Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2909/19.9T8VFR.P1-B.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
LEI DE PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO
ADOÇÃO
CRITÉRIOS DE SELEÇÃO
REQUISITOS
MEDIDA DE CONFIANÇA COM VISTA À FUTURA ADOÇÃO
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 01/17/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - A intervenção do Estado limita-se às situações em que ocorre um perigo concreto para a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou do jovem.

II - Afigura-se inquestionável que o critério fundamental pelo qual o Tribunal tem de pautar a sua apreciação e decisão é o do superior interesse da criança.

III - A prevalência de critérios de conveniência e oportunidade não permite ao julgador ignorar normas imperativas. Não lhe consente, nomeadamente, transformar um processo de promoção e proteção em processo de adoção, que tem uma regulamentação própria.

IV - A uma pessoa idónea que recebe uma criança ao abrigo de uma medida de proteção de confiança a pessoa idónea não está vedada a evolução da sua relação com a criança que lhe está confiada para uma solução tendencialmente definitiva relativamente ao projeto de vida dessa criança. Entendimento diverso contrariaria, desde logo, o princípio do primado da continuidade das relações psicológicas profundas. A ideia de que uma pessoa não pode candidatar-se à adoção de uma específica criança com a qual estabeleceu já um vínculo afetivo compatível com a relação de filiação não colhe qualquer apoio na lei. Não parece que o facto de a situação de adotabilidade se definir, no estrito cumprimento dos requisitos para a confiança com vista a futura adoção, tendo entretanto em vista a adoção já por uma determinada pessoa, não seja merecedor de acolhimento à luz do que é o superior interesse desta criança - princípio axiológico, fundante e estruturante do Direito das Crianças. Ponderando-se estarem reunidas as condições para esse encaminhamento, não parece justificável uma solução de encaminhamento para a adoção por “terceiro” se a pessoa idónea a quem a criança está confiada for, pelas entidades competentes - no caso, o organismo da Segurança Social - selecionada como candidata à adoção.

V - Enquanto conceito indeterminado, o “interesse superior da criança” carece de implementação valorativa que deve ter como pauta de valoração ou referência de sentido o direito da criança ao desenvolvimento integral da sua personalidade - i.e., o ponto de vista teleológico que não pode ser descurado.

VI - Os recorrentes não suscitam qualquer questão de inconstitucionalidade normativa quando se limitam a manifestar a sua divergência com o acórdão recorrido, no mero plano da aplicação da lei. Trata-se de uma discordância com a aplicação do direito - e não com a conformidade constitucional de certas normas (ainda que numa certa interpretação).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,


IRelatório

1. A 7 de outubro de 2019, o digno Magistrado do Ministério Público na Instância Central de Família e Menores de ... requereu a abertura de processo de promoção e proteção com vista à aplicação urgente de adequada medida de proteção, nomeadamente daquela de apoio junto de outro familiar, ou de outra que se viesse a mostrar mais apropriada no decurso da instrução, às menores AA, nascida a ...de abril de 2018, e BB, nascida a ...de junho de 2019, filhas de CC e de DD.

2. Alegou que ambas as menores residem com os progenitores, mas em situação de perigo decorrente de negligência grave destes, que estão desempregados e revelam competências reduzidas para assegurar a satisfação das necessidades básicas das filhas, designadamente no que respeita a cuidados de higiene e alimentação.

3. Os progenitores consentiram, inicialmente, na intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de ... (doravante CPCJ), a qual deliberou, a 30 de julho de 2019, aplicar a AA e a BB, pelo prazo de seis meses, a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais.

4. Foi ainda deliberada a atribuição de apoio económico ao respetivo agregado familiar.

5. O correspondente Acordo de Promoção e Proteção foi assinado a 12 de agosto de 2019, tendo-se os progenitores comprometido, inter alia, a prestar às menores todos os cuidados necessários na educação, alimentação, higiene, saúde, segurança e conforto.

6. Porém, a situação das crianças AA e BB não sofreu qualquer melhoria e, depois de o progenitor DD ter encetado atividade laboral, temporariamente, em ..., ocorreram até episódios de negligência grave da Mãe CC para com as filhas, nomeadamente no âmbito da alimentação e da saúde.

