Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2017/11.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: FACTOS COMPLEMENTARES
FACTOS CONCRETIZADORES
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
INSTRUÇÃO DO PROCESSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
SUBSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Data do Acordão: 12/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO PARCIALMENTE
Sumário :
I. A possibilidade de serem considerados factos não alegados pelas partes que resultaram da instrução da causa, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, exige que ambas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre os factos aditados, o que inclui a possibilidade de produzir prova e contraprova sobre eles.

II. Essa possibilidade só pode ser proporcionada se o tribunal, antes de proferir a sentença, sinalizar às partes os factos que, apesar de não terem sido por elas alegados, se evidenciaram na instrução da causa e sejam relevante para a decisão da mesma, permitindo que estas se pronunciem sobre eles e concedendo-lhes prazo para indicarem os meios de prova que pretendam produzir, relativamente aos factos aditados ao objeto do litígio.

III. Em caso de ausência ou deficiência de fundamentação da decisão da matéria de facto pelo tribunal da 1.ª instância, o Tribunal da Relação apenas está vinculado a determinar a remessa dos autos àquele tribunal para proceder à fundamentação em falta, quando a mesma seja requerida por alguma das partes que, face a essa omissão ou deficiência, invoque dificuldades em deduzir ou contrariar a impugnação da decisão sobre matéria de facto, ou, por iniciativa do tribunal de recurso, quando essa falta ou deficiência o impeça de apreciar devidamente a impugnação deduzida, por não saber qual a motivação do tribunal da 1.ª instância.

IV. Nesses casos, ao Tribunal da Relação, agindo como tribunal de substituição, não lhe está vedado, caso não entenda não ser necessário conhecer a motivação do tribunal da 1.º instância, relativamente aos factos considerados provados ou não provados, proceder à valoração da prova produzida, segundo a sua apreciação, ou seja, com autonomia, relativamente ao que foi decidido na 1.ª instância.

Decisão Texto Integral:

I - Relatório

O Autor propôs ação declarativa contra o Réu, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 72.478,39, acrescida dos juros que se vencerem, à taxa legal, sobre o montante de € 66.291,21, desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que o Réu é beneficiário titular do SAMS, tendo o Autor prestado serviços de saúde à sua filha (beneficiária por via do pai), que o mesmo não pagou, apesar de interpelado para o efeito.

O Réu contestou, por exceção e por impugnação, e deduziu reconvenção.

Defendendo-se por exceção, alegou que, embora a sua filha tivesse, efetivamente, beneficiado dos cuidados médicos invocados na petição inicial, o estado de saúde da mesma agravou-se devido, única e exclusivamente, à falha do equipamento colocado no seu organismo (sleeve) e à negligência grosseira do serviço hospitalar prestado pelo Autor.

Em reconvenção, pediu a condenação do Autor no pagamento duma indemnização de € 75.000,00, a título de danos morais.

Requereu a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros Macif, S.A, atualmente Caravela, S.A.

Pediu ainda a condenação do Autor, em multa e indemnização, por litigância de má fé.

O Autor replicou, respondendo à matéria da exceção e da reconvenção deduzidas pelo Réu.

Defendendo-se por exceção do pedido reconvencional, invocou a ineptidão do mesmo e alegou estar o invocado direito de indemnização do Réu prescrito.

Contestou igualmente o pedido da sua condenação como litigante de má fé.

Foi admitida a requerida intervenção principal provocada da Seguradora.

Esta contestou, por exceção, invocando a prescrição do direito de indemnização alegado pelo Autor.

No mais, impugnou os factos alegados na Contestação.

Instado para o efeito, o Réu veio explicitar que, de 2.9.2008 a 2.6.2011, nas diversas reuniões mantidas com os elementos da direção do SAMS, o Hospital reconheceu que o sucedido se havia dado por negligência médica e que os custos inerentes à intervenção e estadia da paciente BB (filha do Réu) seriam da responsabilidade do Hospital.

Tal alegação veio a ser impugnada pelo Autor e pela Interveniente

Findos os articulados, teve lugar uma audiência prévia.

Aí foi fixado o valor à causa e admitido o pedido reconvencional.

No despacho saneador, foi julgada improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial.

Não foi decidida a exceção de prescrição invocada pelo Autor/Reconvindo e pela Seguradora.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido posteriormente proferida sentença em 18.12.2018 com o seguinte teor decisório:

Em face do exposto, o tribunal julga a presente ação procedente por provada e a reconvenção improcedente por não provada e, consequentemente, decide:

a) Condenar o R. AA a pagar ao SBSI -Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, a quantia de € 66.291,21 (sessenta e seis mil, duzentos e noventa e um euros, e vinte e um cêntimos), acrescidos dos juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral e efetivo pagamento

b) Absolver o A., SBSI - Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas do pedido reconvencional deduzido pelo R 1.

O Réu interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação que, por acórdão proferido em 29.06.2021, decidiu conceder parcial provimento à Apelação, revogando a sentença recorrida e julgando a presente ação totalmente improcedente, razão pela qual absolvem o Réu ora Apelante do pedido condenatório contra ele deduzido pelo Autor/Apelado (condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 72.478,39, acrescida dos juros que se vencerem, à taxa legal, sobre o montante de € 66.291,21, desde a data da citação até integral e efetivo pagamento). No mais (absolvição do Autor/Reconvindo do pedido reconvencional), confirmam a sentença recorrida.

Deste acórdão recorreu o Autor para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

1. O douto Acórdão contém, no seu texto, várias violações da lei processual que configuram, a nosso ver, nulidades processuais, as quais são dirigidas à 2ª Instância no requerimento de apresentação de recurso, mas que são igualmente fundamento de revista, caso as mesmas não sejam atendidas pelo Tribunal “a quo”.

2. O facto aditado no douto Acórdão ao item 17 do elenco dos factos provados não foi alegado pelo R., e era um facto essencial.

3. Assim para que pudesse ter sido considerado, era essencial que o ora recorrido tivesse tido a iniciativa de declarar, em ata e antes do encerramento da discussão, que os considerava terem resultado da discussão, em ordem a permitir à parte contrária pronunciar-se sobre tais factos, mesmo que fossem complementares.

