Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18476/16.2T8LSB.L2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA
INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
INSTITUIÇÃO BANCÁRIA
BANCO DE PORTUGAL
RESOLUÇÃO BANCÁRIA
SOCIEDADE COMERCIAL
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O Fundo de Resolução, criado pelo DL nº 31-A/2012 de 10.02, que alterou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), com vista a apoiar financeiramente as medidas de resolução decretadas pelo Banco de Portugal não é responsável pela satisfação dos créditos resultantes da subscrição de produtos financeiros do BES SA;

II - Não lhe são aplicáveis as disposições dos arts. 84º, 486º, 491º e 501º do Código das Sociedades Comerciais por o Fundo não ser uma sociedade comercial, mas sim uma pessoa colectiva de direito público, cuja relação com o Novo Banco se rege exclusivamente pelo regime da resolução bancária constante do RGICSF.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, casada com BB, CC e DD, moveram a presente acção contra o BES, S.A. - em Liquidação (Io Réu), o Banco de Portugal (2° Réu), o Novo Banco, S.A. (3o Réu), o Fundo de Resolução (4o Réu), a CMVM — Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (5a Ré), e contra EE (6a Ré), pedindo:

- A título principal, a condenação solidária dos Réus no pagamento da quantia de €2.448.533,00, acrescida de €491.879,64 a título de juros vencidos, e de juros vincendos calculados desde a data de citação até integral pagamento, por responsabilidade civil dos Réus enquanto intermediários financeiros, e a título subsidiário

- A nulidade do contrato de intermediação financeira, com a consequente condenação solidária dos Réus a restituir aos AA a quantia de €2.448.533,00, acrescida de €491.879,64 a título de juros vencidos, e de juros vincendos desde a data de citação até integral pagamento, e, em qualquer dos casos, pedem a declaração de nulidade do contrato de mútuo bancário realizado entre Autoras e Io Réu, ou caso assim não se entenda, a sua anulabilidade,

- Devendo em consequência os Réus ser condenados a ressarcir solidariamente as Autoras no montante correspondente ao valor de todas as quantias por estas pagas no âmbito daquele contrato, e a apurar em sede de liquidação de sentença. Mais requerem que os Réus sejam condenados a ressarcir solidariamente as Autoras pelos danos não patrimoniais por estas sofridos, em valor a liquidar em sede liquidação de sentença.

Alegaram, para tanto e em síntese, que eram titulares de conta bancária no "BES, S.A." que, por determinação da instituição bancária, passou a ser sedeada e tratada pelo denominado "Private Bank". No âmbito das suas funções e, sob a subordinação do "BES, S.A." a Ré EE aplicou o dinheiro das Autoras nos produtos denominados "Es Financial Group, S.A.","Escom Mining Serie D" e "ES Fin 6,875%", "Escom Mining Inc", "Es Tourism (Europe)", "Es International, S.A.", "BES Finance Ltd", "NB Finance Ltd" e Es Tourism, num total de €2.448.533,00, não obstante saber que as autoras apenas pretendia aplicar o seu dinheiro em produtos sem qualquer risco. As Autoras nunca assinaram qualquer contrato de mediação financeira nem qualquer contrato de mútuo, tendo sido enganadas pelo 1" Réu e pela 6a Ré. O "BES, S.A. " assumiu a obrigação de reembolso dos produtos que vendeu aos seus clientes. Por força da medida de resolução de 03/08/2014, foi criado o Novo Banco cujo capital social é inteiramente detido pelo 4o Réu Fundo de Resolução. Depois da medida de resolução o 2° Réu (BdP) e 3o Réu (Novo Banco) perpetraram um conjunto de actos em que assumem a obrigação de reembolso daqueles produtos.

Concluem, particularmente no que concerne ao 4o Réu, que, no quadro de actuação ilegal do Io Réu, o incumprimento dos deveres de supervisão que competem ao 2° Réu e à 5 a Ré deverá resultar na sua co-responsabilidade na obrigação de devolução dos montantes investidos, recorrendo aos montantes sob tutela do 4o Réu (Fundo de Resolução), e "não obstante o dever de indemnizar do 4o Réu (Fundo de Resolução) caso se venha a determinar que o crédito das AA fica prejudicado caso o 2° Réu em 03/08/2014 tivesse optado pela liquidação do Io Réu ao invés da resolução", nos termos do disposto no art. 145°-H, n° 16, do RGICSF.

