Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
757/19.5T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: PEDIDO RECONVENCIONAL
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I - A reconvenção configura uma acção cruzada ou contra-acção, facultativa, para cuja admissibilidade a lei exige requisitos processuais e requisitos materiais, exigindo-se uma conexão objectiva entre as duas acções, ou seja, um nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional.
II - Em regra, a reconvenção é autónoma, mas há casos excepcionais em que a extinção da acção implica a extinção da reconvenção, designadamente quando o pedido reconvencional “seja dependente do pedido formulado pelo autor”.
III - Verifica-se a dependência, para efeitos do art. 266.º, n.º 6, (2.ª parte) do CPC, quando o pedido reconvencional só é apreciado se o pedido do autor for julgado procedente.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO



1.1.- A Autora - Reason Panoply, Ld, com sede na rua ..., ..., instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus - AA e BB, residentes na Travessa ..., ....

Alegando, em resumo, que a Autora é proprietária da fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra “G”, com entrada pelo nº 82 da Travessa ..., do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na mencionada Trav. ..., freguesia de ... e ..., concelho de ..., inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 32 e descrita na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...16, por a ter adquirido a terceiro, e que os Réus a ocupam sem o seu consentimento, pediu a condenação dos Réus:

a) “reconhecerem o direito de propriedade da autora sobre tal prédio”;

b) “de imediato entregarem à autora o mesmo imóvel, livre de pessoas e bens e em bom estado de conservação e limpeza”.

1.2. - Os Réus contestaram e reconviram, alegando, em síntese:

Em a 29 de Abril de 2010 celebram com a sociedade “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”, contrato promessa de compra e venda da fracção autónoma cuja entrega é nestes autos peticionada, sendo a pessoa que contactaram a propósito de tal negócio, CC, o gerente de facto da autora e da “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”, que como tal sempre se apresentou perante os contestantes, e que, no âmbito do referido contrato promessa, entregou aos mesmos a chave do imóvel agora reivindicado.

Convencionara o preço de € 92 500,00 e os Réus entregaram a CC, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 22 500,00.

Em Abril de 2010 os Réus receberam as chaves do imóvel, a partir daí passando a lá residir, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

O contrato prometido jamais veio a ser celebrado porque a fracção autónoma prometida vender foi, entretanto, alvo de diversas penhoras que a promitente vendedora não logrou expurgar, acabando por ser declarada em estado de insolvência.

Em sede de reconvenção, defendem ter a sociedade “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda. incumprido definitivamente o contrato promessa de compra e venda que celebrou com os reconvintes, desde logo face à venda que fez a terceiro, sendo eles titulares do direito de retenção sobre o imóvel, nos termos dos artigos 442º e 755º, ambos do Código Civil.

Concluíra pela improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido, e em reconvenção pediram:

A declaração judicial da validade e eficácia do contrato promessa de compra e venda celebrado entre os réus e a sociedade “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”;

A declaração judicial de incumprimento pela sociedade promitente vendedora “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”, do contrato promessa de compra e venda invocado na contestação;

O reconhecimento aos reconvintes do direito de retenção do imóvel em causa nos autos decorrente do incumprimento pela sociedade “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”, do contrato promessa de compra e venda celebrado com os reconvintes;

A condenação da reconvinda a abster-se de exercer ou praticar qualquer facto que que impeça ou diminua a utilização pelos reconvintes da fracção autónoma designada pela letra “G” sita na Travessa ..., com entrada pelo nº 82, freguesia de ..., concelho de ..., a que corresponde a habitação 1.2, no primeiro andar, actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de ... na ficha nº ...26-G e inscrito na respectiva matriz urbana no artigo 8860º.

1.3. A Autora replicou pugnando pela improcedência da reconvenção, alegando que por vicissitudes da vida societária da sociedade “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”, os Réus aceitaram que aquela sociedade cedesse à “I..., Lda.”, a posição contratual de promitente vendedora no contrato celebrado com os réus, mas posteriormente acabaram por sem justificação recusar o cumprimento, na sequência tendo a “I..., Lda.”, declarado a resolução do negócio por incumprimento definitivo dos Réus.

1.4.- Realizada audiência de julgamento, nela foi proferido despacho (datado de 09 de Dezembro de 2020) que determinou a suspensão da instância até prolação de decisão final no apenso(designado pela letra E) ao processo de insolvência nº 9682/18.6..., do juízo do comércio de ... (J...) Comarca do Porto, na qual a aqui Autora impugnou judicialmente a decisão do Sr. administrador da insolvência de resolver a favor da massa insolvente o contrato de compra e venda pelo qual a insolvente vendeu à aqui autora o imóvel em causa nos autos, decisão de suspensão que não foi impugnada.