4. É evidente a contradição dos termos do Acórdão, pois se expende a tese vertida na conclusão anterior, como reconhecendo o Acórdão que tal matéria não foi alegada, a mesma não foi vertida em ata, nem o Recorrente teve oportunidade de se pronunciar.

5. Assim o ora Recorrido, por não ter cumprido tais pressupostos não se podia aproveitar de tal factualidade não invocada ou alegada.

6. Tal matéria não respeita a prova vinculada, sendo livre a apreciação correta feita na 1ª Instância, a qual deve ser mantida em relação ao facto 17 dos factos provados, estando o Acórdão nesta parte ferido de nulidade na parte em que alterou a resposta dada – artigos 615º nº 1 c) e d), 662º, nº 1, ex vi nº1 do art. 195º, todos do CPC, uma vez que não foi dada, de forma efetiva, ao ora recorrente, a oportunidade de se pronunciar sobre tal factualidade não alegada à luz das normas dos artigos 3º nº 3, 4º e 5º nº 2 alínea h), todos também do CPC

7. No que tange à matéria do ponto 3 dos factos não provados, ao considerar-se que o Tribunal da 1ª Instância não fundamentou a razão pela qual considerava tal matéria como não provada, deveria - se o facto era essencial para o julgamento da causa - ter determinado que o processo tivesse baixado à 1ª Instância para que este o fundamentasse, nos termos do artigo 662, nº 2 do CPC mas, não o tendo feito, tal irregularidade influi na decisão da causa e da sua omissão decorre a nulidade do douto Acórdão, nos termos do artigo 195º do CPC.

8. Mas, mesmo na questão de fundo, decorre do próprio aresto em causa matéria no sentido de que tal facto não pode ser dado como provado uma vez que o Recorrido - como consta na decisão - não praticou nenhum dos factos ou atos a que se reporta a matéria do nº 3 do elenco dos factos não provados, pelo que ao alterar-se tal matéria de facto ocorreu deficiente aplicação do disposto no nº 1 do artigo 662º do CPC, daqui decorrendo a nulidade do acórdão neste segmento, uma vez que os factos-fundamento estão em oposição com a decisão - alíneas b) e c) do número 1 do artigo 615º do CPC.

9. Mas, e ainda por outra via, decorre a nulidade da decisão, uma vez que, sempre considerando o papel delimitador das conclusões do recurso, a decisão recorrida extravasou a conclusão 36 das alegações do então recorrente, que aqui se dá por reproduzida, dando como provados factos que nem sequer foram alegados ou objeto de recurso, ultrapassando assim os limites da faculdade de alteração da matéria de facto previstos no CPC, nem sequer tendo sido dada às partes a oportunidade de se pronunciar sobre o facto não objeto de recurso, pelo que, ainda aqui se verifica nulidade uma vez que tal omissão influiu na decisão da causa (nº 1 do artigo 195º do CPC), existindo também nulidade na medida em que o acórdão conheceu de questão de que não poderia tomar conhecimento - artigo 615º nº 1 d) do CPC.

10. Ao aditar-se nova matéria de facto ao item 37 do elenco dos factos provados, ocorreu a prática de nulidade processual, uma vez que tais factos não foram alegados pelo então recorrente, não podendo ser considerados pelo Tribunal sem que a parte contrária tivesse tido a oportunidade de se pronunciar, em violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes (artigos 3º e 4º do CPC), sendo aqui inaplicável o disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 5º do CPC, e devendo assim manter-se tal facto na sua redação primitiva.

11. Ao aditar-se ao elenco dos factos provados a matéria do nºs 5 dos factos não provados (reformulada), do nº 4 e do nº 6, foi praticada nova nulidade processual por ter sido feita incorreta e extravasante aplicação do poder do Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto, uma vez que, devendo tomarem consideração todas as provas produzidas (artigo 413º do CPC), não podia tomar em consideração nem factos inexistentes nos autos ou não invocados pelas partes, nem misturar conclusões com factos.

12. Ao praticar tal conduta no douto Acórdão, violaram-se os comandos dos artigos 3º, 4º e 5º nº 2 b) do CPC, o que também configura nulidade processual nos termos do nº1 do artigo 195º do CPC.

13. E não é legítimo, em sede de recurso, reformular a matéria de facto dada como não provada, alterando os factos invocados e não provados, modificando factos de molde a serem adaptados aos interesses processuais do recorrente, o que ocorreu na impugnação da matéria não provada no nº 5 em que se passou a pretender incluir uma factualidade completamente diferente, a qual nem sequer podia ter sido considerada por não ter sido sequer alegada e, ao não considerar tal situação, verificou-se a nulidade apontada na conclusão antecedente.

14. Quanto ao nº 4 do elenco dos factos provados é evidente a contradição entre o facto agora dado por provado e os fundamentos de prova, ocorrendo aqui a nulidade a que se reporta o nº 1 c) do artigo 615º do CPC uma vez que nenhuma prova existe nos autos de que o então recorrente nunca mais conseguir dormir, entre 21/07/2008 e novembro de 2011, sem o auxílio de medicamentos

15. Quanto ao nº 6 do elenco dos factos não provados, ao inserir-se matéria reformulada e diversa da não considerada não provada pelo Tribunal, o Tribunal da Relação cometeu nulidade por que extravasou os poderes do artigo 662º do CPC.

16. E se nenhuma prova for feita no sentido da matéria em causa, bem julgada como não provada, a verdade é que agora se vão alegar factos novos e diversos, a que o Tribunal não podia ter atendido, aqui se praticando nulidade processual - artigos 195º e 615º nº 1 d) do CPC.

17. Ao eliminar do elenco dos factos provados a matéria do item 50, o douto Acórdão fez errada interpretação dos factos e extravasou a faculdade do artigo 662º do CPC

18. E eliminando um segmento que ninguém colocou em causa “Nessa sequência fez nova laparotomia”, fez errado a aplicação do artigo 662º do CPC, ocorrendo aqui nulidade por falta de fundamentação para tal eliminação - alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC.