Para o que aqui interessa, importa referir que o Réu Fundo de Resolução apresentou contestação, na qual, defendeu, em suma:

A incompetência absoluta dos tribunais judiciais em razão da matéria, e, à cautela, a improcedência dos pedidos formulados contra o mesmo. Neste particular alega que, embora sendo detentor formal e transitório do Novo Banco, para além de não ser uma sociedade, não goza de qualquer dos direitos que a lei comercial confere ao assaca aos accionistas de uma sociedade e que são o fundamento da imputação à sociedade dominante da responsabilidade pelas obrigações da sociedade dominada. A haver, em relação ao Novo Banco, uma direcção acionista, ela pertenceria ao Banco de Portugal. Os direitos e deveres meramente capitalizantes do Fundo de Resolução em relação ao Novo Banco assumem natureza creditícia e não acionista. É como tal inaplicável o regime das normas dos arts. 84°, 491° e 501° do C.S.C..

Por decisões transitadas em julgado foi a instância julgada extinta quanto ao Réu BES SA em liquidação, e por inutilidade superveniente quanto aos Réus CMVM e Banco de Portugal, e a acção improcedente quanto aos RR Novo Banco SA e EE.

Foi proferido saneador-sentença que julgou a acção improcedente quanto ao Réu Fundo de Resolução, que foi absolvido do pedido.

Desta decisão apelaram as AA para a Relação de Lisboa, mas sem sucesso, pois que aquele Tribunal, por acórdão de 21.10.2021, por unanimidade e sem fundamentação diferente, confirmou a sentença.

Ainda inconformadas, as AA interpuseram revista excepcional, com fundamento na alínea b) do nº 2 do art. 672º do CPC – estarem em causa interesses de particular relevância social – imputando ao acórdão erro de interpretação e de aplicação dos arts. 84º, 491º e 501º do CSC, e 145º-G do Regulamento Geral de Instituições de Crédito Sociedades Financeiras.

A revista foi admitida por acórdão da Formação prevista no nº 3 do art. 672º do CPC.

Ponderou-se no referido acórdão:

Esta Formação já foi confrontada com outros processos de revista excecional em que uma das questões aqui suscitada foi objeto de apreciação, mormente, na perspetiva de saber se a responsabilidade do BES perante os investidores lesados, seus clientes, se transmitiu para o Novo Banco.

No presente processo a questão é diversa - pretende-se indagar da responsabilidade do Fundo de Resolução por via da aplicação do regime societário - artigo 84.° do Código das Sociedades Comerciais - o que pode ser visto como uma questão não muito desenvolvida na jurisprudência e que se insere na mesma linha de questões suscitadas pela resolução do BES e que têm justificado a admissão excecional de vários recursos de revista1, pelo reflexo que a questão e a resposta pode trazer para a comunidade jurídica e para os tribunais e a intervenção clarificadora do STJ tem a virtualidade de se estender a outros casos idênticos, respeitando a interesses importantes da comunidade e valores que também se sobrepõem ao mero interesse das partes, o que se comprova pela conjunto vasto de processos submetidos ao Tribunal dos Conflitos e no qual a solução propugnada permite antever a pulverização de processos com semelhança ao dos presentes autos.


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Os Recorrentes concluem do seguinte modo as suas alegações: 

A. Vêm as Recorrentes apresentar as suas alegações de recurso de revista excecional do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 21/10/2021, com a explanação a este Supremo Tribunal do sentido com que, no entender das Recorrentes, as normas jurídicas adequadas ao caso deveriam ter sido aplicadas.

