Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANA BARATA BRITO | ||
Descritores: | RECURSO PENAL VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA DECISÃO ABSOLUTÓRIA RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DECISÃO CONDENATÓRIA RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA AUTO DE NOTÍCIA DECLARAÇÕES APRECIAÇÃO DA PROVA PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA AUTO-INCRIMINAÇÃO DIREITO AO SILÊNCIO | ||
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Data do Acordão: | 11/30/2022 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | JULGAMENTO ANULADO | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - O núcleo irredutível do nemo tenetur reside na não obrigatoriedade de contribuir para a autoincriminação através da palavra, no sentido de declaração prestada no processo e para o processo. II - Mesmo que se entenda que o direito ao silêncio nasce apenas quando o arguido é constituído como tal, o exercício deste direito, em concreto, pelo arguido, como arguido, não pode deixar de silenciar, apagando, tudo o que fora pelo mesmo declarado anteriormente, antes de ter adquirido a posição de arguido no processo. III - Estando em causa declarações como meio de prova, declarações que o sejam materialmente independentemente da forma que assumam no processo - transcritas em auto de declarações ou incorporadas em auto de ocorrência elaborado por um opc que regista o que ouviu de testemunhas, suspeitas ou não - se uma testemunha vem a adquirir posteriormente a posição de arguido e, nessa qualidade, exerce o direito ao silêncio, verifica-se o efeito expansivo do exercício do silêncio. IV - As informações prestadas a um órgão de polícia criminal, deslocado ao locus delictii para recolha de provas sobre o crime, constituem materialmente uma declaração. Esta informação/declaração, ao ser integrada em auto (de notícia ou de ocorrência) pelo opc, não perde a sua natureza de declaração, e passa a ser uma declaração prestada para o processo. V - Não se tratando, na origem, de uma proibição de prova, o auto em causa constitui prova legal e é em princípio amplamente valorável pelo tribunal de julgamento. No entanto, não o pode ser na parte em que reproduz declarações do arguido, ou de quem vem a ser constituído como tal e, nessa nova condição, exerce o direito ao silêncio, passando a existir aqui uma proibição de valoração de prova. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. Relatório 1.1. Os arguidos AA e M..., Unipessoal, Lda. vieram recorrer do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 29.11.2021, que os condenou como autores de um crime de violação de regras de segurança dos arts. 11.º, n.º 1 e 2 e 152.º-B, n.º 1, 2 e 4, al. b), do CP, art. 4.º do Decreto-Lei n.º 330/93, art. 6.º do Decreto-Lei n.º 348/93, arts. 36.º a 41.º do Decreto-Lei 50/2005, revertendo em condenação a decisão absolutória de 1.ª instância. Na sequência deste acórdão, o processo baixou ao tribunal de julgamento para determinação da pena, e, por acórdão de 27.10.2021, foi decidido aplicar ao arguido a pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa por igual período, e à arguida a pena de 270 dias de multa à taxa diária de 100,00 €. No presente recurso, os arguidos concluem: “1 - O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra revogou a decisão proferida em 1.ª instância, que tinha absolvido os arguidos dos crimes de que vinham acusados. 2 - Entendeu o douto acórdão agora recorrido que houve erro de julgamento e que se encontravam preenchidos os elementos típicos do crime de violação de regras de segurança. Tendo nessa sequência alterado a resposta à matéria de facto: a) aditado o ponto 4.1 aos factos não provados ; b) alterou a redacção do ponto dos factos provados; c) aditou aos factos provados os pontos 12, 13, 14, 15, 16 e 178 que foram dados como não provados pela 1ª instância: 3 - O Douto acórdão agora recorrido fundamentou a sua decisão de adicionar e alterar a matéria de facto, no seguinte: Em primeiro lugar nas fotos de fls 37 e 38 Em segundo lugar, o recorrente invoca o auto de ocorrência de fls. 35 e 36. Salienta que dele resulta que o agente da GNR que o elaborou, chegado ao local, encetou diligências perante os presentes, tendo apurado que a vítima “…se encontrava em cima da madeira carregada no pesado de mercadorias matrícula ..-..-HI, de uma altura cerca de quatro metros, ao efectuar o ajuste desta, terá perdido o equilíbrio vindo a cair directamente na via de piso betuminoso.” A propósito do mencionado auto, está alegado que “tal prova não poderá deixar de ser considerada válida, não podendo por isso o Tribunal deixar de a apreciar e valorá-la no âmbito dos princípios da livre convicção. 4 - Resulta ainda de tal decisão que: - O arguido não prestou declarações; - O auto de ocorrência é assinado por um tal de BB, e não é assinado pelo arguido; - O auto de ocorrência assinado por BB que como consta do acórdão “ No caso presente, é certo que o mencionado BB não foi ouvido em audiência de julgamento, ou seja, não foi prestado nesta um depoimento por uma testemunha a narrar o que ouviu do arguido”. - Considera o auto de ocorrência, prova documental junta aos autos, que contém declarações prestadas pelo arguido AA, no âmbito da mera recolha de informações, sendo verdade que o OPC agiu dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241.º e 242.º) e de medidas cautelares e de polícia (artigos 248.º e segs., designadamente o artigo 250º, todos do CPP). Como meio de prova pré-constituído, arrolado na acusação que reproduz as expressões ali reportadas pelo arguido AA ao OPC, em 19/2/2014, não precisava de ser lido, porque ninguém teve como necessária a reprodução de um conteúdo de todos conhecido e indiscutível. 5 - O Arguido não prestou declarações, em sede de julgamento, e as que prestou em sede de inquérito não foram lidas em audiência de julgamento. 6 - O formalismo dos interrogatórios de arguido é uma questão central no próprio valor do meio de prova, uma vinculação à forma querida pelo legislador, produto ou resultado de uma evolução histórica processual que concluiu ser este formalismo do interrogatório a melhor forma de acautelar direitos. 7 - Se o meio de prova “declarações de arguido” não cumpre a regra da “tipicidade de interrogatório” de arguido e surge através, de “conversa informal” ocorre o vício processual da inexistência do meio de prova “declarações de arguido”. 8 - O Douto acórdão recorrido ao julgar como julgou, violou dos arts. 140 a 144 do CPP, no que concerne às declarações do arguido. 9 - O Douto acórdão recorrido, considera o auto de ocorrência, prova documental junta aos autos, que contém declarações prestadas pelo arguido AA, no âmbito da mera recolha de informações, sendo verdade que o OPC agiu dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241.º e 242.º) e de medidas cautelares e de polícia (artigos 248.º e segs., designadamente o artigo 250º, todos do CPP). Mas, - O agente que elaborou o auto de ocorrência não assistiu nem presenciou os factos; - As alegadas declarações prestadas pelo arguido AA, não se encontram assinadas por este. - O Agente que recolheu informações e elaborou o auto de ocorrência não prestou declarações em sede de audiência de discussão e julgamento. 10 - A fase de julgamento tem como ponto alto a oralidade e a imediação, e pressupõe a possibilidade de o arguido, por intermédio do seu defensor, sugerir as perguntas necessárias para aquilatar da credibilidade do depoimento que se presta e infirmá-lo caso se mostre adequado. 11 - Sendo certo que, a não presença do agente que elaborou o auto de ocorrência na audiência de julgamento, a) inviabiliza que se fale e valorize “conversas informais” uma vez que não prestou depoimento; b) não possibilitou a identificação pela acusação em julgamento, que a pessoa com quem o agente falou quando da recolha de informações, era o arguido presente na audiência de julgamento; c) não possibilitou provar como e em que condições foi feita a identificação da pessoa que o agente fez constar no auto de ocorrência; d) não possibilitou confirmar em que local, data e hora foram obtidas as fotos que acompanharam o auto de ocorrência; e) não possibilitou saber quem “tirou” tais fotos e em que condições; f) não permitiu ao defensor exercer o contraditório sobre a obtenção de tais informações. 