19. Ao eliminar toda a restante matéria do item 50, o douto Acórdão fez deficiente aplicação dos seus poderes de alteração da matéria de facto, misturando atos clínicos diversos com diferente alcance, contrariando os entendimentos expendidos na perícia médico legal que considerou que a laparotomia era uma das opções possíveis para controlo do quadro séptico desencadeado por uma fístula gástrica.

20. Ao decidir pela inserção da factualidade propugnada pelo ora recorrido no elenco dos factos provados, dada a patente contradição entre a decisão e os seus fundamentos, ocorre nulidade do acórdão - alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, devendo ser mantida a resposta dada na 1ª Instância.

21. Na sua contestação, o ora recorrido não exerceu qualquer direito à resolução do contrato de prestação de serviços médicos celebrado com o Sindicato recorrente.

22. Tal entendimento que flui do Acórdão recorrido é contraditado frontalmente com a postura do recorrido no seu recurso, o qual alega que a despesa em causa não era de sua responsabilidade, uma vez que os serviços foram prestados à sua filha maior.

23. Esta posição do ora recorrido é incompatível com a invocada denúncia do contrato de prestação de serviços médicos imputada ao ora recorrido, uma vez que, não assumindo que celebrou o contrato em causa, nem sendo parte do mesmo, obviamente não o pode denunciar.

24. A alegada denúncia do contrato teria de ser invocada por exceção na contestação, mas como o próprio recorrido reconhece nada excecionar, tendo apenas impugnado, a sua conduta processual não configura qualquer denúncia do contrato.

25. Não tendo ocorrido qualquer resolução contratual, mesmo que implícita, falta o indispensável sustento de facto na douta decisão que não pode subsistir, antes devendo esta ser revogada e mantida, nos seus precisos termos, a decisão da 1ª Instância.

26. Inexistiu incumprimento por parte do ora Recorrente do contrato de prestação de serviços médicos com o Recorrido.

27. Mesmo admitindo, como mera hipótese de raciocínio, que a alta em 18.7.2008 foi dada precocemente, a situação foi resolvida com o reinternamento em 21.7.2008, não se tendo provado qualquer nexo de causalidade entre tais factos e todo o conjunto de factos posteriores, sendo certo que as fístulas apareceram em locais diversos.

28. Na tese do perito do INML a cirurgia era uma das opções possíveis, o que significa que o A. executou uma das opções possíveis, inexistindo qualquer cumprimento defeituoso da prestação e não existindo qualquer contradição entre a prova testemunhal e a perícia.

29. Com efeito, a perícia releva que o entendimento expendido de que a colocação de prótese por via endoscópica na tentativa de encerramento da fístula e de drenagem percutânea dos abcessos, são geralmente as atitudes de primeira escolha.

30. Mas tal raciocínio depende de diversos factos, como se assinala na perícia, isto é, se as condições clínicas do doente o permitirem, se tecnicamente são possíveis de executare se estão disponíveis para serem utilizados, factos que não se provaram.

31. Todavia, para além destas condicionantes, a perícia não deixa de assinalar que a situação é controversa na literatura, sendo a atitude clínica dependente do local da fissura, do dia pós-operatório em que se manifesta e da sua magnitude.

32. O douto Acórdão não considerou todas estas condicionantes, fazendo uma leitura parcial da perícia, a qual assinala uma factualidade de possibilidade ou controvérsia, mas nunca de certeza, pelo que não é possível concluir, como o fez o douto acórdão, que ocorreu um cumprimento defeituoso da prestação.

33. Não houve assim má prática médica, nem o R. logrou demonstrar qualquer erro médico, sendo certo que, apesar de se tratar de uma obrigação de meios, o resultado foi conseguido - a BB está de boa saúde no que à cirurgia diz respeito.

34. Perante as nulidades acima apontadas e as mencionadas violações da lei processual, devem as mesmas ser procedentes e revogado o Douto Acórdão, antes se decidindo no sentido da decisão proferida pela 1ª Instância.

*

II – Objeto do recurso

No recurso interposto, além do mais, o Autor imputa ao acórdão recorrido os seguintes vícios:

- Contradição na motivação da prova do facto 26-A.

- Indevida inclusão dos factos provados n.º 29.º-A, 31.º-A e 31.º-B.

- Contradição na exclusão dos factos provados do facto n.º 50.

- Indevida exclusão da menção a uma laparotomia que se encontrava referida no facto n.º 50.

Conforme resulta, com evidência, das alegações da Recorrente, a invocação da existência de contradições entre a fundamentação e as decisões de incluir nos factos provados o facto n.º 26-A e de excluir dos factos provados o facto n.º 50 consubstancia apenas uma discordância quanto à valoração dos meios de prova efetuada pelo Tribunal da Relação ao apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o que não é suscetível de constituir fundamento do recurso de revista, atenta a limitação das competências do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 674.º, n.º 3, primeira parte, do Código de Processo Civil), pelo que tal matéria não pode integrar o objeto deste recurso.

Quanto à alegada inclusão indevida dos factos provados n.º 29.º-A, 31.º-A e 31.º-B, constata-se que tais factos respeitam à causa de pedir do pedido reconvencional indemnizatório formulado pelo Réu. Uma vez que esse pedido já foi julgado improcedente pelo acórdão recorrido, tendo esse segmento decisório já transitado em julgado, dado que não foi objeto de impugnação, a apreciação desse fundamento do recurso revela-se inútil, pelo que também não deve o mesmo integrar o objeto do recurso.

Quanto à exclusão dos factos provados (n.º 50) da realização de uma laparotomia na sequência do ocorrido em 8 de setembro de 2008, trata-se de um mero lapso, uma vez que conforme resulta, com evidência, da fundamentação do acórdão recorrido, na parte em que conheceu da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apenas se pretendeu excluir do facto que tinha sido dado como provado pela sentença da 1.ª instância sob o n.º 50 que essa laparotomia era um ato médico que era "o necessário e adequado" para resolver esta ocorrência pós-operatória. Esse lapso deve aqui ser corrigido, aditando-se à matéria de facto a parte daquele n.º 50 que o acórdão recorrido não visou excluir dos factos provados, ficando, pois, prejudicada a apreciação dessa questão.

