ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NO RECURSO DE REVISTA
INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA
ENTRE
AA
BB
CC
DD
EE
(aqui patrocinados por FF, adv.)
Autores / Apelados / Recorrentes
CONTRA
SEGURADORAS UNIDAS, SA
(anteriormente, COMPANHIA DE SEGUROS TRANQUILIDADE, SA)
(aqui patrocinada por GG, adv.)
Ré / Apelante / Recorrida
I – Relatório
Os Autores instauraram acção judicial contra a Ré pedindo a condenação da mesma a pagar-lhes a quantia de 42.781,00 € de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo marido e pai dos Autores, acrescida de juros de mora contados à taxa legal até integral pagamento.
Alegaram para o efeito, e em síntese, que são os únicos e legais herdeiros de seu marido e pai, o qual, no dia 18.12.2011, pelas 14h15m, caminhava pela berma direita da estrada municipal 5..-1 no sentido de F… - C… P….; no mesmo sentido circulava o veículo automóvel seguro na Ré, cujo condutor não guardava em relação à berma por onde circulava o peão distância suficiente para evitar o acidente, razão pela qual o colheu causando-lhe traumatismo crânio encefálico, contusões hemorrágicas frontais direitas e fractura da tíbia esquerda, que determinaram o seu óbito. Em consequência disso seu marido e pai sofreu danos de natureza não patrimonial e patrimonial e, nomeadamente, perda de rendimento da actividade agrícola que desenvolvia, despesas médicas e medicamentosas, despesas com deslocações, perda de capacidade de ganho resultante de uma incapacidade absoluta desde a data do acidente até à sua morte, sofreu dores, perturbações físico-psíquicas e todos os constrangimentos que daí lhe advieram para a sua vida e respectiva qualidade de que tinha disfrutado até à data do acidente, ansiedade e profundo desgosto de se ver confinado à cama e à cadeira de rodas necessitando de ajuda de terceiros para as actividades da vida diária.
A Ré contestou, impugnando a versão do acidente, atribuindo ao peão a culpa exclusiva do acidente que o vitimou e impugnando os danos e montantes alegadamente sofridos pelo lesado, concluindo pela improcedência da acção.
Na pendência do processo os Autores ampliaram o pedido para a quantia de 132.781,65 €, acrescida de juros à taxa legal, passando a pedir a condenação da Ré a pagar aos Autores, para além do reclamado na petição inicial e em alternativa à quantia do artigo 47º da petição inicial, a quantia de 120.000,00 € a título de indemnização pelos danos sofridos, perda do direito à vida e pelo desgosto dos autores pela perda da vítima.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e condenando a Ré a pagar aos autores 53.699,36 € e juros de mora desde a citação até integral pagamento, a pagar à autora viúva 15.000,00 € e juros de mora desde a citação até integral pagamento, a pagar a cada um dos restantes Autores 7.500 € e juros de mora desde a citação até integral pagamento.
Inconformada, apelou a Ré, impugnando a matéria de facto, defendendo que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do peão e o exagero da indemnização arbitrada.
A Relação proferiu acórdão em que, mantendo inalterada a matéria de facto e considerando ter o peão incorrido em duas infracções ao Código da Estrada (passou a transitar por onde não devia e sem previamente se ter assegurado de que o poderia fazer em segurança), causais do acidente e excluída a possibilidade de qualquer imputação de culpa ou rico ao condutor do veículo (na medida em que a conduta contravencional do peão ocorreu no momento em que o veículo dele se aproximava ficando excluída qualquer possibilidade de reacção do seu condutor), imputou o acidente a culpa exclusiva do peão e, consequentemente, julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
Os Autores, agora irresignados, vieram interpor recurso de revista concluindo, em síntese, que foram considerados factos não incluídos na decisão de facto, existe actuação culposa do condutor do veículo, a justificar a concorrência de culpas; subsidiariamente, sempre haveria lugar à concorrência entre a culpa do lesado e os riscos próprios do veículo.
Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.
II – Da admissibilidade e Objecto do Recurso
Tendo sido fixado como valor da acção 42.781,65 €, a taxa de justiça devida pelo recurso de revista é de 3,5 UC’s, conforme a tabela I-B.
Quantitativo esse que se mostra satisfeito pelos Recorrentes.
A Recorrida, com as suas contra-alegações, procedeu ao pagamento de taxa de justiça no montante de 459 €, correspondente a 4,5 UC’s, invocando a tabela II-B e ser ‘grande litigante’. Tal liquidação mostra-se errónea, quer porque a Tabela II-B não é aplicável aos recursos, quer porque a categoria de ‘grande litigante’ é irrelevante para efeito de recursos. Com efeito, dispõe-se no art.º 6º, nº 2, do RCP que ”nos recursos, a taxa de justiça é sempre fixada nos termos da tabela I-B”, e no art.º 13º, nº 3, do mesmo diploma que a taxa de justiça é agravada para os ‘grandes litigantes’ relativamente a “qualquer providência cautelar, acção, procedimento ou execução” e “os casos expressamente referidos na tabela II”, não se incluindo aí os recursos.
O certo é que, embora com errónea liquidação, não deixou a Recorrida de satisfazer o quantitativo que era devido.
