. Não se pode, pois, concluir pela causalidade adequada entre o transporte de haxixe e a utilização deste veículo.

c. Não é suficiente a prova de que estes arguidos se deslocaram nas viaturas de cada um.

d. Deve ser revogada a decisão de perda do veículo automóvel de matrícula ….-NT-….. – falta dos critérios de causalidade, necessidade e proporcionalidade.

3. A pena aplicada é elevada.

a. Desde logo, concretizou-se no tempo e em quantidade um transporte de haxixe de 90 kg.

b. Em todos os outros factos, resultou indeterminada a quantidade de estupefaciente, bem como o momento ou circunstâncias de uma qualquer transação.

c. Acresce, que por motivos que não lhe são imputáveis, o recorrente está em liberdade desde Abril de 2019.

d. Está neste momento, inserido social, familiar e profissionalmente.

e. Sendo aliás de equacionar, uma atualização do seu relatório social, atenta a manifesta alteração de facto entretanto operada.

f. Defende o recorrente a aplicação da pena de 6 anos de prisão.

Normas jurídicas violadas:

Artigo 6º da lei 5/2002 de 11.1.

Artigos 109º, 110º, 126º e 310º do CPP.

Artigo 35º do DL 15/93 de 22.1.

Artigos 18º, 26º e 34º da CRP.

Artigos 40º e 71º do CP.»

5. O Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, é de parecer que o recurso deve improceder, salvo no tocante à medida da pena, que pretexta ver reduzida a 8 anos de prisão.

6. O objecto do recurso reporta ao exame das seguintes questões:

(i) da invalidade da prova obtida por via dos registos de voz e imagem;

(ii) do erro de direito na declaração de perda do veículo;

(iii) do erro de direito em matéria de medida da pena.

II

7. O recorrente reedita a questão (já levada ao exame do Tribunal da Relação) da invalidade dos registos de voz e imagem recolhidos no interior da garagem colectiva onde (nos termos acusados e adrede comprovados – ponto 1) armazenava o haxixe que (com os co-arguidos) transaccionava, alegando, no essencial, que, mesmo autorizada por decisão judicial e sob invocação do disposto no artigo 6.º, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro (Lei 5/2002), a lei não consente tal recolha dentro de espaços vedados ao público, como era o caso da garagem, mas apenas em espaços publicos, e não o consente, como no caso, com a presença dos agentes policiais que operaram os equipamentos técnicos, pretextando tratar-se de prova proibida, nos termos prevenidos no artigo 126.º, do Código de Processo Penal, com violação do disposto nos artigos 18.º, 26.º e 34.º, da Constituição.

8. Consentindo, por um lado, que a questão transcende o exame da matéria de facto, subtraído aos poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 434.º, do CPP), e admitindo, por outro lado, que a questão não se encontra sanada pelo trânsito em julgado da decisão do Tribunal da Relação (mesmo face à mera reprodução do antes alegado, sem censura, expressa e outra, sobre o ali decidido), a sem razão do recorrente, nesta parcela, afigura-se evidente.

9. E assim, desde logo, na medida em que o artigo 6.º, da Lei n.º 5/2002, não restringe a possibilidade de recolha a locais públicos.

10. Nos termos prevenidos no artigo 6.º n.º 1, da Lei n.º 5/2002 (que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada, e, nomeadamente, um regime especial de recolha de prova, relativa aos crimes de tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21.º a 23.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), relativo ao registo de voz e de imagem, é admissível, quando necessário para a investigação daqueles crimes, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado.

11. Por outro lado, como se salientou, com incontornável acerto, no acórdão recorrido (transcrição):

«Ora, no que aos autos importa, o registo de voz e imagem, na garagem em concreto referida, foi determinada/autorizada em inquérito por despacho de juiz de instrução de fls. 955 datado de 23/03/2017, cujos fundamentos se dão por reproduzidos, que considerou, ademais, indispensável em termos probatórios tal registo, atentos os elementos de prova carreados para os autos. Aliás, a captação de imagens aos suspeitos já havia sido considerada necessária anteriormente tendo sido autorizada a 30 de Setembro de 2015 (despacho de fls. 556/557) e sucessivamente prorrogada pelos resultados positivos em termos probatórios da sua essencialidade.