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações e pelo conteúdo da decisão recorrida, o mesmo é, então, após as delimitações acima traçadas, constituído pelas seguintes questões:

- não é admissível o aditamento pelo acórdão recorrido ao facto provado n.º 17 que não tinha sido realizado qualquer exame para apurar da existência de fistula, não obstante tal exame ser prática médica do Autor ?

- não é admissível que o acórdão recorrido considere provado o facto n.º 26-A, quando a sua não prova não se encontrava fundamentada na decisão da 1.ª instância ?

- não é admissível que o acórdão recorrido adite factos não alegados no facto n.º 26.º-A ?

- não é admissível que o acórdão recorrido adite factos não alegados no facto n.º 37 ?

- não foi exercido pelo Réu o direito de resolução do contrato de prestação de serviços médicos ?

- mesmo que o tivesse sido, o seu exercício integraria uma situação de abuso de direito ?

- nos procedimentos médicos adotados, não se verificou qualquer má prática médica ?

*

III – Os factos

Após a modificação da decisão da matéria de facto pela Relação, passaram a ser os seguintes os factos provados:

l. O Autor, tem na sua estrutura um serviço de prestação de assistência médica, tanto hospitalar como ambulatória: os denominados "SAMS - Serviços e Assistência Médico-Social".

2. Os SAMS - Serviços de Assistência Médico-Social do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas - asseguram aos seus beneficiários a proteção na saúde, através da prestação interna de cuidados quer através da rede de ambulatório, quer no "Hospital dos SAMS", situado nos ..., em ...;

3. Em contrapartida da prestação dos cuidados de saúde, os beneficiários ficam obrigados perante o SBSI ao pagamento de encargos que são fixados em tabelas próprias, a valores mais vantajosos do que o custo suportado por utentes desses serviços que não sejam beneficiários dos SAMS;

4. O Réu é beneficiário titular dos SAMS e nessa qualidade constituiu-se como responsável pelos encargos com a prestação de cuidados de saúde pelos SAMS, obrigando-se ao pagamento dos custos relativos não só a si próprio como a membros do seu agregado que inscreveu como beneficiários: nomeadamente a sua filha CC.

5. Entre 21/07/2008 e 02/03/2009 a filha do Réu CC esteve internada no Hospital dos SAMS, onde lhe foram prestados os serviços que se encontram descriminados na fatura nº .......42, emitida em 21/05/2009, no valor de 66.291,21€, conforme teor do documento de fls. 10 a 222, que no mais aqui se dá integralmente por reproduzida para todos os efeitos legais.

6. O valor constante daquela fatura corresponde ao encargo por conta do
beneficiário pela prestação dos cuidados de saúde faturados, depois de realizado o
correspondente desconto no valor de 318.506,59€ ao valor que seria aplicável a utente não
beneficiário, nos termos das tabelas em vigor.

7. O Autor enviou ao Réu aquela fatura.

8. No dia 15 de Julho de 2008 a filha do Réu, BB foi sujeita a intervenção cirúrgica no Hospital do SAMS.

9. A filha do Réu foi internada no Hospital do SAMS em 14 de Julho de 2008.

10. No exercício da sua actividade enquanto proprietário de um estabelecimento hospitalar, o Autor celebrou com a Companhia de Seguros Sagres S.A., atualmente denominada MACIF S.A., um contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice 80.0010742, conforme teor das respetivas condições gerais e especiais constantes dos documentos de fls. 300 a 309 e 349 e 350, que no mais aqui se dão integralmente por reproduzida para todos os efeitos legais.

11. Relativamente à anuidade de 2008 da apólice referida em J) a interveniente Macif já pagou o valor de 29.564,23€ [vinte e nove mil, quinhentos e sessenta e quatro mil euros e vinte e três cêntimos).

12. Em data anterior a Maio de 2007 em virtude de um problema de obesidade, após a realização de diversas consultas médicas foi sugerido à filha do Réu a realização de operação de cirúrgica, com vista à colocação de uma banda gástrica ou Sleeve;

13. A filha do Réu foi assistida no Hospital SAMS e, por indicação do médico do próprio SAMS, encaminhada para a respetiva operação.

14. Após a concordância do médico psiquiatra e do médico especializado, o Réu e a sua filha foram informados que a mesma seria operada.

15. Assim a filha do Réu efetuou os exames médicos e análises clínicas necessárias para a intervenção cirúrgica Sleeve, com vista à redução de peso e, consequentemente, à eliminação do problema de obesidade.

16. No dia 15 de Julho de 2008 foi feita a cirurgia de Sleeve gástrico à filha do Réu.

17. No dia 18 de julho de 2008 foi dada alta hospitalar à filha do réu, tendo a mesma e o ora Réu sido informados pelo Hospital SAMS que a operação havia corrido bem, não tendo a paciente sido antes submetida a qualquer exame destinado especificamente a detetar o aparecimento de eventuais fístulas.

18. No dia 21 de Julho de 2008 a filha do Réu deu entrada no serviço de urgência do Hospital SAMS, tendo realizado um T.A.C. que revelou uma fissura no estômago.

19. Do dia 18 de Julho a 21 de Julho de 2008 os alimentos líquidos e sólidos ingeridos pela filha do Réu, por força da fissura, não ficaram contidos no estômago.

20. A filha do Autor durante o internamento esteve em coma.

21. Em virtude de abcessos, fístulas e septicemia, a filha do Réu foi submetida a onze operações cirúrgicas nos seguintes dias:

- 23 de Julho de 2008;

- 30 de Julho de 2008;

- 12 de Agosto de 2008;

- 26 de Agosto de 2008;

- 8 de Setembro de 2008;

- 12 de Setembro de 2008;

- 18 de Setembro de 2008;

- 24 de Setembro de 2008;

- 30 de Setembro de 2008;

- 14 de Outubro de 2008;

- 18 de Outubro de 2008;

22. A filha do Réu, em virtude do referido em 21, esteve cinco meses internada nos cuidados intensivos do Hospital do SAMS.

23. O Réu acompanhou a filha em algumas consultas.

24. O Réu viu na possibilidade de colocação de um Sleeve e/ou banda gástrica a oportunidade de a sua filha ter um futuro melhor, mais saudável.