12 - Estão em causa direitos e garantias fundamentais do arguido, onde o juiz deve ser intransigente na sua defesa, como o foi o Colectivo de 1ª instância, assegurando que o processo seja justo, equitativo e transparente, o que passa por garantir o respeito por princípios fundamentais como sejam o da imediação e do contraditório. 13 - A conversão e valoração do auto de ocorrência como “conversas informais”, viola o disposto no artº 35 nº 2 da Constituição da República Portuguesa e o artº 63 do CPP. 14 - As forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, que a tal resultado conduz o excesso, o radicalismo, na análise destas situações e na fase inicial do processo. 15 - O caso dos autos é de fronteira, pois perante os factos e os indícios observados pelo agente que elaborou o auto de ocorrência quando chegou ao local, nomeadamente um camião, uma vítima, uma queda, sangue na via, ao saber quem é o proprietário do veiculo presente no local, e quem é o patrão da vitima, surge a possibilidade imediata, sem necessidade de obter mais indícios – da sua constituição como arguido. 16 - Para este caso em concreto, deve valer o disposto no artigo 58º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Constituição de arguido”, 1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que: e) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada. 2 - A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe. 5 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova. 17 - Face ao ordenamento português parece-nos indubitável que simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido. Porém no caso em concreto, perante os indícios e os sinais notórios no local, havia a imediata obrigação de constituição como arguidos dos agora condenados. 18 - E, as entidades policiais ao não fazerem de imediato a constituição de arguido dos suspeitos, se não agiram com má-fé ou com atraso propositado na constituição de arguido, tiveram uma deficiente conduta policial, que conduz a uma nulidade insanável. 19 - Perante a evidência dos factos e indícios notórios e visíveis no local, e a existência de uma vítima, sangue um camião e a identificação do proprietário e possuidor do camião existente no local, implicaria a IMEDIATA constituição de arguido do proprietário e do possuidor do mesmo, ao não o fazer existiu neste caso em particular, um atraso propositado na constituição de arguido, ou uma deficiente conduta policial que na dúvida, terá de ser valorada a favor do arguido, 20 - O conteúdo do auto de ocorrência, e as declarações ali referidas, a terem sido prestadas pelo arguido AA, ao serem valoradas e validadas pelo Tribunal da Relação, tal, constitui violação de lei ou fraude à lei, e obtenção de prova proibida. 21 - Ora, o artigo 58º nº 5 do CPP, comina com a nulidade probatória uma conduta policial que conduza a um resultado não querido pelo legislador. 22 - O sistema processual penal português é claro na distinção de figuras e efeitos e que a resolução das questões de fronteira passa pela clara delimitação da situação de facto e pela análise rigorosa da actuação policial, sendo a dúvida de facto resolvida a favor do arguido. 23 - No caso presente, perante as evidências de crime ao chegar ao local (veículo, queda, vítima sangue e conhecimento de quem é o proprietário e o possuidor do veiculo), é manifesta uma deficiente conduta policial a não constituição imediata como arguido do AA quando uma simples verbalização por parte do agente, (como acontece nos filmes) teria evitado esta duvida e esta zona de fronteira . 24 - Como consequência do que acabámos de expor o douto Acórdão da Relação de Coimbra agora recorrido ao declarar válido um meio de prova nulo cometeu um erro de direito que afectou a apreciação probatória e que constituí um erro de julgamento em matéria de direito, que levou a uma nulidade processual já que a consideração de um meio de prova nulo como é uma nulidade processual. 25- O douto acórdão recorrido violou igualmente o Disposto no artº 58 nº 5 do CPC ao valorar as alegadas declarações do arguido . 26 - O douto acórdão base nela decidir que recorrido ao decidir valor prova proibida, e com houve erro de julgamento e que se encontram preenchidos os elementos típicos do crime de violação de regras de segurança, tendo nessa sequência alterado a resposta à matéria de facto, aditado o ponto 4.1 aos factos não provados ; alterou a redacção do ponto dos factos provados e aditou aos factos provados os pontos 12, 13, 14, 15, 16 e 178 que foram dados como não provados pela 1ª instância, fê-lo violando direitos fundamentais dos arguidos. 27 – O douto acórdão Recorrido ao alterar a matéria de facto e ao decidir como decidiu, validando prova nula ou proibida violou o disposto nos artº 58º nº 5, 63, 127, 129 nº 1, 140, 141, 142, 143, 144, 241, 242, 248, 249, 250. 343 nº 1 , 344 nº 1, 355 e 356 nº 1 al) b) e nº 7 Todos do Código Processo Penal, e artº 35.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa. Assim, sem menosprezo pelo douto acórdão de que se recorre e sempre com o mui douto suprimento de vv. Exas., espera-se que: o presente recurso seja julgado procedente, mantendo-se o decidido em 1ª instância, mantendo-se a matéria de facto ali considerada provada e não provada e a absolvição dos arguidos como ali foi decidido. O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo: “- A decisão do Tribunal da Relação de Coimbra em crise não assentou em prova proibida. - Foi feita criteriosa e acertada apreciação da prova. - Foi feita correcta e acertada interpretação e aplicação do Direito. - O acórdão está devidamente fundamentado. - Não houve violação de lei. - O recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se o decidido.”” Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer, pronunciando-se desenvolvidamente no sentido da improcedência do recurso, e concluindo: “1.ª- Considera-se que este STJ é competente para conhecer do recurso interposto onde se impugnou o acórdão do Tribunal da Relação que, revertendo a decisão absolutória da 1.ª instância, proferiu decisão condenatória, pese embora a pena em concreto tenha sido determinada por esta 1.ª instância em cumprimento da decisão referida da 2.ª instância; 2.ª- A questão fundamental suscitada no recurso relaciona-se com a valoração realizada pelo Tribunal da Relação do conteúdo do auto elaborado pelo órgão de polícia criminal, fruto das diligências no local onde os factos ocorreram e logo após o sucedido, visto que no mesmo constavam, nomeadamente, informações recolhidas junto da pessoa (empregador) que mais tarde viria a ser constituída como arguido; 3.ª– Na lei processual penal nada obsta a que se possa valorar auto elaborado nos termos mencionados em virtude de estarmos no âmbito das medidas cautelares e de polícia, sendo certo que, naquele momento, não estava indiciada a possível responsabilidade criminal da referida pessoa que deu algumas informações aos agentes policiais sobre o sinistro; 4.ª- Não se mostra violada qualquer regra processual uma vez que, face à situação de facto em apreço, não existia fundamento para a constituição como arguido da pessoa em causa, não sendo de aplicar o disposto no artigo 58.º, n.º 5 do CPP ao caso, como pretendem os recorrentes; 5.ª- A hipotética violação de qualquer direito do arguido nunca poderia gerar a existência de nulidade, como o recorrente parece pretender com o recurso, antes se traduzindo num erro de direito com possíveis implicações no sentido da decisão final; 6.ª- Termos em que deverá ser julgado improcedente o recurso, caso se admita o seu conhecimento por este Supremo Tribunal de Justiça.” O arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência. 1.2. O acórdão recorrido, na parte que ora releva, tem o seguinte teor: “2) Do erro de julgamento: O recorrente considera que os factos dados como não provados reportados às circunstâncias em que caiu a vítima e onde se encontrava quando caíu, reportados aos pontos 5, 6, 12, 13, 15 a 17 da acusação, devem ser considerados como provados. O erro de julgamento, consagrado no artigo 412.