A situação tributária tem-se, assim, por regularizada.
O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se mostra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).
Tal requerimento mostra-se devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).
O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC).
Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).
Destarte, o recurso merece conhecimento.
Vejamos se merece provimento.
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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver por este tribunal é a de saber se a responsabilidade pelo acidente deve ou não ser também imputada, a título de culpa ou de risco, ao condutor do veículo seguro na Ré, e a sua repercussão na fixação dos eventuais montantes indemnizatórios.
III – Os Factos
Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:
1. Factos Provados
1. A 1ª A. é viúva e os restantes Autores DD, BB, CC e EE são filhos de HH, falecido no dia 30 de Abril de 2012, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, na freguesia de …, concelho de … sendo os seus únicos e legais herdeiros.
2. A 18 de Dezembro de 2011, pelas 14h15m, na E.M. 5…-1 no lugar de …, freguesia de …, concelho de …, HH caminhava pela berma direita da estrada.
3. No mesmo sentido, circulava o veículo automóvel de passageiros de matrícula 05-31-..., conduzido pelo respectivo proprietário II, no seu próprio interesse e sob a respectiva direcção efectiva.
4. Não havia trânsito em sentido contrário ao sentido de marcha do veículo e de HH.
5. A faixa de rodagem tem no local a largura de 5,50 m e a berma do lado direito, atento o sentido F… / C… P… cerca de 0,85 m.
6. O estado do tempo era bom.
7. O piso asfaltado, estava seco e em bom estado de conservação.
8. O piso da berma é composto por terra.
9. A via, habitualmente, para quem nela circula apresenta boa visibilidade em cerca de 50 metros.
10. Por razão não concretamente apurada HH passou a transitar na faixa de rodagem junto à sua extremidade, no momento em que o veículo com a matrícula 05-31-... dele se aproximava, e acto contínuo aquele veículo foi embater com a frente direita em HH.
11. O condutor do veículo com a matrícula 05-31-... circulava na via encadeado pelo sol e não se apercebeu da presença do peão, nem quando este circulava na berma, nem quando passou a transitar na faixa de rodagem.
12. Em consequência do embate referido em 10. HH foi projectado sobre o pára-brisas do veículo e imediatamente a seguir para a berma direita da estrada por onde havia transitado.
13. E aí ficou prostrado de face contra o solo, com a cabeça na direcção de C… P… e as pernas na direcção de F… .
14. Em resultado do embate, como sua consequência directa e necessária, HH seguintes lesões:
Traumatismo crânio – encefálico, com hemorragia subaracnoideia de predomínio inter-hemisférico fontal direito e contusões hemorrágicas frontais direitas; e
Fractura da tíbia direita;
15. A vítima HH deu entrada no dia do acidente no Centro Hospitalar do … E.P.E., onde lhe foi colocado colar cervical e tala gessada no membro inferior direito;
16. Nesse mesmo dia foi transferido para o Centro Hospitalar … E.P.E … onde foi admitido na UCI Neuro críticos;
17. Em 26.12.2011, foi transferido para o serviço de neurologia, de que teve alta em 14 de Janeiro de 2012;
18. Esteve em tratamento ambulatório desde dia 6.02.2012 até à data da morte em 30.04.2012, designadamente de medicina física e reabilitação.
19. Em consequência das lesões sofridas a vítima ficou a padecer das seguintes sequelas: Tonturas, sonolência, confusão, desorientação no tempo e no espaço, irritabilidade e agitação permanentes, discurso imperceptível, amnésia, perda da coordenação motora - deixou de andar, de comer pela sua mão - e desenvolveu processo de demência.
20. Viveu os últimos meses da sua vida confinado à cama e à cadeira de rodas, dependente do auxílio permanente de terceira pessoa, para todos os actos da vida.
21. Dependente da presença constante e atenta, de noite e de dia, da mulher ou dos filhos que se revezavam, fora dos seus horários de trabalho, para auxiliar a mãe nessa tarefa e permitir-lhe algum descanso.
22. Necessitou de apoio ao domicílio para a higiene diária mais profunda garantido pela Santa Casa da Misericórdia de … .
23. Com este apoio despendeu a vítima a quantia total de € 318,39 (€ 45,00 no mês de Janeiro e € 90,97 em cada dos meses de Fevereiro, Março e Abril todos de 2012).
24. Em hidratantes, produtos de higiene, antibióticos, anti-inflamatórios e outros medicamentos necessários à manutenção de algum conforto e estabilidade, despendeu a quantia global de € 203, 76.
25. Em deslocações para os hospitais, despendeu a quantia global de € 77,00.
26. Fez medicação até à morte.
27. HH nasceu a … de Março de 1936.
28. Gozava de boa saúde, agilidade, capacidade de acção e discernimento.
29. Era agricultor de profissão, encontrando-se à data do acidente reformado, auferindo anualmente uma pensão no valor global de 4.245,22€.
30. Com a ajuda da esposa e por vezes de algum dos seus filhos cultivava o quintal/campo da casa onde vivia, cuidando dos animais, designadamente coelhos e galinhas, colhendo batatas, cebolas, fabricando vinho com as uvas colhidas da ramada, feijão e outros produtos hortícolas que destinava ao consumo familiar, vendendo o excedente.