25. O Réu acompanhou a sua filha no internamento e até à sua recuperação ainda no Hospital quanto à intervenção realizada no dia 15 de Julho.

26. O Réu levou a sua filha para casa, após a alta hospitalar, tendo
permanecido em vigília permanente, uma vez que a sua filha queixava-se de dores na zona abdominal.

26-A. O Réu alertou por diversas vezes e já após a operação, que a filha se queixava de dores profundas, bem como de complicações de foro fisiológico (o dreno estava sempre a expulsar um líquido de cor branca que exalava um cheiro muito intenso e a paciente apresentava febre alta) e que, nos dois dias imediatamente seguintes à alta, a médica cirurgiã foi contactada telefonicamente, por diversas vezes, a qual, porém, minimizou as queixas e os sintomas que lhe foram relatados, dizendo aos familiares que a contactaram que não se preocupassem, porque era tudo normal.

27. Nos dias posteriores à alta hospitalar o Réu viveu momentos de desespero em virtude da sua filha sofrer de vómitos, dores e desconforto ao nível fisiológico;

28. Nos dias 18 a 21 de Julho de 2008 o Réu interiorizou que a filha estava em estado grave.

29. Desde o dia 21 de Julho de 2008 o Réu teve um agravamento do estado depressivo.

29-A. Nos dias que se seguiram ao internamento da sua filha, em 21 de julho de 2008, o Réu perdeu a sua capacidade de viver e de se orientar, passando a ter acessos de pânico;

30. Na sequência das onze operações cirúrgicas supra referidas, de cada vez
que era informado do estado de saúde da sua filha, o Réu sentia-se impotente para poder fazer qualquer coisa, sem certeza se veria a sua filha viva após a operação.

31. Na sequência do referido de 28 a 30, o Réu foi acompanhado em
psiquiatria.

31-A. O Réu, após o reinternamento da filha, nunca mais conseguiu dormir sem o auxílio de medicamentos.

31-B. Nesse período e em virtude do receio que sentia diariamente pela vida da sua filha diariamente, o Réu isolou-se em casa, deixou de conviver com amigos e terceiros e teve ideações suicidas.

32. No dia 8 de Setembro de 2008, a filha do Réu teve um agravamento de estado de saúde em que apresentava uma tensão arterial de 5-4, febre abaixo dos 36s, dificuldades em respirar, tendo sido transferida para os cuidados intensivos do Hospital SAMS.

33. Nessa ocasião a filha do Réu foi ventilada por meio de máquinas, e foi-lhe efectuada uma endoscopia e detetado uma nova fístula no estômago.

34. Desta feita, a filha do Réu permaneceu por vários dias em coma.

36. Na cirurgia realizada no dia 15 de Julho de 2008 à filha do Réu foram praticados os seguintes atos:

Incisão supraumbilical de l cm por onde se introduz optivue. Colocação de 2 trocares de 10 e 2 de 5 nos locais habituais.

Secção do grande epiploon ao longo da grande curvatura em toda a sua extensão Gastrectomia vertical, calibrada por sonda foucher, com echeilon gold e azul, reforçada por seemguard na primeira e última. Texte com azul patente.

Colocação de dreno subhepático esquerdo, extracção do estômago restante pela porta esquerda.

Sutura da parede por planos.

37. Quando deu entrada no Hospital em 21.07.2008, o dreno que havia sido colocado na filha do Réu estava a drenar mais líquido, líquido esse que tinha cheiro fétido e evidenciava existência de pus.

38. O TAC realizado permitiu constatar que o líquido de contraste saía, revelando uma fístula gástrica.

39. A ocorrência da fístula trata-se de uma complicação normal neste tipo de cirurgias.

40. As onze cirurgias supra referidas a que a filha do Réu foi submetida foram realizadas devido a episódios de aparecimento de sucessivas fístulas em locais diferentes do estômago da filha do Réu.

41. Antes de ter sido operada a filha do Réu tinha uma obesidade importante (108 Kg.).

42. Por força de um acidente de viação, a filha do Réu fez uma fratura de fémur com pseudartrose no local da fratura;

43. Na sequência de tal acidente fez síndrome depressivo reativo, perdeu a auto-estima e estava a ser acompanhada a nível psiquiátrico.

44. Impunha-se a realização de cirurgia para tentativa de resolução de todo o complexo quadro clínico da filha do Réu.

45. Após a realização das supra referidas cirurgias à filha do Réu, esta está integrada profissionalmente e realizada no plano pessoal e profissional.

46. O R. já antes do internamento da filha que vinha sendo acompanhado, a nível clínico, por psiquiatra dos serviços do A..

48. No dia 8 de Setembro de 2008 e por agravamento do seu estado de saúde, a filha do Réu foi transferida para unidade de cuidados intensivos por dificuldades respiratórias;

49. Nesse dia a filha do Réu realizou uma endoscopia digestiva alta que revelou nova fístula gástrica em local diferente das anteriores fístulas.

50. Nessa sequência realizou-se nova laparotomia 2.


*


IV – O direito aplicável

O Autor nas suas alegações de recurso imputa ao acórdão recorrido uma série de vícios na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que, a verificarem-se, consubstanciariam violações do exercício dos poderes da Relação na modificação da matéria de facto.

O Autor qualifica as imputadas violações de nulidades do acórdão, nos termos do artigo 615.º, aplicável ex vi artigo 666.º, ambos do Código de Processo Civil, ou de nulidades processuais, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil.

Tais violações constituem antes erro de julgamento, por violação de normas adjetivas, sendo as mesmas suscetíveis de fundamentarem o recurso de revista, apesar do disposto no artigo 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil. Na verdade, aquele preceito não deve ter uma aplicação rígida. Se, em princípio, o recurso de revista não é admissível dessas decisões, ele não pode deixar de o ser quando se questiona o modo como o exercício dos poderes da relação previstos no artigo 662.º do Código de Processo Civil foi efetuado ou quando se aponta o seu não exercício, quando ele era devido, assim como é admissível a sindicância expressamente prevista nos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil 3.