º, n.º 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Neste âmbito, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exatamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, do CPP: «3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) - As provas que devem ser renovadas». A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Em síntese, o recorrente deve, pois, explicitar por que razão a prova por si indicada “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. Mais importa deixar expresso que, perante o objeto da ação penal, tal como se mostra definido pela acusação ou pela pronúncia, havendo-a, se os meios de prova ou de obtenção de prova (thema probandum) produzidos em julgamento, consentirem duas ou mais decisões de facto (thema decidendum) e o julgador, fundamentadamente, optar por uma delas em detrimento da outra ou outras, a decisão que proferir sobre matéria de facto é, em princípio, inatacável, ainda que o recorrente haja feito do thema probandum uma leitura diversa da levada a cabo pelo julgador. E, em sede de apreciação pelo Tribunal Superior, o recorrente não lhe poderá opor a sua convicção e reclamar que por ela opte ou a sufrague, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova e esquecendo que, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, “Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.” Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respetiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei. É possível, então, afirmar que o recorrente traz aos autos elementos que imponham uma decisão diversa da do tribunal a quo? Sustenta a sua pretensão em determinada prova documental: Em primeiro lugar, depois de chamar a atenção para o teor dos factos provados e para a referência que é feita ao depoimento da testemunha CC, em sede de fundamentação sobre a matéria de facto, a saber, “…a carga do seu camião estava a ser feita com uma máquina de rechega separada do veículo, por norma a carga tem que ser composta manualmente. Tal máquina era do arguido e manobrada por este…”, e, ainda, para a que é feita à conjugação dos meios de prova, a saber, “…patente que o DD sofreu uma queda em altura…”, o recorrente foca a sua atenção na prova documental consubstanciada nas fotos de fls. 37 e 38. “Fls. 37: foto 1: donde resulta a verificação dos vestígios de sangue da vítima junto à parte dianteira esquerda da zona de carga do veículo, local onde tombou a vítima – facto do ponto 5 dos factos provados; Foto 2: vista de toda a zona lateral esquerda e parte da traseira da viatura em causa. Desta, resulta como inequívoco que a parte da frente da caixa de carga do veículo tinha já carregada três “fiadas” de carga de toros, que aparentemente estão devidamente alinhados na sua configuração de carga, encontrando-se em carga uma outra “fiada”, sensivelmente a meio, com toros desalinhados na sua composição de carga e a parte da retaguarda da caixa de carga aparentemente vazia. Por sua vez, é visível, emergindo do lado direito da caixa de carga, o braço de elevação de carga da máquina de rechega! Quanto a fls. 38, está alegado: Fls. 38, foto 3: - visualiza-se a traseira da viatura na qual era efetuada a carga e parte lateral direita da mesma e junto à aludida traseira, do lado direito, a máquina de rechega com o respetivo braço de elevação de carga pendente sobre a carga já suportada pelo veículo, conforme aludimos na análise da foto precedente. Visualiza-se ainda a última “fiada” da carga como incompleta e com os toros de madeira que a constituem desalinhados em altura e entre si!” Em segundo lugar, o recorrente invoca o auto de ocorrência de fls. 35 e 36. Salienta que dele resulta que o agente da GNR que o elaborou, chegado ao local, encetou diligências perante os presentes, tendo apurado que a vítima “…se encontrava em cima da madeira carregada no pesado de mercadorias matrícula ..-..-HI, de uma altura cerca de quatro metros, ao efetuar o ajuste desta, terá perdido o equilíbrio vindo a cair diretamente na via de piso betuminoso.” A propósito do mencionado auto, está alegado que “tal prova não poderá deixar de ser considerada válida, não podendo por isso o Tribunal deixar de a apreciar e valorá-la no âmbito dos princípios da livre convicção.” Em terceiro lugar, o recorrente faz apelo ao relatório de avaliação de riscos profissionais de fls. 204 a 215. Faz notar que nele se deixa consignado, a fls. 205 verso, que “A M... desempenha as suas atividades nas matas quee vai comprando aos diferentes clientes procedendo…Carregamento da camioneta com ajuda da grua do tractor. Todas estas atividades são feitas pelo senhor AA e um colaborador”, e, ainda, a fls. 210 verso e 211, que “Durante a operação de carga não deve estar ninguém na plataforma do veículo ou na cabine para além do operador da grua. Todos os outros trabalhadores devem manter uma distância de segurança face aos toros fora da zona de risco de queda.” Face à prova por si elencada, acabada de ser mencionada, o recorrente, na sua Motivação, alega expressamente o seguinte: “Ora, ponderada a factualidade já consubstanciada como provada pelo douto acórdão já descriminada – da qual não poderemos deixar de realçar que a vítima estava a proceder ao carregamento de troncos no veículo pesado, que sofreu uma queda em altura e que tombou sobre a via junto à parte dianteira esquerda da zona de carga do ceículo – conjugada com a análise da prova consubstanciada a fls. 37 e 38, aplicando as regras da livre apreciação da prova, não poderá o “homem comum” deixar de concluir que a vítima se encontrava sobre a carga já suportada pelo veículo e foi de lá que caiu para o solo! Não é possível qualquer outro juízo valorativo, perdoe-se a imodéstia!!!! Mas mesmo que tal só por si não fosse suficiente, necessariamente também tal conclusão deveria resultar como corolário da apreciação daquela prova com a dos aludidos autos de ocorrência e relatório de avaliação de riscos profissionais. Temos, assim, como indelével a prova de que os factos dados como não provados reportados às circunstâncias em que caiu a vítima e onde se encontrava quando caiu, face à aludida prova, deveriam ter sido dados como provados. E também resultando da factualidade dada como provada no douto acórdão que a vítima estava a proceder à operação de carregamento de troncos no veículo pesado já identificado (facto 3 dos provados), que o carregamento dos troncos foi efectuado mecanicamente por intermédio de uma grua acoplada a um tractor (facto 4 dos provados) que por norma a carga tem que ser composta manualmente e que a máquina era do arguido e manobrada por este (facto provado no âmbito da fundamentação da matéria de facto), conjugando tal factualidade com a restante prova documental já aludida, também necessariamente de concluir se torna que a vítima só podia exercer o facto provado – operação de carregamento de troncos – na composição da carga que estava a ser efectuada pelo meio mecânico manobrado pelo arguido e sob as ordens e direcção do mesmo, devendo como tal ser considerados como provados os restantes aludidos factos de “porque se encontrava aí e por iniciativa de quem” dados como não provados!” Relativamente às fotos de fls. 37 e 38, dúvidas não podem existir que correspondem ao relatório fotográfico de local e vestígios dos factos que ocupa agora a nossa atenção, as quais foram obtidas em 19/2/2014, momentos após a Patrulha da GNR ter chegado ao local e na sequência de conversas mantidas com AA e CC, num momento em que a vítima se encontrava dentro da ambulância a ser assistido. Tal resulta claro do penúltimo parágrafo de fls. 36 (auto de ocorrência assinado por BB). Ora, não havendo notícia de qualquer outro motivo que possa ter justificado a presença da GNR no local, nem constando dos autos que os arguidos, em algum momento, tenham colocado em crise as fotos de fls. 37 e 38, concretamente, que tenham negado que os vestígios de sangue eram da pessoa que veio a falecer ou que as fotografias diziam respeito ao local dos trabalhos, em especial quanto ao veículo onde estava a carga de madeira, sendo certo que nenhuma referência foi feita em audiência de julgamento a que o veículo pesado tenha sido movimentado antes da chegada da GNR, nem que o falecido tivesse subido a alguma árvore (duas hipóteses, portanto, sem qualquer base factual para a sua formulação), não podemos deixar de considerar que a vítima se encontrava sobre a carga já suportada pelo veículo e foi de lá que caiu para o solo. Aliás, tal conclusão sai reforçada pelo que consta do Auto de Ocorrência de fls. 35 e 36. Com efeito, dele consta expressamente o seguinte: “(…) Daquilo que pudemos apurar através do patrão/testemunha identificado como: AA, (…), o acidente terá ocorrido no momento em que o indivíduo identificado como: DD, (…), se encontrava em cima da madeira carregada no pesado de mercadorias matrícula ..