31. Caso o embate não tivesse ocorrido, o autor teria continuado normalmente a cultivar o seu quintal nos moldes mencionados no ponto 30 e a auferir do rendimento que dali colhia.
31. Em consequência da situação de absoluta dependência da vítima supra descrita e da necessidade de acompanhamento permanente de que carecia, ficou impossibilitado, bem como a esposa, de continuar a dedicar-se à actividade agrícola pelo invocado período de incapacidade absoluta e deixou, por isso, de auferir dos rendimentos respectivos em montante não concretamente apurado.
32. Quer o TCE que sofreu, quer a imobilização a que se viu condicionado colidem e condicionam, em qualquer pessoa e por maioria de razão em pessoas da idade da vítima, as funções cardio-respiratórias, vasculares, endócrinas, gastrointestinais, urinárias, musculares e neurológicas, o que constitui causa próxima de falência daquelas funções, sucedeu com a vítima e logo precipitou o seu decesso, que ocorreu ainda em consequência directa e necessária das lesões sofridas e sem que tivesse sido atingida a consolidação médico-legal das mencionadas lesões.
33. A vítima HH sofreu dores, perturbações fisio-psíquicas e todos os constrangimentos que daí lhe advieram para a vida e respectiva qualidade de que tinha disfrutado até à data do acidente.
34. Sofreu de ansiedade e receio quer em consequência dos tratamentos, quer das sequelas que a afectaram.
35. E de um profundo desgosto por se ver incapaz de se bastar e às suas necessidades mais elementares, confinado à cama e à cadeira de rodas, que igualmente se repercutiu nos Autores que eram muito chegados.
36. O Centro Hospitalar do … E.P.E é uma instituição hospitalar integrada no sistema Nacional de Saúde.
37. O custo da assistência hospitalar prestada pelo Centro hospitalar referido no número anterior no qual foi assistido HH no serviço de urgência e no âmbito da consulta externa nos moldes mencionados no ponto 15 e prestados nos dias 06.02.2012, 27.02.2012 e 26.03.2012, cifrou-se em 399,60€.
38. A ré apesar de lhe ter sido solicitado o pagamento pelo identificado Centro Hospital, não o efectuou.
39. A vítima foi o beneficiário 28…6 da Segurança Social.
40. A responsabilidade civil dimanada de acidentes causados pelo veículo 05-31-... estava transferida para Ré pela apólice 11…39, válida à data do acidente.
Factos não provados
a) O montante que HH deixou de auferir da actividade agrícola que desenvolvia, em áreas não concretamente apuradas, no período compreendido entre a data do acidente e o seu decesso nunca seria inferior a € 2.182,50.
b) O rendimento da actividade agrícola que HH desenvolvia nos moldes descritos no ponto 30 dos factos provados ter-lhe-ia proporcionado um rendimento mensal nunca inferior ao salário mínimo nacional em vigor à data 485€ – ou anual de nunca menos 5820€.c) II tripulava o seu veículo automóvel ligeiro de passageiros com diligência, atenção e cuidado, a uma velocidade de 30 Km horários;
d) A vítima HH, sem que nada o fizesse prever, desequilibrou-se e caiu para a esquerda, no preciso momento em que o LZ se preparava para passar por ele.
e) Nada poderia ter feito o condutor do veículo ligeiro de passageiro de matrícula 05-31-... para evitar colher o peão já que foi este que tropeçou e caiu sobre a faixa de rodagem.
f) O veículo ligeiro de passageiro de matrícula 05-31-... embateu em HH com a parte lateral direita.
IV – O Direito
O acórdão recorrido considerou que o acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do peão por ter cometido duas infracções – passar a circular pela direita da faixa de rodagem e de o fazer sem se assegurar previamente de que o podia fazer em segurança – sem que da factualidade apurada resulte que o condutor do veículo circulasse infringindo qualquer norma rodoviária; segundo o mesmo acórdão, tendo o atropelamento resultado ‘acto contínuo’ à entrada do peão na faixa rodagem, significa isso que ficou impossibilitada qualquer reacção do condutor àquela súbita entrada ou cuidado perante uma previsibilidade daquela entrada; e, por outro lado, o desconhecimento da extensão do encandeamento do condutor do veículo e das condições de circulação do veículo, tornam irrelevante o facto de este não ter visto o peão a circular pela berma porquanto, ainda que aí se visse uma infracção rodoviária o circunstancialismo envolvente (ou melhor, a falta dele) não tem a virtualidade de a constituir como causal do atropelamento, mas antes se afigura que se o peão se tivesse mantido na berma não teria ocorrido o embate.
Contra essa apreciação se insurgem os Recorrentes considerando, por um lado, não poder considerar-se a concomitância entre a entrada do peão na faixa de rodagem e o embate, quer porque isso não resulta dos factos quer porque não foi objecto de prova, e, por outro lado, dos factos de a colisão ter ocorrido entre a parte direita da frente do veículo e o peão que circulava na extremidade da faixa de rodagem e de o condutor do veículo se encontrar encandeado e não ter visto o peão, leva a concluir que este circulava demasiado próximo da berma, sem ver o espaço à sua frente e sem adequar a velocidade do veículo de modo a poder para o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
A culpa, como é sabido, exprime um juízo de reprovação ou censura normativa da conduta do agente, por haver agido como agiu, face às circunstâncias do caso concreto, porquanto podia e devia ter-se comportado de modo diverso, baseado na constatação da inobservância de deveres gerais de diligência e prudência ou na infracção de norma legal ou regulamentar.