O registo de voz e imagem autorizado à garagem foi determinado na sequência das vigilâncias levadas a cabo pelo órgão de polícia criminal daí resultando fortes indícios de que os aí suspeitos, agora arguidos, DD e AA armazenavam haxixe numa arrecadação que se situava no interior da garagem colectiva (cfr. fls. 941 a 946 e 952). Daí decorreria, desde logo, a necessidade e mesmo a indispensabilidade de confirmar tais indícios de modo a carrear prova da autoria dos factos e modus operandi, como na verdade se veio a verificar, tendo sido determinante para o momento oportuno das buscas com vista à apreensão de prova (imagens recolhidas a 01/04/2017 – fls. 975, tendo sido ordenadas as buscas a 04/04/2018 – fls. 994 a 996 que culminaram com a detenção dos arguidos).

O despacho determina, especificamente, que o registo de voz e imagem aos suspeitos identificados nos autos e, nomeadamente, à suspeita DD, assim como a terceiros que com eles contactassem na garagem colectiva sita na praceta já mencionada.

Ora, apesar de o registo de voz e imagem ser numa garagem colectiva tal não afecta a esfera da privacidade de quaisquer outros utilizadores da garagem, desde que, não contactem com os suspeitos pois que quanto a esses não foi determinado o registo estando este devidamente restrito à necessidade do ilícito em investigação e aos então suspeitos. Na verdade, o órgão de polícia criminal não extravasou o âmbito do que foi determinado pelo mencionado despacho judicial tendo sido registadas apenas as imagens referentes aos suspeitos.

Salienta-se que, tal como visionado, o registo de imagem e som limita-se ao veículo identificado e aos agora arguidos, suspeitos à data, AA e DD a descarregar e transportar os fardos que, posteriormente, foram apreendidos nas buscas que seguidamente, e depois de se confirmar os indícios da factualidade descrita, foram ordenadas por despacho já referido de fls. 994 a 996.

Acresce que, ao contrário do referido pelo arguido AA, o registo de voz e imagem não se limita aos espaços públicos não tendo o legislador feito constar tal restrição. Se outra tivesse sido a intenção do legislador tê-lo-ia, certamente, expressamente consignado como o faz no âmbito de outros meios de prova mais intromissivos, sendo que há jurisprudência que defende, até, que a autorização não é necessária quando a mesma seja em espaços públicos, posição que não sufragamos tendo de ser sempre autorizada por juiz de instrução esse registo de voz e imagem, por ter sido esse o espírito do legislador ao exigir e consignar expressamente essa autorização no nº 2 do citado art. 6º – vide Acórdão do STJ de 12.07.2007, in www.dgsi.pt.

Em face do supra exposto improceder a arguida nulidade.»

12. Não se vê que tal assertiva mereça qualquer reparo – nem o recorrente adianta, a respeito, para além da discordância, qualquer argumentação outra, que não tenha editado no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação – por isso que se não vê obstáculo à valoração da prova recolhida durante as vigilâncias (exceptuada, como se refere no acórdão revidendo, aquela recolhida no dia 22 de Março de 2017).

13. Termos em que, nesta parcela, o recurso não pode lograr procedência.

14. O arguido defende ainda que a declaração de perdimento do veículo automóvel de matrícula ….-NT-…. deve ser revogada «por falta dos critérios da causalidade, necessidade e proporcionalidade».

15. A apreciação de tal questão, do passo que assente na discussão da decisão sobre a matéria de facto (segundo o recorrente, «não se provou em concreto, o que fez o arguido com este veículo automóvel na prossecução do transporte de haxixe executado pela arguida DD»), está eximida aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 434.º, do CPP), não se evidenciando erro de procedimento ou nulidade insanada que, de ofício, suscite a intervenção, a respeito, deste Tribunal.

16. Como se salienta no acórdão do Tribunal da Relação revidendo, sem que o recorrente, para além da reedição da argumentação com que sindicou, a respeito, o acórdão de 1.ª instância, adiante qualquer objecção outra, (transcrição):

«No caso dos autos consta da matéria de facto provada que o veículo automóvel de marca ……., modelo ……., de cor branca, e matrícula …..NT, conduzido pelo arguido AA foi utilizado por este no transporte do haxixe de Ayamonte para o Pinhal Novo. Como resulta da factualidade provada pois o arguido AA desempenhava a função de “batedor” e a arguida DD transportava o haxixe, pelo que a respetiva utilização do veículo automóvel desenvolvia ma função instrumentalmente necessária ou essencialmente modeladora do modo de cometimento da infração, não podendo o crime ser praticado na forma em que o foi, sem a utilização do mesmo veículo automóvel, revestindo tal utilização nos termos que resultaram provados, um sentido funcionalmente relevante que é exigido para o preenchimento do pressuposto de que a lei faz depender a declaração de perda.