B. O douto acórdão recorrido julgou totalmente improcedente a pretensão das Recorrentes contra o Fundo de Resolução, considerando que não existe direito à pretensão indemnizatória das Recorrentes, mantendo a decisão absolutória da 1ª instância

C. E é assim que quanto à matéria de Direito, é o Recorrente levado a considerar que o Tribunal da Relação de Lisboa procedeu a uma incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 145.º-D, n.º 1, al. c), do RGICSF e ainda dos artigos 486.º, n.º 1 e n.º 2, al. a) e 501.º, ambos do CSC.

D. Em primeiro lugar porque entendem as Recorrentes, com o devido respeito, que é muito, que o Tribunal da Relação de Lisboa indevidamente “agregou” a responsabilidade do R. Fundo de Resolução à responsabilidade dos demais RR., quando as Recorrentes peticionaram a condenação solidária de todos no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhes foram causados, devendo a responsabilidade de cada um dos RRs. ser individualmente considerada.

E. Entendem as Recorrentes que o raciocínio jurídico patente no acórdão recorrido não pode ter colhimento nos presentes autos, uma vez que do mesmo decorre inevitavelmente uma denegação do direito à defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos Recorrentes, e que a discussão da matéria subjacente aos presentes autos é bem mais ampla e complexa do que uma mera questão patrimonial, tal como “resumida” naquele acórdão ora recorrido. 

F. Para a decisão do presente pleito não há necessidade de recurso a qualquer norma de direito administrativo, estando a discussão centrada no plano puramente privado e civilístico, que, recorde-se, e prende com a responsabilização civil do Recorrido por violação dos princípios orientadores da aplicação de medidas de resolução, mormente por via do consagrado no art. 145º-D do RGICSF, e ainda a título de detentor do Novo Banco.

G. O pedido indemnizatório deduzido pelas Recorrentes não colide, nem depende, da apreciação jurídico-administrativa dos atos que conduziram à resolução do Réu Banco BES, pelos RR. intervenientesnaquela decisão.

H. A apreciação da responsabilidade das Recorrentes deve ser considerada e aferida individualmente, à luz do quadro de co-responsabilização que vem alegado pelas Recorrentesna sua petição.

I. No que respeita à responsabilidade do Réu Fundo de Resolução na qualidade de único detentor do capital do Novo Banco, nada na lei impede ou ressalva a aplicação do regime de responsabilidade previsto no CSC ao Recorrido, que tendo legitimidade para figurar como detentor do capital do Novo Banco, também por maioria de razão deverá ter legitimidade para, nessa qualidade e à luz do regime previsto no CSC, ser responsabilizado perante os credoresdaquele.

J. O pressuposto básico da estatuição do art. 84.º do CSC é a situação de unipessoalidade, sendo irrelevante a natureza ou as características pessoais do sócio único, considerando-se unipessoalidade o caráter absoluto e universal da participação apenas por referência ao domínio integral do capital, sem aferição de quaisquer circunstâncias subjectivas relativas ao sócio, seja ele quem for.

K. Mas ainda que este argumento não seja de acolher por este Supremo Tribunal, a verdade é que os benefícios e riscos decorrentes da atividade do Novo Banco S.A. se projetam em exclusivo na esfera do único detentor do seu capital, o Fundo de Resolução, a quem cabe a efetiva possibilidade de fazer ajustar a condução dos negócios sociais à sua perspetiva e vontade, tendo inclusivamente proposto a administração do Novo Banco,S.A.,posteriormente sufragada pelo Banco de Portugal.

L. Pelo que será sempre de constatar a efetiva existência de uma influência dominante do Réu Fundo de Resolução sobre o Novo Banco, aqui operando, no entendimento do Recorrente, as presunções previstas no n.º 1 do art. 486.º do CSC, designadamente aquela que ali se encontra prevista na al. a).

M. Termos em que, deve proceder a pretensão das Recorrentes formuladas contra o Recorrido, por forma a operar a conversão em valor pecuniário do direito indemnizatório das Recorrentes.

N. Os efeitos dos últimos acontecimentos verificados na vida do sistema bancário português provocaram um abalo, quiçá, irreversível, na confiança depositada pela população nos Bancos portugueses e na banca em geral.

