Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P4551
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RAUL BORGES
Descritores: ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
REJEIÇÃO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: SJ200805070045513
Data do Acordão: 05/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário :

I - No caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de instrução determinará o objecto desta, definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como os da decisão de pronúncia.
II - Atento o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, sendo que tal requerimento contém substancialmente uma acusação, deverá o mesmo conter a narração dos factos e indicar as provas a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o art. 283.º, n.º 3, als. b) e d), do CPP.
III - Na verdade, substanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento, e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação – quer tenha sido deduzida pelo MP quer pelo assistente –, a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação), terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real.
IV - A exigência de rigor na delimitação do objecto do processo – note-se que a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao MP no momento em que acusa –, sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
V - É, pois, de rejeitar, por inadmissibilidade legal, «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito, a pôr em crise a sua credibilidade e a evidenciar contradições, e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime (cf. Ac. deste STJ de 22-03-2006, Proc. n.º 357/05 – 3.ª).
VI - No caso em apreciação, verificando-se que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo recorrente não se apresenta estruturado como uma acusação, da qual conste a narração, ainda que sumária, dos factos e a indicação dos ilícitos criminais que o assistente imputa a cada um dos denunciados, e pelos quais entende deverem os mesmos ser pronunciados, antes se mostrando delineado como um recurso do despacho de arquivamento elaborado pelo MP, mostra-se correcta a decisão recorrida de rejeitar a instrução. Com efeito, a omissão dos elementos de facto, a inobservância dos requisitos de uma acusação, em que no fundo e estruturalmente se deve converter o requerimento, conduzindo à não formulação e delimitação do thema probandum, fazem com que a suposta acusação, pura e simplesmente, falte, não exista, ficando a instrução sem objecto.
VII - Por outro lado, é entendimento deste STJ, conforme acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005, de 12-05-2005 (Proc. n.º 430/2004 - 3.ª), publicado no DR n.º 212, Série I-A, de 04-11-2005, que não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do CPP, quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

Decisão Texto Integral:


AA, Advogado, com domicílio profissional na Rua ........, n.° ..., ..° andar, em Lisboa, participou criminalmente contra BB, Procurador da República adjunto, CC, Escrivão adjunto, DD, Escrivão adjunto, EE, Escrivão de direito, todos em exercício de funções no Tribunal do Trabalho de Cascais, FF, jurista, em exercício de funções no Estabelecimento Prisional de Sintra, e GG, à data detido no Estabelecimento Prisional de Sintra, todos melhor identificados nos autos, imputando-lhes a prática de factos que enquadrou como integrantes de crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, al. j), crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, al. j), crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo artigo 359.º, e crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365.º, todos do Código Penal.
O inquérito correu termos no Tribunal da Relação de Lisboa, atenta a qualidade de Procurador da República Adjunto do primeiro denunciado (artigo 92.º do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 47/86, de 15-10, na redacção dada ao indicado preceito pela Lei 60/98, de 27-08), e culminou com a prolação de despacho de arquivamento, nos termos do artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, com fundamento: a) na extinção do direito de queixa quanto aos crimes de difamação e de injúria imputados, dado que o procedimento criminal depende de queixa e esta foi apresentada após o decurso do prazo fixado para o efeito no artigo 115.º do Código Penal; b) na inexistência de indícios suficientes da prática dos crimes de falsidade de depoimento ou declaração e de denúncia caluniosa imputados, dado que o teor da decisão de pronúncia proferida contra o aqui queixoso no âmbito do processo crime pendente no Tribunal de Oeiras com o NUIPC 1483/06.0TAOER (que teve início em queixa apresentada pelo ora 1.º denunciado), afasta qualquer prognose indiciária de que os aqui denunciados tenham cometido os aludidos crimes públicos.
Admitido a intervir como assistente, o denunciante requereu a abertura de instrução, nos termos constantes do requerimento de fls. 71 a 75, no qual sustenta que:
- apresentou atempadamente a queixa, em 04-04-2007, dado que só teve conhecimento dos crimes pelas declarações prestadas pelos denunciados, em sede do debate instrutório realizado em 23-03-2007, no âmbito do processo crime com o NUIPC 1483/06.0TAOER, que corre termos no Tribunal de Oeiras;
- o aludido processo, pendente no Tribunal de Oeiras, «não tem nada que ver com os presentes autos, na medida em que, o que nele se discute, são as palavras proferidas, pelo aqui assistente (…) se são ou não crime de difamação ou outros crimes», sendo que «estas palavras, foram o modo de exprimir, a inconformidade, de uma decisão judicial, quando liderava o processo laboral de Cascais, no desempenho das suas funções de advogado», «enquanto que, nos presentes autos, está a suspeita dos arguidos contra a honestidade, honorabilidade, bom nome, reputação e credibilidade, do aqui assistente» e «com esta conduta, os arguidos, cometeram em autoria material na forma consumada, cada um; um crime de difamação, um crime de injúrias, um crime de calúnias, um crime de denúncia caluniosa, um crime de falsas declarações e um crime de cumplicidade contra o aqui assistente, p. e p. nos termos dos art.°s 180.°, 181.°, 182.°, 183.°, 27.°, 359.° e 365.°, com a agravação do art.° 184.°, por se tratar de um profissional, que foi ofendido, lesado, no exercício das suas funções al. j) do n.° 2 do art.° 132.°, todos do CP»;
- do pedido de abertura de instrução faz parte integrante a queixa crime anteriormente apresentada.
Por despacho de fls. 81 a 87, o Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou liminarmente o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal da instrução – com fundamento na manifesta carência de objecto, em virtude de o requerimento carecer, totalmente, da menção de factos, e do correspondente enquadramento jurídico, bem como da concreta imputação dos mesmos aos respectivos agentes – determinou o arquivamento dos autos e condenou o assistente em custas, fixando a taxa de justiça em 8 UC.

Inconformado, o assistente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando a motivação de fls. 89 a 94, donde extrai as seguintes conclusões:
1. Não foram considerados, no inquérito, os factos, produzidos pelos arguidos, que manifestamente, traduzem a suspeita da honestidade e seriedade do recorrente.
2. Os factos estão claramente vertidos, quer na queixa crime, quer no requerimento de abertura de instrução.
3. Não foram tidas em conta, quer as provas documentais, quer as provas testemunhais.
Na procedência do recurso, defende que o despacho de arquivamento do requerimento de abertura de instrução, isto é, o despacho recorrido deve ser anulado e substituído por outro, que admita a instrução e absolva o recorrente do pagamento da taxa de justiça.

O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa apresentou a resposta constante de fls. 113 a 119, na qual defende a manutenção do decidido, apresentando as seguintes conclusões:
1. O requerimento do assistente de abertura de instrução não cumpre minimamente as exigências legais (artigo 283.°, n.º 3, ex vi artigo 287.°, n.º 2, ambos do CPP), pelo que não permite a definição do objecto da instrução, assim tornando-a inexequível.
2. O que é motivo para a sua rejeição – por inadmissibilidade legal, nos termos do n.º 3 do artigo 287.° do CPP – não havendo lugar a prévio «convite» de aperfeiçoamento.
3. Pelo exposto, o recurso não merecerá provimento, mantendo-se o arquivamento dos autos.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 120.
Notificada a admissão, veio o recorrente apresentar a “resposta” de fls. 124 a 128.