De igual forma tendo resultado provado que o arguido/recorrente “detinha, no interior da sua residência, sita na Rua ……., Nº ….., …….., …….., € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) em numerário, produto da actividade de narcotráfico que desempenhava” manifesto resulta que tal montante era produto da actividade criminosa de tráfico de estupefacientes desenvolvida pelo arguido, pelo nos termos do disposto no artigo 110º, nº 1, Alínea b), do Código Penal e, 35º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, terá tal quantia de ser declarada perdida em favor do Estado.

Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal ad quem não pode deixar de julgar improcedente a invocada impugnação do Acórdão proferido relativamente ao perdimento a favor do Estado, do dinheiro apreendido e do veículo automóvel de marca .…. .»

17. Ademais, a declaração de perdimento em referência foi decidida com fundamento no disposto no artigo 35.º, do DL 15/93, não dependendo (como seria no caso de se fundar no disposto no artigo 109.º n.º 1, do CP) da comprovação perigosidade do próprio veículo ou do risco da sua utilização na prática de outras infrações.

18. Acresce salientar, como se salienta no acórdão revidendo, que, no caso, a verificação de uma relação de causalidade adequada instrumento / prática do crime, que o Supremo Tribunal de Justiça tem exigido, à luz do respeito pelos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, não merece qualquer reparo, quando os factos reportam o transporte entre Ayamonte, em Espanha, e Pinhal Novo, de 90 kg de haxixe, acondicionados num veículo tripulado pela co-arguida DD, utilizando o recorrente o veículo de matrícula ….-NT-…. no papel de «batedor», com o que se reitera a evidência de que «o «veículo desenvolvia uma função instrumentalmente necessária ou essencialmente modeladora do modo de cometimento da infração, não podendo o crime ser praticado na forma em que o foi, sem a utilização do mesmo veículo automóvel, revestindo tal utilização […] um sentido funcionalmente relevante que é exigido para o preenchimento do pressuposto de que a lei faz depender a declaração de perda.»

19. Termos em que, também nesta parcela, o recurso não pode lograr provimento.

20. O arguido questiona a medida da pena, de 9 anos de prisão, concretizada nas instâncias, defendendo que deve ser reduzida a 6 anos de prisão, aduzindo, em abono, que a actividade de tráfico de estupefacientes se concretizou «no tempo em quantidade um transporte de haxixe de 90 kg.», e que, quanto ao mais, «resultou indeterminada a quantidade de estupefaciente, bem como o momento ou circunstâncias de uma qualquer transacção», que «está liberdade desde Abril de 2019», e que «está, neste momento, inserido social, familiar e profissionalmente.».

Vejamos.

21. Os Senhores Juízes do Tribunal recorrido sedimentaram como provada a seguinte matéria de facto (transcrita na parcela que releva para apreciação do recurso):

«1) No dia 01 de Abril de 2017, AA e DD deslocaram-se a Ayamonte onde adquiriram três fardos de haxixe, com o peso total de 90.000,00 gr, pelo preço de 95. 000,00 € regressando nesse mesmo dia a Portugal, deixando os referidos fardos numa arrecadação de uma garagem coletiva, sita na …….., Nº ….., ……., …….. .

2)      Os arguidos destinavam tal haxixe à venda.

3)      No dia 05 de Abril de 2017, entre as 00H45 e a 01H00, no interior da referida arrecadação, AA e DD detinham:

- Trezentas placas de haxixe, acondicionadas em forma de fardo de palha, num saco de serapilheira com a inscrição D13,

- Trezentas placas de haxixe, acondicionadas em forma de fardo, num saco de serapilheira,

- Duas embalagens contendo 100 placas de haxixe, acondicionado em plástico, no interior de um saco desportivo de marca …., tudo se reconduzindo ao peso global de 82.713,600 gramas, idóneas a consubstanciar 264.683 (duzentas e sessenta e quatro mil, seiscentas e oitenta doses individuais).