O. Assistir à situação legalmente equiparada de uma insolvência de um dos maiores bancos portugueses a operar em Portugal, causou um forte abalo na credibilidade do sistema bancário e acarretou o justo receio de perda definitiva de poupanças investidas e amealhadas durante uma vida, provocando sentimentos de inquietação na generalidade das pessoas que em muito extravasou o interesse do caso concreto, levando os cidadãos a colocar em causa a eficácia do direito na defesa dos seus interesses.

P. Assim, contar com uma clara e uniforme interpretação e aplicação do Direito que salvaguarde os interesses patrimoniais da comunidade e garanta uma solução uniforme e igual para todos, sem surpresas e percalços injustificados de caminho, é questão de particular interesse social, motivo pelo qual os interesses jurídicos sindicadosna presente Revista devem ser considerados de particular relevância social.

Q. Pois salvo o devido respeito, que é muito, no entendimento das Recorrentes, os artigos 145.º-D, n.º 1, al. c) do RGICSF e bem assim o art. 486.º, n.º 2, al. a) e 501.º, ambos do CSC, deveriam ter sido interpretados e aplicados pelo Tribunal da Relação no sentido do reconhecimento da existência da pretensão indemnizatória das Recorrentes, e bem assim da sua condenação a pagar às Recorrentes a indemnização ora peticionada.

Contra alegou o Fundo de Resolução pugnando pela improcedência do recurso, com as seguintes conclusões:

a. O Acórdão objeto do presente recurso não merece qualquer reprovação por parte deste Alto Tribunal;

b. Como acima melhor se alegou e demonstrou, vindo o Fundo de Resolução demandado como alegado devedor solidário, pelo mesmo crédito reclamado do Novo Banco e que o Tribunal a quo – por decisão transitada em julgado – considerou não existir, absolvendo-o dos pedidos, a consequência é, necessariamente, também a da absolvição do Fundo relativamente aos pedidos contra si formulados.

c. Na verdade, tratando-se sempre e só de um mesmo direito de crédito e que só poderia, mesmo na tese das Autoras, ora Recorrentes, ser imputado ao Fundo de Resolução se o Novo Banco fosse o seu efetivo devedor, estando definitivamente assente nos autos que as Autoras não são titulares do direito de crédito que, contra o Novo Banco, invocou na presente ação, então, em nenhum cenário poderia o Fundo de Resolução ser responsabilizado;

d. Bem andou, portanto, o Tribunal a quo ao decidir que “todos os pedidos deduzidos contra o Fundo de Resolução têm de soçobrar”;

À cautela, porém, sempre se dirá o seguinte:

e. Por outro lado, como se deixou evidenciado nestas contra-alegações, não faz sentido, nem se configura juridicamente correto, considerar-se que entre o Fundo de Resolução e o Novo Banco existe (ou existiu) uma relação de grupo societário e, consequentemente, uma relação de sociedade dominante e sociedade dominada;

f. Na verdade, a relação entre o Fundo de Resolução e o Novo Banco tem uma natureza jurídico-pública, exclusivamente regulada pelo regime da resolução bancária constante do RGICSF e é puramente instrumental: o Fundo de Resolução tem a função de disponibilizar recursos financeiros, de acordo com as determinações do Banco de Portugal, necessários à capitalização da instituição de transição (cf. artigo 153.º-M do RGICSF), sem assumir, no entanto, um estatuto acionista em sentido próprio;

g. O Fundo de Resolução é, assim, única e simplesmente o detentor formal e transitório do Novo Banco, não podendo dizer-se seu acionista, atendendo ao facto de não gozar dos direitos e dos deveres típicos dados pelo direito comercial aos acionistas de uma sociedade, entre eles, os relacionados com a responsabilização pelo passivo;

h. Por conseguinte, não se pode concluir de outra forma que não pela exclusão da aplicação dos artigos 491.º e 501.º do Código das Sociedades Comerciais às relações entre o Fundo de Resolução e o Novo Banco (banco de transição);