E porque tal juízo implica a interpretação e aplicação de critérios normativos a apreciação da culpa é uma ‘questão de direito’ («A culpa quer fundada na infracção de preceito legal, quer na violação de deveres de diligência e prudência, é matéria de direito, dado que, na sua apreciação, tem o tribunal de interpretar e aplicar uma disposição legal – a do artigo 487º do Código Civil, segundo a qual a culpa se determina atendendo à diligência de bom pai de família, isto é, comparando o comportamento do causador do dano com o que, nas mesmas circunstâncias, teria tido um bom pai de família. […] A lei, ao conferir ao tribunal a função de se valer do critério da diligência do bom pai de família, quer que ele se inspire nesse critério, que é, assim, um dos elementos da norma legal» - Vaz Serra, RLJ, Ano 114, pg. 320).
Se a apreciação da culpa é ‘questão de direito’, já a apreciação das ocorrências da vida real que à mesma são subjacentes é ‘questão de facto’ (cf. acórdão do STJ de 25FEV2010, proc. 172/04.5TBOVR.S1)
Dessa forma o controlo que o STJ pode efectuar relativamente ao juízo das instâncias relativamente à culpa consiste em verificar se foi observado o critério legalmente definido: a inobservância de preceitos legais e regulamentares ou de deveres jurídicos neles prescritos; em particular e no que respeita ao nº 2 do art.º 487º e do nº 2 do art.º 799º do CCiv, se o agente actuou com o grau de diligência que seria exigível, e que a lei fixa fazendo apelo àquela que teria uma pessoa minimamente diligente e cuidadosa, colocada nas circunstâncias concretas do caso (cf. acórdão do STJ de 25FEV2010, proc. 172/04.5TBOVR.S1, 21MAR2012, proc. 6123/03.7TBVFR.P1.S1, 12SET2013, proc. 3673/11.5TBVIS.C1.S1 e 13SET2018, proc.7391/13.1TBVNG.P1.S1).
Não cabendo na apreciação do STJ, por ser questão de facto e de acordo com o disposto nos artigos 674º, nº 3, e 682º, nºs 1 e 2, do CPC, tudo o que se reporta ao apuramento de ocorrências da vida real, como a dinâmica do acidente, a imperícia, a inconsideração, a falta de atenção, bem como as ilações logicamente inferidas dos factos provados (cf. acórdãos do STJ de 22JAN2009, proc. 3404/08, 05NOV2009, proc. 407/07.2TBAVV.S1, 04JUL2013, proc. 2848/07.6TBVNG.P1.S1 e 13SET2018, proc.7391/13.1TBVNG.P1.S1).
Na sua função de estabelecer as concretas e intrinsecamente dinâmicas situações da vida real e quotidiana em que se consubstanciam os litígios postos à sua apreciação, e que não são, bastas vezes, de fácil apreensão, compreensão e descrição, impõe-se ao julgador uma tarefa mental de recreação ou reconstituição a partir de todos os elementos disponíveis carreados para o processo, donde não está afastada a possibilidade de, em particular quando se trata de reconstituir processos causais, tirar ilações da factualidade demonstrada através de inferências (operação intelectual mediante a qual se afirma a verdade de uma proposição em decorrência da sua ligação com outras preposições já reconhecidas como verdadeiras).
No caso concreto dos autos a Relação procedeu a essa operação lógica a partir da descrição do acidente constante do elenco factual inferindo que se o embate ocorreu ‘acto contínuo’ ao momento em que o peão passou a circular pela faixa de rodagem foi porque o veículo já se encontrava junto ao peão nesse momento, não havendo um hiato temporal entre o começa da circulação na faixa de rodagem e o embate.
Essa inferência não padece de patente ilogicidade e, consequentemente, está excluída dos poderes de cognição do STJ, por se encontrar no domínio da ‘matéria de facto’.
Por outro lado, aliando-se àquela ilação, o facto de o elenco factual estabelecido nas instâncias não especificar qual a concreta parte da frente direita onde ocorreu o embate, o que seja o espaço ocupado ao circular junto à extremidade da faixa de rodagem e qual a concreta afectação do condutor do veículo pelo encandeamento, não é possível concluir ter o condutor do veículo praticado qualquer violação causal das regras de conduta que sobre si impendiam. Nesse campo, aliás, o que sobressai é uma outra ilação retirada pela Relação: «se o peão se mantivesse na berma o veículo teria prosseguido a marcha pela faixa de rodagem não havendo nenhum momento em que a circulação de um e o trânsito do outro entrassem em conflito».
Ora tendo em conta o quadro factual traçado pela Relação, e que o STJ tem de respeitar, não se vislumbra que haja qualquer fundamento para a imputação de responsabilidade a título de culpa ao condutor do veículo na produção do acidente. Pelo contrário, e como refere o acórdão recorrido, a súbita invasão da faixa de rodagem pelo peão exclui qualquer possibilidade de manobra de evasão ou dever de consideração dessa eventualidade, sendo que nesse circunstancialismo o facto de não ter visto o peão em função do encandeamento, a poder constituir infracção, seria irrelevante, por a mesma se não revelar causal para a produção do acidente.