Neste STJ, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve vista e pronunciou-se, a fls. 136/7, no sentido de, sem «questionar a tese avançada na decisão que rejeitou a instrução (… o entendimento que defende a necessidade do requerimento de instrução formulado pelo assistente constituir uma "acusação alternativa", imprescindível para a definição do objecto do processo e acatamento do princípio acusatório), poder-se-ia aceitar que a remissão feita no n.° 12 do requerimento (para a queixa crime apresentada) preencheria formalmente o requisito constante do n.° 3, al. b) do art.º 283.° do CPP (aplicável por remissão do art.° 287.°, 2). Porém, certo é que, materialmente, a referida queixa, como se salienta no despacho recorrido (…) não indica factos que, aos olhos do cidadão comum, e numa análise de bom senso, não só fossem aptos a provocar a referida ofensa à honra e consideração, como, também, preenchessem a previsão típica dos imputados crimes». Termina concluindo que, não merecendo censura a decisão recorrida, o recurso deverá ser julgado improcedente.

Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente respondeu ao parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, reiterando a posição defendida no recurso e repetindo em parte o que constava da aludida “resposta”.

No exame preliminar foi determinado o desentranhamento e restituição da “resposta” junta pelo recorrente, por inadmissível, pois que não está prevista na lei processual penal um articulado de resposta do recorrente à resposta à motivação de recurso apresentada pelo recorrido.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, nas quais sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Questão a resolver
A única questão a apreciar prende-se com a aferição da existência de motivo legal de rejeição da instrução, face ao requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente.
Apreciando.
O artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal indica expressamente como objectivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A abertura da instrução, como decorre do artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Dispõe o n.º 2 do supra citado artigo 287.º que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP.
Reportando-se à acusação pelo Ministério Público, estabelece este último preceito que a mesma contém, além do mais, sob pena de nulidade: b) «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada»; c) «a indicação das disposições legais aplicáveis».
No que respeita à direcção e natureza da instrução, o artigo 288.º, n.º 4, do CPP, dispõe que o juiz de instrução – a quem compete a direcção da instrução – investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior.
Por outro lado, determina o artigo 307.º, n.º 1, do CPP que, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução; acrescenta o artigo 309.º, n.º 1, do mesmo diploma que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.
Da análise deste regime extrai-se que, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de instrução determinará o objecto da instrução, definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como da decisão instrutória de pronúncia.
A este propósito, Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, págs. 140 e ss.) afirma: «O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, devendo indicar desde logo as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à decisão de abstenção do MP, constitui uma verdadeira acusação, a que o assistente entende que devia ser deduzida pelo MP, e, se aceita pelo tribunal, não há razão de fundo que justifique a necessidade de ser repetida nos seus precisos termos pelo MP (...). O requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação alternativa que, dada a divergência com a posição assumida pelo MP, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial».
Anteriormente na dissertação de doutoramento em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Católica, Do Processo Penal Preliminar, Editorial Minerva, Lisboa, 1990, p. 258/9, afirmara: “A decisão de arquivar o inquérito é um pressuposto do requerimento do assistente para abertura de instrução. Neste, o assistente deve indicar as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à não acusação do MP; formalmente o assistente não acusa, indica como entende que deveria ter procedido o MP: que não deveria arquivar, mas acusar e em que termos o deveria fazer. É esta “acusação” que o assistente entende que o MP deveria ter deduzido que vai delimitar substancialmente os poderes de cognição do juiz, o caso objecto da instrução”.
Atento o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, sendo que tal requerimento contem substancialmente uma acusação, deverá o mesmo conter a narração dos factos e indicar as provas a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e d), do CPP.
Sendo o requerimento para abertura da instrução a causa de pedir da actividade instrutória, o mesmo só fará sentido se contiver a descrição de substracto fáctico e a indicação dos elementos probatórios, com base nos quais será proferido o despacho de pronúncia ou de não pronúncia.
Substanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação, quer tenha sido deduzida pelo Mº Pº ou pelo assistente, a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois que a comprovação, a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação) terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real.
A divergência tem de ser substanciada, indicando uma causa petendi, que delimite o objecto do processo, enforme o campo da vinculação temática e modele o thema probandum, expondo-se os factos que fundamentam a iniciativa processual com vista à “renovação” da instância noutros moldes.
No Acórdão do STJ de 07-03-2007, proferido no processo n.º 4688/06 - 3.ª, refere-se:
«A estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para abertura de instrução.
O requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais – artigo 287.º, n.º 2, do CPP – mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.
O objecto da instrução deve ser suficientemente delimitado, com a indicação («mesmo em súmula», diz a lei – artigo 287.º, n.º 2, do CPP) das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação ou arquivamento, bem como a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar.
(…) O requerimento para abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.
No caso de instrução requerida pelo assistente, o limite tem de ser definido pelos termos em que, segundo o assistente, deveria ter sido deduzida acusação, e consequentemente, não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento – no rigor, por um modelo de requerimento que deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa, ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida com base nos elementos de prova recolhidos no inquérito (…)».
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 358/2004 (Processo n.º 807/2003 - 2.ª), de 19 de Maio de 2004, publicado no DR n.º 150, Série II, de 28-06-2004 e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 59º volume, p. 441 e ss., não julgou inconstitucional a norma do artigo 283º, nº3, alíneas b) e c) do CPP, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas.
Aí se considerou o seguinte:
«(…) A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (…) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287.º, n.º 2, remeta para o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada».
«(…) a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso ao direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito».
A exigência de rigor na delimitação do objecto do processo – note-se que a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa - sendo uma concretização das garantias de defesa, esclarece-se no citado acórdão, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

No caso presente, está em causa um requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento do inquérito.
Considerou a decisão recorrida que:
«(…) o requerimento instrutório (…) enferma de todos os vícios que inviabilizam a realização de quaisquer actos de instrução.
Desde logo, não satisfaz o mesmo o rigor formal que é imposto pelo art.° 283.°, n.° 3, als. b) e c), ex vi, art.° 287.°, n.° 2.
(…) O assistente, num articulado repetitivo, confuso e contraditório, limita-se, pontualmente, a tentar infirmar a argumentação usada pelo Exm.° Sr. Procurador em sustentação da sua decisão de arquivamento do inquérito, onde este demonstrou, e bem, que, pelo menos em relação aos crimes de difamação e de injúrias, o direito de queixa se mostra extinto, e desde há muito, e que, em relação a todos eles, não existem indícios suficientes da sua prática. Nós diremos que não existem quaisquer indícios!
Portanto, e inquestionavelmente, o requerimento para abertura da instrução carece, totalmente, da menção de factos, e do correspondente enquadramento jurídico, bem como da concreta imputação dos mesmos aos respectivos agentes (…)».
Sustenta o recorrente, na motivação apresentada, o seguinte:
«(…) 2.° O Recorrente, apresentou queixa crime contra os supra citados Arguidos, devidamente fundamentada, com os factos que cometeram, com prova documental e testemunhal, da consumação dos factos.
(…) 13.° Os Arguidos, pelos factos, que praticaram, segundo, a responsabilidades de cada um, nas suas culpas cometeram, os crimes que lhe são imputados.
14.° Os factos, que provam, os respectivos crimes, estão devidamente e claramente fundamentados, e deles resulta, uma probabilidade razoável, de aos Arguidos, vir a ser, aplicada, em julgamento uma pena, ou uma medida de segurança. n.° 2, do Art.° 283.°, do CPP.
15.° Os referidos factos, apresentados, não apenas por uma narração sintética, mas por uma narração detalhada, designando-se, o lugar, o tempo e a motivação, da sua prática, o grau de participação e circunstâncias relevantes, para a determinação da sanção, que lhe deve ser aplicada e as disposições aplicadas, não deixa margem para dúvidas, que se respeitou o previsto no n.° 2, e als. b) e c) do n.° 3, do Art.° 283.° do CPP.
(…) 20.° Do requerimento de abertura de instrução, faz parte integrante a queixa crime. (Art.° 12.° do requerimento de abertura de instrução).
(…) 26.° O supra referido requerimento de abertura de instrução, contêm, não apenas, uma súmula, mas é uma narrativa completa das razões de facto e de direito, que aqui se dispensa a repetição, por razões de economia literária. Isto é, constam da queixa crime, e do referido requerimento de abertura de instrução (…)».

Analisado o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e constante de fls. 71 a 75, verifica-se que o mesmo, efectivamente, não contém a narração dos factos que fundamentam a aplicação a cada um dos denunciados de uma pena, com a indicação das disposições legais aplicáveis, assim não dando cumprimento às exigências de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º, na remissão para o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal.
O requerimento em causa não se apresenta estruturado como uma acusação, da qual conste a narração, ainda que sumária, dos factos e a indicação dos ilícitos criminais que o assistente imputa a cada um dos denunciados e pelos quais entende deverem os mesmos ser pronunciados, antes se mostrando delineado como um recurso do despacho de arquivamento elaborado pelo Ministério Público.
Assim, o assistente impugna alguns pontos do despacho de arquivamento, relativamente aos quais manifesta a sua discordância, conforme expressamente afirma no artigo 10.º do requerimento para abertura da instrução, designadamente, o critério de determinação do início do prazo fixado no artigo 115.º do Código Penal para o exercício do direito de queixa (cf. artigos 2.º a 6.º do requerimento) e a conexão estabelecida entre o processo pendente no Tribunal de Oeiras com o nº 1483/06.0TAOER e a denúncia apresentada nos presentes autos (cfr. artigos 7.º a 9.º e 13.º a 15.º do requerimento).
No artigo 12.º do requerimento em análise, porém, o assistente remete para a queixa apresentada, afirmando que «do presente pedido de abertura de instrução, faz parte integrante a queixa crime, anteriormente e atempadamente apresentada, para economia processual».
No entanto, analisando a queixa constante de fls. 4 - 12, verifica-se que a mesma igualmente se não apresenta como uma acusação que possa vir a ser recebida pelo despacho de pronúncia, não descrevendo a concreta conduta que imputa a cada um dos denunciados, incluindo o elemento subjectivo integrador dessa actuação, nem indicando as disposições legais respeitantes ao enquadramento jurídico dos factos.

Relativamente ao teor da queixa apresentada, consta do despacho recorrido o seguinte:
«(…) Do mesmo modo, também a referida queixa não satisfaz o atrás citado rigor formal, não podendo dizer-se, igualmente, que ela constitui uma "acusação alternativa".
Atentando-se na referida peça processual, diz o assistente que "o primeiro arguido, Dr. BB, no desempenho das suas funções, lhe comunicou que o seu (do assistente) constituinte (sexto arguido), lhe tinha telefonado, para lhe dizer que a indemnização não deveria ser entregue ao seu advogado sem ser na sua (dele) presença”.
E, ainda segundo o assistente, no âmbito da referida comunicação, o mesmo arguido ter-lhe-á prometido que "o notificaria para a entrega da indemnização, na presença do seu constituinte, mas que isso não aconteceu, tendo este recebido a indemnização sem a sua presença".
Depois, alegando ainda que este arguido "entendeu não interpretar o conteúdo da procuração e dos restantes documentos", considerou que o mesmo "suspeitou da honestidade, dignidade, sinceridade e rectidão do queixoso".
E estes são todos os "factos" em que o assistente sustenta a sua imputação!
Sendo assim, onde é que os mesmos, de alguma forma, permitem terem-se por preenchidos os vários tipos de crime que lhe foram imputados?
Com considerações, suposições e juízos factualmente insustentáveis, tudo o que o assistente faz na referida queixa é dizer que o primeiro arguido "formulou uma suspeita ofensiva da sua honra, consideração, dignidade e bom nome, no exercício das suas funções".
Só que, não basta o assistente dizer que se sentiu ofendido, ou que, veja-se bem (!), que "tem receio de voltar a ser humilhado"!
Este tinha que indicar factos que, aos olhos do cidadão comum, e numa análise de bom senso, não só fossem aptos a provocar a referida ofensa à honra e consideração, como, também, preenchessem a previsão típica dos imputados crimes.
Se assim não fosse, a condenação por este tipo de crimes ficaria ao sabor da maior ou menor sensibilidade de cada uma das pessoas que se pudessem sentir visadas, ainda que factos com objectiva aptidão ofensiva não existissem!
E porque assim se entende, a imputação feita ao primeiro arguido é totalmente desprovida de sentido, já que, em circunstância alguma, a descrita conduta preenche a previsão típica dos imputados crimes.
Que factos sustentam o crime de difamação? E o de injúrias? Que crime é este de "calúnias"? E, quanto ao de "denúncia caluniosa", sediando-nos, tão só, no plano dos factos, que conduta passível de procedimento criminal, contra-ordenacional, ou disciplinar, imputou o primeiro arguido ao assistente, e perante quem? Ou será que a mesma descrita conduta preenche todos os respectivos tipos?
Se o assistente diz que se sentiu "lesado e difamado", o que até poderá nem se questionar, esse seu sentimento haveria de ter sido sustentado em factos concretos, e não em meras suposições. E o exemplo é o atrás já referido: "ainda que todos os factos à posterior venham a ser verdadeiros.
Depois, quanto ao enquadramento jurídico, veja-se a manifesta falta de rigor posto no mesmo. Ora se imputa aos arguidos um determinado tipo de crimes, ora se imputa outro, mas, a final, vêm todos a ser metidos no mesmo "saco". O exemplo está bem patente no art.° 30.° da invocada queixa!
No demais, e ainda quanto aos restantes arguidos, valendo também as considerações atrás expendidas, as respectivas imputações são ainda mais descabidas e factualmente insustentáveis, pretendendo o assistente questionar aquilo que os mesmos terão dito nos respectivos depoimentos, prestados no processo n.° 1483/06. onde aquele foi já pronunciado.
Porém, estando ainda os factos em discussão no citado processo, cuja existência, ou não, ainda não foi apurada, pretende o assistente, também, aqui vê-los discutidos.
Ora, ao assim proceder está este a fazer deste meio processual um uso manifestamente reprovável. Veja-se que o mesmo pretende sustentar a sua argumentação no recurso a expressões como: "pensamos", (...) "se aceitar, colabora e comete os crimes de que foi denunciado” (…)».

Na motivação apresentada, o recorrente não contesta as concretas imprecisões formais do requerimento para abertura da instrução e da queixa, que fundamentam o despacho recorrido, antes se limitando a afirmar, de forma conclusiva, que os factos imputados aos denunciados estão vertidos quer na queixa crime, quer no requerimento para abertura da instrução. No entanto, da análise destas peças processuais, constata-se que, efectivamente, as mesmas não apresentam os requisitos necessários para que assumam a estrutura de uma acusação, pelos motivos expostos na decisão recorrida.
Como tal, cumpre aferir das consequências da falta de descrição, no requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, das razões de facto e de direito que fundamentam a aplicação aos denunciados de uma pena ou de uma medida de segurança.
Considerou a decisão recorrida «verificada a possibilidade da rejeição do requerimento instrutório, por inadmissibilidade legal da instrução, face à manifesta carência de objecto, o que acarreta a sua inexistência jurídica».
Dispõe o artigo 287.º, n.º 3, do CPP que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
Afirma Maia Gonçalves, em anotação ao citado preceito (Código de Processo Penal Anotado, 15.ª edição, 2005, Almedina, pág. 581), que «a rejeição por inadmissibilidade legal de instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura da instrução, v. g. ilegitimidade do requerente (caso do MP) ou inadmissibilidade legal de instrução (v. g. casos dos crimes particulares e de alguns processos especiais)».
Esclarece Souto Moura (Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Livraria Almedina, 1989, pág. 120) que «se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na acusação e no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito vasto. O juiz de instrução “não prossegue” uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do M.º P.º, a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão. Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objecto, por mais imperfeita que fosse, o que se não compaginará com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes dominada pelo contraditório (...)».
Também Maia Gonçalves (ob. cit., pág. 582) afirma que «se o requerimento para abertura de instrução não indicar os factos integradores da infracção criminal, a instrução será inexequível».
É assim de entender que a omissão dos elementos de facto, a inobservância dos requisitos de uma acusação, em que no fundo e estruturalmente se deve converter o requerimento, conduzindo à não formulação e delimitação do thema probandum fazem com que a suposta acusação, pura e simplesmente, falte, não exista, ficando a instrução sem objecto.
Extrai-se do acórdão do STJ, de 22-10-2003, proferido no processo 2608/03 - 3.ª, o seguinte: «dado que o despacho de pronúncia se deve quedar pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura da instrução, as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia dos arguidos. E se assim é, não faz sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido».
E no acórdão do STJ, de 24-09-2003, proferido no processo 2299/03 - 3.ª, refere-se: «o requerimento que o assistente apresentou para abertura da instrução não contém os elementos essenciais à função processual que lhe é assinalada; não é processualmente prestável para tal finalidade, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado. Em termos processuais, tudo se passa, assim, como se não tivesse havido requerimento, o que determina a impossibilidade de abertura da fase de instrução».
Também o Acórdão do STJ, de 05-05-1993, in CJSTJ 1993, tomo 3, págs. 243 – 245) considera que: «(…) o Ministério Público não deduziu acusação (…): arquivou o inquérito (…); por seu turno, o assistente, no requerimento de abertura de instrução, não indicou quaisquer factos que viessem a integrar uma conduta criminosa (…). Quer dizer: face ao requerimento de instrução, o arguido ficou sem saber quais os factos que o assistente lhe pretendia imputar, portanto, quais os factos de que teria que se defender; e o juiz ficou do mesmo modo impossibilitado de realizar a instrução e de elaborar, ante a ausência dos factos alegados, a respectiva decisão instrutória. Ou seja: a instrução carecia nitidamente de objecto».

No caso presente, não tendo o Ministério Público deduzido acusação e não indicando o assistente, no requerimento para abertura da instrução, os factos que imputa aos denunciados, verifica-se que a instrução carece de objecto, o qual deveria ter sido definido pelo aludido requerimento, que não cumpriu essa função imposta pelos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP, assim não sendo exequível.
Consta do acórdão do STJ, de 22-03-2006, proferido no processo n.º 357/05 - 3.ª, o seguinte: «Numa visão sistemática que apela a uma solução emergente de uma interpretação de conjunto dos preceitos, mas inteiramente compatível com eles, na controvérsia que se suscita em torno do sentido e alcance do conceito aberto “inadmissibilidade legal”, vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução, a falta de factos não pode deixar de ser conducente a um caso legal, porque prevista na lei a consequência daquela falta, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 286.º, 287.º, n.º 2, 283.º, n.ºs 2 e 3, al. b), 308.º, n.º 2, e 311.º, n.ºs 1, 2, al. a), e 3, al. b), do CPP, de inadmissibilidade dessa natureza de um requerimento que substancie os factos imputados ao arguido pelo assistente».
Neste aresto, entendeu o STJ que é de rejeitar por inadmissibilidade legal o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito, a pôr em crise a credibilidade delas, e a evidenciar contradições, e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pela arguida, e do elemento subjectivo que lhe presidiu, para cometimento do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.º 1, do Código Penal.
No caso em apreciação, verificando que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo recorrente não contém a narração dos factos imputados a cada um dos denunciados, com a indicação do correspondente enquadramento jurídico, mostra-se correcta a decisão recorrida, ao rejeitar a instrução.

Considerou a decisão em análise que não deve o juiz convidar o assistente a colmatar as lacunas do seu requerimento de instrução, sempre que o mesmo enferme de deficiente narração factual e de direito.
No âmbito das garantias de processo criminal, a Constituição da República Portuguesa consagra, no n.º 1 do artigo 32.º, todas as garantias de defesa do arguido, enquanto no n.º 7 do mesmo preceito dispõe que «o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei», assim diferenciando o estatuto do assistente, que não considera equivalente ao do arguido.
Tal diferenciação, de base constitucional, encontra-se plasmada na diferente posição processual de assistente e arguido, designadamente no que respeita ao modo de concretização das garantias de acesso à justiça e de intervenção processual.
Apreciando uma questão de constitucionalidade reportada ao artigo 287.º do Código de Processo Penal – relativa a uma decisão que, julgando nulo o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, impediu este sujeito processual de repetir o acto, uma vez que já havia decorrido o respectivo prazo –, considerou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 27/2001 (Processo n.º 189/2000 - 1.ª), de 30-01-2001, publicado no DR, n.º 70, Série II, de 23-03-2001, o seguinte:
«(…) a possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado, é, sem dúvida, violador das garantias de defesa do eventual arguido ou acusado. Com efeito, a admissibilidade de renovação do requerimento não permitiria que transitasse o despacho de não pronúncia, assim desaparecendo a garantia do arguido de que, por aqueles factos não seria de novo acusado.
Se se focar, agora, a perspectiva do direito da assistente de deduzir a acusação através do requerimento de abertura da instrução, a não admissibilidade de renovação do requerimento por decurso do prazo não constitui uma limitação desproporcionada do respectivo direito, na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido.
Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito.
Este balanceamento dos interesses em causa basta para mostrar que a aceitação da exclusão do direito de renovar um requerimento nulo pelo decurso do prazo peremptório fixado não desencadeia uma limitação excessiva ou desproporcionada do direito de acusar do assistente (…)».
Também no Acórdão n.º 389/2005 (Processo n.º 310/2005 - 2.ª), de 14-07-2005, publicado no DR n.º 201, Série II, de 19-10-2005, o Tribunal Constitucional considerou que «(…) o reconhecimento da possibilidade de “renovação” do acto em questão implicaria uma compressão dos direitos de defesa do arguido, já que a consagração de um prazo para o assistente requerer a abertura da instrução concretiza a garantia de defesa inerente à fixação da situação processual do arguido que a não pronúncia origina. Ora, não se vislumbra fundamento legítimo para tal compressão, já que a instrução não teve lugar devido a uma actuação processual dos assistentes manifestamente deficiente (…)».

É entendimento deste STJ, conforme Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12-05-2005 (Processo n.º 430/2004 - 3.ª), publicado no DR n.º 212, Série I-A, de 04-11-2005, que não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
Na fundamentação do AUJ referido pode ler-se: «A Assembleia da República na discussão da alteração ao CPP, que culminou com a Lei nº59/98, de 25 de Agosto, rejeitou, com toda a nitidez, a proposta do Conselho Superior da Magistratura no sentido de dever o juiz convidar o requerente da instrução a aperfeiçoar o pedido de instrução e disse as razões dessa rejeição.
Trata-se, disse, «de uma regra civilista, sem aplicação no processo penal. Dificultaria o acesso à instrução, criava espaços para discussões formais, sem qualquer necessidade» - cf. Código de Processo Penal – Processo Legislativo, vol.II, t. II, Assembleia da república, 1999, p. 169».

Em conclusão, não havendo lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura da instrução e considerando que o mesmo não contém a narração dos factos imputados a cada um dos denunciados, com a indicação do correspondente enquadramento jurídico, não merece qualquer censura a imediata rejeição do aludido requerimento, operada pela decisão recorrida.
O recurso é, assim, manifestamente improcedente, como tal devendo ser rejeitado, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso.

Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513.º, n.º 1 e 514, nº 1, do CPP e artigos 74.º e 87.º, n.º 3, do Código das Custas Judiciais, com taxa de justiça de 3 UC.
Nos termos do artigo 420.º, n.º 3, do CPP, condena-se o recorrente na soma de 5 UC.

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP.

Lisboa, 07 de Maio de 2008


Raul Borges (relator)
Fernando Fróis