i. Por sua vez, também se demonstrou nestas contra-alegações que não é aplicável o disposto no artigo 84.º do Código das Sociedades Comerciais ao caso, uma vez que a aplicação desta norma está dependente da (prévia) declaração de insolvência da sociedade-filha e, mesmo nessa circunstância, o sócio único só será responsável se (i) as obrigações tiverem sido contraídas após a concentração da titularidade do capital e se (ii) se provar que nesse período não foram observados os preceitos da lei que estabelecem a afetação do património da sociedade ao cumprimento das respetivas obrigações

j. Ora, como é bom de ver, o Novo Banco não foi declarado insolvente e, por outro lado, a alegada responsabilidade reclamada nestes autos pelas Autoras, ora Recorrentes, não foi constituída após a concentração da titularidade do capital no Fundo de Resolução, mas sim em momento anterior, tendendo a que os factos constitutivos do crédito delas, conforme alegados na petição inicial, se reportam a momento anterior à própria criação do Novo Banco;

k. Logo, o Tribunal a quo concluiu, como não podia deixar de ser, que a “qualidade [do Fundo de Resolução] de detentor do capital social [do Novo Banco S.A.] deriva do regime jurídico da resolução que pela sua especificidade afasta a aplicação do regime previsto no Código das Sociedades Comerciais” – vide p. 21, 2.º §, do Acórdão recorrido.

l. Mesmo que as Autoras, ora Recorrentes, tivessem razão – o que manifestamente não acontece – relativamente à alegada responsabilidade do Fundo do Resolução enquanto “acionista” do Novo Banco, isto é, mesmo que o Fundo de Resolução pudesse, em abstrato, ser chamado a responder pelas obrigações dos bancos de transição, a verdade é que o seu alegado crédito sobre o BES não foi transmitido para o Novo Banco;

m. Logo, permanecendo o crédito na esfera do BES, não podem as Recorrentes vir exigir o seu cumprimento contra o Novo Banco, bem como, por maioria de razão, contra o Fundo de Resolução;

n. Como resulta claramente dos factos alegados pelas Autoras na sua petição inicial (e por demais demonstrados no Acórdão objeto do presente recurso), o direito de crédito que, alegadamente, detêm (originariamente) sobre o BES funda-se na prática de atos ilícitos e na violação de disposições regulatórias, designadamente na violação de deveres de informação do intermediário financeiro e na prestação de informações falsas pelo BES – não havendo assim qualquer dúvida de que, a existir esse direito de crédito, não se transferiu para a esfera jurídica do Novo Banco;

o. Assim, não se tendo transferido para o Novo Banco tal crédito, também não pode o Fundo de Resolução, nem mesmo na tese das Recorrentes, ser responsável pela sua satisfação, pelo que os pedidos formulados devem necessariamente improceder;

p. Em face de tudo quanto se deixou nestas contra-alegações, não merece qualquer censura ou reprovação por este Alto Tribunal a decisão do Tribunal a quo de julgar a ação totalmente improcedente – e, consequentemente, absolver o Fundo de Resolução dos pedidos.


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Fundamentação.

A decisão recorrida deu como assente a seguinte factualidade.

1. As autoras são titulares de produtos financeiros, cuja aquisição foi efetuada nos balcões do "Banco Espírito Santo, S.A.", denominados "Es Financial Group, S.A.", "Escom Mining Serie D" e "ES Fin 6,875%", "Escom Mining Inc", "Es Tourism (Europe)", "Es International, S.A.", "BES Finance Ltd", "NB FInance Ltd" e "Es Tourism", tendo aplicado a quantia de €2.448.533,00 na aquisição dos mesmos.

2. Por deliberação do Banco de Portugal de 03 de Agosto de 2014 foi aplicada ao BES, S.A. medida de resolução, nos termos da qual, além de mais, foi constituído o Novo Banco S.A., para o qual foram transferidos os ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do Banco Espirito Santo, SA, que constam dos Anexos 2 e 2A de tal deliberação.

Do direito.

A questão que importa decidir é a de saber se sobre o Fundo de Resolução recai a obrigação de ressarcir as Autoras pelos prejuízos que tiveram com os investimentos em produtos financeiros do Banco Espírito Santo SA.