-..-HI, de uma altura cerca de quatro (4) metros, ao efetuar o ajuste desta, terá perdido o equilíbrio vindo a cair diretamente na via de piso betuminoso. Patrão testemunha AA prontamente com testemunha/condutor do pesado de mercadorias, identificado como: CC, (…) prestaram auxílio à vítima, segundo os mesmos, esta encontrava-se inconsciente e a sangrar abundantemente de um ouvido, perante tais factos as testemunhas entraram em contacto de imediato com o 112. Ao apurar junto das testemunhas, acerca de equipamentos de segurança, estes afirmaram que a vítima se fazia acompanhar de capacete no momento do acidente. A Patrulha não pôde confirmar tal situação, dado que no momento da chegada ao local, a vítima j´s se encontrava dentro da ambulância a ser assistido, sendo apenas visível um capacete em cima da viatura que estava a ser carregada. (…).” Do que acaba de ser transcrito, resulta claro que DD se encontrava em cima da madeira carregada no pesado de mercadorias matrícula ..-..-HI, de uma altura cerca de quatro (4) metros, ao efetuar o ajuste desta. Foi o próprio AA que, poucos minutos após o acidente, o disse ao militar da GNR que elaborou o referido auto, antes da instauração do inquérito e da subsequente constituição enquanto arguido. Acompanhamos o recorrente quando este defende que estamos perante prova válida, a ser apreciada livremente pelo Tribunal, no que diz respeito a declarações prestadas por um cidadão perante OPC, antes da instauração do inquérito (e mesmo até antes da sua constituição como arguido, defende alguma jurisprudência), pelo menos em momento ainda incipiente em que o OPC investiga uma determinada ocorrência. Neste sentido, veja-se o acórdão de 30/3/2011, Processo n. 370/08.2TACVL.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt.: “(…) Com a proibição das referidas “conversas informais” pretendeu o legislador impedir a supressão do direito ao silêncio do arguido, silêncio esse que seria ilegitimamente contornado através de “depoimento de ouvir dizer” das testemunhas, mas não os depoimentos de autoridades que relataram o conteúdo de diligências de investigação. Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido. A partir da aquisição dessa qualidade, aquele assume um estatuto próprio, com direitos e deveres, entre os quais, o de não se auto-incriminar. Daí que as suas declarações só possam ser recolhidas e valoradas nos precisos termos legais, não detendo validade probatória as “conversas informais”. Em fase anterior, não há ainda inquérito instaurado, não existem ainda arguidos constituídos. As informações que forem então recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo. Situação assaz diversa se verifica em relação às “conversas informais” ocorridas no decurso do inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende com as mesmas suprir o silêncio daquele por depoimentos de agentes de polícia.” Com efeito, se o legislador tivesse querido excluir aquilo que os órgãos de polícia criminal fizessem constar dos autos de ocorrência que elaboram, enquanto reproduzem declarações alcançadas através de quem ainda não é arguido, em circunstâncias como as descritas nos autos, teria considerado, de um modo expresso, tal prova nula. Não tendo optado por esse caminho, o julgador deve apreciar o que deles consta, nos termos do artigo 127.º, do CPP, tanto mais que não se indicia qualquer deficiente conduta policial. No caso presente, é certo que o mencionado BB não foi ouvido em audiência de julgamento, ou seja, não foi prestado nesta um depoimento por uma testemunha a narrar o que ouviu do arguido. No entanto, o auto de ocorrência, enquanto prova documental junta aos autos, contém declarações prestadas por AA, no âmbito da mera recolha de informações, sendo verdade que o OPC agiu dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241.º e 242.º) e de medidas cautelares e de polícia (artigos 248.º e segs., designadamente o artigo 250º, todos do CPP) e, sem qualquer má-fé, ouviu, de modo espontâneo, e sem qualquer condicionamento, AA. Há que ter presente que existem provas que têm que ser produzidas em audiência e outras, chamadas pré-constituídas, de natureza material, documental, pericial, prova produzida por carta rogatória ou precatória que, uma vez obtidas, são incorporadas nos autos, em regra antes da acusação onde são arroladas como meio de prova da matéria da acusação, ali sendo examinadas e discutidas, de acordo com a sua natureza. Constitui jurisprudência sedimentada que as provas pré-constituídas não têm que ser lidas ou reproduzidas, enquanto tal, na audiência, naturalmente desde que suscetíveis de ser submetidos à discussão e exercício do contraditório. No caso presente, o auto de ocorrência de fls. 35 e 36, como aliás, outra prova documental, foi indicado, a fls. 337, como meio de prova da matéria da acusação. Como meio de prova pré-constituído, arrolado na acusação que reproduz as expressões ali reportadas pelo arguido AA ao OPC, em 19/2/2014, não precisava de ser lido, porque ninguém teve como necessária a reprodução de um conteúdo de todos conhecido e indiscutível. Por fim, estando a decorrer a operação de carga, face ao que é salientado do relatório de fls. 204 a 215, qualquer trabalhador devia manter uma distância de segurança face aos toros fora da zona de risco de queda. Mais importa deixar expresso que, perante a descrição dos factos, nenhum motivo existe para não deixar de concluir que DD se encontrava a trabalhar sob as ordens e direção do arguido AA, no momento em que caiu da galera, na medida em que nada foi trazido aos autos no sentido de que tenha agido por sua iniciativa e contra as ordens do seu patrão, em matéria de segurança, não podendo ser esquecido que, do ponto 3 dos factos dados como provados, consta o seguinte: “(…) e seguindo as instruções do arguido, (…)”. Como tal, a matéria de facto a matéria de facto agora em causa, nos termos, do artigo 431.º, b), do CPP, deve ser alterada. Antes de a concretizarmos, há que deixar aqui expresso que o ponto 3 dos factos provados quando se refere a “CC” incorre em manifesto lapso de escrita, pois quem subiu ao cimo da zona de carga foi “DD”, o que será tido em consideração, já de seguida, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, b), do CPP. Em consequência, deve ser aditado o ponto 4.1. aos factos dados como provados, com o seguinte teor: “De seguida, e em cumprimento das instruções veiculadas pela sua entidade patronal, DD subiu ao cimo da zona de carga, que se situava a cerca de 4 metros do solo, a fim de ajustar manualmente os troncos, equipado apenas com um capacete.” Por sua vez, o ponto 5 dos factos provados deve passar a ter a seguinte redação: “5. Quando se encontrava a proceder a tal ajuste manual, de forma não concretamente apurada, DD perdeu o equilíbrio e caiu e tombou sobre a via de piso betuminoso, junto à parte dianteira esquerda da zona de carga do veículo, ficando de imediato inconsciente e a sangrar do ouvido esquerdo.” Mais devem ser aditados aos factos provados os seguintes pontos que foram dados como não provados pela 1ª instância: “12 - As circunstâncias em que ocorreu o acidente só surgiram em virtude de DD ter subido ao topo da carga para efetuar ajustes manuais, o que se traduz num procedimento incorreto, uma vez que o carregamento deveria ser feito exclusivamente de forma mecânica, por intermédio da grua, não devendo aliás circular qualquer pessoa no raio de ação da referida grua. 13 - A queda só ocorreu em virtude de o trabalhador não dispor de equipamento de proteção individual contra quedas em altura, designadamente cinto de segurança ou arnês de segurança, com instalação da respetiva linha devida, que no caso concreto era possível instalar na estrutura metálica da camioneta. 