7. Consequentemente, a CPCJ deliberou, a 27 de setembro de 2019, aplicar às menores AA e BB a medida de promoção e proteção de apoio junto de outro familiar - os tios paternos. Contudo, o acordo de promoção e proteção não chegou a ser celebrado, porquanto a progenitora CC, por não concordar com a aplicação dessa medida, retirou o consentimento à intervenção da CPCJ.

8. As crianças AA e BB encontravam-se, então, em situação de perigo, em virtude da incapacidade que os progenitores tinham vindo a demonstrar para assegurar, de forma conveniente, a satisfação das suas necessidades elementares, como a alimentação, a higiene e a saúde, pondo em causa o seu desenvolvimento saudável e integral.

9. Declarada aberta a instrução, a 11 de novembro de 2019 foram tomadas declarações aos progenitores e foi elaborado relatório social, tendo-se apurado que a situação de perigo denunciada não só persistia como também se tinha agravado. Por isso, foi aplicada a ambas as menores AA e BB a medida provisória de confiança a pessoa idónea pelo período de seis meses, a rever trimestralmente.

10. A menor BB foi confiada à guarda e cuidados do casal constituído por EE e FF, e a AA, por seu turno, ao casal composto por GG e HH.

11. Por despacho de 4 de maio de 2020, foi declarada a incompetência territorial do Juízo de Família e Menores de ... e, ao mesmo tempo, determinou-se a separação de processos, formando-se um processo para cada uma das menores, AA e BB.

12. O presente processo foi organizado para a menor BB e passou a correr termos no Juízo de Família e Menores de....

13. No prosseguimento do processo, a 17 de novembro de 2020, foram tomadas declarações à Senhora Técnica de Segurança Social, aos progenitores e ao casal cuidador, após o que a digna Magistrada do Ministério Público propôs a aplicação à menor BB da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção.

14. Declarou-se o encerramento da instrução e determinou-se a realização imediata de uma conferência tendo em vista a eventual obtenção de acordo de promoção e proteção, consenso que não foi possível alcançar por oposição dos progenitores à aplicação da medida proposta pelo Ministério Público.

15. Perante o desacordo, o Ministério Público e os progenitores foram notificados para alegarem por escrito e oferecerem prova, nos termos e para o efeito do disposto no art. 114.º, n.º 1, da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, doravante LPCJP, ulteriormente alterada pelas Leis n.os 31/2003, de 22 de agosto, 142/2015, de 8 de setembro, 23/2017, de 23 de maio, e 26/2018, de 5 de julho).

16. O Ministério Público apresentou alegações em que reafirmou o seu ponto de vista e renovou a proposta de aplicação à menor BB da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, tendo também indicado prova.

17. Por seu turno, os progenitores e os membros do casal cuidador apresentaram requerimento conjunto, que remataram do seguinte modo:

Vem pugnar-se junto de V. Exas. pela adoção plena da menor BB por EE e FF”.

18. Realizou-se o debate judicial e, a 4 de março de 2021, foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

Em face de tudo o que ficou exposto e após deliberação, decidimos:

a) aplicar à criança BB a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção prevista nos art.º 35.º n.º 1 al. g) e 38.º-A da LPCJP e, em consequência, confiá-la à guarda do Centro de Acolhimento Temporário onde for acolhida e nomear, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 62.º-A n.º 3 da LPCJP, como curador provisório da criança, o Sr. Director de tal instituição;

b) declarar cessadas as visitas à criança por parte da sua família biológica (art.º 62.º-A n.º 6 da LPCJP);

c) declarar DD e CC inibidos do exercício das responsabilidades parentais da criança (art.º 1978.º-A do Código Civil);

d) determinar que o presente processo tenha a partir de agora, natureza secreta, por forma a salvaguardar a identidade da pessoa a quem a criança venha a ser confiada”.

19. Não conformados, os cuidadores EE e FF interpuseram recurso de apelação.

20. O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

21. O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo (despacho de 14 de abril de 2021).

22. Por acórdão de 12 de julho de 2021, o Tribunal da Relação do Porto decidiu o seguinte:

Termos em que acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em:

A) rejeitar, por legalmente inadmissível, o recurso intercalar interposto do despacho de 15.02.2021;

B) julgar improcedente o recurso de apelação interposto por EE e FF do acórdão de 04.03.2021 e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

As custas dos recursos ficam a cargo dos recorrentes, face ao seu decaimento total (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).”