Com a decisão final de improcedência total na acção tramitada sob o nº 9682/18.6...-E, veio a ser proferida (6/2/2023) sentença nestes autos que julgou a acção totalmente improcedente e, entendendo terem os pedidos reconvencionais sido formulados para a hipótese de procedência do reconhecimento do direito de propriedade, julgou extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide.

1.5.- Os Réus recorreram de apelação e a Relação do Porto (com um voto de vencido) julgou o recurso improcedente e confirmou a sentença.

1.6. – Inconformados, os Réus recorreram de revista, com as seguintes conclusões:

1) Conforme alegado, os Réus estão na posse da fracção autónoma, porquanto aquando da celebração contrato promessa, a promitente vendedora, a sociedade O... - Construção Civil Unipessoal, Lda. entregou aos promitentes compradores e aqui réus recorrentes as chaves desse imóvel descrito no artº 8º da contestação permitindo-lhes, expressamente, que estes nele passassem a habitar. E posse dos réus reconvintes é de total boa-fé, titulada, pacífica e pública.

2) Face ao incumprimento do contrato promessa de compra e venda celebrado entre os Réus-reconvintes e ora recorrentes e a O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”, os mesmos réus têm um direito de crédito nos termos do disposto no artigo 442º do Código Civil e de harmonia com o disposto no artº 755º, nº 1, al. f) do Código Civil.

3) Significa, pois, que no caso em apreço nos presentes autos o exercício deste direito de retenção, tem, deste modo, uma conexão lógica entre a coisa e o crédito, motivo este pelo qual a coisa passa a se vincular e ser tida como garantidora do crédito, oponível erga omnes ou seja, o exercício do direito de retenção é oponível contra todos.

4) É, actualmente, jurisprudência pacífica que a natureza jurídica do direito de retenção é de garantia real, pelo que os réus recorrentes podem reter o imóvel para satisfação do seu crédito, sendo um direito real de garantia que se sobrepõe, inclusive, à hipoteca. O direito de retenção é, assim, oponível àquele que, após a sua constituição, venha a adquirir um outro direito real que tenha por objecto a mesma coisa, sobre este prevalecendo, prevalência reforçada, no caso dos imóveis, pelo facto de o direito de retenção prevalecer sobre a hipoteca anteriormente registo – artº 759º, nº 2, do Código Civil.

5) A verdade é que o reconhecimento do direito de propriedade da Autora reconvinda e ora recorrida não pode, nem deve, fazer esquecer o contrato promessa de compra e venda celebrado com os Réus e que envolveu a tradição para estes do 1º andar direito objecto desse contrato promessa e o uso continuado dessa fracção autónoma até à presente data. Tal origina a favor dos Réus-reconvintes e recorrentes a titularidade do direito de retenção até lhes ser satisfeita a indemnização devida pelo incumprimento definitivo daquele contrato promessa e imputável à contraparte.

6)O pedido principal formulado pela Autora nos presentes autos não poder ser apreciado, em virtude de não ser ela, R..., Lda., a actual proprietária do imóvel dada a procedência da resolução do negócio de compra e venda em benefício da massa insolvente.

7)Apreciando o segmento decisório, verifica-se que o douto Tribunal da 1ª Instância decidiu – e bem- absolver os réus recorrentes dos pedidos contra si formulados pela Autora recorrida e condenou esta nas custas, mas não apreciou a reconvenção deduzida pelos réus, verificando-se a existir omissão de pronúncia e consequente nulidade da sentença – artºs 615º, nº 1, alínea d) e nº 4, artº 607º nº 2 e nº 4 CPC.

8)O direito de retenção é, pois, um direito real de garantia (e não meramente obrigacional), pelo que está dotado de todas as características deste tipo de direitos, incluindo a inerência à coisa sobre que incide, eficácia erga omnes e poder de sequela que a todos se impõe, produzindo efeitos contra eventuais adquirentes da coisa sobre o que incide. O direito de retenção é, assim oponível àquele que, após a sua constituição, venha a adquirir um outro direito real que tenha por objecto a mesma coisa, sobre este prevalecendo. Prevalência reforçada, no caso dos imóveis, pelo facto de o direito de retenção prevalecer sobre a hipoteca anteriormente registada (artº 759º, nº 2).