14 – Competia a AA zelar pela segurança dos trabalhadores no terreno e pela conformidade com a lei da maquinaria e dos equipamentos de proteção individual usada pela firma M..., Unipessoal, Lda. 15 - Ao atuar da forma descrita, por um lado, dando instruções ao ofendido para subir ao topo da carga para efetuar ajustes manuais e, por outro lado, ao não lhe fornecer o equipamento de proteção individual adequado contra quedas em altura, agiu o arguido AA com falta de cuidado que o dever geral de prudência aconselha; não cumprindo com as disposições legais referentes à segurança e saúde dos trabalhadores no local de trabalho, as quais era capaz de adotar e que devia ter adotado para evitar um perigo que podia e devia ter previsto, mas que não previu, dando, pois, causa ao acidente, que teve aquelas lesões para vítima e das quais resultou a sua morte. 16 - Ao praticar os atos. descritos agiu o arguido AA de forma livre, voluntária e consciente, em violação do dever objetivo de cuidado e das citadas regras de segurança, sempre em nome e no interesse da sociedade M..., Unipessoal, Lda., bem como no seu próprio interesse, bem sabendo que não podia atuar como atuou. 17 - Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.” 2. Fundamentação Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), a questão a apreciar respeita a saber da possibilidade de valoração de um “auto de ocorrência” na parte em que contém e incorpora declarações de pessoa que vem a ocupar no processo a posição de arguido; e se, nessa parte, o auto de ocorrência pode contribuir para a condenação do acusado. De notar que, encontrando-se os poderes de cognição do Supremo circunscritos exclusivamente a matéria de direito, nos termos dos art. 434.º do CPP, não está o mesmo impedido de conhecer da presente questão. Podendo, embora, repercutir-se na decisão sobre a matéria de facto, não será desta (matéria de facto) que o Supremo irá conhecer, mas tão só da legalidade da prova, o que é ainda um problema de direito. Adite-se que a eventual valoração de prova proibida, ou de prova de valoração proibida (que não é a mesma coisa) pode vir a traduzir, por exemplo, um vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP (erro notório na apreciação da prova), de que o Supremo poderia sempre conhecer oficiosamente. O recorrente situa o problema que coloca numa violação do contraditório e das garantias de defesa (art. 32.º, n.º 5, da CRP e 63.º do CPP). Argumenta que “o auto de ocorrência, prova documental junta aos autos, contém declarações prestadas pelo arguido AA, no âmbito da mera recolha de informações”, que o OPC agiu, é certo, “dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241.º e 242.º) e de medidas cautelares e de polícia (artigos 248.º e segs., designadamente o artigo 250.º, todos do CPP)”, mas “o agente que elaborou o auto de ocorrência não assistiu nem presenciou os factos, as alegadas declarações prestadas pelo arguido não se encontram assinadas por este e o agente que recolheu as informações e elaborou o auto não prestou declarações em julgamento”. Todas as asserções transcritas correspondem, efectivamente, à realidade do processo e do julgamento. Daí que o recorrente prossiga defendendo que “a não presença do agente que elaborou o auto de ocorrência na audiência de julgamento inviabilizou que se fale e valorize “conversas informais” uma vez que não prestou depoimento; não possibilitou a identificação pela acusação em julgamento, que a pessoa com quem o agente falou quando da recolha de informações, era o arguido presente na audiência de julgamento; não possibilitou provar como e em que condições foi feita a identificação da pessoa que o agente fez constar no auto de ocorrência; não possibilitou confirmar em que local, data e hora foram obtidas as fotos que acompanharam o auto de ocorrência; não possibilitou saber quem “tirou” tais fotos e em que condições; não permitiu ao defensor exercer o contraditório sobre a obtenção de tais informações.” O Ministério Público pronuncia-se no sentido da confirmação do acórdão recorrido. E o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Supremo adversaria que “na lei processual penal nada obsta a que se possa valorar auto elaborado nos termos mencionados em virtude de estarmos no âmbito das medidas cautelares e de polícia, sendo certo que, naquele momento, não estava indiciada a possível responsabilidade criminal da referida pessoa que deu algumas informações aos agentes policiais sobre o sinistro”; que “não se mostra violada qualquer regra processual uma vez que, face à situação de facto em apreço, não existia fundamento para a constituição como arguido da pessoa em causa, não sendo de aplicar o disposto no artigo 58.º, n.º 5 do CPP ao caso, como pretendem os recorrentes”; que “a hipotética violação de qualquer direito do arguido nunca poderia gerar a existência de nulidade, como o recorrente parece pretender com o recurso, antes se traduzindo num erro de direito com possíveis implicações no sentido da decisão final.” Apresenta-se incontroverso que o documento ora em causa, denominado no processo como “auto de ocorrência”, não é um auto de notícia no sentido do art. 243.º do CPP. Ou seja, não é um auto com a força probatória ali reconhecida ao elaborado por órgão de polícia criminal que presencia a infracção. No caso em análise, o soldado da GNR subscritor do auto de ocorrência compareceu no local após a morte da vítima. Descreveu o resultado da sua observação, colheu “os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos” (art. 243.º, n.º 1, al. c), do CPP). E é neste contexto que o futuro arguido terá sido ouvido sobre as circunstâncias em que a morte da vítima ocorreu. Não se mostra controvertida a legalidade do auto de ocorrência, aceitando-a até, expressamente, o recorrente. Mostra-se sim discutível, e discutida, a sua valoração em julgamento. Tratar-se-ia assim, não de uma proibição de prova em sentido puro – como vício mais grave que afecta qualquer possibilidade de apreciação da prova (art. 126º, nº s 1 e 3, do CPP) e respeita a provas obtidas mediante violação de direitos fundamentais, de tutela constitucional (art. 32.º, n.º 8 da CRP) –, mas de uma ilegalidade no momento da apreciação da prova, a qual pode traduzir-se numa proibição de valoração de prova. Na parte que mais releva para o recurso, no acórdão de 1.ª instância constava como provado o seguinte: “1 - AA é sócio-gerente da M..., Unipessoal, Lda., NIPC ..., que tem por objecto o abate e corte de árvcres, exploração florestal e comércio de madeiras, exercendo funções de direcção e competindo-lhe contratar trabalhadores, a quem dá ordens e instruções e a quem paga o respectivo salário. 2 - DD trabalhou para a mencionada empresa, sob as ordens e instruções e por conta do arguido, desde data não concretamente determinada e até ao dia ... de fevereiro de 2014, desempenhando funções de motosserrista, auferindo mensalmente o equivalente ao salário mínimo nacional. 3 - No âmbito das funções que desempenhava na sociedade arguida, e seguindo as instruções do arguido, no dia ... de Fevereiro de 2014, cerca das 10 horas, já depois do abate e corte de pinheiros, DD estava a proceder à operação de carregamento de troncos no veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-..-H II na berma da Estrada Nacional ...50, localidade do ..., ..., 4 - O carregamento dos troncos foi efectuado mecanicamente, por intermédio de uma grua acoplada a um tractor. 