- Sacos do lixo, invólucros de plástico, um x-acto, uma embalagem de lâminas próprias para x-acto e dois rolos de película aderente, que utilizavam para dividir e acondicionar o haxixe.

4)      Os arguidos haviam já procedido à distribuição por pessoas não concretamente determinadas de parte do estupefaciente que haviam adquirido e transportado de Ayamonte.

5)      Os arguidos, assim como o arguido EE, já, anteriormente, noutras ocasiões, em datas não concretamente determinadas dos anos 2014 a 2018 (corrigido para 2017), pelo menos por mais quatro vezes, se haviam deslocado a Espanha a adquirir haxixe, tendo adquirido, de cada vez, quantidades menores do que aquela que supra se refere, mas não inferiores a 30 kg.

6)      Numa dessas deslocações os arguidos não chegaram a adquirir produto estupefaciente.

7)      Nessas deslocações, o arguido AA conduzia o automóvel que seguia à frente, como se tratando de um "batedor" enquanto a arguida DD conduzia o segundo veículo, onde era transportado o haxixe, muitas vezes acompanhada pelo arguido EE.

8)      Os arguidos mantinham entre si contatos telefónicos diversos durante o trajeto, assim como no dia-a-dia, do mesmo modo que os mantinham com revendedores e consumidores de produtos estupefacientes.

9)      O estupefaciente, haxixe, depois de assim adquirido era, seguidamente guardado por AA e DD numa arrecadação, por esta última arrendada, de uma garagem coletiva sita na …….., Nº ……, …….., …….., arrecadação da qual tinham a chave os arguidos AA, DD e EE.

10) Quando chegavam ao ………, o arguido AA passava várias vezes pela rua onde se situava a referida garagem colectiva, a fim de verificar da segurança de efetuar o transporte, estacionava à entrada, enquanto a arguida DD, acompanhada ou não pelo arguido EE, entrava para o interior da tal arrecadação ….., conduzindo o veículo que trazia o produto estupefaciente.

Mais se apurou que:

11) AA e DD, no dia 01 de Abril de 2017, deslocaram-se a Ayamonte nas viaturas a cada um pertencentes, o arguido AA no veículo de marca …….. modelo ……, de cor branca, e matrícula ….-NT-….. e a arguida no veículo de marca ………, modelo …….. e matrícula ….-…..-SV.

12) Pelo transporte do haxixe no dia 1 de Abril de 2017 a arguida DD recebeu a importância de 4.0000,00 €, que o arguido AA lhe pagou.

13) Nas anteriores deslocações os arguidos usaram viaturas alugadas e viaturas próprias, não concretamente especificadas.

Mais se apurou que:

14) O arguido AA mantinha os contatos com as pessoas, não concretamente determinadas, a quem adquiria o produto estupefaciente, sendo ele que procedia ao pagamento do haxixe, custeava as despesas de deslocação, designadamente de aluguer das viaturas, gasolina, portagens.

15) Posteriormente, por indicação do arguido AA, os arguidos DD e EE, procediam à venda do haxixe a consumidores ou outros revendedores de rua.

16) Retiravam o haxixe da arrecadação e distribuíam-no a vários indivíduos, em datas não concretamente apuradas dos anos 2014 a 2018 (corrigido para 2017), e quantidades não concretamente determinadas, entre eles a FF, GG e HH, mormente na casa dos pais do FF, sita na Rua ………., Nº ….., ……, …….., …….., na casa de HH, sita na Rua ……. Nº ……., ……., …….., onde residia também o arguido II e posteriormente noutra casa dos pais deste, sita na Rua ………, Nº ……., ……., onde residiam com o arguido JJ em cujo quarto era armazenada a maior parte do produto estupefaciente.

17) Do mesmo modo, o arguido EE, entregou a KK, durante o período supra referido, em número de vezes não concretamente determinadas, quantidades diversas de haxixe.

Apurou-se ainda que:

18) No dia 05 de Abril de 2017, pelas 06H44, AA detinha, em ……….., ………:

- Veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca ….., modelo ….., de cor branca, e matrícula ….-NT-….;

- Telemóvel de marca …., modelo , de cor branca e IMEI ……….., com o cartão SIM da rede Vodafone nº ……….;

- Telemóvel de marca …., de cor preta e vermelha e IMEI …….., com o cartão SIM da rede Vodafone nº ………. .