9) O acórdão recorrido violou, por incorrecta interpretação, o disposto nos artigos 607º, nºs 2, 4 e 5, 608º nº 2, 615º, nº 1, alínea d) e nº 4, todos do Código de Processo Civil e nos artigos 442º, 755º, nº 1, alínea f), 758º, 759º, nºs 1 e 2, artºs 1260º, nº 1, 1261º nº 1, 1262º estes todos do Código Civil.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1.- O objecto do recurso

A questão submetida a revista consiste em saber se há fundamento legal para julgar extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide.

2.2. – Foram julgados provados os seguintes factos:

1 – Por escritura pública celebrada em 24/1/2018, a autora declarou comprar e a sociedade anónima denominada M..., S.A. declarou vender a fracção autónoma designada pela letra “G” do prédio em regime de propriedade horizontal sito na mencionada Travessa ..., freguesia de ... e ..., concelho de ..., inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 32 G e descrita na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...16(documento nº1 junto com a petição inicial cujo teor se considera integralmente reproduzido).

2 – O imóvel supra identificado veio subsequentemente a ser apreendido para a massa insolvente da sociedade M..., S.A. no âmbito dos autos de insolvência que correm termos no Juízo do Comércio de ... (J...) sob o nº9682/18.6...

3 – Sendo que o respectivo administrador de insolvência decretou, em benefício da massa, a resolução da compra e venda a que se alude em 1.

4 – A ora autora impugnou a referida resolução no processo nº9682/18.6...-E, que correu por apenso aos referidos autos de insolvência.

5 – Por sentença proferida em 23/10/2022, transitada em julgado, a impugnação deduzida pela autora foi julgada improcedente, com a consequente absolvição da massa insolvente do pedido de impugnação.

2.3. – A extinção da instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide

A sentença da 1ª instância julgou extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide, com o seguinte tópico de argumentação:

“No caso vertente, é incontornável que o direito de propriedade que incide sobre o prédio urbano em causa no presente litígio não integra a esfera jurídica da autora, atenta a resolução da compra e venda que estava na génese do direito invocado.

Desta forma, improcede o pedido formulado pela autora, sendo que os estruturados em sede reconvencional, porque dependentes do reconhecimento da propriedade, não podem ser apreciados, devendo decidir-se em conformidade”.

O acórdão recorrido confirmou a sentença e, com maior desenvolvimento, explicitou as razões pelas quais entendeu verificar-se a extinção da instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide, tendo em conta o princípio da utilidade e da falta do interesse em agir quanto ao julgamento do mérito da reconvenção, em face da improcedência da açcão.

Quanto ao pedido “Deve a Autora reconvinda ser condenada a abster-se de exercer ou praticar qualquer facto que que impeça ou diminua a utilização pelos Réus da fracção autónoma designada pela letra “G” sita na Travessa ..., com entrada pelo nº 82, freguesia de ..., concelho de ..., a que corresponde a habitação 1.2, no primeiro andar, actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de ...na ficha nº ...26-G e inscrito na respectiva matriz urbana no artº 8860º”:

Considerou-se que “ por força das regras próprias da eficácia intra e extra-processual das decisões judiciais [artigo 619º do Código de Processo Civil) cristalizou-se definitivamente no ordenamento jurídico que, face aos réus-reconvintes, a sociedade “R..., Lda.”, não é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “G”, com entrada pelo nº 82 da Travessa ..., do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na mencionada Trav. ..., freguesia de ... e ..., concelho de ..., inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 32 e descrita na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...16, não lhe assistindo o direito a exigir a sua entrega dos réus-reconvintes – logo, e não havendo mínima notícia de a reconvinda ter turbado o uso do imóvel pelos réus-reconvintes, ou pretender fazê-lo, para além da formulação do pedido de entrega com fundamento no direito que nesta acção viu recusado, a alínea E) do pedido reconvencional”.