23. O Tribunal da Relação do Porto julgou, assim, o recurso improcedente, confirmando a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, sem voto de vencido, e com a mesma fundamentação, tendo mantido, no essencial, os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal de 1.ª Instância (apenas precisou alguns dos factos dados como provados).

24. De novo não conformados, EE e FF interpuseram recurso de revista excecional, apresentando as seguintes Conclusões:

B1 - Da admissibilidade da presente revista excecional

A Consagrou-se, em 2007, um regime de atenuação da dupla conforme – previsto no artigo 672.º do CPC – segundo o qual a revista será sempre admissível, a título excecional, se se verificarem as premissas nele ínsitas. E assim cremos acontecer no caso em apreço.

B Uma vez que o legislador não densificou tais premissas, antes as fez assentar, como de resto é seu apanágio, em conceitos indeterminados, cumprirá ao Supremo Tribunal de Justiça essa (não fácil, mas necessária) tarefa de integração; no âmbito da qual rogamos se atente ao seguinte:

Da relevância jurídica

C Acompanhados de doutrina e jurisprudência bastante, concluímos que cabem na alínea a) todas as questões manifestamente complexas, de grande relevo jurídico e controverso, cuja apreciação surge, assim, como necessária a “uma melhor aplicação do direito”.

D Exige-se, pois, uma questão nova, passível de diferentes interpretações, com carácter paradigmático e sem paralelo na jurisprudência. Ora,

E No caso vertente, e como procuraremos detalhar, inexiste uma corrente jurisprudencial consolidada nesta matéria.

Da relevância social

F Dados os valores supremos em contenda, a análise da questão agora aqui trazida é imperativa, cumprindo, pois, destacar, os enraizados valores socioculturais e socioeconómicos que se veem ameaçados e que se traduzem na circunstância de uma menor, de muito tenra idade, se ver apartada da sua família - que não biológica mas, na verdade, afetiva e efetiva - para ser entregue a uma instituição para futura adoção, sabendo-se (e estando provado) que a menor está bem acolhida e integrada, bem cuidada e amada apenas e tão só com base numa leitura positivista da lei, apartada do seu espírito.

G Não pode a sociedade deixar de alarmar-se com um comando que engrossa as fileiras de crianças institucionalizadas, com o fito único de cumprir a Lei; magoando profundamente os conceitos de família e do superior interesse da criança.

H Na verdade, o acórdão recorrido não dedica uma única linha às ligações existentes entre a menor e a família afectiva, tampouco à dinâmica da família (que o é) alargada ou, sequer, à circunstância de EE ser madrinha de batismo da menor. Mais, da contradição de julgados

I Não há, na experiência dos tribunais superiores, questão com idênticos contornos. Verifica-se, no entanto, contradição de julgado perante a aplicação das mesmas regras de direito, mas com diferentes alcances.

J Chamamos, por tal, à colação o (melhor identificado supra) aresto do Tribunal da Relação de Lisboa, segundo o qual:“(…) Com efeito, vislumbrando-se a existência de uma família natural susceptível de integrar o menor haverá, antes de mais, de averiguar das efectivas possibilidades dessa integração na família natural antes de avançar, como se avançou, para a adopção.”

K Outrossim, e em linha idêntica: “O que quer dizer que a fase administrativa do processo de adoção não é condição necessária para que a adoção possa ser concretizada. O que é necessário, é que se verifiquem os pressupostos materiais da adoção, e que o tribunal na sua intervenção, os reconheça como tais, independentemente da fase administrativa não se ter concretizado, de forma completa.” – seguimos o aresto do Tribunal da Relação de Guimarães.

L Acórdãos claramente contrariados pelo que vem agora posto em causa.

M Julgamos, pois, estarem verificadas as condicionantes para a legitimidade do presente recurso, ao abrigo do artigo 672.º, n.º, al. a), b) e c) do CPC.

B2 - Breve enquadramento jurídico e factual

N DD e CC, são pais biológicos das menores AA e BB, a primeira com três anos, a segunda, com dois anos de idade.

O Após a sinalização das crianças e vários esforços de consolidação familiar, mercê do recrudescimento de episódios de violência entre o casal e, outrossim, de negligência nos cuidados das menores, a situação acabou por se tornar definitivamente indesejada.