19) Nesse mesmo dia, mas pelas 09H15 e as 10H00, detinha, no interior da sua residência, sita na Rua ………, Nº ……., …….., ……….:

- € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) em numerário, produto da atividade de narcotráfico que desempenhava, ocultos no interior da caixa de estores do quarto que possuía em casa dos seus pais;

- Diversos artigos em ouro, com o peso total de 71,37

20) DD detinha, igualmente, consigo um telemóvel de marca …., de cor preta e IMEI ……….., um telemóvel de marca ….., de cor branca, com os IMEIS ……… e ……….. e € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros), em 22 notas de 10,00 euros e uma nota de 5, 00 euros.

21) Igualmente no dia 05 de Abril de 2017, entre as 02H50 e as 03H10, no interior do veículo automóvel de marca ……, modelo …….. e matrícula ….-…...-SV, conduzido e habitualmente utilizado por DD encontrava-se;

- Comando da garagem colectiva onde se encontrava a referida arrecadação;

- Chave da arrecadação;

- Oito talões de depósito do Banco Popular, no valor unitário de 130,00 euros;

- Um talão de depósito do Banco Popular, em nome de DD, no valor de 400,00 euros;

- Um talão de depósito do Banco Popular, no valor de 400,00 euros;

- Um talão de depósito do Banco Popular, em nome de EE no valor de 100,00 euros;

- Dois talões de pagamento de portagem Brisa, reportados a dia 01 de Abril de 2017 e a Castro Verde;

- Papéis com apontamentos, mormente matrículas de viaturas policiais descaracterizadas, números com referência a letras e nomes.

22) Também no dia 05 de Abril de 2017, entre as 02H00 e as 02H30, DD detinha, no interior da sua residência, sita na Rua ……., Nº ……, ………..:

- Cinco embalagens de Haxixe, com o peso de 491,00 gramas, idóneas a consubstanciar 1.571 (mil quinhentas e setenta e uma) doses individuais;

- Telemóvel de marca …., de cor preta e IMEI ………..;

- Telemóvel de marca ….., de cor preta e IMEI …………;

- Duas caixas de cartão telefónico, uma contendo o cartão SIM nº ………. e outra contendo o cartão SIM nº ………., que utilizava somente para falar com AA;

23) Por sua vez, no dia 05 de Abril de 2017, pelas 06H30, EE detinha consigo, no interior do parque de estacionamento coletivo da garagem sita na ………., …………, ……….:

- Telemóvel de marca ….., de cor preta e IMEI ………….;

- Telemóvel de marca….., de cor branca e IMEI ………….;

- Telemóvel de marca…., de cor laranja, com os IMEIS ………… e …………;

- Cartão da rede Moche introduzido no telemóvel Dual Sim da marca….;

- Cartão Payshop CTT com o número ………., utilizado no telemóvel de marca…… de cor preta;

- Veículo automóvel de marca …….., modelo …….., de matrícula ….-GN-…. .

24) Nesse mesmo dia, entre as 06H30 e as 07H30, detinha, também, na sua residência, sita ………., Nº ……., …….., ……..:

- Cinco embalagens de haxixe, com o peso de 142,217 gramas, idóneas a consubstanciar 450 (quatrocentas e cinquenta) doses individuais;

- Quarenta e sete notas de 50,00 euros, que se encontravam na mesinha de cabeceira do seu quarto, perfazendo o total de € 2.350,00 (dois mil, trezentos e cinquenta euros);

- Duas notas de 10,00 euros, que também se encontravam na mesinha de cabeceira do seu quarto, perfazendo um total de 20,00 euros.

25) Ainda no mesmo dia, mas pelas 13H10, na Esquadra da P.S.P. do ……….., sita na ………., Nº ….., ……, EE detinha:

- Trinta e cinco notas de 5,00 euros, perfazendo o total de € 175,00 (cento e setenta e cinco) euros;

- Uma nota de 10,00 euros;

[…]

39) Os arguidos AA, DD, EE, FF, GG e HH conheciam a natureza e características dos produtos estupefacientes que vendiam a consumidores e detinham em seu poder para esse efeito, designadamente haxixe, destinando-o à sua comercialização a toxicodependentes e consumidores.