Recorde-se que a presente acção foi também intentada contra o BES, S.A. - em Liquidação, o Banco de Portugal, o Novo Banco, S.A., a CMVM — Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, e EE, consistindo o pedido, em primeira linha, na condenação solidária dos RR, enquanto intermediários financeiros, e co-responsáveis com o BES SA, pelo reembolso da quantia de €2.448.533,00 que investiram em produtos financeiros daquele; subsidiariamente, invocaram a nulidade do contrato de intermediação financeira, com a consequente condenação solidária dos Réus a restituírem às  AA aquela quantia.

Por decisões já transitadas em julgado a instância mostra-se extinta quanto aos Réus BES SA, CMVM e Banco de Portugal; e no que tange aos RR Novo Banco SA e EE a  acção foi julgada improcedente.

No recurso está em causa apenas a responsabilidade do Fundo de Resolução, insistindo as Recorrentes que sobre ele recai a obrigação de as indemnizar “por violação dos princípios orientadores da aplicação de medidas de resolução, mormente por via do consagrado no art. 145º-D do RGICSF, e ainda a título de detentor do Novo Banco.”

Será assim?

Importa precisar a natureza do Fundo de Resolução.

O Fundo de Resolução, adiante Fundo, foi criado pelo DL nº 31-A/2012 de 10 de Fevereiro, que alterou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL nº 298/92 de 31.12.

O DL nº 31-A/2012 surgiu no contexto da crise financeira de 2008, com o propósito de “implementar mecanismos que permitam, em situação de grave crise financeira, recuperar a instituição de crédito ou preparar a sua liquidação ordenada, de modo a salvaguardar o interesse essencial da estabilidade financeira” (como se lê na respectiva nota introdutória).

Como medidas de intervenção foram criadas a intervenção correctiva, administração provisória e resolução.

Os pressupostos de aplicação da medida de resolução constavam do art. 145º- C, na redação em vigor em 2014:

1. Quando uma instituição de crédito não cumpra, ou esteja em risco de não cumprir, os requisitos para a manutenção da autorização para o exercício da sua actividade, o Banco de Portugal pode aplicar as seguintes medidas de resolução, se tal for indispensável para a prossecução de qualquer das finalidades previstas no art. 145º-A:

a) Alienação parcial ou total da actividade a outra instituição autorizada a desenvolver a actividade em causa;

b) Transferência, total ou parcial da actividade a um ou mais bancos de transição.

O Fundo de Resolução foi criado para “prestar apoio financeiro à aplicação das medidas de resolução adoptadas pelo Banco de Portugal e desempenhar todas as demais funções que lhe sejam conferidas pela lei no âmbito da execução de tais medidas” (art. 153º-C).

Trata-se de uma pessoa colectiva de direito público, dotado de autonomia administrativa e financeira, que funciona junto do Banco de Portugal, sendo seus participantes obrigatórios, além de outras, as instituições de crédito com sede em Portugal, conforme decorre dos arts. 153º-B e 153º-D do RGICSF.

Posto isto.

Como é sabido, o Banco de Portugal, por deliberação de 03.08.2014, aplicou ao BES uma medida de resolução de transferência da generalidade da sua actividade para um banco de transição – o Novo Banco – criado especialmente para o efeito, tendo, nesse mesmo dia, aprovado a transferência para o Novo Banco dos activos, passivos e elementos extrapatrimoniais e activos sob a gestão do BES, o qual foi ratificado por deliberação do Banco de Portugal, de 11.08.2014, passando a constar da subalínea v) da alínea (b) do número 1 desse anexo que não se transferiam para o Novo Banco quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou de violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais.

No dia 29.12.2015, o Banco de Portugal adoptou nova deliberação (deliberação contingências), utilizando o denominado poder e retransmissão dos activos e passivos entre o BES e o Novo Banco que havia ficado expressamente previsto no número 2, do Anexo 2, da deliberação de 03 de Agosto.