P Cabe notar que o sobredito DD foi criado desde os seus cinco meses de idade pela mãe de EE, aqui recorrente (e tanto assim é que, o Tribunal a quo não deixa de apelidar DD e EE de “irmãos”, CC e EE como “cunhadas” e DD e FF como “cunhados”, ao mesmo tempo que se refere a BB como “sobrinha” de EE e FF… )

Q A CPCJ e o Instituto da Segurança Social, I.P., pediram a intervenção de EE, madrinha de batismo da menor BB, ora recorrente, a quem apelaram para aplicação da medida de confiança a pessoa idónea.

R EE e FF estão com a menor BB há mais de um ano¸ ao abrigo da medida de confiança a pessoa idónea.

S Ao longo de todo o processo e compulsados os vários relatórios, resulta sobeja a capacidade e a disponibilidade de EE e FF para o exercício da parentalidade - dir-se-á, mesmo, de qualquer outro papel - em relação a BB.

T Os ora recorrentes propuseram então, nos autos em curso, as seguintes possibilidades:

d) Prorrogação da medida de confiança a pessoa idónea;

e) Conversão do processo em curso em antecâmara do processo de adoção;

f) Conversão do processo em curso em antecâmara de um processo de apadrinhamento civil.

U O douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, agora recorrido, não aborda estas questões, limitando-se a elencar - até de forma lacónica, s.m.o. - as formalidades inerentes ao processo de adoção.

V Somos então chegados à decisão – ora contestada – da retirada desta criança de um colo em que está segura e feliz - e integrada na sua família - para entrega a uma instituição e, posteriormente, a uma família que não conhece e em relação à qual não é seguro que a sua integração possa vingar.

W O aresto em crise (e bem!) refere o seguinte:

“Respeitando, naturalmente, as apreciações contidas na passagem transcrita da decisão recorrida, não acompanhamos a análise efetuada e, sobretudo, dissentimos da avaliação e caraterização que faz da família da EE, qualificando-a como de “família disfuncional”, no seio da qual existem “sucessivos conflitos”, com «acusações várias entre os diversos elementos, incluindo alegados abusos sexuais», e com crianças vulneráveis a serem entregues a outrem para que delas cuidem, aparentando ser «um modo de funcionamento normal e adequado» e que os recorrentes pretendem replicar com a BB e AA.” (…) “Uma tal caracterização não só não tem na factualidade apurada o necessário respaldo como aparenta estar, se não em contradição, pelo menos, em dessintonia com alguns fatos essenciais, nomeadamente o facto de a criança estar a ser bem cuidada pelo casal EE e FF, com as quais estabeleceu vínculos afetivos.”

X Se é certo que é o próprio Tribunal quem assinala aquela contradição, não é menos certo que dela não retira qualquer consequência - o que não pode deixar de surpreender os recorrentes.

B3 - Das nulidades que inquinam a decisão recorrida

Y A ora recorrente pugna pela apreciação da possibilidade de adoção ou do apadrinhamento civil e, bem assim, sobre a possibilidade de prorrogação da medida aplicada à menor. Ora,

Z O aresto recorrido pronuncia-se unicamente acerca da adopção.

AA Olvidando, ou omitindo, a pronúncia sobre a possibilidade de apadrinhamento ou, pelo menos, da prorrogação da medida de confiança a pessoa idónea, vigente à data; por tal se invocando a nulidade, para todos os devidos e legais efeitos, mormente o disposto no art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte - aplicável aos acórdãos da Relação ex vi art. 666.º do CPC. Mas mais ainda,

AB Não poderia, ademais, o Tribunal a quo ser alheio - como, de facto, o foi - à opinião das Técnicas da Segurança Social que conduziram o presente processo de promoção e proteção, cujos testemunhos foram inequívocos, conforme supra demonstrado.

AC Tais testemunhos, fundamentaram, pois, que se requeresse, em sede de recurso de apelação, o aditamento à matéria de facto dada como provada.

AD Quanto a este requerido aditamento, o Tribunal recorrido limita-se a esta lacónica resposta: “A opinião manifestada pelas Sras. Técnicas da Segurança Social sobre o projeto de vida para a BB, sendo importante, não é um facto”.