5 - De forma não concretamente apurada, DD caiu de local e altura não concretamente apurados e tombou sobre a via de piso betuminoso, junto à parte dianteira esquerda da zona de carga do veículo, ficando de imediato inconsciente e a sangrar do ouvido esquerdo.” (itálico nosso) E a convicção do tribunal de julgamento, mormente quanto aos factos não provados, foi justificada como segue: Com efeito, nenhuma das testemunhas assistiu ao acidente, embora seja patente que o DD sofreu uma queda em altura - como resulta, quanto mais não seja, da conjugação dos esclarecimentos da senhora perita com o depoimento da testemunha CC, que o viu caído no chão. Porém, em que circunstâncias caiu a vítima, onde se encontrava imediatamente antes de cair (nomeadamente a que altura), porque se encontrava aí (onde quer que fosse) e por iniciativa de quem, não foi possível ao tribunal apurar - tendo em conta a prova produzida. O tribunal não desconhece que o inquérito de acidente de trabalho de fls. 29 contem a versão que foi plasmada na acusação; porém, a mesmo foi elaborado a 6 de Março de 2014 (cerca de 15 dias depois do ocorrido), com base nas fotos de fls.37 e 38 e em depoimentos de pessoas cuja identidade se desconhece e que decerto não foram ouvidas em audiência de julgamento, pois as que o foram declararam nada ter presenciado (para além do já referido), tendo-se o técnico deslocado ao local dias depois do ocorrido, quando decerto nenhum vestígio seria visível, não sendo com certeza sequer possível ao subscritor de tal inquérito determinar o local da queda, nem o locai onde se encontrava o veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-..-HI. Aliás, a foto i de fls. 37 refere-se a "Vestígios de sangue do indivíduo acidentado", enquanto a foto 2 se refere a "carga onde se encontrava o individuo"; porém, esta última informação não encontra corroboração em nenhum outro elemento de prova, pois quando as fotografias foram tiradas, a vítima já se encontrava na ambulância (cf. auto de ocorrência de fls. 35 e 36), sendo certo que o tribunal não pode valorar "depoimentos” plasmados no referido auto feitos pelo arguido que em audiência de julgamento nem prestou declarações. Quanto ao local. da queda, não se apurou também como era o mesmo, designadamente se havia árvores ou outros sítios em altura de onde a vítima pudesse ter caído. Aliás, mesmo que se entendesse ser possível dar como provado que a vítima caíu da caixa de carga (ou galera) do referido veículo, em que ponto da mesma se encontrava a vítima, sendo certo que, de acordo com a foto n.º2 (fls.37), existiam diversas alturas da carga (ainda ·que não mensuráveis pela fotografia)? E mais, qual o grau de certeza de que o referido veículo, quando foi fotografado, se encontrava no mesmo sítio em que encontrava quando ocorreu a queda? Assim, da prova produzida apenas resultou que o DD sofreu uma queda em altura, que causou lesões que lhe determinaram a morte, desconhecendo-se, porém, as circunstâncias concretas dessa queda.” Como se vê, o tribunal de julgamento expurgara do elenco das provas valoráveis – valoráveis para a condenação, e só deste sentido de decisão cumpre conhecer aqui – o auto de notícia na parte em que contém, incorporando-as, declarações do futuro arguido. Arguido que, em julgamento, exerceu o direito ao silêncio. E como se vê também no acórdão do TRC proferido em 25.11.2020 (decisão que está em causa no presente recurso), a alteração na matéria de facto operada no acórdão recorrido encontra justificação na viabilidade de apreciação total do auto de notícia, mormente na parte em que incorpora declarações daquele que vem a ser arguido, em posição divergente da do tribunal de julgamento. Considera-o prova documental, autónoma e separada das declarações que incorpora. Disse-se ali, designadamente: “Situação assaz diversa se verifica em relação às “conversas informais” ocorridas no decurso do inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende com as mesmas suprir o silêncio daquele por depoimentos de agentes de polícia.” Com efeito, se o legislador tivesse querido excluir aquilo que os órgãos de polícia criminal fizessem constar dos autos de ocorrência que elaboram, enquanto reproduzem declarações alcançadas através de quem ainda não é arguido, em circunstâncias como as descritas nos autos, teria considerado, de um modo expresso, tal prova nula. Não tendo optado por esse caminho, o julgador deve apreciar o que deles consta, nos termos do artigo 127.º, do CPP, tanto mais que não se indicia qualquer deficiente conduta policial. No caso presente, é certo que o mencionado BB não foi ouvido em audiência de julgamento, ou seja, não foi prestado nesta um depoimento por uma testemunha a narrar o que ouviu do arguido. No entanto, o auto de ocorrência, enquanto prova documental junta aos autos, contém declarações prestadas por AA, no âmbito da mera recolha de informações, sendo verdade que o OPC agiu dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241.º e 242.º) e de medidas cautelares e de polícia (artigos 248.º e segs., designadamente o artigo 250º, todos do CPP) e, sem qualquer má-fé, ouviu, de modo espontâneo, e sem qualquer condicionamento, AA. Há que ter presente que existem provas que têm de ser produzidas em audiência e outras, chamadas pré-constituídas, de natureza material, documental, pericial, prova produzida por carta rogatória ou precatória que, uma vez obtidas, são incorporadas nos autos, em regra antes da acusação onde são arroladas como meio de prova da matéria da acusação, ali sendo examinadas e discutidas, de acordo com a sua natureza. Constitui jurisprudência sedimentada que as provas pré-constituídas não têm de ser lidas ou reproduzidas, enquanto tal, na audiência, naturalmente desde que suscetíveis de ser submetidos à discussão e exercício do contraditório. No caso presente, o auto de ocorrência de fls. 35 e 36, como aliás, outra prova documental, foi indicado, a fls. 337, como meio de prova da matéria da acusação. Como meio de prova pré-constituído, arrolado na acusação que reproduz as expressões ali reportadas pelo arguido AA ao OPC, em 19/2/2014, não precisava de ser lido, porque ninguém teve como necessária a reprodução de um conteúdo de todos conhecido e indiscutível.” A questão colocada à apreciação do Supremo respeita, pois, a saber da possibilidade de valoração de um auto de notícia na parte em que contém e integra declarações de pessoa que vem a ocupar no processo a posição de arguido; e se, nesta parte, o auto de notícia pode contribuir para a condenação do acusado. Acusado que, em concreto, se reservou ao silêncio em julgamento, inexistindo no processo quaisquer outras declarações suas, passíveis de valoração. Em suma, aquilo que se sabe sobre o que o arguido terá dito no processo a respeito de factos inquestionavelmente essenciais é o que consta do auto de ocorrência. E ali consta, como tendo sido ouvido da boca do futuro arguido pelo órgão de polícia criminal subscritor do auto, matéria sensível e altamente relevante para prova dos factos essenciais imputados na acusação. E consequentemente, altamente reveladora da sua responsabilização criminal. Acresce que o órgão de polícia criminal subscritor do auto não foi ouvido como testemunha no julgamento. O que, como bem sinaliza o recorrente, limitou necessariamente o exercício do contraditório e o direito de defesa. Contrariamente ao que se elevou no acórdão recorrido, não é de um problema de legalidade da prova, na vertente da aquisição e da produção, que se trata aqui (o auto de ocorrência não enferma de ilegalidade a se); não é também um problema de “conversas informais” ardilosas (no momento da elaboração do auto não se equacionava de facto a necessidade de imediata constituição de arguido); não é tão pouco um problema de ausência de leitura de auto em julgamento (a leitura, a ter sido feita, nada alteraria). Trata-se, sim, de um problema de proibição de valoração de prova, decorrente do princípio do nemo tenetur. E, em concreto, ocorreu ainda uma compressão dos direitos de defesa e do contraditório em julgamento, nos termos enunciados pelo recorrente. Sendo o auto de ocorrência uma prova legal, as declarações que o integram podem, por exemplo, fornecer pistas de investigação e contribuir para a evolução do inquérito e para a recolha de novas provas. A doutrina da “árvore envenenada” não se lhes aplica. As declarações de testemunhas ouvidas nos termos do art. 243.º, n.