Quanto ao pedido - «Deve ser declarado judicialmente a validade e eficácia do contrato promessa de compra e venda celerado entre os Réus e a sociedade “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.” que teve por objecto a fracção autónoma designada por letra “G” e melhor identificada no art. 8º desta Contestação-reconvenção e dado o alegado nos art. 8ª a 18º»] e C) [ «Deve ser judicialmente declarado o incumprimento da sociedade promitente vendedora O... - Construção Civil Unipessoal, Lda. do contrato promessa de compra e venda celebrado no circunstancialismo mencionado nos art. 8º a 18º e dado o alegado nos art. 28º a 36º desta contestação-reconvenção»]:

O acórdão entendeu que “ qualquer decisão que aqui seja proferida quanto à validade e/ou (in)cumprimento do contrato-promessa invocado na reconvenção, atento o princípio consagrado no artigo 619º do Código de Processo Civil, nenhuma eficácia produzirá na esfera jurídica de qualquer das sociedades “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”, e “I..., Lda.”, nem, muito menos, será oponível à massa insolvente da sociedade “M..., S.A.”. Pelo que, na relação entre reconvinda “Reason Panoply, Ldª” e reconvintes ([única em que a decisão a proferir nestes autos poderá produzir efeitos jurídicos – repete-se, artigo 619º do Código de Processo Civil) é absolutamente irrelevante que o contrato promessa identificado nos artigos 8º, 10º, 11º, 12º, 15º, 16º, 17º e 26º da contestação-reconvenção seja ou não válido ou eficaz, e/ou que tenha ou não sido (in)cumprido, e por quem. Ainda que se proferisse decisão a vincular a reconvinda “R..., Lda.”, à validade e eficácia de tal contrato promessa, e ao seu incumprimento pela sociedade “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”, esta (ou a sua massa insolvente) continuaria perfeitamente livre para em juízo discutir essa validade, eficácia e incumprimento”.

Sobre o pedido - “Deve ainda a reconvenção ser julgada procedente por provada e, em consequência, ser declarado e reconhecido aos Réus-Reconvintes o direito de retenção do imóvel melhor descrito no art. 8º como garantia do crédito detido e resultante do incumprimento do contrato promessa de compra e venda celebrado com a sociedade O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”:

Discorreu - “Por último, exactamente pelos mesmos motivos, não se vislumbra mínimo interesse [nem os recorrentes se esforçam por o indicar] em vincular a reconvinda “R..., Lda.”, ao reconhecimento do direito dos reconvintes à retenção de um imóvel relativamente ao qual a primeira nenhum direito possui; e a declaração da titularidade do direito de retenção, exclusivamente perante a reconvinda “R..., Lda.”, nenhum reflexo terá na esfera jurídica das sociedades “O... - Construção Civil Unipessoal, Lda.”, e “I..., Lda.”, nem, também, será oponível à massa insolvente da sociedade “M..., S.A.”.

Vejamos o mérito da argumentação exposta, ao convocar o princípio da utilidade e o interesse em agir, para concluir que “a inutilidade do prosseguimento da lide verificar-se-á, pois, quando seja patente, objectivamente, a insubsistência de qualquer interesse, benefício ou vantagem, juridicamente consistentes, dos incluídos na tutela que se visou atingir ou assegurar com a acção judicial intentada”.

Como se sabe, a reconvenção tem sido definida como uma acção cruzada ou contra-acção, facultativa, para cuja admissibilidade a lei exige requisitos processuais e requisitos materiais. Para que a reconvenção seja admissível torna-se indispensável uma conexão objectiva entre as duas acções, ou seja, um nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional.

O art. 266 nº2 a) CPC (mantendo o anterior texto do art.274 nº2 a) CPC/61) estabelece que a reconvenção é admissível quando “o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa”. Esta norma tem sido consensualmente interpretada no sentido de que deve verificar-se uma identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da acção e da reconvenção. Por sua vez, o facto jurídico que serve de fundamento à defesa consubstancia factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor fazendo nascer uma questão prejudicial relativamente à causa principal. Como acentua Miguel Mesquita “ao admitir os pedidos reconvencionais alicerçados numa relação de prejudicialidade-dependência, o legislador visa promover, para além da óbvia economia processual, a harmonia entre decisões” (Reconvenção e Excepção no Processo Civil, pág. 162).

Neste contexto, e sobre a aplicação da segunda parte da alínea a) do nº2 do art. 266 CPC, entende-se não ser suficiente que o réu alegue qualquer facto do qual possa extrair um efeito jurídico através da reconvenção, pois é necessário que o facto alegado produza “o efeito útil defensivo”, que seja capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.