Resta analisar se pode ser imputada responsabilidade a título de risco.
A responsabilidade pelo risco relativamente a veículos terrestres assenta na ideia básica de que estes, enquanto massas em movimento que não podem ser detidas instantaneamente, acarretam um risco acrescido de acidentes de forma que se deve impor o ónus de suportar esse risco àquele que tira proveito da circulação do veículo, numa lógica de ‘ubi commoda ibi incommoda’.
Concretizando-se esse risco em acidente cria-se uma relação bilateral entre lesante e lesado em que aquele assegura com o seu património individual a reparação dos danos deste, no âmbito de uma justiça comutativa.
Tendo em conta, no entanto, que a responsabilidade objectiva imputada ao detentor do veículo o colocava numa posição assaz desvantajosa tinha-se por injusto sobrecarregá-lo ainda com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente era imputável ao lesado, por não ter adoptado as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação de veículos; considerando-se, então, que sendo o acidente imputável a conduta do lesado (de terceiro ou a caso de força maior) ficava excluída a responsabilidade pelo risco.
Essa era a posição assumida pela jurisprudência e por grande maioria da doutrina face às disposições dos artigos 503º e 505º do CCiv de 1966. Em face da qual não era admitida a concorrência entre responsabilidade pela culpa e responsabilidade pelo risco, sendo a responsabilidade pelo risco automaticamente excluída logo que o dano pudesse ser imputado a conduta (ainda que não culposa) do lesado (cf. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª ed., 2000, pg 675; MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, 9ª ed. 2010, pgs. 392-393)
Ocorre, porém, que a evolução e massificação do trânsito automóvel introduziu na sociedade um risco tão elevado de acidentes (situação a que o preâmbulo do DL 114/94, 03MAI, que aprova o Código da Estrada refere como “os maiores perigos que a evolução das condições do trânsito trazem consigo”) que este passou a ser visto não já como um risco individual de quem tira proveito pela utilização de um veículo, mas sim como um verdadeiro risco social. E como tal já não era adequado tratar da responsabilidade decorrente da circulação de veículos na perspectiva de mera relação lesante/lesado, mas antes ‘socializar’ essa responsabilidade, agora numa perspectiva de justiça distributiva, criando mecanismos (seguros, fundos de garantia) que assegurassem a indemnização dos danos decorrentes dos acidentes de viação, em particular de certas categorias de vítimas, tidas por mais desprotegidas – passageiros, peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas. Por via dessa ‘socialização’ do risco o centro de gravidade passa da imputação de responsabilidade para a indemnização da vítima, metamorfoseando um seguro dito de responsabilidade em garantia da obrigação da indemnização (daí que quem surge como devedor seja a seguradora e não o autor do dano), criando um sistema de protecção social da insegurança rodoviária. Já não é o património individual do lesante que garante a indemnização, mas antes o aglomerado dos prémios pagos pelos tomadores do seguro; como também, mais do que atribuir a responsabilidade pelo dano o que importa é assegurar a indemnização do lesado.
E com essa evolução entrou em crise o entendimento da impossibilidade de concorrência entre culpa e risco; rectius, entre risco e conduta do lesado.
O trânsito automóvel passou a ser uma realidade quotidiana; a generalidade das pessoas tem de conviver de perto com as máquinas em movimento, no seu dia a dia, ao longo da vida, o que obriga a um tão grande número de precauções acrescidas “que se tornam desculpáveis negligências ou culpas leves dos lesados e se compreende que apenas a culpa grave (ou até muito grave ou extremamente grave) deste seja considerada bastante para afastar a responsabilidade” (como desde há muito vinha defendendo VAZ SERRA; cf. RLJ, Ano 99, pgs. 372-373).
A possibilidade de concurso entre risco e culpa foi ganhando a adesão da doutrina, designadamente de CALVÃO DA SILVA (RJL, Ano 134, pg. 112; Ano 137, pg. 35), SINDE MONTEIRO (Responsabilidade Civil, RDEc, Ano IV, nº 2, 1978, 313; Responsabilidade por Culpa, Responsabilidade Objectiva, Seguro de Acidentes, RDEc, Ano V, 1979, 317 e Ano VI/VII, 1980/81, 123), BRANDÃO PROENÇA (A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação de dano extracontratual, Almedina, 1977; Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica do “tudo ou nada”, in CDP, nº 7, JUL/SET2004, pg.25), ANA PRATA (Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela, in Estudos em Comemoração dos cinco anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2001, 345), AMÉRICO MARCELINO (Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 8ª ed. Revista e ampliada, 309), ALMEIDA COSTA (Direito das Obrigações, 10ª ed. Reelaborada, Almedina, 2006, 639 nota 1) e MARIA DA GRAÇA TRIGO (Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, vol. II, UCP, 2015, pg. 467).