1. O aditamento ao facto n.º 17 da lista dos factos provados

Na sentença da 1.ª instância julgou-se provado no número 17 da lista dos factos provados que no dia 18 de julho de 2008 foi dada alta hospitalar à filha do Réu, tendo a mesma e o ora Réu sido informados pelo Hospital SAMS que a operação havia corrido bem.

O Réu, impugnando a decisão sobre a matéria de facto, no recurso de apelação interposto para o Tribunal da Relação, solicitou, face à prova produzida, que se aditasse àquele facto que não tinha sido realizado qualquer exame para apurar da existência de fistula, não obstante tal exame ser prática médica do Autor.

O Tribunal da Relação, apreciando este fundamento do recurso de apelação, após ter analisado as provas produzidas considerou que o facto em questão resultou da discussão da causa e a parte contrária teve oportunidade de exercer o contraditório a tal respeito (nomeadamente, juntando aos autos, até ao encerramento da discussão da causa, o registo da realização do mencionado exame radiográfico), pode e deve dar-se como provado que foi dada alta à filha do Réu, no dia 18 de julho de 2008, sem que se tivesse realizado qualquer exame prévio de deteção de eventuais fístulas.

Consequentemente, decide-se alterar a redação dada, em 1.ª instância, ao item 17) dos Factos considerados provados, conferindo-lhe estoutra: "No dia 18 de julho de 2008 foi dada alta hospitalar à filha do réu, tendo a mesma e o ora R. sido informados pelo Hospital SAMS que a operação havia corrido bem, não tendo a paciente sido antes submetida a qualquer exame destinado especificamente a detetar o aparecimento de eventuais fístulas".

Assim sendo, a Apelação do Réu procede, quanto a esta questão.

O Autor alega, no recurso de revista, a ilegalidade deste aditamento, uma vez que se tratava de um facto novo que a Ré não teve oportunidade de contraditar, dado que nunca foi sinalizado que esse facto ira ser sujeito a avaliação probatória.

Efetivamente, o facto em questão não havia sido alegado pelas partes nos articulados.

Dispõe, no entanto, o artigo 5.º, n.º 2, b), do Código de Processo Civil:

2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

(...)

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.

O facto aditado pelo Tribunal da Relação é efetivamente um facto complementar da factualidade alegada pelo Réu, na contestação, em defesa por exceção perentória impeditiva, na qual imputou à Ré um cumprimento defeituoso da prestação de cuidados de saúde cujo pagamento o Autor reclama na presente ação.

Será, por isso, suficiente, que o mesmo tenha resultado da prova produzida na instrução da causa para o tribunal da Relação o poder aditar, a pedido do Réu, na impugnação da decisão da matéria de facto deduzida nas alegações do recurso de apelação ?

O disposto no artigo 5.º, n.º 2, b), do Código de Processo Civil de 2013, corresponde essencialmente ao que constava do n.º 3, do artigo 264.º, do Código de Processo Civil de 1961, o qual havia sido introduzido pelo Decreto-lei n.º 180/96, de 25 de setembro 4, tendo a redação do código atual deixado de exigir a manifestação da parte interessada, para que integrem a factualidade relevante, os factos complementares ou concretizadores dos factos já alegados que apenas resultem da instrução da causa, podendo, por isso, a sua inclusão na factualidade integrante do objeto do processo ser da iniciativa do tribunal 5.

De modo a garantir o imprescindível exercício do contraditório, continua, no entanto, a exigir-se que ambas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre os factos aditados, o que inclui a possibilidade de produzir prova e contraprova sobre eles 6. Essa possibilidade só pode ser proporcionada se o tribunal, antes de proferir a sentença, sinalizar às partes os factos que, apesar de não terem sido por elas alegados, se evidenciaram na instrução da causa e sejam relevante para a decisão da mesma, permitindo que estas se pronunciem sobre eles, concedendo-lhes prazo para indicarem os meios de prova que pretendam produzir, relativamente aos factos aditados ao objeto do litígio 7.

Como bem se explicou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2017 8:

Admitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado.

Crê-se que a disciplina prevista no art. 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).

Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar. E só assim se assegurará um processo equitativo (art. 547º do CPC), facultando-se às partes o exercício pleno do contraditório, requerendo – como é admitido por qualquer das teses –, se for caso disso, novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam.

Consultando os autos, constata-se que essa sinalização nunca foi efetuada na 1.ª instância, pelo que não foi garantido o exercício do contraditório nem o direito à prova, relativamente ao facto aditado pela Relação no n.º 17 da lista dos factos provados, quando se refere: não tendo a paciente sido antes submetida a qualquer exame destinado especificamente a detetar o aparecimento de eventuais fístulas.

A sua invocação nas alegações do recurso de apelação, com a consequente possibilidade da parte contrária, na resposta, se pronunciar sobre a pretensão de aditamento de facto não alegado mas que sobressaiu na instrução da causa, não é suficiente para que encontre garantido o contraditório exigido na parte final da alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º, do Código de Processo Civil, não sendo, pois, permitido ao tribunal da Relação, nos casos em que o contraditório não foi assegurado na 1.ª instância, valorar a prova aí produzida, e decidir que o mesmo se encontra provado, aditando-o à lista dos factos provados 9.

Nessas situações, como ocorre no presente caso, deve a Relação, caso entenda que o facto é complementar dos factos já alegados, se evidenciou na instrução da causa e é relevante para o seu desfecho, utilizar o poder que lhe é conferido pelo artigo 662.º, n.º 1, c), do Código de Processo Civil, para ampliação da matéria de facto 10.

Ao ter feito um juízo probatório sobre o facto aditado sob o n.º 17 da lista dos factos provados, concluindo pela sua prova, o acórdão recorrido excedeu os poderes de modificação da matéria de facto por parte do tribunal de recurso.

Revelando-se que o facto indevidamente aditado fundamentou a decisão do recurso, justifica-se a anulação do acórdão recorrido, de modo a que o Tribunal recorrido exerça o poder que lhe é conferido pelo artigo 662.º, n.º 1, c), do Código de Processo Civil, relativamente a tal facto.

2. A inclusão do facto n.º 26-A na lista dos factos provados

A sentença da 1.ª instância incluiu na lista dos factos não provados sob o n.º 3: Nesta altura o Réu alertou por diversas vezes e já após a operação que a filha se queixava de dores profundas, bem como de complicações do foro fisiológico.