40) Não obstante estarem cientes que a detenção nas quantidades referidas, a compra, a venda e cedência a terceiros de tal produto ser proibido e punido por lei, os arguidos quiseram deter e ceder tais substâncias com a finalidade de as vender a terceiros, mediante uma contrapartida monetária.

41) Os arguidos AA, DD e EE atuaram pela forma acima descrita, em união de esforços e concertadamente, sob a direção e organização de AA, agindo livre, deliberada e conscientemente, cientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

[…]

Mais se apurou que:

46) AA ingressou na escola na idade normal, tendo concluído o 12° ano depois de ter reprovado dois anos.

O pai era empregado da …….. e a mãe ……………. Tem uma irmã.

Começou a consumir canábis na adolescência, no contexto do grupo de pares e manteve esse consumo até à atualidade.

O arguido começou a trabalhar na ……… onde esteve contratado durante três anos.

Posteriormente ingressou nas …… da zona industrial da ……….. onde se tem mantido como efetivo e, no presente está com o contrato de trabalho suspenso, a aguardar o desfecho da presente situação judicial na empresa S……., como ………

Do ponto de vista familiar o arguido estabeleceu um relacionamento com LL, com quem passou a viver em união de facto há cerca de 10 anos. A companheira já tinha uma filha de outra relação, que viveu com o casal, mas, entretanto, autonomizou-se e constituiu família. A companheira faleceu em ….-…..-2017 na sequência de um tumor nos pulmões.

À data dos factos descritos na acusação o arguido vivia com LL, trabalhava na empresa S…… e auferia um vencimento líquido de € 1.100,00. O casal vivia em casa própria pela qual pagavam € 300,00 pela amortização do empréstimo bancário.

Durante o tempo em que se encontra recluso as despesas relacionadas com a habitação têm sido suportadas pela irmã.»

22. No que respeita à escolha e medida da pena, os Senhores Juízes do Tribunal da Relação ponderaram, a respeito, nos seguintes (transcritos) termos:

«O dolo, como sedimentado na 1ª instância, foi na modalidade de dolo directo.

Analisadas as circunstâncias da conduta em apreço e bem assim as que o Tribunal a quo enumerou, logo evidente se torna que o circunstancialismo em causa, nomeadamente a quantidade de produto estupefaciente apreendido, aponta para um limite mínimo ditado pela prevenção geral de integração muito acima do limite mínimo previsto na norma incriminadora, sob pena de insuficiente defesa do ordenamento jurídico.

E, à luz da prevenção especial que no caso não pode deixar de ter conteúdo negativo de intimidação individual, temos também um quadro que aponta para a necessidade de uma pena situada também acima do limite mínimo da medida abstracta legalmente prevista, atentos os inúmeros antecedentes criminais do arguido, nomeadamente, pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes e, obviamente, a pena a aplicar terá de ser distinta da de um agente que é primário, na prática de factos penalmente relevantes.

Pelo exposto e considerando que o limite mínimo da pena de prisão é de 4 (quatro) anos e o limite máximo de 12(doze) anos, artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, parece-nos patente que o Tribunal a quo no seu doseamento ponderou devidamente as circunstâncias apuradas e as aludidas finalidades das penas, sendo que a pena fixada não ultrapassa a medida da culpa do arguido, pois mostra-se devidamente ponderados o seu dolo directo e as suas características pessoais que nos autos resultaram provadas.

Na verdade, ter-se-á de ponderar o sistemático desrespeito pelo arguido, das normas legais, traduzido nas diversas condenações penais do mesmo, sem que tal determine uma qualquer alteração positiva do seu comportamento e, da sua inserção social.

Assim, o princípio moderador da culpa não se mostra beliscado com a pena fixada, em 9 (nove) anos de prisão.

Nestes termos, cremos que é de manter a pena aplicada, a qual não afronta os princípios da necessidade, proibição de excesso ou proporcionalidade das penas – cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa –, antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassa a medida da culpa do arguido.

Em face de tudo o que se deixa exposto, improcede, pois, na sua globalidade, o recurso interposto pelo arguido AA.»

Vejamos.

23. «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção», atendendo-se a «todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele» – artigo 71.º n.os 1 e 2, do CP.