Por outro lado a legislação nacional foi consagrando situações de concorrência entre risco e culpa em outros domínios, designadamente na responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos (DL 383/89, 6NOV, art.º 7º), nos acidentes com intervenção de aeronaves (DL 321/89, 25SET, art.º 13º e DL 71/90, 02MAR, art.º 14º) ou embarcações de recreio (DL 329/95, 09DEZ, art.º 43º) e produção e distribuição de energia eléctrica (DL 184/95, 27JUL, art.º 44º).
Entretanto a nível da União Europeia foi iniciado um processo de uniformização da legislação dos Estados-Membros relativamente ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis e à obrigatoriedade de segurar essa responsabilidade, tendo como objectivos garantir a todas as vítimas de acidentes de viação – e em particular às mais vulneráveis – uma efectiva, suficiente e não discriminatória indemnização e assegurar a livre circulação de veículos e pessoas no mercado interno bem como a concorrência entre os serviços de seguros. Esse processo deu origem às (1ª) Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24ABR12972 (JO L 103, 02MAI1972), (2ª) Directiva 84/05/CEE do Conselho, de 30DEZ1983 (JO L8, 11JAN1984), (3ª) Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14MAI1990 (JO L 129, 19MAI1990), (4ª) Directiva 2000/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16MAI2000 (JO L 191, 20JUL2000) e (5ª) Directiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11MAI2005 (JO L 149, 11JUN2005); directivas essas entretanto consolidadas na Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16SET2009 (JO L 263, 07OUT2009).
O programa de uniformização legislativa prosseguido pelas referidas directivas tem como objecto o quadro jurídico atinente ao estatuto do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis segundo a legislação nacional dos Estados-Membros; ele não tem qualquer pretensão de interferir com a regulamentação da responsabilidade civil pela legislação nacional de cada um dos Estados-Membros.
Se em abstracto tal consideração é indiscutida, o certo é que situações da vida real ocorrem em que as regras ou espírito das directivas conflituam com o direito da responsabilidade civil dos diferentes Estados-Membros. Tendo o Tribunal de Justiça da União Europeia vindo a estabelecer o princípio interpretativo de que embora os Estados membros sejam livres de estabelecer o regime jurídico que considerem mais apropriado relativamente à constituição e ao conteúdo da obrigação e indemnização eles têm de exercer as suas competências de um modo que não retire efeito útil à legislação da União Europeia (cf. acórdãos Katja Candolin e o.[vítima mortal viajava em veículo em que o condutor e todos os passageiros se encontravam em estado de embriaguez], 30JUN2005, C-537/03, EU:C:2005:417, § 28, Elaine Farrell [viajava na parte traseira de uma carrinha de carga não concebida nem construída para transporte de passageiros], 19ABR2007, C-356/05, EU:C:2007:229, § 34, e Ferreira Santos [colisão de veículos sem culpa de nenhum dos condutores de que resultaram danos para um deles], 17MAR2011, C-484/09, EU:C:2018:158, § 36) e daí retirou uma regra jurisprudencial segundo a qual o efeito útil resultaria esvaziado se a «responsabilidade do próprio lesado pelos danos sofridos (…) tivesse por consequência excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito a ser indemnizado» (acórdão Ferreira Santos, §37; no mesmo sentido, acórdãos Katja Candolin e o., §§ 28-30 e Elaine Farrell, § 35, ambos referenciando que a inadmissibilidade daquela exclusão ou limitação resultava de se basear em critérios gerais e abstractos e que a limitação da extensão da indemnização apenas em circunstâncias excepcionais era de admitir).
Apontava, assim, aquela jurisprudência no sentido de que, «além da exigência de um nexo causal, só uma culpa grave do lesado poderá ter o efeito de limitar a cobertura do seguro (o que significa reduzir o montante da indemnização), ainda assim de uma forma não “desproporcionada” pelo que (…)só uma culpa extremamente grave, em ligação com considerações ao nexo de causalidade, poderá ter o efeito de excluir a cobertura do seguros (o que significa recusar a indemnização)» (SINDE MONTEIRO, Direito dos Seguros e Direito da Responsabilidade Civil, RLJ, Ano 142, pg. 101).
Essa perspectiva, no entanto, sofre alguma disrupção com os acórdãos Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio [colisão de veículo com bicicleta tripulada por criança de 6 anos cuja conduta descuidada teve papel de destaque no surgir do acidente], 09JUN2011, C-409/09, EU:C:2011:371, e Marques Almeida [colisão de veículos sem culpa de nenhum dos condutores em que a vítima foi um passageiro que seguia ao lado de um dos condutores, que não tinha colocado o cinto de segurança e que foi projectado através do pára-brisas], 23OUT2012, C-300/10; EU:C:2012:656), pois que neles o TJUE, depois de reafirmar a sua jurisprudência anterior no sentido de que as legislações nacionais sobre responsabilidade civil não podiam privar as directivas de efeito útil, o que ocorreria no caso de, com base em critérios gerais e abstractos ou sem a ocorrência de circunstâncias excepcionais, se recusasse ou limitasse de modo desproporcionado à vítima o direito de ser indemnizada pelo seguro automóvel com fundamento na sua contribuição para a produção do dano (§§ 28-29 e 31-32, respectivamente), veio afirmar, por um lado, que diferentemente das circunstâncias que deram origem aos acórdãos Katja Candolin e o. e Elaine Farrell «o direito à indemnização das vítimas do acidente é afectado não devido a uma limitação da cobertura da responsabilidade civil pelo seguro operado por disposições em matéria de seguro, mas devido a uma limitação da responsabilidade civil do condutor segurado, por força do regime de responsabilidade civil aplicável» (§§ 31 e 34, respectivamente), e, por outro lado, que a legislação nacional aplicável ao caso (artigos 503º, 504º, 505º e 570º do CCiv) só afastam a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima e que, além disso, caso a vítima, por facto que lhe seja imputável, tenha concorrido para a produção do dano ou para o seu agravamento, a indemnização é afectada numa medida proporcional ao grau de gravidade desse facto (§ 33 do primeiro) em função da apreciação das concretas circunstâncias do caso pelo tribunal competente, pelo que tal legislação nacional não tem por efeito excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o direito a uma indemnização pelo seguro obrigatório (§§ 37-38 do segundo), concluindo que a apontada legislação nacional em causa não conflituava com a legislação comunitária em referência.