AF Cumpre, no entanto, sublinhar que é factual (e não uma mera opinião) que as Senhoras Técnicas foram do entendimento, quando ouvidas, que a BB estaria melhor aos cuidados dos ora recorrentes.

AG O certo é que ao arredar a discussão dessa questão, o Tribunal recorrido arreda, outrossim, a discussão que agora nos detém: a da solução legal que melhor acomoda o superior interesse da BB sobre a qual infra nos deteremos. Por ser assim,

AH A omissão quanto à alteração de facto invocada, consubstancia nulidade do Acórdão, por omissão, que ora se invoca, nos termos do disposto no art. 615º-1, d), ex vi art. 666º, ambos do CPC.

B4 - Dos fundamentos de Direito

B4.1. - Da violação da lei substantiva

B4.1.1.Da possibilidade de convolar o processo de promoção e proteção em antecâmara do processo de adoção ou de apadrinhamento

AI Discorda-se do aresto em crise porquanto não discute - aliás, afasta - a possibilidade de aproveitar estes autos como antecâmara do processo administrativo de apadrinhamento civil ao mesmo tempo que refuta a possibilidade de “convolação” dos autos em adoção ou apadrinhamento.

AJ Tais possibilidades resultariam, pois, legitimadas da natureza – de jurisdição voluntária – destes processos, em que o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente, oportuna e actualizada.

AK O tribunal recorrido afasta o argumento esgrimido pelos recorrentes estribando-se nas normas imperativas do Regime Jurídico do Processo de Adoção (RJPA).

AL Não obstante, a intenção da ora recorrente não é afastar o regime da adopção, mas sim adaptá-lo àquele que é o superior interesse da BB, o que nos parece até legitimado pelo artigo 31.º RJPA.

AM Com efeito, os ora requerentes transmitiram e fundamentaram – formalmente – a sua vontade e condições para adotar ou apadrinhar a menor,

NA Ao mesmo tempo que iniciaram e instruíram o respetivo procedimento legal.

AO A este propósito sublinhe-se que a ora recorrente pode, efetivamente, adotar, porquanto tem menos de 50 anos de diferença da idade da menor adotanda, vive em união de facto há já 11 anos, cumprindo assim os requisitos impostos pelo artigo 1979.º, n.º 1 e n.º 3 do CC, aplicável ex vi artigo 7.º da Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio – o que foi dado como assente.

AP Está, assim, garantida uma adoção refletida e ponderada, bem como a possibilidade de um acompanhamento próximo, que permita a identificação da criança com a família adotante, com contemporaneidade de valores e ideias e, bem assim, com proximidade geracional – aliás reforçada pela existência de uma irmã mais velha.

AQ Ademais, a BB reúne os requisitos ínsitos no disposto no artigo 1980.º, CC, porquanto foi, efetivamente, confiada a este casal requerente, no âmbito dos presentes autos de promoção e proteção.

AR É inequívoco, no mais, que os pais biológicos consentem a adoção apenas e só quanto a este casal e não quanto a família terceira – cf. o disposto no artigo 1981.º, CC.

AS No que atine aos requisitos ínsitos nos artigos 52.º e ss. da Lei n.º 143/2015, de 08 de setembro, sempre se dirá que resulta inequívoco dos autos que o casal requerente reúne todas as condições para lograr a efetivação do vínculo - o que resulta, igualmente, dos enunciados relatórios já juntos aos autos e, bem assim, da factualidade dada como provada.

AT Conforme ilustrado por variada jurisprudência, o tardio despoletar do processo de adopção, não pode, pois, constituir um óbice à própria adopção.

Ainda que assim não se entenda – o que apenas cautelarmente se excogita

AU A BB preenche os requisitos e, bem assim, os ora recorrentes estão em condições de envidar o apadrinhamento, mesmo que o respectivo procedimento junto da Segurança Social não esteja concluído – cumprindo as exigências legais previstas no artigo 11.º e seguintes do regime jurídico do apadrinhamento civil. Donde resulta que

AV Sempre poderiam os ora recorrentes assumir-se como padrinhos civis, vontade que também manifestaram e que, sequer, foi objeto de apreciação por banda do Tribunal recorrido.

AW Na senda da melhor doutrina, o apadrinhamento só se justifica perante uma situação de incapacidade duradoura dos pais para assumirem e exercerem as responsabilidades parentais – o que, em concreto, resulta sobejo.