O Réu no recurso interposto para o Tribunal da Relação impugnou essa decisão.

O acórdão recorrido após referir que o Tribunal da 1.ª instância não havia fundamentado a razão pela qual havia considerado esse facto não provado, analisou a prova produzida, tendo concluído que se provou que o Réu alertou por diversas vezes e já após a operação, que a filha se queixava de dores profundas, bem como de complicações de foro fisiológico (o dreno estava sempre a expulsar um líquido de cor branca que exalava um cheiro muito intenso e a paciente apresentava febre alta) e que, nos dois dias imediatamente seguintes à alta, a médica cirurgiã foi contactada telefonicamente, por diversas vezes, a qual, porém, minimizou as queixas e os sintomas que lhe foram relatados, dizendo aos familiares que a contactaram que não se preocupassem, porque era tudo normal, tendo julgado procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto neste ponto, passando aquela factualidade a constar da lista dos factos provados sob o n.º 26-A.

O Autor alega no recurso de revista, em primeiro lugar, que não se encontrando fundamentada na sentença proferida pela 1.ª instância, a inclusão nos factos não provados do facto descrito sob o n.º 3 dessa lista, deveria ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 662.º, n.º 2, d), do Código de Processo Civil, não podendo o Tribunal da Relação proceder à alteração da decisão sobre a matéria de facto sem dispor dessa fundamentação.

Em matéria de modificabilidade da decisão de facto pelo Tribunal da Relação, esta deverá, mesmo oficiosamente, determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal da 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados (artigo 662.º, n.º 2, d), do Código de Processo Civil.

Apesar de no texto inicial do n.º 2 deste número se utilizar o termo deve, indicando que nas alíneas que se seguem se encontram enumerados poderes-deveres do Tribunal da Relação, no que respeita ao poder previsto na alínea d), deve entender-se que, em caso de ausência ou deficiência de fundamentação da decisão da matéria de facto pelo tribunal da 1.ª instância, apenas é obrigatória a remessa dos autos a esse tribunal para proceder à fundamentação em falta, quando a mesma seja requerida por alguma das partes que, face a essa omissão ou deficiência, invoque dificuldades em deduzir ou contrariar a impugnação da decisão sobre matéria de facto, ou, por iniciativa do tribunal de recurso, quando essa falta ou deficiência o impeça de apreciar devidamente a impugnação deduzida, por não saber qual a motivação do tribunal da 1.ª instância.

Na verdade, o Tribunal da Relação atua como tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal da 1.ª instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova 11, pelo que, quando não exista fundamentação da decisão sobre a matéria de facto na sentença proferida pela 1.ª instância objeto de recurso de apelação, o Tribunal da Relação, agindo como tribunal de substituição, não lhe é proibido proceder à valoração da prova produzida, segundo a sua apreciação, ou seja com autonomia, relativamente ao que foi decidido na 1.ª instância. A fundamentação dessa valoração no tribunal de recurso suprirá, assim, a ausência ou deficiência de fundamentação do juízo probatório efetuado pela 1.ª instância, ficando sanado aquele vício, pela fundamentação expendida pelo Tribunal da Relação 12.

Assim sendo, e uma vez que nenhuma das partes quando interveio no recurso de apelação veio invocar a falta de fundamentação da não demonstração do facto n.º 3 da lista dos factos não provados, podia o Tribunal de recurso não determinar a remessa dos autos à 1.ª instância para proceder à fundamentação devida, optando antes por conhecer do mérito da impugnação da decisão da matéria de facto, não configurando essa opção, necessariamente, uma infração ao poder da Relação previsto no artigo 662.º, n .º 2, d), do Código de Processo Civil.

Mas o Autor também alega que o teor do n.º 26-A da lista de factos provados contém matéria não alegada pelas partes.

Na sentença da 1.ª instância julgou-se não provado no n.º 3 da lista dos factos não provados que o Réu alertou por diversas vezes e já após a operação que a filha se queixava de dores profundas, bem como de complicações do foro fisiológico.

O Réu, impugnando a decisão sobre a matéria de facto, no recurso de apelação interposto para o Tribunal da Relação, solicitou, face à prova produzida, que se considerasse provado que o Réu alertou por diversas vezes e já após a operação, que a filha se queixava de dores profundas, bem como de complicações de foro fisiológico e que nos dois dias imediatamente seguintes à alta foi contactada a Dr.a DD por diversas vezes tendo sido relatado um agravamento do estado de saúde da BB, sem que nada tivesse sido feito ou sugerido

O Tribunal da Relação, apreciando este fundamento do recurso de apelação, após ter analisado as provas produzidas considerou provado que o Réu alertou por diversas vezes e já após a operação, que a filha se queixava de dores profundas, bem como de complicações de foro fisiológico (o dreno estava sempre a expulsar um líquido de cor branca que exalava um cheiro muito intenso e a paciente apresentava febre alta) e que, nos dois dias imediatamente seguintes à alta, a médica cirurgiã foi contactada telefonicamente, por diversas vezes, a qual, porém, minimizou as queixas e os sintomas que lhe foram relatados, dizendo aos familiares que a contataram que não se preocupassem, porque era tudo normal.

Lendo os articulados constata-se que no artigo 158.º da contestação apenas está alegado que o Réu alertou por diversas vezes e já após a operação, que a filha se queixava de dores profundas, bem como de complicações de foro fisiológico.

O que seguidamente consta entre parenteses no facto n.º 26-A tem um conteúdo meramente explicativo das alegadas complicações de foro fisiológico, pelo que se encontrava contido nos factos alegados, não se traduzindo, pois, num aditamento de factos não alegados.

Já a frase que se segue aos parenteses, segundo a qual nos dois dias imediatamente seguintes à alta, a médica cirurgiã foi contactada telefonicamente, por diversas vezes, a qual, porém, minimizou as queixas e os sintomas que lhe foram relatados, dizendo aos familiares que a contataram que não se preocupassem, porque era tudo normal, noticia a reação da médica cirurgiã aos alertas do Autor, traduz-se num facto novo, não alegado pelas partes, e que, segundo a fundamentação do acórdão recorrido terá resultado do depoimento de várias testemunhas.