Independente das dúvidas e perplexidades resultantes desses acórdãos, afigura-se-nos seguro que eles têm sempre por pressuposto que a legislação nacional permite o concurso entre responsabilidade pelo risco e responsabilidade por culpa, pois só nessa medida é possível que o tribunal, mediante a ponderação do concreto circunstancialismo do caso, possa aquilatar do grau de gravidade da conduta do lesado e, em conformidade, com essa avaliação, possa afastar ou limitar proporcionalmente a indemnização pelo seguro.
Tendo em conta essa evolução social, legislativa e do direito europeu o STJ no acórdão proferido em 04OUT2007 no proc. 07B1710 adoptou a interpretação do art.º 505º do CCiv no sentido da admissão da concorrência entre risco e culpa. Posição essa que se veio a consolidar (cf. acórdãos de 01JUN2017, proc. 1112/15.1T8VCT.G1.S1, 11JAN2018, proc. 5705/12.0TBMTS.P1.S1, 19MAR2019, proc. 5173/15.5T8BRG.G1.S1, 17OUT2019, proc. 15385/15.6T8LRS.L1.S1 e 17DEZ2019, proc. 6610/16.7T8GMR.G1.S1) com a seguinte formulação:
“O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 505º e 570º do CCiv deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional: ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se, à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto para o resultado danoso.”
Incorporando-nos nessa corrente jurisprudencial importa aferir da aplicação da mesma ao caso concreto.
E desde logo importa expressar os critérios fundamentais que subjazem a essa aplicação.
Em primeiro lugar, entendemos, como no referido acórdão de 17OUT2019, que quando o art.º 505º do CCiv alude a «acidente imputável ao próprio lesado, quer-se dizer, antes de mais nada, acidente devido a facto culposo do lesado, acidente causado pela conduta censurável do lesado, importando saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pelo lesado», não encontrando qualquer relevância ou utilidade na destrinça entre causação do acidente e causação do dano a que se faz apelo no também referido acórdão de 11JAN2018.
Por outro lado, temos que o fundamento para a responsabilidade objectiva do detentor do veículo não é apenas o perigo do mau funcionamento da máquina (risco agravado) mas também o perigo da simples circulação da máquina (risco comum), pelo que «sempre que o veículo se encontre em circulação, a respectiva força cinética faz com que seja causa adequada dos danos ocorridos, mesmo que a conduta do lesado, culposa ou não, tenha sido concausal em relação ao acidente de que resultaram os danos.» (MARIA DA GRAÇA TRIGO, op. cit., pg 486-487).
Dessa consideração, aliada à posição do TJUE de que só em circunstâncias excepcionais ser de admitir a exclusão de indemnização, temos, ainda, que só uma conduta muito grave do lesado pode levar a que se lhe impute em exclusivo a responsabilidade pelo acidente; entendendo-se por muito grave os casos de assunção excessiva de riscos e de exposição deliberada a um risco muito grave (SINDE MONTEIRO, RLJ, Ano 142, pg.128-129).
No caso concreto dos autos não oferecesse dúvida que ocorreu uma conduta censurável por parte do peão, integrando por um lado a violação da regras estradais e por outro lado a desconsideração pelos maiores cuidados a ter em função da sua ancianidade, quando passou a transitar na extremidade da faixa de rodagem, em vez de o continuar a fazer na berma, sem previamente se assegurar da inexistência de perigo, dessa forma intersectando abruptamente o sentido de marcha do veículo, dando causa a que nele embatesse, e que desse embate viessem a resultar lesões com capacidade letal, designadamente em função da maior fragilidade decorrente das condições biológicas típicas da sua idade.
Essa conduta, porém, configura-se mais como desatenção decorrente da quotidiana convivência com a fonte de perigo do que uma deliberada exposição a um risco grave, justificante da total exclusão da eventualmente concomitante responsabilidade pelo risco.
Mas não é de todo irrelevante na ocorrência do acidente a circulação do veículo, pois que a ele se fica a dever, em função da força cinética resultante da sua velocidade (apesar de não concretamente apurada, seguramente várias vezes superior à normal velocidade de locomoção humana), volume e massa (ou seja, dos riscos próprios da circulação do veículo), a violência da projecção decorrente do embate e a sua aptidão para provocar lesões potencialmente letais.