º 1, al. c), do CPP, mesmo quando estas veem mais tarde a ocupar no processo a posição de arguido, não contaminam o resto da prova, toda ela validamente obtida. Nos presentes autos, é neste contexto que o recorrente terá sido ouvido sobre as circunstâncias em que a morte da vítima aconteceu, tal como consta do auto de ocorrência. As suas declarações integraram licitamente o auto. Mas ao adquirir o estatuto de arguido no decurso do inquérito e ao exercer o correspondente direito ao silêncio, o auto de ocorrência deixa de poder ser valorado nessa parte contra si, em julgamento. Em processo penal vigora o princípio da legalidade da prova, sendo admissíveis as provas não proibidas por lei (art. 125.º do CPP). Serão proibidas as provas obtidas “mediante uma compressão dos direitos fundamentais em termos não consentâneos com a autorização constitucional, ainda que aparentemente a prova seja admissível e apenas tenham sido violadas as formalidades processuais necessárias para a levar a cabo” (Conde Correia, Contributo para a análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, 1999, p. 159). O art. 32.º da CRP trata das garantias do processo criminal, preceituando no n.º 1 que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa. O n.º 8 fere de nulidade todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações. A Constituição da República Portuguesa cria ainda “um amplo catálogo de direitos fundamentais, concretizadores da ideia de dignidade da pessoa humana e cuja restrição obedece a mecanismos pré definidos e muito restritivos (art. 18º da CRP)” (Conde Correia, loc. cit. p. 157). Em processo penal, o arguido pode reservar-se ao silêncio no exercício de um direito reconhecido nos arts. 61.º, n.º 1, al. d), 132.º, n.º 2, 141.º, n.º 4, a), e 343.º, n.º 1, do CPP e considerado como de tutela constitucional implícita. O direito ao silêncio é a “primeira e imediata expressão da liberdade” (Dá Mesquita, A Prova do Crime e o Que se Disse Antes do Julgamento, 2011, p. 555). O aproveitamento de provas obtidas através do arguido pressupõe que tal não contenda com o princípio nemo tenetur se ipsum accusare. A Constituição não contém uma consagração expressa do direito à não auto-incriminação, mas também aqui se entende que o nemo tenetur configura um princípio constitucional implícito ou não escrito. A sua origem radica na alteração do modelo processual penal, do inquisitório para o acusatório, da mutação da posição do arguido de objecto de prova para sujeito do processo, (Augusto Silva Dias, Vânia Costa Ramos, O Direito à não inculpação no processo penal e contra-ordenacional português, 2009). O nemo tenetur reconhece a todo o imputado da prática de um crime o direito ao silêncio e a não produzir prova em seu desfavor. O direito ao silêncio configura “o núcleo do nemo tenetur” e “os seus titulares são o arguido e o suspeito” (Augusto Silva Dias, Vânia Costa Ramos, loc. cit., p. 20). O suspeito, na definição do art. 1.º, al. e) do CPP, é toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar. E as garantias de defesa do processo criminal “começam muito antes da constituição formal de arguido” (Paulo Sousa Mendes, Estatuto de Arguido e Posição Processual da Vítima, RPCC, Ano 17º, p. 603). O suspeito não é, ainda, um sujeito processual, com um estatuto específico, mas “goza já de certos direitos, a saber: seja qual for a origem e a consistência da suspeita, não pode, em caso algum, ser obrigado a fornecer provas ou a prestar declarações auto-incriminatórias” (Paulo Sousa Mendes, loc. cit.). Sousa Mendes alerta para as cautelas necessárias na interpretação do art. 250.º, n.º 8 do CPP, que prevê que os órgãos de polícia criminal possam pedir ao suspeito informações relativas a um crime, mas “sem prejuízo do disposto no art. 59.º” – obrigatoriedade de constituição de arguido e direito ao silêncio. Mas mesmo que se entenda que o direito ao silêncio nasce apenas quando o arguido é constituído nessa qualidade (assim, Adriana Ristori, Sobre o silêncio do Arguido no Interrogatório no Processo Penal Português, p. 104), o seu exercício em concreto – pelo arguido, como arguido – não pode deixar de silenciar, apagando, tudo o que fora por ele declarado anteriormente no processo. Estão em causa as declarações como meio de prova, e não outros contributos probatórios do arguido, que convocam outras noções e soluções, e estão fora do objecto do recurso. Declarações que o sejam materialmente, independentemente da forma que assumam no processo: transcritas em auto de declarações ou incorporadas em auto de ocorrência elaborado por um opc que regista o que ouviu de testemunhas, suspeitas ou não. E se a testemunha vem posteriormente a adquirir a posição de arguido e, nessa qualidade, exerce o direito ao silêncio, verifica-se então como que um efeito expansivo do exercício do silêncio. Assim acontece, por exemplo, em relação a declarações confessórias validamente prestadas na fase de inquérito, irremediavelmente perdidas quando o arguido decide silenciar-se em julgamento e não tenha sido prévia e expressamente advertido da possibilidade de aproveitamento dessa confissão anterior em julgamento. E a falta de constituição atempada de arguido pode gerar não só a ineficácia – contra o declarante – das eventuais declarações auto-incriminatórias (art. 58.º, n.º 5 do CPP), como também a impossibilidade de aproveitamento de toda a declaração, com perda do que não pudesse ser obtido na falta da prova nula (via art. 126.º, n.ºs 1 e 2-a, do CPP). Como ensinam Figueiredo Dias e Costa Andrade, “a consagração de uma norma com o conteúdo do art. 126.º representou não só a continuação como o culminar do respeito pela integridade pessoal e pela dignidade humana ao nível do processo penal”. Como norma processual fundamental, “dela dimanam irradiações susceptíveis de iluminar caminhos para além das áreas por ela directamente cobertas” (Supervisão, Direito ao Silencio e Legalidade da Prova, 2009, p. 29). Em análise à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, João Gomes de Sousa lembra que “o TEDH, reconhecendo que a obtenção de prova em violação do direito ao silêncio do arguido e do direito de não contribuir para a sua própria incriminação são standards normativos internacionais reconhecidos e que estão no cerne da noção de processo equitativo tal como garantido pelo artigo 6º da Convenção, centrou a razão de ser de tais princípios, entre outros, na protecção do acusado contra um constrangimento abusivo por parte das autoridades a fim de evitar erros judiciários. Em particular, o direito de não contribuir para a sua própria incriminação assenta na ideia de que a acusação deve fundar a sua argumentação sem recorrer a métodos de coerção ou opressão contra a vontade do acusado – Saunders c. UK de 17-12-1996 (§ 68) e Heaney and McGuinness c. UK de 21-12-2000 (§ 40). Visa-se “resguardar a “integridade judicial” (…), assim como a necessidade de desencorajar condutas policiais ilícitas que constituam uma violação de um direito protegido pela Convenção (o “constrangimento abusivo” por parte das autoridades), a suscitar sempre graves dúvidas quanto à equidade do processo (o “deterrence efect”)” (Em Busca Da Regra Mágica - O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a universalização da regra de exclusão da prova - o caso Gäfgen v. Alemanha, Revista Julgar nº 11, Maio-Agosto 2010, pags. 21 e segs). No caso presente, e como se disse, não está em causa procedimento abusivo por parte do opc. Não se discute a legalidade do auto de ocorrência. Mas o núcleo irredutível do nemo tenetur reside sempre na não obrigatoriedade de contribuir para a auto-incriminação através da palavra, no sentido de declaração prestada no processo e para o processo. E a informação prestada a órgão de polícia criminal, deslocado ao locus delictii para recolha de provas sobre o crime, nas concretas condições em análise, constitui materialmente uma declaração. E esta informação/declaração, ao ser integrada em auto (de ocorrência) pelo opc, não perde a sua natureza de declaração, e passa a ser uma declaração prestada para o processo. Não se tratando aqui, na origem, de uma proibição de prova, como se deixou explanado, o auto em causa constitui prova legal. Como tal, é em princípio amplamente valorável pelo tribunal de julgamento. No entanto, não o pode ser na parte em que reproduziu declarações do arguido, ou de quem veio a ser constituído arguido, e, nessa condição, veio a exercer o direito ao silêncio. Do exposto resulta que o acórdão da Relação de Coimbra incorreu em erro de direito ao ter procedido à valoração do auto de ocorrência na parte em que continha declarações do arguido. Assim, deverá o acórdão ser reformulado, tendo em conta a necessidade de expurgação da prova em causa, proferindo-se nova decisão em conformidade com o que resultar da ponderação sobre as restantes provas valoráveis. 3. Decisão Face ao exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso, anulando-se o acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro que proceda à apreciação do recurso da matéria de facto desconsiderando a prova por “auto de ocorrência” na parte em que contém referências a declarações do arguido, proferindo-se nova decisão em conformidade com essa avaliação. Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP, a contrario). Lisboa, 30.11.2022 Ana Barata Brito, relatora Pedro Branquinho Dias, adjunto Teresa de Almeida, adjunta, com voto de vencida *** Voto vencida, por discordar da fundamentação e do sentido do Douto Acórdão. 1. A prova, aliás não essencial, cuja valoração se mostra em causa consiste em auto de ocorrência elaborado pela GNR, na parte em que contém referência a informações prestadas por um dos dois presentes no local do sinistro, empregador da vítima mortal. Não se trata, na nossa opinião, de um auto de notícia, elaborado nos termos do art. 243.º, n.º 1, al. c), do CPP, em que o OPC recolheu “os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos”. Mas antes, de um auto de ocorrência sujeito à disciplina do n.º 2 do art. 249.º do CPP, no âmbito das medidas cautelares e de polícia, que prevê, entre outras diligências, “colher informações junto das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição”. Perante ocorrência que demande a intervenção da autoridade, está esta obrigada a elaborar procedimento, de natureza avulsa que, na verdade, pode vir a integrar um processo criminal, ou contraordenacional, ou de sinistro de trabalho ou, ainda, fundamentar, por ex., a decisão relativa a realização de autópsia. No caso, o cenário (do que é possível retirar da matéria de facto descrita no Acórdão) correspondia, à primeira vista e para um agente que se desloca ao local, imediatamente após o evento, a um acidente de trabalho: a queda de um trabalhador por conta de empregador presente, vestígios de carregamento de madeira para um camião, início do transporte da vítima em ambulância. Do auto de ocorrência, não constam declarações daquele que, mais tarde, em procedimento criminal, viria a ser suspeito e arguido; antes refere o agente que “Daquilo que pudemos apurar através do patrão/testemunha identificado como: AA, (…), o acidente terá ocorrido no momento em que o indivíduo identificado como: DD, (…), se encontrava em cima da madeira carregada no pesado de mercadorias matrícula ..-..-HI, de uma altura cerca de quatro (4) metros, ao efetuar o ajuste desta, terá perdido o equilíbrio vindo a cair diretamente na via de piso betuminoso.” Informação prestada pelo empregador, de forma livre, sem sujeição a qualquer poder coercivo. Num momento e em procedimento anterior ao processo criminal e, nem sequer, necessariamente, deste antecedente. Num momento em que sobre o empregador não recaía suspeita – não estava definido se, em simultâneo com a eventual queda, havia procedimento mecânico em curso, quem o operava, nem existiria o domínio do quadro regulamentar da atividade de manobra da máquina em causa. Ou seja, quando não há identificação do suspeito, nem suspeito, nem suspeita da prática de crime Auto de ocorrência, junto a fls. 35 e 36, indicado, a fls. 337, como meio de prova da matéria da acusação, conhecido por todos os sujeitos processuais em todas as fases do processo e, como resulta de fragmento transcrito da decisão em 1.ª Instância, apreciado em audiência de julgamento. 2. O direito de não contribuir para a própria incriminação integra “normas internacionais geralmente reconhecidas e que estão no núcleo da noção de processo equitativo. O princípio nemo tenetur previne uma «coerção abusiva» sobre o acusado, impedindo que se retirem efeitos directos do silêncio, em aproximação a um qualquer tipo de ónus de prova formal, fundando uma condenação essencialmente no silêncio do acusado ou na recusa deste a responder a questões que o tribunal lhe coloque. (Acórdão deste Tribunal, de 06.10.2010 no Proc. 936/08.JAPRT, Rel. Henriques Gaspar). O direito à não incriminação pressupõe, em particular, que as autoridades procurem provar o seu caso sem recorrer a provas obtidas através de métodos de coação ou opressão que vão contra a vontade do “acusado” (Caso J.B. c. Suíça, TEDH). Ou ainda, no Acórdão JALLOH c. Alemanha do TEDH, de 11.07.2006 “Leur raison d’être tient notamment à la protection de l’accusé contre une coercition abusive de la part des autorités, ce qui évite les erreurs judiciaires et permet d’atteindre les buts de l’article 6. En particulier, le droit de ne pas contribuer à sa propre incrimination présuppose que, dans une affaire pénale, l’accusation cherche à fonder son argumentation sans recourir à des éléments de preuve obtenus par la contrainte ou les pressions, au mépris de la volonté de l’accusé (voir, notamment, Saunders, arrêtprécité, § 68, Heaney et McGuinness, arrêt précité, § 40, J.B. c. Suisse, no 31827/96, § 64, CEDH 2001-III, et Allan, arrêt précité, § 44).” A sua aplicação, relativamente a procedimentos anteriores ao processo penal, debate-se relativamente a procedimentos de natureza coerciva, com dever de colaboração dos inspecionados, fiscalizados, supervisionados ou auditados, sob pena de incorrerem em sanções: no domínio, por ex., das inspeções tributária, das supervisões bancária e do mercado de valores mobiliários, da concorrência ou estradal. Procedimentos conduzidos por autoridades que acumulam, muitas vezes, poderes de fiscalização, de supervisão, contraordenacionais e de investigação criminal ou de realização de diligências de inquérito. (Acórdão do TC nº 279/2022, de 26.4.22 Mesmo nestes casos, não comparáveis com o procedimento não coercivo em apreço, a Jurisprudência do Tribunal Constitucional e do TEDH tem considerado, em regra: - que o direito não é absoluto; - deve ser efetuada ponderação entre o princípio nemo tenetur se ipsum accusare e a restrição que ao mesmo é imposta e os valores constitucionais que se pretendem salvaguardar com essa restrição, no sentido de averiguar se esta é desproporcionada; (entre outros, Acórdão TC n.º 340/2013) - formulação de critérios de avaliação dessa proporcionalidade - “(1) a natureza e o grau de compulsão usado para obter a prova, (2) a relevância do interesse público na investigação e punição do crime em análise, (3) a existência de medidas de salvaguarda relevantes no procedimento, (4) e a utilização dada ao material probatório” (Acórdão JALLOH c. Alemanha do TEDH, de 11.07.2006). Antes da Reforma de 2013, notava Paulo Dá Mesquita[1] que o regime, então vigente, que atribuía ao arguido o direito de apagamento do que disse nas fases preliminares do processo, para efeitos probatórios, se afastava do que se aplica às declarações extraprocessuais do arguido que não têm qualquer proibição de utilização. “Em primeiro lugar, a liberdade de o arguido se não incriminar não implica nenhum direito a dispor do que declarou – incompatível com a valoração, em quaisquer circunstâncias, das declarações por si prestadas antes do julgamento −, mas de um direito a contraditar a prova constituída por essas declarações. Com efeito, o arguido não pode exigir o apagamento do que disse, num exercício esclarecido de liberdade e rodeado de todas as garantias; o que pode, se assim o entender, é discutir o valor probatório das declarações que prestou”. (Acórdão Tribunal Constitucional n.º 770/2020, de 21.12) 3. Pelo, sumariamente, exposto, concluiria que o princípio da não auto-incriminação não se aplica à prova em apreço, improcedendo o recurso. _______ [1] A Prova do Crime e o Que se Disse Antes do Julgamento: Estudo Sobre a Prova no Processo Penal Português à Luz do Sistema Norte-americano, Coimbra Editora, 2011, pág. 31-31. |