24. Nos termos do disposto no artigo 40.º n.os 1, do CP, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», intervindo a culpa, a um tempo, como fundamento da pena e limite inultrapassável dela.

25. A função primordial de uma pena, sem embargo das finalidades assinadas à prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos de bens jurídicos penalmente protegidos.

26. Segundo a teoria da moldura da prevenção que o CP acolhe após a reforma de 1995, o limite mínimo da pena é dado pelo quantum dela que, em concreto, ainda assegure eficazmente essa protecção dos bens jurídicos, e o seu limite máximo é indicado pelo quantum que realize a protecção óptima desses bens, situando-se entre tais limites  o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente, que indica a pena concreta, limitada, se necessário, pelo máximo consentido pela culpa.

27. No caso, vejamos.

(i) a pena haverá de ser encontrada na variação dos 4 a 12 anos de prisão do art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, que nenhuma dúvida se suscita sobre a subsunção dos factos a esse tipo de ilícito;

(ii) os crimes de tráfico de estupefacientes têm grande repercussão social e trazem sempre consigo efeitos nefastos para a sociedade, potenciando a necessidade da reafirmação do valor tutelado pela norma de incriminação, o mesmo é dizer, elevando as exigências da prevenção geral de integração;

(iii) a quantidade significativa de produtos estupefacientes manuseados (não menos do 210 kg de haxixe), o alargado período da acção (mais de três anos), o carácter já organizado dela e o envolvimento de várias pessoas, acentuam o grau de ilicitude do facto e, por via dele, as apontadas exigências de prevenção geral;

(iv) o dolo directo, o papel determinante e de liderança do recorrente, a actuação conjunta e concertada e a intenção de obter ganhos concorrem para a acentuação da culpa;

(v) o recorrente é consumidor de cannabis desde a adolescência e conta com três condenações anteriores, uma por crimes de injúria, ofensa à integridade física simples e ofensa à integridade física qualificada (pena única de 2 anos de prisão, suspensa por 3 anos, que cumpriu), duas por crimes de tráfico de estupefacientes, um, simples, outro, agravado (penas de 5 anos de prisão, suspensa por igual tempo, e de 3 anos de prisão, suspensa por 5, respectivamente, que cumpriu), o que, pese embora as comprovadas condições de inserção familiar e os hábitos de trabalho, indicia forte necessidade de (res)socialização por via da pena.

28. Sem embargo, no comprovado contexto de culpa acentuada e de elevadas exigências de prevenção, figura-se que, naquela moldura abstracta (4 a 12 anos de prisão), levando também em sopeso a idade presente do recorrente (47 anos) e as condições de reinserção de que ainda beneficia, a pena de 7 anos de prisão, aquém do ponto médio, melhor se adequará à dimensão da sua responsabilidade e às exigências de prevenção.

29. Termos em que, neste segmento, o recurso interposto pelo arguido, visando a redução da pena concreta, merece provimento.

30. Em conclusão e síntese:

(i) não constitui prova proibida aquela recolhida, através de gravação de imagem, no interior da garagem em que o arguido acondicionava o produto estupefaciente que destinava à venda a terceiros, autorizada nos termos do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002;

(ii) não suscita reparo a declaração de perdimento de veículo utilizado pelo arguido, como batedor, na transferência do produto estupefaciente, conforme o disposto no artigo 35.º, do DL 15/93;

(iii) no quadro delitivo apurado, em que releva o manuseio de 210 kg de haxixe, durante três anos, em grupo, de forma organizada, sob liderança do arguido, consumidor de tal substância, com pretérito delitivo (também) por crimes de tráfico de estupefacientes, revelando acentuados factores de inserção familiar e laboral, a pena de 7 anos (a tanto se reduzindo a pena de 9 anos de prisão concretizada nas instâncias), na moldura abstracta de 4 a 12 anos de prisão, figura-se adequada e suficiente para satisfazer as necessidades de prevenção, respeitando os limites da culpa.

31. Não é devida tributação – artigo 513.º n.º 1, do CPP.

III

32. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:

a) julgar o recurso interposto pelo arguido parcialmente procedente, reduzindo-se a 7 (sete) anos a pena de 9 (nove) anos de prisão estabelecida nas instâncias;

b) não caber tributação.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2021

António Clemente Lima (Relator)

Margarida Blasco