Ponderado esse circunstancialismo entendemos por adequado fixar a responsabilidade pelo acidente em causa na proporção de 60% para o peão e 40% para o veículo automóvel; daí decorrendo que a Ré, enquanto seguradora do mesmo, responde por 40% dos danos resultantes do acidente.
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Os danos resultantes do acidente foram quantificados da seguinte forma:
- dano patrimonial – 1.599,15 €, correspondendo 1.000 € ao decorrente da diminuição da condição física;
- dano moral pela perda do direito à vida – 54.000 €;
- dano moral pelo sofrimento desde a data do acidente até à morte – 16.000 €;
- dano moral da viúva – 20.000 €;
- dano moral de cada um dos quatro filhos – 10.000 €.
A Ré seguradora impugna os montantes arbitrados a título de dano patrimonial decorrente da diminuição da condição física (por ausência de dano patrimonial) e a título de dano moral pela perda do direito à vida (que entende dever ser fixado em 50.000 €) e dano moral pelo sofrimento até à data da morte (que entende dever ser fixado em 10.000 €).
Considerando-se ter a vítima direito a ser indemnizada pela incapacidade temporária geral traduzida na diminuição da sua condição física, fixou-se tal indemnização, atentos o tempo dessa incapacidade e a condição económica do lesado, em 1.000 €. Por seu turno a Recorrente impugna aquele valor argumentando que não ficou demonstrado que a vítima tivesse ficado privada dos produtos da sua horta, única actividade conhecida.
Ainda que se entenda que a afectação das funções corporais ou a incapacidade geral pode redundar num dano patrimonial, não deixa de se exigir a demonstração desse dano, designadamente que se deixou de exercer ou não veio a exercer uma actividade. E, no caso, não resulta feita essa demonstração uma vez que a vítima era reformada, não havendo referência a que exercesse ou intentasse vir a exercer qualquer outra actividade, para além de que “com a ajuda da esposa e por vezes de algum dos seus filhos, cultivava o quintal/campo da casa onde vivia, cuidando dos animais, designadamente coelhos e galinhas, colhendo batatas, cebolas, fabricando vinho com as uvas colhidas da ramada, feijão e outros produtos hortícolas que destinava ao consumo familiar, vendendo o excedente”; desconhecendo-se o montante do rendimento adveniente da venda dos excedentes e se com a sua incapacidade tal actividade foi interrompida ou diminuída ou, se pelo contrário, continuou a ser assegurada pela mulher e filhos (os ora Autores) da vítima.
Ora não estando comprovado o dano, não haverá lugar à obrigação de indemnizar.
Pelo que a indemnização por dano patrimonial fica reduzida ao montante de 599, 15 (correspondente a despesas efectuadas), que não foi, aliás, alvo de impugnação.
Foi ainda fixado em 54.000 € o quantitativo da indemnização pela perda do direito à vida, atenta a idade da vítima, e em 16.000 € os danos morais ocorridos entre o acidente e a morte, atento ter sido sujeito a várias hospitalizações durante um mês e a três meses de tratamento ambulatório, que não recuperou a marcha, viveu os últimos 4 meses de vida entre a cama e a cadeira de rodas dependendo de terceiros quando antes era pessoa autónoma, com isso vendo-se sujeito a afectação funcional, do bem-estar físico e psíquico, da autonomia pessoal e liberdade ambulatória, da capacidade de afirmação pessoal, de imagem perante os outros e si próprio, e ao inerente sofrimento físico e psíquico.
A recorrente insurge-se contra esses quantitativos invocando que os mesmos são excessivos sem, contudo, concretizar os fundamentos desse seu juízo. E pela nossa parte não vislumbramos que atenta a extensão temporal e a gravidade dos danos, pormenorizadamente elencados na sentença da 1ª instância, a decisão da 1ª instância se tenha, por um lado, afastado dos valores referenciais na matéria ou, por outro lado desconsiderado ou considerado excessivamente qualquer aspecto circunstancial relevante, a justificar a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal.
Quanto ao mais, haverá de manter intocado o já decidido porquanto não foi alvo de oportuna impugnação (designadamente a contagem de juros moratórios desde a citação em função de a fixação do montante indemnizatório não ter considerado qualquer actualização monetária).
V – Decisão
Termos em que, na parcial procedência do recurso, se concede a revista e, em conformidade:
a) Revoga-se o acórdão recorrido;
b) Condena-se a Ré, a pagar aos Autores a quantia global de € 28.239,66 (vinte e oito mil duzentos e trinta e nove euros e sessenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da citação (09.10.2014) até efectivo e integral pagamento;
c) Condena-se a Ré, a pagar à Autora AA a quantia de € 8.000 (oito mil euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
d) Condena-se a Ré, a pagar a cada um dos autores DD, BB, CC e EE a quantia de € 4.000 (quatro mil euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Custas, aqui e nas instâncias, na proporção do respectivo decaimento, ou seja, 60% para os Autores e 40% para a Ré.
Lisboa, 24 SET 2020
Rijo Ferreira (Relator)
[Com voto de conformidade dos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos,
conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com
a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI]
Abrantes Geraldes
Tomé Gomes