Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | HENRIQUES GASPAR | ||
Descritores: | INFRACÇÃO CRIMINAL PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTE CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES DESCRIMINALIZAÇÃO CONTRA-ORDENAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ200509280018313 | ||
Data do Acordão: | 09/28/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
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Sumário : | 1ª. O princípio da legalidade, com inscrição constitucional (artigo 29°, n° l da Constituição) significa, no conteúdo essencial, que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poene sine lege). 2ª. O princípio da legalidade exige que uma infracção esteja claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal e as respectivas consequências. 3ª. A interpretação restritiva de norma expressamente revogatória de uma norma incriminadora, encurtando o sentido e o alcance da revogação, constitui, no plano material, não uma restrição, mas uma extensão da norma incriminadora que permaneceria em parte apesar da revogação. 4ª. Tendo o legislador descriminalizado o consumo de produtos estupefacientes com a Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, a posse de substâncias em quantidades superiores ao necessário para o consumo médio durante dez dias, desde que tenha por finalidade exclusiva o consumo privado próprio, terá se ser considerada como contra-ordenação, nos termos do artigo 2° da referida Lei. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. - "A", solteiro, desempregado, nascido em Portimão no dia 01/12/1981, filho de B e de C, residente na Rua da Pedra n° ... - Pedra Mourinha-Portimão, foi acusado da prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes p. e p. pelos art. 21°, n° l do DL 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa ao mesmo diploma, e Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro, e art. 9° da Portaria 94/96, de 26/03 e respectivo mapa anexo. Teve lugar o julgamento, sendo a final o arguido absolvido da prática do crime porque vinha acusado. 2. Não se conformando com o decidido, o magistrado do Ministério Público interpõe recurso para o Supremo Tribunal, fundamentado nos termos da motivação que apresenta e que termina com a formulação das seguintes conclusões: 1. O douto acórdão recorrido, ao entender que a detenção pelo arguido A, para seu exclusivo consumo, de quantidades de estupefaciente que ultrapassam a quantidade para 10 dias não configura, crime, nem contra-ordenação, conduz a um absurdo jurídico; 2. Não se podendo, ao contrário do ali entendido, considerar que não configura a prática de qualquer ilícito tal situação, por não ser abarcada pela Lei n° 30/2000, de 29.11 e por o art° 28° desta Lei ter revogado (à excepção do cultivo) o art° 40° do Dec-Lei n° 15/93, de 22.1, que revia a punição da detenção para consumo, independentemente da quantidade; 3. Daqui que, para casos como este, ou se considera que o mencionado art° 28° tem que ser interpretado restritivamente, não tendo pretendido o legislador revogar na totalidade o art° 40° mantendo-se este em vigor, posição já defendida doutrinal e jurisprudencialmente, mas que poderá entender-se como podendo colocar em causa a segurança jurídica; 4. Ou, seguindo-se as normas jurídicas actualmente vigentes, sem necessidade de interpretações restritivas ou outras, terá forçosamente de se entender que actualmente a lei prevê as seguintes situações: - o tipo-base é o do art° 21° do Dec-Lei n° 15/93, de 22.1, o qual prevê toda e qualquer conduta relacionada com estupefacientes (a enumeração ali constante é exaustiva, na mesma cabendo toda e qualquer acção relacionada com droga, incluindo a mera detenção); - aí cabendo todos os casos, à excepção: - do cultivo de estupefacientes para consumo (caso punido pelo art° 40° da mesma IPJ que se mantém em vigor quanto a tal aspecto); e - do consumo, aquisição e detenção para consumo próprio de estupefacientes, que só se pode verificar nos casos expressamente previstos na Lei n° 30/2000, ou seja quando a quantidade não exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, caso em que se está perante contra-ordenação. 5. Sendo que este entendimento acaba por ser o único que tem em conta a circunstância de ser muito mais censurável a conduta de quem tem na sua posse elevadas quantidades de estupefacientes, mesmo que, em princípio para consumo, do que a daquele que tem quantidade que, sem margem para dúvidas, destinará a tal exclusivo consumo. 6. Pois que tratarem-se de maneira igual situações tão díspares, como se fazia ao abrigo do disposto no art° 40°, acabava por levar a situações de flagrante injustiça relativa. 7. Não se podendo esquecer que a detenção de elevadas quantidades de estupefacientes gera, por si só, o perigo da sua colocação em circulação com as consequências daí decorrentes para a saúde pública. 8. Daqui que o acórdão recorrido haja violado o art° 21° do Dec-Lei n° 15/93, de 22.1 ao não condenar o arguido A pela prática do crime de tráfico de estupefacientes na vertente de mera detenção, assim como o art° 25° da mesma lei (tráfico de menor gravidade), que lhe será aplicável atenta a exclusiva finalidade a que destinava o produto. 9. Pelo que deverá ser revogado nesta parte, condenando-se o mencionado arguido como autor de um crime de tráfico de menor gravidade na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos. O arguido não respondeu. 3. Neste Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geal Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416º do Código Penal, considera que nada obsta ao conhecimento do recurso. Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, com a produção de alegações, cumprindo apreciar e decidir. O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos: 1 - No dia 24 de Novembro de 2003, pelas 3h30m, o A, encontrava-se a dormir na casa de banho destinada aos portadores de deficiência, instalada no Hipermercado Modelo em Portimão. 2 - Tinha num bolso do seu vestuário, resina de cannabis, com o peso líquido de 108,833 gramas. 3 - No dia 25 de Abril de 2004, pelas 1h00m, no bar do Hotel Colômbia, na Praia da Rocha, em Portimão, o arguido tinha no bolso direito das calças resina de cannabis com o peso liquido de 7,613 gramas. 4 - O arguido conhecia as propriedades estupefacientes da resina de cannabis e, apesar disso, quis ter em seu poder uma quantidade desse produto que excedia o necessário para o seu consumo num período de dez (10) dias. 5 - Sabia que tal conduta era proibida por lei e tinha liberdade para se motivar de acordo com esse conhecimento. 6 - O arguido destinava todo o produto que lhe foi apreendido, e nas duas ocasiões diferentes supra referidas, exclusivamente para o seu consumo pessoal, mais concretamente para, durante cerca de dois meses. 7 - O arguido foi condenado no Processo Comum Singular n.° 238/02.6 TABRR do 2° juízo criminal do Tribunal Judicial da comarca de Portimão, em 24/10/2003 (já transitado em julgado), pela pratica de um crime de burla qualificada, praticado em 16.12.2001 numa pena de 20 dias de multa à taxa diária de € 7,00, ou seja numa multa global de € 140,00. 8 - O arguido tem 23 anos e reside actualmente com um amigo numa casa arrendada. Paga de renda a quantia mensal de € 125,00. Vive longe da sua família nuclear há cerca de 3 anos. Encontra-se desempregado há cerca de um mês. Antes trabalhava como servente de pedreiro, auferindo a quantia mensal de € 500,00. Por habilitações literárias tem o 4° ano do ensino especial, ministrado no CREMP em Portimão. Começou a trabalhar com 15 anos de idade como aprendiz de mecânico. O arguido não tem apoio familiar, estando de relações cortadas com os pais, e provém de meio social e económico modesto. Na altura dos factos o arguido era consumidor habitual de haxixe. Não se provou que o arguido estivesse consciente do perigo de disseminação de consumos que tal detenção representava. 4. Nas conclusões da motivação, o magistrado recorrente, entendendo ser essa a qualificação correcta resultante dos factos provados, pede a condenação do arguido pelo crime p. e p. no artigo 25º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, definindo em tais termos o objecto do recurso. Na execução de uma nova intenção política enunciada na Resolução do Conselho de Ministros n. 46/99, de 26/5/99 (DR nº 122/99; I série-B), que aprovou a estratégia nacional de luta contra a droga, sobre o tratamento sancionatório do consumo de droga, foi publicada a Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, que, tendo como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica, descriminalizou, como solução nuclear, o consumo, a detenção e a aquisição para consumo de plantas, substâncias e preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro. Dispõe o nº 2 da Lei nº 30/2000, sob a epígrafe de "consumo": «1 - O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação. 2 - Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias». Por seu lado, o artigo 28º - disposição revogatória - determina que «são revogados o artigo 40°, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41º do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis» com regime aprovado pela nova lei. O artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, punia como crime o consumo privado, o cultivo, a aquisição ou a detenção para consumo privado de substâncias estupefacientes (nº 1), com disposição específica (nº 2) para os casos em que o consumidor detivesse quantidade que não excedesse a necessária para o consume médio individual durante três dias. É neste quadro normativo que a jurisprudência e a doutrina têm encontrado soluções diversas para a questão suscitada, de que a decisão recorrida dá abundantes referências. Com efeito, tem sido decidido e defendido que a referida conjugação normativa faz ressaltar um "vazio" sancionatório, resultante de uma disfuncionalidade legislativa, que deve ser ultrapassada com o auxílio dos instrumentos hermenêuticos metodologicamente disponíveis. E, assim, e para além da solução, dir-se-ia niilista, do acórdão recorrido, tem-se entendido que a contra-ordenação prevista na Lei nº 30/2000 só pode valer para os casos em que o consumidor detém ou adquiriu produto que não ultrapasse o necessário para o consumo médio individual durante o período de dez dias, sendo a detenção de quantidade superior punível como crime, seja por aplicação do regime geral (artigos 21º ou 25º do Decreto-Lei nº 15/93), seja por aplicação parcial do revogado artigo 40º deste diploma, interpretando restritivamente a norma revogatória do artigo 28º da Lei nº 30/2000 (posição, p. ex., dos acórdãos do Supremo Tribunal, de 27 de Fevereiro de 2003, proc. 1799/03, e de 7 de Abril de 2005, proc. 446/05); em outra perspectiva, enfim, considera-se que a detenção, exclusivamente para consumo privado, mesmo fora dos limites do artigo 2º, nº 2 da Lei nº 30/2000 não poderá constituir senão uma contra-ordenação, nos limites sistémicos, valorativos e de política criminal que determinaram o novo regime relativo ao consumo de produtos estupefacientes. 5. A solução para a enunciada vexata questio tem de partir nuclearmente da intervenção e aplicação dos princípios: - conjunto de valores e regras essenciais sedimentadas na dogmática, e pressupostos permanentes no enquadramento e na leitura das hipóteses controversas. Em matéria penal (e no direito sancionatório em geral), há princípios rectores, imanentes, que comandam a teoria do direito penal, desde a formulação á interpretação das respectivas normas: o princípio da legalidade e as especificidades da interpretação das normas de direito penal, nomeadamente a proibição da analogia. O princípio da legalidade, com inscrição constitucional (artigo 29º, nº1 da Constituição) significa, no conteúdo essencial, que «não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege)» (cf. Jorge de Figueiredo Dias, "Direito Penal - Parte Geral", Tomo I, "Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime", 2004, pág. 165). É princípio inscrito como direito fundamental também em instrumentos internacionais, com conteúdo e sentido determinado através de referências objectivas e com modelação operativa. O artigo 7° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por exemplo, constitui também uma norma fundamental de direito penal material, e mesmo de direito constitucional penal, afirmando o princípio nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege, a legalidade dos crimes e das penas e a não retroactividade da lei penal. A densificação convencional da garantia reverte à certeza, clareza ou previsibilidade da estatuição e suas consequências - estatuição que pode constar de lei escrita, mas ser igualmente constituída por formulações próprias do sistema de common law; o que releva, para efeitos da garantia, é que a estatuição seja clara, precisa, acessível e previsível. Do ponto de vista da protecção dos direitos do homem é decisivo o princípio segundo o qual o legislador deve fixar de uma forma precisa e clara os limites entre os comportamentos permitidos e os comportamentos puníveis penalmente, interessando neste aspecto a previsibilidade da condenação por certo comportamento (acção ou omissão). Na elaboração que tem sido desenvolvida a propósito das noções utilizáveis na integração do princípio, tem-se entendido que a clareza da estatuição (norma, lei escrita, antecedente preciso) está preenchida quando o indivíduo possa saber, a partir do texto pertinente, e se necessário com o recurso e o auxílio da interpretação pelos tribunais, quais os actos ou omissões que constituem infracção e pêlos quais pode ser criminalmente responsabilizado, mesmo que para tal tenha de recorrer a um conselho esclarecido para avaliar, com adequado grau de razoabilidade, as consequências que podem resultar de determinado acto. Nesta perspectiva de ordenação da garantia, uma norma não pode ser considerada como "lei" para efeito da protecção contida no artigo 7° da Convenção, se não for formulada com suficiente precisão, de modo a que habilite um indivíduo a regular a sua conduta: este deve poder antever e prever, com um grau de razoável exigência nas circunstâncias do caso, quais as consequências de natureza penal que podem resultar de uma sua acção ou omissão (cf., v. g., entre outros, as formulações do acórdão do TEDH, de 15 de Novembro de 1996, no caso Cantoni c. França). Nos termos em que a garantia do artigo 7° da Convenção tem sido considerada, o princípio da legalidade exige, pois, que a infracção esteja claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal; a disposição tem de se revele suficientemente clara. A amplitude da noção de ie previsibilidade depende em larga medida do conteúdo do texto que esteja em causa, do domínio que cobre, bem como do número e qualidade dos seus destinatários. Por outro lado, a previsibilidade da lei não é incompatível com a exigência de adequada informação, nem deixa de ser considerada mesmo que o interessado deva recorrer a conselhos esclarecidos para avaliar, em medida razoável e perante as circunstâncias do caso, quais as consequências que podem resultar de determinado acto, especialmente quando se trate de situações em que os agentes, pelo rigor e exigências próprias das respectivas actividades, devam fazer prova de uma grande prudência, esperando-se que coloquem um particular cuidado na avaliação dos riscos que a sua actividade comporta. Por isso, o princípio significa «que por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos» (cf. Figueiredo Dias, op. cit, pág. 168). O princípio da legalidade significa também a proibição da analogia, importando sempre determinar o que é susceptível de interpretação permitida (o sentido literal, as expressões polissémicas, os conceitos normativos e descritivos) e o que pertence já à analogia proibida em direito penal pelo princípio da legalidade. De todo o modo, toda a interpretação possível em direito penal tem de ser «teleologicamente comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; e por outro que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função que o conceito (e, em definitivo, a regulamentação) assume no sistema» (cfr. Figueiredo Dias, op. cit., pág. 178). 6. A coordenação normativa das disposições dos artigos 2º, nºs 1 e 2 e 28º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro (entre o - aparente - limite da contra-ordenação e a clara e intensa intenção revogatória da criminalização do consumo) pode sugerir a existência de uma disfunção normativa («esquecimento», «lacuna», «deficiência») ou um «vazio sancionatório» (como se exprime, p. ex. Rui Pereira, "A Descriminalização do consumo de droga", in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, pág. 1159, ss, desig. pág. 1171, onde refere ser «óbvio que esta "lacuna sancionatória" resultou de um "erro" do legislador de 2000»). Mas se fosse assim, então não seria função da interpretação em direito penal manipular instrumentos hermenêuticos para, ou «deixar bem» o legislador, ou, não melhor, para sustentar uma razão (subjectiva) do que seria (deveria ser ou mereceria) o sentimento de justiça do intérprete. Há, por isso, que fazer intervir os princípios fundamentais de direito penal como chave da solução. E os princípios - da legalidade e da consequente proibição da analogia, e da interpretação teleologicamente comandada - apontam, logo e decisivamente, para a impossibilidade estrutural e dogmática de fazer apelo à disciplina típica dos artigos 21º ou 25º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, como defende o magistrado recorrente. Na verdade, e uma vez que anteriormente à Lei nº 30/2000 nunca o consumo fora punido nos termos das restantes actividades de largo espectro da tipicidade do artigo 21º (ou do artigo 25º) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, a superação por tal modo de um hipotético «vazio legislativo», isto é, «a punição de quem detenha droga para consumo em quantidade superior à referida no n° 2 do artigo 2° da Lei n° 30/2000 só pode resultar de uma aplicação analógica de normas incriminadoras, expressamente proibida pelo artigo 29°, nºs l e 3, da Constituição (e pelo artigo 1º, nºs l e 3, do Código Penal)» (cfr. Rui Pereira, op. cit. pág. 1172). Em outra das hipóteses consideradas - e, como se salientou, com tradução jurisprudencial - a detenção de droga em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias integraria o crime p. e p. no artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro, fazendo a solução apelo a uma interpretação restritiva da norma revogatória do artigo 28º da Lei nº 30/2003, de 29 de Novembro. Todavia, o princípio da legalidade opõe-se também, decisivamente, a esta solução, justamente por causa da revogação expressa que foi operada. Desde logo pela construção interpretativa. A função de garantia do princípio da legalidade exige a qualidade da lei, previsibilidade e acessibilidade, de modo a que qualquer pessoa possa perceber e saber quais as consequências sancionatórias de uma sua acção ou omissão. A qualidade da lei supõe que o legislador formule a lei penal de modo preciso e não susceptível de interpretações gravemente dispares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e círculo material da conduta proibida. A conjugação normativa entre o âmbito material da Lei nº 30/2000 e a sua norma revogatória (o artigo 28º) e o direito penal anterior sobre a matéria que regula, revela, como se referiu, problemas de qualidade de lei com afectação irremediável do princípio da legalidade. Com efeito, a norma do artigo 28º da Lei nº 30/2000 é peremptória, directa, e com alcance imediatamente apreensível por si - o artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro foi expressamente revogado, excepto - o que também é directo e imediato - no que se refere ao cultivo de plantas para consumo privado próprio. A revogação expressa de uma norma penal incriminatória não é compatível, na perspectiva de garantia plena do princípio da legalidade penal, com uma interpretação que privilegie uma (possível) compreensão do plano sistémico, contrariando pelo mecanismo interpretativo da compatibilidade (óptima) de sistemas o efeito da revogação expressa. A interpretação restritiva de norma expressamente revogatória de uma norma incriminadora, encurtando o sentido e o alcance da revogação, constitui, no plano material, não uma restrição, mas uma extensão da norma incriminadora que permaneceria em parte apesar da revogação. O plano material é aqui decisivo. O exercício metodológico que conduziria a manter parcialmente em vigor uma norma expressamente revogada, restringindo o sentido da revogação, equivale, no rigor material das coisas, a uma extensão da norma revogada, que seria determinada pela teleologia que uma particular concepção do intérprete considerasse presente no plano do legislador ao formular a sequência normativa na execução de uma ideia, directamente expressa, de política legislativa. Mas nem tal concepção teleológica é patente (bem em diverso, a nova ideia de política criminal foi precisamente a descriminalização do consumo de drogas), nem a extensão teleológica (descriminalização do consumo apenas quando o consumidor detivesse produto para o consume de dez dias) é admissível como instrumento metodológico com o efeito de adensar a dimensão penal de comportamentos, enfraquecendo e encurtando o princípio da legalidade. Na verdade, não se encontra uma única razão que tivesse levado o legislador a querer continuar a punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo, uma conduta - o consumo - que decidiu despenalizar. O legislador despenalizou todo o consumo, mas não liberalizou o consumo de drogas. O que equivale a dizer que a posse de droga em quantidades superiores ao necessário para o consumo médio durante dez dias, desde que tenha por finalidade exclusiva o consumo privado próprio, terá se ser considerada como contra-ordenação, nos termos do artigo 2º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro. O sentido da norma do nº 2 do artigo 2º da referida Lei, na coordenação possibilitada pelo princípio da legalidade, será o de que o legislador teve em mente que a detenção por consumidor de quantidades maiores de droga pode indiciar a possibilidade de risco de disseminação, dependendo a qualificação, no fim de contas, da prova de que o produto detido se destina exclusivamente a consumo privado próprio (cf. José de Faria Costa, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 134º, nº 3930, pág. 275 ss.). 7. No caso, perante os factos provados, resta, assim, a possibilidade de o arguido ser sancionado pela contra-ordenação p. no artigo 2º, nº 1 da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro. Na verdade, detendo a quantidade que detinha para exclusivo consumo privado, sempre detinha, mesmo nos limites mais cripto-formais, a quantidade referida no nº 2 da mesma disposição. Deste modo o recurso do Ministério Público tem de improceder. Mas, vistas as coisas na adequada perspectiva, a questão não é tanto de improcedência do recurso, mas de determinação da competência - artigo 5º da Lei nº 30/2003, de 29 de Novembro. Determina-se, pois, que, baixando o processo, seja comunicado á entidade competente nos termos da referida Lei para efeitos de decisão. Sem taxa de justiça. Lisboa, 28 de Setembro de 2005 Henriques Gaspar, Políbio Flor, Soreto de Barros, Armindo Monteiro.. |