Na alínea A dessa deliberação, o Banco de Portugal clarificou que, nos termos da alínea b) do nº1 do Anexo 2 da deliberação de 03.08.2014, não foram transferidos para o Novo Banco quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BES que, às 20h do dia 03 de Agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativo ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais, independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES, clarificando não terem sido transferidos do BES para o Novo Banco os passivos do BES que respeitassem a indemnizações relacionadas com o incumprimento de contratos assinados e celebrados antes das 20h do dia 03 de Agosto de 2014, e todos os créditos e indemnizações relacionados com a anulação de determinadas cláusulas de contrato de mútuo, em que o BES era mutuante.

Após esta clarificação, não restaram dúvidas, tendo em atenção o tipo de resolução do BES e o modo de constituição da nova entidade bancária de transição que não foram transferidos para o Novo Banco SA os passivos contingentes do BES.

Neste pendor decidiu a sentença de mérito proferida quanto ao réu Novo Banco S.A., que foi absolvido, por se ter entendido que as responsabilidades do BES SA perante as AA não foram transmitidas para aquele réu.

Não recaindo sobre o Novo Banco a obrigação de ressarcir as Autoras dos prejuízos que resultaram da subscrição de produtos financeiros do universo BES SA, pelos mesmos também não é responsável solidário o Fundo.  

É que, não obstante, as Autoras terem deduzido pedido de condenação solidária dos Réus no pagamento da indemnização, nada alegaram que permita imputar ao Fundo de Resolução uma participação sujeita a solidariedade legal nos factos atribuídos aos réus BES SA ou Novo Banco SA.

Ora, como se ponderou no acórdão do Tribunal de Conflitos de 14.02.2019, P. 046/18, citado no Acórdão deste STJ de 10.11.2020, P. 22652/17.2T8LSB.L1.S1, “ a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do art. 513º do CCivil, só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos – para os poder vir a demonstrar – de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária.”

As Recorrentes fundamentam ainda a responsabilidade do Fundo na “violação dos princípios orientadores da medida de resolução consagrado no art. 145º-D, alínea c), do RGICSF.

Diz-se na disposição citada:

1. Na aplicação de medidas de resolução, para prossecução das finalidades previstas no artigo anterior:

(…)

c) Nenhum acionista ou credor da instituição objecto de resolução pode suportar um prejuízo superior ao que suportaria caso essa instituição tivesse entrado em liquidação;

(…).

Esta disposição deve ser conjugada com a do art.145-H, que sob a epígrafe “Avaliação para efeitos de resolução”, dispõe no nº 14:

Para efeitos do disposto na alínea c) do nº 1 do art. 145º-D, imediatamente após a prolação da medida de resolução, o Banco de Portugal designa uma comissão independente, a expensas da instituição de crédito objecto de resolução, para, em prazo razoável a fixar por aquele, avaliar se, caso não tivesse sido aplicada a medida de resolução e a instituição de crédito objecto de resolução entrasse em liquidação no momento em que aquela foi aplicada, os acionistas e os credores da instituição de crédito objecto de resolução (…) suportariam um prejuízo inferior ao que suportaram em consequência de aplicação da medida de resolução, determinando essa avaliação:

a) Os prejuízos que os acionistas e os credores (…) teriam suportado se a instituição de crédito objecto de resolução tivesse entrado em liquidação.

(…).

16. Caso a avaliação prevista no nº 14 determine que os acionistas, os credores (…) suportaram um prejuízo superior ao que suportariam caso não tivesse sido aplicada a medida de resolução e a instituição de crédito objecto de resolução entrasse em liquidação no momento em que foi aquela foi aplicada, têm os mesmos direito a receber essa diferença do Fundo de Resolução, nos termos do disposto na alínea f) do nº 1 do art. 145º-AA.

(…).

As disposições citadas foram aditadas ao RGICSF pela Lei nº23-A/2015 de 26.03.

Com ressalva do respeito devido por opinião contrária, não é possível fundar na disposição citada o direito invocado pelas Recorrentes.

A mesma apenas lhes daria o direito a receberem do Fundo a diferença entre o prejuízo que suportaram com a medida da resolução e o que suportariam caso o BES SA tivesse entrado em liquidação, a apurar pela comissão independente designada pelo Banco de Portugal, e não um direito à integralidade do investimento que fizeram em produtos financeiros do BES SA.