Integrando este facto a categoria dos factos complementares da causa de pedir e tendo o acórdão recorrido retirado o mesmo dos atos instrutórios da causa, sem que se mostre que esse facto foi sinalizado às partes como podendo vir a integrar o objeto do processo, tal como já acima se referiu a propósito do aditamento de facto no n.º 17 dos factos provados, deveria o Tribunal da Relação ter utilizado o poder que lhe é conferido pelo artigo 662.º, n.º 1, c), do Código de Processo Civil, para ampliação da matéria de facto 13.

Ao ter feito um juízo probatório sobre o facto aditado sob o n.º 26-A da lista dos factos provados, concluindo pela sua prova, o acórdão recorrido excedeu os poderes de modificação da matéria de facto por parte do tribunal de recurso.

Revelando-se que o facto indevidamente aditado fundamentou a decisão do recurso, justifica-se a anulação do acórdão recorrido, nos termos do artigo 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, de modo a que o Tribunal recorrido exerça o poder que lhe é conferido pelo artigo 662.º, n.º 1, c), do Código de Processo Civil, relativamente a tal facto.

3. O aditamento ao facto n.º 37 da lista dos factos provados

A sentença da 1.ª instância incluiu na lista dos factos não provados sob o n.º 37: Quando deu entrada no Hospital em 21.07.2008, o dreno que havia sido colocado na filha do réu estava a drenar mais líquido.

O Réu no recurso interposto para o Tribunal da Relação pediu que, face à prova produzida, se aditasse que esse líquido tinha cheiro fétido e evidenciava existência de pus.

O acórdão recorrido, analisando a prova produzida, concluiu que o fato cujo aditamento se pretendia se encontrava provado pelo que determinou que o n.º 37 dos factos provados passasse a ter a seguinte redação: quando deu entrada no Hospital em 21.07.2008, o dreno que havia sido colocado na filha do Réu estava a drenar mais líquido, líquido esse que tinha cheiro fétido e evidenciava existência de pus.

O Autor entende que correspondendo o aditamento feito a um facto não alegado pelas partes, não podia o acórdão recorrido ter procedido à sua inclusão na lista dos factos provados.

O conteúdo aditado tem um conteúdo meramente explicativo do líquido drenado, pelo que se encontrava contido nos factos alegados, não se traduzindo, pois, num aditamento proibido de factos não alegados.

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

4. Conclusão

De acordo com os termos acima explanados quanto ao aditamento de factos não alegados nos n.º 17 e 26-A, tendo em consideração a melhor interpretação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, há que considerar que o tribunal a quo não utilizou o poder previsto na alínea c), do n.º 2, do artigo 662.º, do Código de Processo Civil, cuja aplicação se justificava, atenta a relevância que foi dada a esses factos.

Consequentemente, impõe-se a anulação do acórdão recorrido, nos termos do artigo 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, de modo a que o Tribunal da Relação exerça o referido poder, decidindo depois sobre o mérito da apelação conforme se entender por devido, atento o resultado do juízo probatório sobre tais factos.

Face ao decidido quanto à matéria de facto, a apreciação das restantes questões que integravam o objeto do recurso, sendo de direito, ficam prejudicadas.


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Decisão

Pelo exposto, decide-se o seguinte:

- retifica-se o lapso do acórdão recorrido, devendo manter-se na matéria de facto provada o n.º 50, com a redação - Nessa sequência realizou-se nova laparotomia;

- anula-se parcialmente o acórdão recorrido nos termos supra explanados, a fim do Tribunal da Relação exercer o poder referido na alínea c), do n.º 2, do artigo 662.º, do Código de Processo Civil, relativamente aos factos indevidamente aditados nos n.º 17 e 26-A dos factos provados, acima indicados, decidindo depois sobre o mérito da apelação conforme se entender por devido.


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Custas do recurso pelo Recorrido.

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Notifique.

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Lisboa, 7 de dezembro de 2023

João Cura Mariano (relator)

Ana Paula Lobo

Fernando Baptista

____


1. Implicitamente, a Seguradora terá sido também absolvida do pedido reconvencional.

2. Retificação acima efetuada aquando da delimitação do objeto do recurso.

3. ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, 2022, p. 363, LEBRE DE FREITAS, ARMINDO RIBEIRO MENDES e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 3.ª ed., p. 177, RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2018, p. 339-341, e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, por todos, o recente acórdão de 02.11.2023 (Rel. Barateiro Martins).

4. Podemos ler um relato dos trabalhos preparatórios da introdução desta novidade no nosso sistema processual civil pelo Anteprojeto da Comissão Varela, em LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, 2018, p. 38-40.

5. PAULO RAMOS FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 2014, p. 43-45, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 31, RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, p. 62, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, CPC Online, Livro I, p. 10, e MIGUEL MESQUITA, A morte do princípio do dispositivo, R.L.J. n.º 147, p. 100 – 103.

  Em sentido oposto, continuando a exigir uma manifestação de qualquer uma das partes no aditamento do novo facto, em nome do princípio do dispositivo, LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, ob. cit., p. 39-40.

6. PAULO RAMOS FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, ob. cit. p. 46, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, PIRES DE SOUSA, ob. cit., p. 32, LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, ob. cit., p. 40, e RUI PINTO, ob. cit., p. 62-63.

7. PAULO RAMOS FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, ob. cit. p. 45-46, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, PIRES DE SOUSA, ob. cit., p. 32, RUI PINTO, ob. cit., p. 62-63, e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2017, Proc. 1758/10 (Rel. Pinto de Almeida) e de 06.09.2022, Proc. 3714/15 (Rel. Graça Amaral).

8. Citado na nota anterior.

9. Neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça citados na nota anterior.

10. PAULO RAMOS FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, ob. cit. p. 45.

11. ABRANTES GERALDES, ob. cit., p. 361.

12. Neste sentido, PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOURENÇO, ob. cit., volume II, 2.ª ed., Almedina, 2014, pág. 106.

13. PAULO RAMOS FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, ob cit. p. 45.