A Autora propôs acção de reivindicação (art.1311 CC) contra os Réus, e alegando ser proprietária da fracção e a ocupação dos Réus sem consentimento dela, pediu o reconhecimento do direito de propriedade e a entrega do bem imóvel. Os Réus alegando terem um crédito sobre um terceiro, promitente vendedor da fracção, por incumprimento do contrato promessa de compra e venda, pediu em reconvenção a declaração do direito de retenção, de modo a impedir a entrega. Por isso, o pedido reconvencional emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa, verificando-se uma relação de prejudicialidade/dependência.

O art.755 nº1 f) do CC confere o direito de retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve tradição da coisa a que se reporta o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.442 CC. Trata-se de uma direito real de garantia que “ consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele” ( P.Lima/A.Varela, Código Civil Anotado, vol.I, pág.722 ).

Julgada a improcedência da acção de reivindicação por não se provar que a Autora é proprietária do bem reivindicado, questiona-se a implicação quanto aos pedidos reconvencionais.

O art.266 nº6 do CPC (mantendo a redacção do anterior art.274 nº6) preceitua – “A improcedência da acção e absolvição do réu da instância não obsta à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando seja dependente do formulado pelo autor”.

Em regra, a reconvenção é autónoma, mas há casos excepcionais em que a extinção da acção arrasta consigo a extinção da acção cruzada que é a reconvenção. Como escreveu Alberto dos Reis- “são os casos em que o pedido reconvencional em vez de ser autónomo perante o pedido do autor está, pelo contrário, na dependência dele” (Comentário, III, pág.480).

Tem-se entendido que o pedido reconvencional está na dependência do pedido do autor “quando somente seja apreciado se o pedido do autor for julgado procedente” (cf., por ex., Ac STJ de 24/10/2019 (proc nº 425/16), em www dgsi).

Muito embora não o tenha referido expressamente, depreende-se que o pedido reconvencional foi implicitamente feito para o caso da procedência da acção, como se extrai da alegação e do pedido de reconhecimento do direito de retenção e da condenação da reconvinda a abster-se de exercer ou praticar qualquer facto que que impeça ou diminua a utilização pelos reconvintes da fracção autónoma designada pela letra “G”.

No caso dos autos, a finalidade da reconvenção com o direito de retenção era a de impedir a entrega do bem à Autora, mas uma vez decidido que ela não é proprietária, a reconvenção deixa de ter sentido útil, carecendo de interesse processual em agir.

Na verdade, o interesse processual dos Réus, que não pode ser dissociado da utilidade da pretensão formulada, cessou com a improcedência da acção, pois, se jamais haverá lugar à entrega do bem à Autora, a reconvenção sobre o direito de retenção deixa de ter utilidade prático-jurídica, significando que a improcedência da acção configura uma decisão prejudicial em face do pedido reconvencional. Sabendo-se que o interesse em agir se afere pela necessidade da tutela jurisdicional efectiva, em função do direito subjectivo alegado, e, por consequência, pela necessidade alcançar no processo a proteção do interesse substancial, ele postula a utilidade da sentença para a reposição do direito supostamente violado, o que não sucede aqui relativamente à reconvenção, pois o direito de retenção como fundamento de recusa da entrega da coisa reivindicada

Ainda que o direito de retenção reconhecido ao promitente- comprador, dada a natureza de direito real de garantia, e a eficácia erga omnes, possa ser oponível ao proprietário estranho à dívida, designadamente se o bem foi adquirido em momento posterior à detenção e ao nascimento do direito de retenção ( cf, por ex., Ac STJ de 12/3/2015 ( proc nº 1775/11), em www dgsi ), a verdade é que apurando-se que a Autora não é proprietária, não existe a obrigação de entrega da coisa, como pressupõe o art.754 CC, pelo que se revela a inutilidade da apreciação da reconvenção, como bem se justificou no acórdão recorrido.

2.4. – Síntese conclusiva

1.A reconvenção configura uma acção cruzada ou contra-acção, facultativa, para cuja admissibilidade a lei exige requisitos processuais e requisitos materiais, exigindo-se uma conexão objectiva entre as duas acções, ou seja, um nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional.

2. Em regra, a reconvenção é autónoma, mas há casos excepcionais em que a extinção da acção implica a extinção da reconvenção, designadamente quando o pedido reconvencional “seja dependente do pedido formulado pelo autor”.

3. Verifica-se a dependência, para efeitos do art.266 nº6 (2ª parte) CPC, quando o pedido reconvencional só é apreciado se o pedido do autor for julgado procedente.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Condenar os recorrentes nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Janeiro de 2024.

Jorge Arcanjo (Relator)

António Magalhães

Maria João Tomé