Por último, importa verificar se a responsabilidade do Fundo pode fundar-se no regime societário que resulta dos arts. 84º, 491º e 501º do Código das Sociedades Comerciais, seja pela circunstância de o Fundo de Resolução ter a qualidade de único detentor do capital do Novo Banco, seja pela posição de domínio que detém sobre este último.

O preceito do art. 84º do CSC, sob a epígrafe Responsabilidade do sócio único, estatui que “(…) se for declarada falida uma sociedade reduzida a um único sócio, este responde ilimitadamente pelas obrigações sociais contraídas no período posterior à concentração das quotas ou das acções, contanto que se prove que nesse período não foram observados os preceitos da lei que estabelecem a afectação do património ao cumprimento das respectivas obrigações.

Como anota Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª edição, o art. 84º funciona: (a) quando haja um único sócio; (b) seja declarada a insolvência da sociedade; (c) e não sejam cumpridas as regras legais sobre a separação de patrimónios. 

É quanto basta para concluir pela inaplicabilidade do regime do art. 84º à situação dos autos. Nem o Novo Banco SA foi declarado insolvente, nem as alegadas responsabilidades daquele foram constituídas após a concentração do capital no Fundo de Resolução.

As Recorrentes invocam também o regime do art. 486º do CSC, para responsabilizar o Fundo de Resolução, dada a existência de efetiva influência dominante do Réu Fundo de Resolução sobre o Novo Banco, e no art. 501º.

As disposições citadas inserem-se no Título VI do Código das Sociedades Comerciais que tem por epígrafe “Sociedades Coligadas”, dizendo o nº 1 do art. 481º que “o presente título aplica-se a relações que entre si estabeleçam sociedades por quotas, sociedades anónimas e sociedades em comandita por acções.” (nº 1 do art. 481º).

Estabelece o nº 1 do art. 501º que “a sociedade directora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada, constituídas antes da celebração do contrato de subordinação até ao termo deste.”

Como esclarece Menezes Cordeiro, obra citada, pag. 1295, “o art 501º/1 aplica-se directamente aos grupos assentes em contratos de subordinação – art. 493º ss – e, por remissão do art. 491º, aos grupos constituídos por domínio total – art. 488º ss – (âmbito material), desde que regulados pelo CSC (quanto ao âmbito pessoal e espacial, cf. art. 481º).”

Ora, o Fundo não é uma sociedade comercial, e a sua relação com o Novo Banco é regulada exclusivamente pelo regime de resolução bancária constante do RGICSF, com função
instrumental de disponibilizar os recursos financeiros de acordo com as determinações do
Banco de Portugal necessários à capitalização da instituição de transição como determinado
no art.° 153-M do referidos RGICSF, pelo que a situação dos autos nunca poderia ser regulada à luz do art. 501º do CSC.

 Acresce que tendo já sido decidido por decisão transitada que o Novo Banco SA não é responsável pela dívida reclamada nos autos, nunca o Fundo poderia ser responsabilizado nos  termos do art. 501º, que prevê a responsabilidade da sociedade directora – que na tese das Recorrentes seria o Fundo -  pelas obrigações da  sociedade subordinada (o Novo Banco SA).


Com o que improcedem na totalidade as conclusões das Recorrentes.

Sumário:

I - O Fundo de Resolução, criado pelo DL nº 31-A/2012 de 10.02, que alterou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), com vista a apoiar financeiramente as medidas de resolução decretadas pelo Banco de Portugal não é responsável pela satisfação dos créditos resultantes da subscrição de produtos financeiros do BES SA;

II - Não lhe são aplicáveis as disposições dos arts. 84º, 486º, 491º e 501º do Código das Sociedades Comerciais por o Fundo não ser uma sociedade comercial, mas sim uma pessoa colectiva de direito público, cuja relação com o Novo Banco se rege exclusivamente pelo regime da resolução bancária constante do RGICSF.

               

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelas Recorrentes.

                                                                                             

Lisboa, 07.06.2022

Ferreira Lopes (relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva