Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1193/07.1TBBNV.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: SIMULAÇÃO DE CONTRATO
NULIDADE
EFEITOS
TERCEIRO ADQUIRENTE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DE SENTENÇA
CASO JULGADO
HIPOTECA
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
REGISTO PREDIAL
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Data do Acordão: 07/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – A doutrina e a jurisprudência, cumprindo a letra e o espírito da lei (artigo 3.º do CPC), têm entendido que o princípio do contraditório é um princípio geral, com uma natureza estruturante, e deve ser observado em todas as fases do processo, não só na fase dos articulados, mas também na apresentação e produção dos meios de prova, e no debate das questões de facto e de direito.

II – É nula, por força da conjugação do artigo 3.º com o artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, ambos do CPC, a sentença que, após a absolvição da instância de um dos réus, por despacho saneador transitado em julgado, decide questões de que não podia tomar conhecimento, como o cancelamento do registo de hipotecas constituídas a favor do réu.

III – Numa ação em que se pede que seja declarado nulo, por simulação, um determinado negócio e que seja ordenado o cancelamento do registo de hipotecas constituídas pelo adquirente simulador sobre esse imóvel, verifica-se uma situação de litisconsórcio necessário natural entre os contraentes do negócio simulado e os terceiros subadquirentes.

Decisão Texto Integral:

I - Relatório

1. AA e mulher, BB - entretanto falecida, tendo sido declarados habilitados como seus sucessores CC e DD - intentaram a presente ação declarativa, com processo ordinário, contra Urbisilva - Construções, Lda., Urbidoze - Construções, Lda., Tdoze - Urbanização e Construção, Lda., Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ......, CRL, Urbibuild - Construções, Lda. e Câmara Municipal ..... ..., pedindo:

a) seja declarado nulo, por simulação, o negócio pelo qual a ré Urbisilva -Construções, Lda., adquiriu à ré Tdoze – Urbanização e Construção, Lda. o lote …, descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º .....32 da freguesia ... e inscrito matricialmente nesta freguesia sob o art.º .....74, através da escritura notarial celebrada em 16 de setembro de 2005;

b) seja a ré Urbisilva - Construções, Lda. inibida de vender a terceiro o imóvel inscrito em seu nome e supra referenciado;

c) seja ordenado o cancelamento da inscrição G-1, daquele imóvel, a favor da ré Urbisilva - Construções, Lda.;

d) seja condenada a ré Urbisilva - Construções, Lda. a proceder à substituição do imóvel, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...32 de ... e inscrito matricialmente nesta freguesia sob o art. ...74 dado como hipoteca e garantia a favor das rés Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ... e Câmara Municipal ..., ordenando-se o cancelamento das mesmas inscrições C-1 e C–2;

e) seja declarado que o negócio celebrado entre os autores e as rés Urbidoze – Construções, Lda. e Tdoze – Urbanização e Construção, Lda. também foi simulado já que apenas se pretendia comprar e vender parte do imóvel, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...27 ..., ficando para os autores 2348 m2 que corresponde ao lote..., ora descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...32 da freguesia ... e inscrita matricialmente nesta freguesia sob o art.º ….74

f) nos termos do art.º 241.º, n.º 1, e 292.º ambos do Código Civil, seja o negócio celebrado entre os autores e as rés Urbidoze – Construções, Lda. e Tdoze – Urbanização e Construção, Lda. reduzido, conforme à vontade inicial das partes manifestada no primitivo contrato, transmitindo-se somente parte do imóvel anteriormente descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ....27 de ..., retirando do mesmo a área de 2348 m2 correspondente ao supra citado lote... e inscrevendo-se este a favor dos autores;

g) sejam condenadas as rés Urbidoze – Construções, Lda. e Tdoze – Urbanização e Construção, Lda. aos pagamentos de todos os impostos, nomeadamente o de mais valia, e bem assim de todas as despesas, nomeadamente notariais e de registo, que advierem aos autores por motivo de o negócio entre todos não se ter efectuado conforme ao inicialmente acordado;

h) subsidiariamente, seja decretada a execução específica do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 30 de maio de 2003 entre autores e a ré Tdoze – Urbanização e Construção, Lda.;

i) cumulativamente com os anteriores pedidos, reivindicam os autores a propriedade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ....32 de ... e inscrito matricialmente nesta freguesia sob o art.º …..74 o qual sempre esteve na sua posse.

As rés Urbisilva - Construções, Lda. e Urbibuild - Construções, Lda. apresentaram contestação conjunta, defendendo-se por exceção – arguindo a ineptidão da petição inicial e a respetiva ilegitimidade passiva – e por impugnação.

A ré Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ...., CRL contestou, defendendo-se por impugnação.

A ré Câmara Municipal ..... ... contestou, defendendo-se por impugnação.

O Ministério Público, em representação das rés Urbidoze – Construções, Lda.” e Tdoze – Urbanização e Construção, Lda., as quais foram citadas editalmente, contestou, apresentando defesa por impugnação e requerendo a intervenção principal provocada de EE, legal representante destas rés, à data da celebração do contrato-promessa e da escritura pública de compra e venda identificados nos autos.

Notificados das contestações, os autores apresentaram réplica, na qual se pronunciam quanto às exceções deduzidas.

Por despacho de 19-02-2015, foi rejeitada a requerida intervenção principal provocada de EE e dirigido aos autores convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.

Os autores apresentaram nova petição inicial.

2. Realizada audiência prévia a 20-10-2015, foi proferido despacho saneador, no qual se considerou não verificada a exceção de ineptidão da petição inicial invocada pelas rés Urbisilva - Construções, Lda. e Urbibuild - Construções, Lda. e se considerou verificada a exceção de ilegitimidade processual das rés Urbidoze – Construções, Lda., Urbibuild, Construções, Lda., Câmara Municipal ...... e Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ....., CRL, em consequência do que foram estas rés absolvidas da instância; mais se identificou o objeto do litígio e se procedeu à enunciação dos temas da prova.

3. Realizada audiência final, por sentença de 08-05-2018 foi a ação julgada parcialmente procedente, tendo-se decidido o seguinte:

«Em face do exposto, e vistas as indicadas normas jurídicas e os princípios invocados decido julgar a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:

6.1. Declaro nulo, por simulação, o negócio de compra e venda objeto da escritura pública outorgada no dia 16 de setembro de 2005 relativo ao prédio urbano, destinado à habitação, garagem e logradouro, sito na ... e Av. ..., lote..., freguesia...... ..., concelho....., inscrito na matriz sob o artigo …..74 e descrito na Conservatória do Registo Predial…... sob o n.º .....32;

6.2. Ordeno o cancelamento da inscrição G–1, Apresentação 28/..., provisória, convertida em definitiva pela inscrição G–1, Apresentação 54/281005, relativamente ao prédio urbano, destinado à habitação, garagem e logradouro, sito na ... e Av. ..., lote..., freguesia...... ..., concelho..... ..., inscrito na matriz sob o artigo …..74. e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º .....32;

6.3. Declaro a execução específica do contrato promessa celebrado no dia 30 de maio de 2003 e, em consequência, declaro transferida para os autores AA, CC e DD (estes dois últimos na qualidade de herdeiros da falecida BB) a propriedade ao prédio urbano, destinado à habitação, garagem e logradouro, sito na ... e Av. ..., lote..., freguesia...... ..., concelho..... ..., inscrito na matriz sob o artigo ......74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º .....32, com a área de 2 348 m2, livre de ónus ou encargos.

6.4. Ordeno o cancelamento da inscrição C 1 (hipoteca voluntária), Apresentação 29/..., registada a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..........., CRL, relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º ...32;

6.5. Ordeno o cancelamento da inscrição C 2 (hipoteca voluntária), Apresentação 20/..., registada a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..........., CRL, relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...32;

6.6. Ordeno o cancelamento da Apresentação 4474 de 2010/01/25 (penhora), registada a favor de “A..., S.A. relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...32;

6.7. Ordeno o cancelamento da Apresentação de 2010/12/15 (penhora), registada a favor da Fazenda Nacional relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ..74. e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º ...32;

6.8. Ordeno o cancelamento da Apresentação de 2013/02/22 (penhora), registada a favor da Fazenda Nacional relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo …..74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º .....32;

6.9. Ordeno o cancelamento da Apresentação 1416 de 2017/09/13 (penhora), registada a favor da Fazenda Nacional relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ..74. e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...32;

6.10. Absolvo a “URBISILVA, CONSTRUÇÕES, LDA.” do demais contra si peticionado pelos autores AA, CC e DD.

Custas a cargo dos autores e da na proporção de 1/3 pelos primeiros e 2/3 pela segunda».

 

4. Inconformada, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ......, CRL interpôs recurso de apelação desta sentença, invocando a violação do princípio do contraditório e a consequente nulidade da decisão recorrida, pugnando pela respetiva revogação.

5. O Tribunal da Relação de Évora decidiu julgar procedente a apelação, proferindo o seguinte dispositivo:  

«Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação, em consequência do que:

a) se declara a nulidade dos pontos 6.4. e 6.5. do segmento decisório da sentença recorrida, a qual se revoga nesta parte;

b) se absolve os réus da instância, por ilegitimidade passiva, relativamente ao pedido de cancelamento da inscrição de hipotecas registadas a favor da apelante Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..........., CRL.

Custas pelas partes vencidas a final».

6. Inconformados, os autores, interpõem recurso de revista, em cuja alegação formulam as seguintes conclusões:

«1 - Decidiu o douto acórdão recorrido que assiste razão à apelante já que a decisão de primeira instância foi proferida com total inobservância do contraditório.

2 - A uma primeira vista pode parecer que tal aconteceu mas, a nosso ver, não é essa a realidade; de facto

3 - A fls 7 alega-se nos artigos 40º e 41º que a transmissão do imóvel dos autos à 1ª R. pela 3ª R. foi um negócio simulado para facilitar a vida daquela na concessão de garantias à Caixa Agrícola. E daí poder ser anulada. Situação esta que se iria necessariamente reflectir sobre a Caixa Agrícola.

4 - Alega-se depois  - fls 7 e 8: arts 44º a 46º- que a dita transmissão teve por único fito dar o imóvel como garantia à Caixa Agrícola.

5 - E a fls. 8, art.s 51º a 53º, alega-se a simulação do negócio entre a Urbisilva e a Tdoze pelo que o mesmo deve ser declarado nulo.

6 - Nulidade esta que precedeu a constituição das hipotecas a favor da Caixa Agrícola.

7 - E o tema do cancelamento das hipotecas já consta a fls. 12 na parte final da alínea d).

8 - Situações estas de que se apercebeu a Caixa Agrícola. Pelo que a fls 107, 108, 109 nos seus artigos 5º, 6º, 8º, 10º, 11º, 14º a 16º, 19º e 20º dizendo que os A.A. não alegam a existência de qualquer vício que as afecte - nulidade ou anulabilidade - e que leve ao não reconhecimento dos direitos adquiridos pela Caixa Agrícola.

9 - Não tem razão a Caixa Agrícola face à previsão do art. 291º nº 2 do código civil já que o negócio simulado entre a Tdoze e a Urbisilva foi celebrado em 16/9/2005 e a presente acção foi proposta em 30/7/2007 - ou seja, antes de decorridos 3 anos após a constituição da hipoteca.

10 - Assim a declaração de nulidade da venda à Urbisilva teria efeitos reflexos sobre as garantias prestadas.

11 - Temos assim que o debate da “anulação” das hipotecas foi discutido nos autos.

12 - Acresce que a fls. 219, quando os A.A. alegaram que desde que adquiriram o imóvel em 1995 estiveram ininterruptamente na sua posse, apesar das diversas transmissões de propriedade, deveria constituir um factor de alarme para a Caixa Agrícola.

13 - Tendo os A.A. alegado a fls 222, no seu art. 58º a impossibilidade de subsistência da hipoteca.

14 - E a fls 315 nos seus arts 78º e 79º voltaram os A.A. a alegar a simulação do negócio entre a Urbisilva e a Tdoze e a sua consequente nulidade.

15 - Requerendo a fls 318 o cancelamento das hipotecas - inscrições C1 e C2.

16 - Pelo que o ter sido requerido o cancelamento da inscrição G1 a favor da R. Urbisilva dar-se-ia a “queda” das hipotecas por força do art. 291 nº 2 face à anterior simulação na venda.

17 - Continuando a fls 367, no art. 51º, a referir-se à impossibilidade de subsistência das hipotecas.

18 - Não tendo a Caixa Agrícola apresentado contestação à petição inicial reformulada. 19 - Pelo exposto o negócio simulado na escritura de 16/9/2005 entre a Tdoze e a Urbisilva, nos termos do art. 291 nº 2, leva à oponibilidade e ao não reconhecimento dos efeitos das hipotecas.

20 - O que tem como consequência que sejam prejudicados os direitos de terceiros, neste caso da Caixa Agrícola mesmo estando de boa fé.

21 - Pelo que a Caixa Agrícola deveria ter recorrido da decisão da declaração de ilegitimidade, e, ao não fazê-lo, levou consequentemente à sua aceitação, e a deixar de continuar a discutir a questão da extinção dos seus direitos sobre o imóvel, assentindo naquilo que viesse a ser a decisão final.

22 - Actuando deste modo foi a apelante quem não quis continuar a exercer o contraditório, quer ao não apresentar contestação à segunda petição inicial, quer não recorrendo da decisão que a decretou parte ilegítima: não-querer é totalmente diferente de não-poder.

23 - Sendo certo que, mesmo se tivesse estado no julgamento, face à prova que veio a ser produzida, a declaração de simulação sempre se teria produzido com o consequente efeito de anulação nas hipotecas.

24 - Não seria assim a intervenção da apelante que teria impedido a decisão que decretou a simulação da venda ocorrida entre a Tdoze e a Urbisilva. A qual adveio da prova resultante do depoimento da testemunha EE.

25 - Pelo que não houve violação do direito a um processo equitativo. Houve isso sim, um auto-afastamento da Caixa Agrícola.

26 - Assim a douta decisão recorrida violou os princípios da lei de processo, nomeadamente o do art. 30º do CPC assim como o do nº 4 do art. 20º da Constituição da República Portuguesa ao fazer uma errada aplicação dos mesmos.

27- Por outro lado a douta decisão recorrida choca frontalmente com a situação de caso julgado da decisão da 1ª instância. A qual foi notificada às partes no dia 9/5/2019. E não foi interposto qualquer recurso nos 30 dias posteriores. Tendo transitado em 25/6/2018.

28 - Nos termos do art. 628º do CPC a decisão transita em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação. E foi o que aconteceu.

29 - Sendo que, a este propósito, e s. m. o. em contrário, não tem aqui cabimento a discussão de terceiro interessado e prejudicado com a decisão, nos termos em que se encontra explanado no douto acórdão em revista.

30 - Na douta decisão do STJ com a refª citius 9640656, na f.ls 14 diz-se, citando o ilustre Juiz Conselheiro Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos emProcesso Civil, pag. 142, face ao disposto no art. 220º nº 1 do CPC que “se as decisões visarem expressamente terceiros, estes, se prejudicados devem ser notificados, em situação paralela à das partes”. Esta situação coloca-se em contexto no qual o terceiro visado e prejudicado desconhece o objecto dos autos e neles não interveio.

31 -No caso sub judice a Caixa Agrícola não pode ser considerada um terceiro, na pureza do conceito e no rigor do termo em que este é concebido processualmente.

Pois que conhecia o objecto dos autos, apresentou contestação, interveio na audiência prévia, foi notificada do despacho que a absolveu da instância e não recorreu do mesmo.

32 - conformando-se assim com a futura decisão final.

33 - Não foi alguém, um terceiro, que esteve “a latere” dos autos os quais decorreram sem o seu conhecimento e que desconhecia que a procedência da acção lhe poderia provocar prejuízo.

34 - E daí que não lhe tenha de ser notificada aquela decisão - nem tivesse de ser - que transitou em julgado em 25/6/2018.

35 - Razão pela qual o douto acórdão em recurso violou o art. 628º do CPC ao não ter tido em consideração o caso julgado já formado.

36 - Por outro lado ainda, por ter transitado em julgado a douta sentença da primeira instância, as eventuais nulidades que pudessem existir ficaram sanadas podendo somente ser objecto de recurso extraordinário, o de revisão.

37 - O que advém na necessidade de garantia da certeza e segurança das relações jurídicas.

38 - A este propósito refere o Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol V, Coimbra Editora, 1984, Reimpressão, em anotação ao art. 677º, pag. 217: “A necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas quer que, uma vez formado o caso julgado, ele fique intangível. A decisão pode conter erro de facto ou erro de direito; não obstante isto, desde que passa em julgada, a ordem jurídica imprime-lhe força e autoridade indiscutível, como se estivesse puro e isento de qualquer mácula. Eis a realidade normal”.

39 - Dizendo também a este respeito em Limites Subjectivos do Caso Julgado, António Júlio Cunha, 2010, Quid Juris, pág. 86, refere: “O ser humano carece de segurança para planificar e conduzir de forma autónoma e responsável a sua vida, daí que, unanimemente, se consideram hoje os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do estado de direito. O primeiro princípio, conexionado com os elementos de natureza objectiva, impõe a garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito, o segundo, em estrita ligação com àquele, impõe a susceptibilidade de os indivíduos poderem calcular e prever os efeitos jurídicos decorrentes dos actos dos poderes públicos, mas igualmente dos seus próprios actos.”

40 -Deste modo, a pretensão da apelação da Caixa Agrícola e o douto acórdão proferido violam frontalmente o princípio da segurança e certeza jurídicas.

41 - Aliás na tese da apelante Caixa Agrícola teríamos que qualquer decisão seria sempre objecto de apelação pelo que nunca transitaria.

42 - Assim as nulidades que a apelante Caixa Agrícola entendeu arguir encontram-se sanadas face ao trânsito em julgado ocorrido.

43 - Tese esta que já foi mencionada na decisão deste Tribunal da Relação de Évora com a refª citius ... e sustentada “na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, cf., entre muitos outros,: - o acórdão de 11-10-2005 (relator: Azevedo Ramos), proferido no agravo n.º 2615/05 - 6.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt),

- o acórdão de 02-10-2014 (relator: Abrantes Geraldes), proferido na revista n.º 1017/2001.L1.S1 - 2.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt),

44 - Para além destes citar-se-á o Ac. TRE de 27/11/2007, relator Bernardo Domingues, proc. 5386/08.6TBSTB-C.E1: I - As nulidades da sentença, são nulidade processuais e não de direito substantivo. Como nulidades processuais que são, têm um regime próprio muito diferente do regime das nulidades substantivas, que em regra, são insanáveis e podem ser arguidas a todo o tempo por qualquer interessado. II - Ora a nulidade da sentença tem forma e prazos para ser arguida, sob pena de se considerar sanada (nº 4 do art.º 668º do CPC). III - Transitada em julgado uma sentença, não mais pode ser invocada a sua nulidade e assim passa a constituir titulo executivo exequível.

45 - Sendo que a doutrina também vai no mesmo sentido, a este respeito, caso julgado, Miguel Teixeira de Sousa, nos seus Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 2ª edição, 1997, na pagina 567 refere: “O caso julgado é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão (despacho, sentença ou acórdão) decorrente do seu trânsito em julgado (art. 677º) O caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo por aquele que a proferiu em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão deste órgão.”

46 - Também a este propósito se pronunciou exactamente no mesmo sentido o Ex.mo Juiz Conselheiro Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil II, 2019, 2ª ed., Almedina, pag. 682.

47 - Mais dizendo na pág. 682 que: “Utiliza-se o conceito para significar as situações ou relações já definitivamente consolidadas por via de decisão judicial (despacho, sentença ou acórdão) que não por outros meios ou instrumentos jurídico-privados” . E prossegue na mesma página: “A sentença (e despacho ou acórdão) faz ou forma caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável. Imodificabilidade que resulta necessariamente do respectivo trânsito, sendo que, nos termos do art. 628º, a decisão transita (ou passa) em julgado, «logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação» (por nulidades ou reforma) _ art.s 615º e 616º. Isto é, quando, pela própria “mecânica” dos meios legais (e normais) de reacção impugnatória sem firmou na ordem jurídica, tornando-se, por tal razão, e em princípio, inalterável ou imodificável.”

48 - Refere depois a fls 685: “Na verdade, a finalidade do processo, mais do que adregar uma simples definição concreta do direito (dirimência do concreto conflito de interesses face ao ordenamento jurídico vigente) inclui também, no seu âmago, um escopo de garantia da paz e da estabilidade social, que só uma definição do direito certa e segura pode propiciar.”

49 - Nesta necessidade de paz e estabilidade social, diga-se que a decisão já produziu os efeitos que de si emanam pois que com base na certidão com a refª citius …, foram cancelados os registos das hipotecas C1 e C2.

50 -Tendo transitado em julgado a decisão da 1ª instância, a mesma se tornou inalterável ou imodificável mesmo que padeça de nulidade.

51 - E não se diga conforme é referido no acórdão do STJ (destes autos) que o recurso extraordinário de revisão está expressamente dirigido a situações excepcionais, não sendo evidente a subsunção da situação destes autos em nenhuma das previsões da norma. Ora salvo melhor opinião, discordamos desta posição já que na estatuição do art. 696º do CPC se encontra previsão para a tutela jurídica de uma eventual irregularidade cometida.

52 - Pelo que, também por aqui, deve ser revogada o douto acórdão ora em recurso de revista.

53 - Outra questão que deveria ter sido apreciada foi a do momento em que a Caixa Agrícola tomou conhecimento da douta decisão da 1ª instância.

54 - No seu requerimento de 21/5/2109, demonstra a Caixa Agrícola que já então conhecia a douta decisão.

55 - Mas não informa em que momento tomou conhecimento da mesma para se poder aferir, da interposição, em tempo, ou não, da apelação.

56 – De facto,  decidiu acórdão do STJ de 15/12/2011 no processo 767/06.2TVYVNG.P1.S1, da secção JSTJ0002: I) - Quem não foi parte na causa, pretendendo recorrer afirmando ter sido prejudicado pela decisão, tem de alegar que dela tomou conhecimento em determinada data e a partir daí, dispõe do prazo de 10 dias, nos termos conjugados dos nºs 1, e nº 3 do art.685º do Código de Processo Civil. II) – Os recorrentes, sendo terceiros alegadamente prejudicados pela decisão, não podem dela recorrer a todo o tempo e sem nada alegar sobre o momento em que tal decisão foi por eles conhecida. Sobre eles impende o ónus de provar em que data tiveram conhecimento da decisão que supostamente os prejudica, por serem quem está na melhor posição para afirmar tal conhecimento.”

57 - Dizendo-se depois no referido acórdão: “(…) há que, antes do mais, saber se ao recorrer, aqueles que não tendo intervindo na acção - terceiros alegadamente prejudicados com a decisão - o podem fazer a todo o tempo

58 - Acrescentando-se: “Seria de todo incompatível com a certeza do direito e a estabilidade das decisões judiciais, cobertas por caso julgado formal ou material, que os recursos interpostos por terceiros, alegadamente prejudicados, pudessem ser apresentados a todo o tempo.”

Se nem assim ocorre no recurso extraordinário de revisão, que postula o trânsito em julgado da decisão, em relação ao qual o recorrente está sujeito a prazos de caducidade, que dependem da ocorrência de certos eventos – cfr. art. 772º, nº 2 [2], e als. a) a do Código de Processo Civil – mal se compreenderia que estando em causa um recurso ordinário, o recorrente estivesse dispensado de alegar o termo inicial o dies a quo, ou seja, a data em que teve conhecimento da decisão. Com efeito, não lhe tendo de ser notificada a decisão, porque não foi parte na causa quem pretender recorrer, alegando ter sido prejudicado pela decisão, tem de alegar que tomou conhecimento da decisão em determinada data, e a partir daí dispõe do prazo de 10 dias, nos termos conjugados dos nºs 1 e 3 do art. 685º Código de Processo Civil.

Os recorrentes, sendo terceiros alegadamente prejudicados pela decisão, não podem recorrer da decisão a todo o tempo e sem nada alegar sobre o momento em que a decisão foi por si conhecida.

Impende sobre si o ónus de provar em que data teve conhecimento da decisão que supostamente o prejudica, por ser quem está na melhor posição para afirmar esse conhecimento.

O ónus da prova da tempestividade do recurso cabe ao terceiro recorrente e já não aos recorridos, sob pena de se lhes exigir a prova de um facto extremamente difícil de provar. Ora, os recorrentes nada disseram sobre o dia em que tiveram conhecimento da decisão, imposição que está prevista no nº3 do art.685º do Código de Processo Civil. Concluímos, assim, que não tendo os recorrentes feito prova do facto de que dependia a atempada interposição do recurso – o prazo de 10 dias contados desde a data em que tomaram conhecimento da decisão – não se pode considerar que o recurso foi interposto em tempo.”

59 - A Caixa Agrícola também não alegou o momento em que tomou conhecimento do acórdão. E, cabendo-lhe esse ónus, não pode ser considerado interposto em tempo o seu recurso de apelação.

60 - E não colhe dizer-se que a Caixa Agrícola foi notificada em 30/5/2019 e, daí, ser contado o prazo de recurso após esta data. Tal notificação tratou-se de uma mera formalidade de cortesia para quem já tinha sido parte nos autos.

61 -Pelo que deve ser revogada a decisão que o ordenou e consequentemente a decisão ora em recurso de revista.

62 - Por outro lado, aquele acórdão do STJ de 15/12/2011 no processo 767/06.2TVYVNG.P1.S1, da secção JSTJ000 trata também do prejuízo causado pela decisão.

63 - Nos seus vários requerimentos e alegações a Caixa Agrícola diz que, da decisão em 1ª instância, resulta um evidente prejuízo. Ideia esta que também se encontra imanente nas várias decisões do Venerando Tribunal da Relação de Évora. Do que ora também se recorre.

64 - A realidade é que o alegado prejuízo da Caixa Agrícola não se encontra factualmente fundamentado nem provado. Pelo que é uma falsa questão.

65 - Diz o acórdão ultimamente citado:

“III) –Não sendo os recorrentes parte principal na causa, nem parte acessória, nem tendo tido qualquer intervenção processual na acção, só podem recorrer se se considerar que são “directa e efectivamente prejudicados pela decisão”.

IV)– O prejuízo, que é pressuposto da legitimidade ad recursum de terceiros prejudicados pela decisão, deve ser um prejuízo real, directo, efectivo, não meramente um prejuízo ou dano colateral, reflexo. Se a decisão não causa um prejuízo directo, se não se repercute de forma nuclear, afectando o património físico ou moral do recorrente, mas antes de modo reflexo lhe puder causar dano, esse terceiro não pode recorrer da decisão por falta de legitimidade.”

66 - Da decisão de cancelamento dos registos das hipotecas pode não resultar qualquer prejuízo.

67 - Pois que a existência de um registo de uma hipoteca não é probatório, só por si, que existe um crédito hipotecário.

68 - Assim a demonstração do prejuízo deveria ter sido feita. E não foi.

69 - Acresce que Caixa Agrícola tem outras garantias hipotecárias, e não só, das sociedades que lhe são devedoras.

70 -Daí que só no fim de executadas todas estas outras garantias se saberá se as mesmas são, ou não, suficientes para o pagamento do seu crédito.

71- Pelo que também por aqui não tem fundamento o douto aresto recorrido.

72- Por fim, o cancelamento dos registos das hipotecas C1 e C2 resultou da declaração de nulidade por simulação do negócio de compra e venda outorgado pela escritura de 16/9/2005 entre a Tdoze L.da e a Urbisilva L.da.

73 - Ficou provado, a fls 605, que a Tdoze e a Urbisilva ao celebrarem aquele negócio apenas quiseram retirar da esfera jurídica da Tdoze o prédio dos autos a fim de evitar que fosse penhorado, no intuito de enganar os credores daquela;

74 -Assim a Tdoze não quis vender nem a Urbisilva quis comprar.

75 - Não houve qualquer transferência de capitais entre a vendedora e a compradora.

76 - Factos estes que resultaram, conforme referido a fls 612, do depoimento da testemunha EE que os admitiu e de que tinha conhecimento pessoal já que era à época sócio e gerente da Tdoze.

77 - Comprovando-se a simulação do negócio de compra e venda de 16/3/2005, caíram os negócios posteriores, mesmo os celebrados de boa-fé já que a acção foi proposta dentro dos 3 anos posteriores à sua realização.

Foram violados entre outros os artigos 619º, 628º, 631º, 638º nº 4 todos o CPC.

Não foram violados pela decisão de 1ª instância o art. 3º e 30º do CPC nem o art. 20º nº 4 da CRP.

Termos em que deve ser revogado o douto acórdão recorrido.

Fazendo-se deste modo JUSTIÇA».

7. A recorrida, Caixa Geral Agrícola, apresentou contra-alegações, que não foram aceites pelo tribunal recorrido, por serem extemporâneas. 

Sabido que o objeto do recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, se delimita pelas conclusões do recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

I - Nulidade dos pontos 6.4. e 6.5 da sentença por violação do princípio do contraditório;

II – Efeitos da declaração de nulidade do negócio simulado em relação a terceiros adquirentes.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Decisão de facto

Factos considerados provados em 1.ª instância:

1. Por escritura pública outorgada no dia 5 de abril de 1995, FF e, mulher, GG, como primeiros outorgantes, declararam vender ao autor AA e à sua falecida esposa, BB, como segundos outorgantes, pelo preço de 2 850 000$00, o prédio rústico que se compõe de terreno de regadio para cultura hortícola, com a área de 6250 m2, sito na ..., atual Av. ..., da freguesia ..... ..., concelho..... ..., sem inscrição matricial própria, mas a desanexar do prédio inscrito na matriz cadastral rústica da mesma freguesia ..... ... sob o artigo n.º …, Secção AJ, descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º ….

2. O prédio rústico descrito em 1 foi registado a favor do autor AA e da sua falecida esposa, BB, pela inscrição G – 1, Apresentação 5/…, e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º.../…, tendo provindo da descrição n.º ….

3. No prédio identificado em 2, o autor AA e a sua falecida esposa, BB, construíram uma casa de habitação com cinco divisões, cozinha, duas casas de banho e garagem.

4. O prédio com aquela composição foi inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 6776, da freguesia .... .

5. Após as respetivas negociações, o autor AA e a sua falecida esposa, BB, decidiram prometer vender à sociedade “Urbidoze – Construções, Lda.” uma fração do seu prédio descrito em 1 dos factos provados, reservando para si uma parte do mesmo com aproximadamente 2 633,50 m2 onde estava implantada a sua casa de habitação, garagem e primitivo logradouro.

6. EE, sócio da gerente sociedade “Urbidoze – Construções, Lda.” disse ao autor AA e a sua falecida esposa, BB, que a parte adquirida era para anexar a outros 4 destaques de outros tantos vizinhos que tinham também prometido vender.

7. Os cinco prédios contíguos iriam sofrer um destaque, cada um, e as partes destacadas iriam depois ser anexadas num prédio único, o qual, por sua vez, iria ser depois loteado através do competente projeto a apresentar na Câmara Municipal .... .

8. Face à necessidade prática de todos estes atos, mais tarde foi dito ao autor AA e a sua falecida esposa, BB, por EE que, para evitar toda a burocracia inerente àqueles destaques, anexações e loteamento, melhor seria os autores “passarem” toda a sua propriedade para o nome da promitente compradora, “Urbidoze – Construções, Lda.”, no contrato promessa a celebrar.

9. E na escritura de compra e venda a celebrar em vez de constar apenas parte do imóvel prometido vender e identificado em 1 e 3 dos factos provados, era vendida toda a propriedade do autor AA e a sua falecida esposa, BB.

10. E uma vez celebrada a escritura pública de compra e venda do imóvel prometido vender e identificado em 1 e 3 dos factos provados, a sociedade “Urbidoze – Construções, Lda.”, depois de concluído o loteamento, venderia aos autores ficticiamente o lote urbano correspondente à casa de habitação, garagem e logradouro do autor AA e a sua falecida esposa, BB, com a área aproximada de 2 633,50 m2.

11. O citado lote é o n.º 39, descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º ..., da freguesia ...... ..., e inscrito matricialmente nesta freguesia sob o artigo ....

12. Na venda referida em 10 nada haveria de pagar pelos autores, já que apenas receberiam o preço respeitante a parte do imóvel.

13. É na sequência e sucessão de todos os factos acima descritos que, por acordo denominado de “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA” outorgado no dia 7 de outubro de 2000, o autor AA e a sua falecida esposa, BB, na qualidade de promitentes vendedores, prometem vender à sociedade “Urbidoze – Construções, Lda.”, na qualidade de promitente compradora, e representada pelo seu sócio gerente EE, o prédio urbano, com a área de 6250 m2, destinado à construção de habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...27 e inscrito na Repartição de Finanças da freguesia...... ... sob o artigo urbano n.º …61, livre de quaisquer ónus ou encargos, com as cláusulas que constam do mesmo, cuja cópia se encontra a fls. 39 e 40 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido.

14. O acordo mencionado em 13 foi objeto de aditamento de uma cláusula, na mesma data, com o seguinte teor:

“Os primeiros outorgantes concordam que caso queira, a segunda outorgante pode nomear outra entidade singular ou coletiva a quem substabeleça a outorga da escritura de compra e venda a que se refere o contrato promessa”.

15. Foi sempre EE que manteve todos os contatos com o autor AA e a sua falecida esposa, BB, ao longo dos anos.

16. Por escritura pública outorgada no dia 30 de maio de 2003, o autor AA e a sua falecida esposa, BB, como primeiros outorgantes, declararam vender à sociedade “Tdoze – Urbanização e Construção, Lda.”, representada no ato pelos sócios gerentes, EE e HH, na qualidade de compradora, livre de ónus ou encargos, o prédio urbano, casa de habitação e garagem com a superfície coberta de 225 m2, e terreno inserido em área urbana com a área de 6 024,50 m2, sito na Av. ..., n.º … – A, freguesia ..... ..., concelho..... ..., implantado no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...27 e inscrito na matriz urbana sob o artigo …76, pelo preço de € 250 000,00.

17. A sociedade “Tdoze – Urbanização e Construção, Lda.”, representada no ato pelos sócios gerentes, EE e HH, na qualidade de primeira outorgante e promitente vendedora, e o autor AA e a sua falecida esposa, BB, na qualidade de segundos outorgantes e promitentes - compradores, subscreveram o acordo denominado de “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, no dia 30 de maio de 2003, com as seguintes cláusulas:

Primeira:

“A primeira outorgante é dona e legítima proprietária de um lote de terreno, sito em ..., local de residência dos segundos outorgantes, com a área de 2 633 m2, cujo artigo matricial é n.º …61 da freguesia...... ..., denominado por lote n.º … da ..., empreendimento que está a ser levado a cabo pela primeira outorgante.”

Segunda:

“A primeira outorgante promete vender aos segundos outorgantes e estes prometem comprar, livre de quaisquer ónus ou encargos, o lote atrás descrito e inscrito no mapa anexo que faz parte integrante deste contrato, e que vai rubricado por ambos os contraentes.”

Terceira:

“Pelo presente contrato a primeira outorgante, dá plena quitação ao valor atribuído ao lote.” Quarta:

“A escritura pública será organizada e marcada pela primeira outorgante logo que seja aprovado e registado o loteamento e o 1.º outorgante possua toda a documentação para o efeito e devendo as infra estruturas estar efetuadas ou asseguradas a sua execução perante as entidades competentes.”

Quinta:

“A competente escritura será lavrada pela primeira outorgante ao segundo outorgante, ou a quem este indicar, que o notificará do dia, hora e local da referida, com uma antecedência mínima de quinze dias.”

Sexta:

“O presente contrato promessa de compra e venda fica sujeito ao regime da execução específica, nos termos do art.º 830.º do Código Civil, por forma que no caso de incumprimento do mesmo imputável a uma das partes, a parte cumpridora obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial da parte faltosa.”

Sétima:

“Nos casos em que este contrato promessa de compra e venda for omisso aplicar-se-á a legislação em vigor, e estabelece-se como competente para dirimir qualquer conflito emergente do presente contrato o foro da Comarca de ..., com expressa renúncia a qualquer outro.”

18. A intenção da sociedade “Urbidoze – Construções, Lda.”, ao agir como se descreve em 8, 9 e 10 dos factos provados, quer em relação ao autor AA e a sua falecida esposa, BB, quer em relação aos proprietários dos prédios contíguos, referidos em 7 dos factos provados, era obter mais lotes no futuro loteamento a realizar, com uma área maior no seu projeto de loteamento.

19. Previa-se que o lote do autor AA e a sua falecida esposa, BB, após o loteamento, tivesse a área de 2 633,50 m2 e depois apenas veio a ter 2 348 m2.

20. Diferenças essas de áreas que serviram para, conjuntamente com outras áreas dos proprietários contíguos, se conseguir mais lotes do que os inicialmente previstos.

21. Por escritura pública outorgada no dia 16 de setembro de 2005, a sociedade “Tdoze – Urbanização e Construção, Lda.”, representada no ato pelo gerente, EE, como primeira outorgante, declarou vender à ré “Urbisilva, Construções, Lda.”, representada no ato pelo sócio gerente, II, na qualidade de compradora, o prédio urbano, destinado à habitação, garagem e logradouro, sito na ... e Av. ..., lote..., freguesia...... ..., concelho..... ..., inscrito provisoriamente na respetiva matriz sob o artigo ...74, descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...32, pelo preço de € 103 000,00.

22. Ao outorgarem a escritura pública identificada em 21 as partes quiseram retirar da esfera jurídica da sociedade “Tdoze – Urbanização e Construção, Lda.” o prédio correspondente ao lote... a fim de evitar que fosse penhorado, no intuito de enganar os credores daquela, pelo que a sociedade “Tdoze – Urbanização e Construção, Lda.” não quis vender tal lote, nem a ré “Urbisilva, Construções, Lda.” o quis comprar.

23. Não houve qualquer transferência de capitais, entre vendedora “Tdoze – Urbanização e Construção, Lda.” e compradora “Urbisilva, Construções, Lda.”, pese embora o preço acordado constante da escritura pública outorgada em 16 de setembro de 2005.

24. Pela inscrição G – 1, Apresentação 28/..., foi registada provisoriamente a aquisição do prédio identificado em 21 a favor da ré “Urbisilva, Construções, Lda.”, convertida em definitiva pela inscrição G – 1, Apresentação 54/…, já com a área de 2 348 m2.

25. Pela inscrição C – 1, Apresentação 29/..., foi registada provisoriamente a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ......., CRL, hipoteca voluntária convertida em definitivo pela inscrição C – 1, Apresentação 55/…, sobre o prédio identificado em 21.

26. Pela inscrição C – 2, Apresentação 20/..., foi registada provisoriamente a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ......., CRL, hipoteca voluntária sobre o prédio identificado em 21.

27. Pela Apresentação 4474 de 2010/01/25, foi registada a favor de “A..., S.A. penhora sobre o prédio identificado em 21.

28. Pela Apresentação 3951 de 2010/12/15, foi registada a favor da Fazenda Nacional penhora sobre o prédio identificado em 21.

29. Pela Apresentação 3435 de 2013/02/22, foi registada a favor da Fazenda Nacional penhora sobre o prédio identificado em 21.

30. Pela Apresentação 1416 de 2017/09/13, foi registada a favor da Fazenda Nacional penhora sobre o prédio identificado em 21.

31. Pela Apresentação 3 de 2007/07/31, foi registada a presente ação relativamente ao prédio identificado em 21.

32. O prédio identificado em 21 encontra-se atualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia...... ... sob o artigo ... e foi avaliado no ano de 2016 em € 220 162,30.

33. Com data de 10 de outubro de 2017, a Direção de Finanças de Santarém – Serviço de Finanças de ... emitiu a seguinte declaração: “(…) após consulta aos elementos existentes neste Serviço, verifiquei que o artigo .....74 freguesia...... ..., proveio do artigo … e este por sua vez do artigo … da freguesia...... ....

Mais certifico, que as alterações matriciais referidas, provêm do loteamento onde foi criado o artigo …12, que por sua vez deu origem ao artigo ....74”.

34. A aprovação do loteamento e registo do lote... já se concluiu.

35. EE, já após a propositura da presente ação, mandou edificar um muro que separa o lote... do restante loteamento e garantiu ao autor AA que a breve trecho concretizará o acordado.

36. É o autor AA, e antes de falecer a sua esposa, que usa o prédio identificado em 21 como se fosse seu e é publicamente tido como dono do mesmo, o que é do conhecimento das sociedades “Urbidoze – Construções, Lda.” e “Tdoze – Urbanização e Construção, Lda.” pelo menos enquanto delas foi sócio gerente EE.


Factos considerados não provados em 1.ª instância:

1. Ao agir como se refere em 18 dos factos provados a sociedade “Urbidoze – Construções, Lda.” fê-lo com intenção de ludibriar a autarquia ... e ultrapassar as condicionantes impostas nos projetos de loteamento, obtendo um benefício à custa dos vendedores e da manipulação do projeto de loteamento apresentado.

2. Algum tempo depois de maio de 2003, o autor AA começou a contactar com EE, no sentido de ser outorgada a escritura definitiva de compra e venda.

3. Ora telefonava-lhe, ora tentava falar-lhe pessoalmente quando o mesmo estava em ..., sempre com o propósito de ser colocado em seu nome a parte da sua propriedade acordada no negócio supra, marcando-se para o efeito a necessária escritura notarial.

4. De todas as tentativas, umas vezes foi-lhe dito telefonicamente que os gerentes não estavam presentes, outras vezes, que não podiam atendê-lo, ou simplesmente, não atendiam o telefone.

5. Quer a sociedade “Urbidoze – Construções, Lda.”, quer a sociedade “Tdoze – Urbanização e Construção, Lda.” já incumpriram, em situação semelhante, com alguns vizinhos do autor AA, sendo que procederam à venda a terceiros de lotes que eram para os anteriores proprietários dos ditos terrenos sujeitos a loteamento.

6. E quer EE e II, quer as firmas que representam, fazem diversos negócios entre si, assim como possuem interesses comuns, tendo conhecimento todos do que cada firma vai fazendo.

7. O negócio identificado em 21 dos factos provados foi realizado somente para facilitar a concessão de garantias à “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo .......” e à Câmara Municipal .... ... pela ré “Urbisilva, Construções, Lda.”.

B – O Direito

1. A questão a decidir é a de saber se padece de nulidade a sentença de 1.ª instância, nos pontos 6.4. e 6.5. que declararam procedente o pedido deduzido contra a co-ré, Caixa de Crédito Agrícola (CCA), que tinha sido absolvida da instância no despacho saneador, e quais as consequências dessa nulidade. A nulidade invocada pela CCA foi uma nulidade por excesso de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por alegadamente ter a sentença decidido de questão – o cancelamento do registo das hipotecas constituídas a favor da CCA – de que não podia ter tomado conhecimento.

 1.1. Entendeu o tribunal de 1.ª instância, perante a arguição de nulidade da sentença proferida em 8 de maio de 2018, que a CCA, sabendo que havia sido suscitada pelos autores a questão do cancelamento da hipoteca, não recorreu da decisão que a absolveu da instância, por ilegitimidade processual, tendo-se conformado com ela. Em consequência, decidiu este tribunal, que a sentença, que ordenou o cancelamento dos registos de hipoteca a favor da CCA, não padecia de qualquer vício de conteúdo suscetível de configurar uma nulidade, nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

1.2. Já o Tribunal da Relação considerou diferentemente que estávamos perante uma nulidade dos pontos 6.4 e 6.5 do segmento decisório da sentença de 8 de maio de 2018,  que revogou nessa parte, absolvendo  os réus da instância, por ilegitimidade passiva, relativamente ao pedido de cancelamento da inscrição de hipotecas registadas a favor da apelante Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ......, CRL.

1.3. Os recorrentes, autores no presente processo, pugnam para que seja confirmada a sentença de 8 de maio de 2018, que ordenou o cancelamento dos registos das hipotecas a favor da CCA, por entenderem não se ter verificado qualquer violação do princípio do contraditório que provocasse a nulidade, por excesso de pronúncia, dos pontos 6.4 e 6.5 da sentença, dada a circunstância de a CCA ter participado na fase dos articulados em que foi debatida a questão do cancelamento das hipotecas e de não ter recorrido da decisão que a absolveu da instância,  por ilegitimidade processual, tendo-se conformado com o resultado que o processo viesse a ter no que diz respeito às hipotecas. Acrescentam ainda que, mesmo que a Caixa tivesse participado na audiência de julgamento e na produção da prova não lhe teria sido possível alterar a conformação dos factos provados e não provados. Mais afirmam que os requisitos da simulação do negócio ficaram provados, sem margem para dúvidas, com o depoimento do ex-gerente das sociedades que celebraram o negócio simulado, que assumiu que as sociedades Tdoze e Urbisilva nunca quiseram celebrar tal negócio e que houve um intuito de enganar terceiros. Defendem, ainda, sobre o mérito da questão de direito respeitante às hipotecas, que a CCA tinha conhecimento que os autores estavam na posse do bem e que portanto não estava de boa fé, acrescentando que, mesmo que este Supremo Tribunal entenda que a CCA adquiriu o direito real de garantia de hipoteca ignorando a simulação, jamais poderia a CCA beneficiar da proteção conferida aos terceiros sub-adquirentes, pelo artigo 291.º do Código Civil, uma vez a presente ação foi intentada dentro do prazo de três anos após a conclusão do negócio inválido.

Quid iuris?

2. Com relevo para a decisão do caso, sintetizam-se os seguintes passos da evolução do processo:

A presente ação declarativa foi intentada por AA e mulher, BB - entretanto falecida, tendo sido declarados habilitados como seus sucessores CC e DD -, contra Urbisilva - Construções, Lda., Urbidoze - Construções, Lda., Tdoze - Urbanização e Construção, Lda., Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ......., CRL, Urbibuild - Construções, Lda. e Câmara Municipal ....... ....

No despacho saneador, proferido na audiência prévia realizada a 20-10-2015, foi julgada verificada a exceção de ilegitimidade processual das rés Urbidoze – Construções, Lda., Urbibuild, Construções, Lda., Câmara Municipal ....... ... e Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ......, CRL, e absolvidas estas rés da instância, decisão que transitou em julgado.

Realizada audiência final, por sentença de 08-05-2018 foi a ação julgada parcialmente procedente, tendo-se decidido o seguinte:

«Em face do exposto, e vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios invocados decido julgar a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:

6.1. – Declaro nulo, por simulação, o negócio de compra e venda objeto da escritura pública outorgada no dia 16 de setembro de 2005 relativo ao prédio urbano, destinado à habitação, garagem e logradouro, sito na ... e Av. ..., lote..., freguesia ..... ..., concelho..... ..., inscrito na matriz sob o artigo ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...32;

6.2. – Ordeno o cancelamento da inscrição G – 1, Apresentação 28/..., provisória, convertida em definitiva pela inscrição G – 1, Apresentação 54/…, relativamente ao prédio urbano, destinado à habitação, garagem e logradouro, sito na ... e Av. ..., lote..., freguesia...... ..., concelho..... ..., inscrito na matriz sob o artigo ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...32;

6.3. – Declaro a execução específica do contrato promessa celebrado no dia 30 de maio de 2003 e, em consequência, declaro transferida para os autores AA, CC e DD (estes dois últimos na qualidade de herdeiros da falecida BB) a propriedade ao prédio urbano, destinado à habitação, garagem e logradouro, sito na ... e Av. ..., lote..., freguesia...... ..., concelho..... ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º..., com a área de 2 348 m2, livre de ónus ou encargos.

6.4. – Ordeno o cancelamento da inscrição C – 1 (hipoteca voluntária), Apresentação 29/..., registada a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ......., CRL, relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...32;

6.5. – Ordeno o cancelamento da inscrição C – 2 (hipoteca voluntária), Apresentação 20/..., registada a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ......, CRL, relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...32;

6.6. – Ordeno o cancelamento da Apresentação 4474 de 2010/01/25 (penhora), registada a favor de “A..., S.A. relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º...32;

6.7. – Ordeno o cancelamento da Apresentação 3951 de 2010/12/15 (penhora), registada a favor da Fazenda Nacional relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º ...32;

6.8. – Ordeno o cancelamento da Apresentação 3435 de 2013/02/22 (penhora), registada a favor da Fazenda Nacional relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º ...32;

6.9. – Ordeno o cancelamento da Apresentação 1416 de 2017/09/13 (penhora), registada a favor da Fazenda Nacional relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ... 74 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..... ... sob o n.º ...32;

6.10. – Absolvo a ré “URBISILVA, CONSTRUÇÕES, LDA.” do demais contra si peticionado pelos autores AA, CC e DD.

Custas a cargo dos autores e da ré na proporção de 1/3 pelos primeiros e 2/3 pela segunda.

Registe e notifique».

A Caixa de Crédito Agrícola interpôs recurso de apelação desta sentença, invocando a qualidade de terceiro cujos interesses são diretamente prejudicados pela decisão recorrida. Este recurso de apelação não foi admitido pelo Tribunal da Relação de Évora, por extemporaneidade, tendo o Supremo, em sede de recurso de revista intentado pela CCA contra este acórdão da Relação, revogado o mesmo e admitido o recurso de apelação, ordenando a baixa do processo para o tribunal recorrido.

3. Nesta sequência, debruçando-se sobre o recurso de apelação da Caixa, o Tribunal da Relação considerou-o procedente, entendendo que “(…) a decisão recorrida, ao ordenar o cancelamento da inscrição de hipotecas registadas a favor da apelante, decidiu a questão à revelia desta interessada, que veio a ser afetada pela sentença sem ter tido a oportunidade de intervir nas fases processuais subsequentes à audiência prévia, designadamente através da apresentação de meios de prova, da participação na audiência final e da emissão de pronúncia sobre as questões de facto e de direito relativas ao objeto da causa”. Tal decisão, segundo o tribunal recorrido, viola o direito a um processo equitativo, previsto na parte final do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), norma que estatui que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão mediante processo equitativo, bem como o princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º do CPC. Conclui o Tribunal da Relação que “Ao apreciar os pedidos de cancelamento da inscrição das hipotecas registadas a favor da apelante, a 1.ª instância conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, por ausência da lide da parte da interessada afetada pela eventual procedência da pretensão deduzida, o que configura nulidade do indicado segmento da decisão, conforme invocado pela apelante”.

Entendem os recorrentes que o princípio do contraditório não foi violado, pois a Caixa participou na fase dos articulados e apresentou contestação. Todavia, a doutrina e a jurisprudência, cumprindo a letra e o espírito da lei, têm entendido que este princípio geral tem uma natureza estrutural e deve ser observado em todas as fases do processo, não só na fase dos articulados, mas também na apresentação e produção dos meios de prova (por todos, cfr. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2020, p. 21).

Dispõe o artigo 3.º do CPC o seguinte:

«1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.

2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.

3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final».

Extrai-se deste preceito que não pode o tribunal resolver o conflito de interesses subjacente à ação sem que os interessados sejam chamados para deduzir oposição, devendo o contraditório ser mantido ao longo de todo o processo. Só podem ser tomadas providências contra determinada pessoa, sem que esta seja previamente ouvida, em casos excecionais previstos na lei e em casos de “manifesta desnecessidade”, conceito indeterminado que deve ser preenchido numa perspetiva objetiva (cfr. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, ob. cit., p. 22).

 No caso dos autos, verificou-se que o cancelamento da inscrição das hipotecas registadas a favor da CCA foi decidido à revelia desta interessada, que veio a ser afetada pela sentença sem ter tido a oportunidade de intervir nas fases processuais subsequentes à audiência prévia, designadamente através da apresentação de meios de prova, da participação na audiência final e da emissão de pronúncia sobre as questões de facto e de direito relativas ao objeto da causa.

Assim, bem decidiu o acórdão recorrido aplicando à decisão proferida com violação do princípio do contraditório a nulidade, por excesso de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.  

 

4. Sobre as consequências da nulidade, determina o acórdão recorrido o seguinte:

“Procedendo a arguição de nulidade dos pontos 6.4. e 6.5. do segmento decisório da sentença, cumpre atender à regra da substituição ao tribunal recorrido estatuída pelo artigo 665.º do CPC, cujo n.º 1 dispõe que ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.

Em anotação ao indicado preceito, explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 803) que “ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das referidas nulidades da sentença, não se limita a reenviar o processo para o tribunal a quo”, antes devendo “prosseguir, em princípio, com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665º, nº 2. Ponto é que a Relação disponha de todos os elementos necessários para o efeito”.

No caso presente, a violação do direito a um processo equitativo, concretizada no desrespeito do princípio do contraditório, que deu causa à nulidade dos pontos 6.4. e 6.5. do segmento decisório da sentença, não se mostra passível de ser suprida, considerando que a apelante foi demandada e posteriormente absolvida da instância, por decisão transitada em julgado constante do despacho saneador proferido na audiência prévia realizada a 20-10-2015.

 Esta decisão, que recaiu sobre a relação processual, absolvendo a apelante da instância, e que se encontra transitada em julgado, tem força obrigatória dentro do processo, conforme decorre do disposto no artigo 620.º, n.º 1, do CPC.

O caso julgado formal que decorre desta parte do despacho saneador, vinculando no processo em que a decisão foi proferida, impede o Tribunal de proferir nova decisão destinada a obter a intervenção da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ....., CRL na lide, nomeadamente através da dedução de incidente de intervenção de terceiros.

Assim sendo, impõe-se a apreciação das consequências que decorrem da ausência em juízo da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ....., CRL, no que respeita ao pedido de cancelamento da inscrição das hipotecas registadas a favor da apelante, formulado pelos autores.

É sabido que o problema da legitimidade tem que ser apreciado nos termos estatuídos no artigo 30.º do CPC, que reporta a legitimidade do réu ao interesse direto em contradizer, o qual se exprime pelo prejuízo que advenha da procedência da ação, considerando-se, na falta de indicação da lei em contrário, como titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. Dispõe n.º 2 do artigo 33.º, do mesmo código, que é necessária a intervenção de todos os interessados na relação controvertida quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, esclarecendo o n.º 3 do preceito que a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes, relativamente ao pedido formulado.

Pretendendo os autores obter, com a presente ação, além do mais, o cancelamento do registo de duas hipotecas inscritas a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ...., CRL, esta é necessariamente titular de interesse relevante para efeitos de legitimidade passiva, atento o prejuízo que lhe poderá advir da procedência da ação, carecendo os demais réus de legitimidade passiva para o efeito, face à ausência da apelante da lide.

O pedido de cancelamento da inscrição das hipotecas no registo não poderá ser definitivamente decidido sem a presença na ação dos respetivos contraentes, pelo que a ausência da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ....., CRL impede a apreciação de tal pedido, considerando que a não vinculação de um dos contraentes sempre tornaria a decisão inútil, impondo-se o litisconsórcio natural de todos os contraentes.

A ausência da apelante conduz à ilegitimidade passiva dos demais réus, no que respeita ao pedido de cancelamento do registo das duas hipotecas inscritas a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ...., CRL, exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, quanto a tal pedido, e dá lugar à absolvição da instância, conforme decorre do disposto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, al. e), e 578.º do CPC”.

Ora, analisados os argumentos dos recorrentes nenhum deles permite transpor a questão de a Caixa ter sido absolvida da instância, por decisão transitada em julgado, que não foi impugnada. E, a quem pertencia, em primeira linha, o interesse nessa impugnação era aos próprios autores, uma vez que a Caixa, deixando de ser parte no processo e, portanto, não podendo ser atingida diretamente nos seus interesses pela decisão que viesse a ser proferida, não tinha interesse nem legitimidade para recorrer desta decisão.

Tem, pois, razão o acórdão recorrido quando declara a nulidade dos pontos 6.4. e 6.5 da sentença, por ter sido decidida questão que não podia ter sido conhecida, por inobservância do princípio do contraditório (artigo 615.º, n.º 1, al. d), segunda parte, em conjugação com o artigo 3.º do CPC), bem como quando entende que a nulidade não pode ser suprida com a baixa do processo ao tribunal de 1.ª instância, porque, no presente processo, a Caixa perdeu o estatuto de parte desde o trânsito em julgado da decisão que a absolveu da instância.

É que, numa ação em que se pede que seja declarado nulo, por simulação, um determinado negócio e que seja ordenado o cancelamento do registo de hipotecas constituídas pelo adquirente simulador sobre esse imóvel, verifica-se uma situação de litisconsórcio necessário passivo, em virtude da natureza da relação em litígio, entre os contraentes do negócio simulado e os terceiros subadquirentes. 

Assim sendo, a questão do cancelamento das hipotecas, designadamente a questão da proteção, ou não, do terceiro subadquirente ao abrigo do artigo 291.º do Código Civil, em relação aos efeitos retroativos da nulidade, não pode ser conhecida no presente processo, como pretendem os recorrentes, uma vez que nele não estão presentes todos os titulares da relação jurídica controvertida, devendo, também, como decidiu o acórdão recorrido, ser absolvidos da instância, ao abrigo dos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, al. e), e 578.º do CPC os demais réus relativamente ao pedido de cancelamento da inscrição de hipotecas registadas a favor da Caixa de Crédito Agrícola.

Improcedem, pois, todas as conclusões de recurso formuladas pelos recorrentes, sendo que as conclusões n.º 53 a 71 referem-se aos pressupostos da admissibilidade da interposição de recurso, por um terceiro diretamente afetado por uma decisão, ao abrigo do artigo 631.º, n.º 2, e 638.º, n.º 4, ambos do CPC, questão já decidida em anterior acórdão de revista e que não cumpre conhecer de novo).

Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – A doutrina e a jurisprudência, cumprindo a letra e o espírito da lei (artigo 3.º do CPC), têm entendido que o princípio do contraditório é um princípio geral, com uma natureza estruturante, e deve ser observado em todas as fases do processo, não só na fase dos articulados, mas também na apresentação e produção dos meios de prova, e no debate das questões de facto e de direito.

II – É nula, por força da conjugação do artigo 3.º com o artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, ambos do CPC, a sentença que, após a absolvição da instância de um dos réus, por despacho saneador transitado em julgado, decide questões de que não podia tomar conhecimento, como o cancelamento do registo de hipotecas constituídas a favor do réu.

III – Numa ação em que se pede que seja declarado nulo, por simulação, um determinado negócio e que seja ordenado o cancelamento do registo de hipotecas constituídas pelo adquirente simulador sobre esse imóvel, verifica-se uma situação de litisconsórcio necessário natural entre os contraentes do negócio simulado e os terceiros subadquirentes.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas da revista pelos recorrentes.

Lisboa, 6 de junho de 2021

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Fátima Gomes (2.ª Adjunta)