AX Secundando a melhor doutrina, bem como variada Jurisprudência, o apadrinhamento representa uma nova relação jurídica alternativa às respostas até agora existentes de integração das crianças e jovens em meio familiar, surgindo, ademais, como medida tutelar tendencialmente definitiva e que não se dirige exclusivamente às situações de crianças e jovens em perigo, muito embora este seja, por excelência, o seu público alvo.

AY É, pois, o apadrinhamento civil uma forte possibilidade de integração para a menor BB: afectiva, social, jurídica e tecnicamente possível, conforme demonstrado.

AZ Não pode, outrossim, ignorar-se o caminho que este Supremo Tribunal de Justiça vem trilhando no sentido de acomodar as necessidades da vida e o superior interesse da criança, para o que citámos e transcrevemos o aresto do Supremo Tribunal de Justiça datado de 09/02/2021, relatado por Maria Clara Sottomayor.

BA Queremos com isto significar que a jurisprudência e a doutrina vêm fazendo caminho no sentido de relegar soluções legalistas, para acomodar aquilo que são as soluções socialmente mais aptas a concretizar a preservação dos vínculos, a família e, destarte, o superior interesse dos menores. Mais,

BB Da evolução legislativa do instituto jurídico da adoção resulta a clara opção do legislador, pela flexibilização do instituto da adoção, com a concomitante proteção dos adotantes; mas resulta, outrossim, a clara preferência pela estabilidade da criança, enquanto baluarte do superior interesse da criança.

BC A ser assim, a solução que vai sufragada pelo Tribunal recorrido e pela primeira instância, dissente da vontade do legislador - histórica e atual - pois propugnam um corte com a família alargada natural e, bem assim, a consequente desestabilização da menor, com a sua retirada desse contexto securizante e estável. Por outro lado,

BD O acórdão recorrido, para fundamentar a sua opção, chama à colação o regime da família de acolhimento, constante do Decreto-Lei nº 139/2019, de 16 de setembro, arguindo que esta não pode ser família adotiva, carreando o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 14.º respetivo.

BE Sucede que, in casu, os recorrentes não são família de acolhimento, mas, sim, família (idónea) a que foi atribuída a confiança da menor ao abrigo da medida de promoção e proteção nos termos já antes enunciados.

B4.1.2. - Da violação dos princípios orientadores da jurisdição de menores

Do Superior interesse da criança

BF Atento o conceito do superior interesse da criança, não choca que se conclua, aliás na senda de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que possa o Tribunal aquilatar da possibilidade de adoção, no âmbito dos presentes autos ou, em alternativa, prorrogar a medida aplicada por mais seis meses, período que, previsivelmente, possibilitará aos ora recorrentes fazer os necessários cursos de forma a obter habilitação bastante.

Da prevalência da família – a família como núcleo afetivo mais do que biológico ou jurídico

BG Pode ler-se da sentença de que ora se recorre o seguinte:

“Resulta evidente da factualidade dada como provada que inexiste alguém na família alargada que reúna condições para acolher a menina e que com ela sequer mantenha relação.”

BH Impunha-se, s.m.o., outra conclusão quanto à família alargada disponível para acolher a menor BB, o que apenas será possível com um diferente, e mais consentâneo com a realidade, entendimento do conceito de família.

BI É a própria Lei que prioriza soluções que viabilizem o direito da criança a manter-se na sua família, nuclear ou alargada, ou noutra família que se revele idónea e com ela tenha estabelecido relação de afetividade recíproca, o que resulta inequívoco da alteração à Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, nomeadamente ao seu artigo 4.º, alínea h).

Do princípio da continuidade das relações psicológicas profundas

BJ Este princípio, introduzido pela Lei nº 145/2015, é produto da vontade do legislador de dar guarida ao direito das crianças à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmonioso desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante; conforme é apanágio na Doutrina e Jurisprudência transcrita.

BK Tal princípio é, pois, desvalorizado pela decisão ora posta em causa, pelos motivos já expostos.

Da confiança a instituição como medida de última ratio

BL A Lei de promoção e proteção, secundada pela Doutrina e Jurisprudência supra citadas, hierarquizam as medidas de promoção e proteção, sendo claro o privilégio por medidas no seio da família.

BM Em reforço do que vem de dizer-se, e com estribo em dados oficiais, o prolongado tempo de permanência em instituição continua a ter uma expressão significativa no universo das crianças e jovens acolhidos institucionalmente, traduzindo, muitas vezes, percursos de vida que, embora ainda curtos, estão marcados por acolhimentos prévios ao atual.

BN Tal princípio é, de igual forma – parece-nos – desconsiderado pela decisão ora posta em causa.

B4.1.3. - Da violação das normas e princípios do direito internacional com vigência direta e imediata na ordem jurídica nacional

BO O Tribunal recorrido não debate a questão que tem que ver com a salvaguarda do superior interesse da criança nem, tampouco, a questão da família alargada e afetiva, limitando-se a arguir, até sem estribo factual, o regime da família de acolhimento e as incompatibilidades inerentes – que, s.m.o. não têm aplicação no caso concreto – para rematar a impossibilidade de adoção por banda dos ora recorrentes.

BP Ademais, além de se furtar a apreciar a questão concreta, a solução lograda pelo Tribunal a quo é nada mais do que a que conduz ao corte de todas as relações desta menor com a sua família- ainda que meramente afetiva mas, outrossim, com a biológica - ignorando as competências daquela primeira e, bem assim, as suas convicções e os próprios pareceres técnicos (cuja discussão também omite).

BQ Queremos com isto significar que, qualquer que seja o fito da norma ou normas imperativas, tem de ser plástico e permeável o bastante para acomodar o caso concreto e o superior interesse da criança que o Tribunal recorrido não debate nem aprecia, conforme já se deixou antevisto.

BR Tal princípio - e os demais que daí arrancam e aos quais já tiveram os recorrentes ensejo de referir-se - são princípios que extravasam o direito interno e que, na verdade, se sobrepõem ao próprio texto legal no seu sentido mais literal - afinal aquele em que se estriba o aresto em crise.

BS Ora, com respeito pelo consagrado no artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, teremos no topo da pirâmide, as normas e os princípios de Direito Internacional Geral ou Comum, uma vez que fazem parte integrante do ordenamento ou sistema jurídico nacional.

BT O «superior interesse da criança», é um princípio de direito internacional público que decorre da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.

BU Reconhecida de forma inequívoca a circunstância de ser este, o superior interesse da criança, um princípio de direito interno como, bem assim, um princípio de direito internacional público, resulta sobejo que, à luz do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, este princípio se sobrepõe ao direito positivado, mesmo imperativo.

BV Na mesma linha, o nº 2 do referido artigo 8.º CRP estabelece um regime de receção automática, mas condicionada, das normas de direito internacional convencional.

BW Ora, tal leva-nos a invocar a Convenção sobre os Direitos da Criança que, s.m.o, nos parece ter sido ignorada no sentido em que o aresto recorrido não dedica uma linha a debater o superior interesse da BB e as consequências da sua institucionalização - medida, como é sobejamente consabido, de última ratio.

BX Na verdade, sobre o respeito e valorização do primado do superior interesse da criança, pronuncia-se, amiúde, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), - em Jurisprudência a que ora se recorre, supra transcrita - considerando que os Tribunais nacionais haviam andando mal aquando das decisões recorridas, justamente por preterirem o superior interesse da criança a favor da aplicação literal da lei.

B4.1.3. - Da inconstitucionalidade que enferma a decisão em crise por violação do disposto nos artigos 36.º, nºs 5 e 6 da CRP, artigo 67.º e artigo 8.º, ambos da CRP

BY Servindo-se da doutrina citada supra e da interpretação que faz do artigo 34.º, nº 1, RJPA, o aresto refuta qualquer das soluções propugnadas pelos ora recorrentes, o que conflitua com o disposto nos artigos 36.º, nº 6 e 7, artigo 67.º e artigo 8.º, ambos da CRP;

BZ Porquanto afronta o primado do superior interesse da criança e a garantia e proteção à família.

C Várias vezes, em várias horas ao longo do presente dia e com recurso a vários browers, a signatária procurou dar aos autos o presente esforço recursório; porém, o sistema eletrónico de apoio aos Tribunais, quando inserido o número do presente processo assume um erro que impede a signatária de avançar (“o processo não foi encontrado”). Tal erro, deve-se exclusivamente à plataforma e não pode ser imputado à signatária ou aos ora recorrentes. Assim, e nos termos do disposto do artigo 140.º, CPC, requer-se a V. Exa. se digne admitir o presente recurso que, cautelarmente, se faz chegar via email com assinatura eletrónica digital e junto da 1.ª instância. Mais se junta documentos que atestam o referido erro e, bem assim, prova testemunhal.

JUNÇÃO DE PARECER DE JURISCONSULTO:

Nos termos do artigo 680.º e n.º 2 do artigo 651.º do CPC, junta Parecer da Ilustre Sra. Doutora II, o qual secundamos e ora reproduzimos na íntegra.

DA PROVA DO JUSTO IMPEDIMENTO

A - Documental

Requer a junção de três documentos.

B - Testemunhal

a) JJ, b) KK,

Ambas a notificar na Rua ....

O presente esforço recursório vai impetrado no 3.º dia útil seguinte ao do termo do prazo pelo que se junta DUC e comprovativo de pagamento da multa processual, além da taxa de justiça devida.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, deverão V. Exas. dar provimento ao presente recurso, revogando a decisão recorrida, só assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!”

25. EE e FF juntaram parecer jurídico1.

26. O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

27. Tratando-se de um recurso interposto a título de revista excecional, os autos foram remetidos à Formação do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 672.º, n.º 3, do CPC, em ordem ao apuramento dos pressupostos referidos no n.º 1 do mesmo preceito.

28. Por acórdão de 6 de setembro de 2021, a Formação, à luz do art. 672.º, n.º 1, al. b), do CPC, admitiu o recurso de revista excecional.

29. Por acórdão de 4 de novembro de 2021, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu o seguinte:

Nos termos expostos, acorda-se em anular parcialmente o acórdão recorrido e, nos termos do art. 684.º, n.º 2, do CPC, mandar baixar o processo a fim de se proceder à respetiva reforma pelos mesmos juízes - se possível -, no que respeita à possibilidade de (i) apadrinhamento civil da menor BB por parte de EE e FF e de (ii) prorrogação da medida aplicada à menor BB.

Custas na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que os Recorrentes possam beneficiar”.

30. Por acórdão de 24 de janeiro de 2022, o Tribunal da Relação do Porto decidiu nos seguintes moldes:

Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por EE e FF relativamente às questões do apadrinhamento civil e de prorrogação da medida de confiança a pessoa idónea e, em consequência, confirmar a decisão recorrida”.

31. Uma vez mais irresignados, EE e FF interpuseram novamente recurso de revista excecional, nos termos em que anteriormente o haviam feito:

B1 - Da admissibilidade da presente revista excecional

A - Consagrou-se, em 2007, um regime de atenuação da dupla conforme – previsto no artigo 672.º do CPC – segundo o qual a revista será sempre admissível, a título excepcional, se se verificarem as premissas nele ínsitas. E assim cremos acontecer no caso em apreço.

B - Uma vez que o legislador não densificou tais premissas, antes as fez assentar, como de resto é seu apanágio, em conceitos indeterminados, cumprirá ao Supremo Tribunal de Justiça essa (não fácil, mas necessária) tarefa de integração; no âmbito da qual rogamos se atente ao seguinte:

Da relevância jurídica

C - Acompanhados de doutrina e jurisprudência bastante, concluímos que cabem na alínea a) todas as questões manifestamente complexas, de grande relevo jurídico e controverso, cuja apreciação surge, assim, como necessária a “uma melhor aplicação do direito”.

D - Exige-se, pois, uma questão nova, passível de diferentes interpretações, com carácter paradigmático e sem paralelo na jurisprudência. Ora,

E - No caso vertente, inexiste uma corrente jurisprudencial consolidada nesta matéria. Mais a mais, por força dos melindrosos interesses em jogo no instituto da adopção e do apadrinhamento civil, o cidadão comum precisa de saber exactamente qual a orientação dos tribunais, nos casos como o dos autos. Frustar expectativas, tanto para mais sentimentais, não saber como os tribunais reagirão pode conduzir a um engrossar de fileiras de crianças institucionalizadas com vista a adopção, o que não é salutar quer para os interesses destas crianças – que sem culpa se encontram nessa situação – quer para aqueles – muitas vezes com sólida abnegação - procuram dar aquelas crianças uma família e procuram nelas essa família quer para os interesses do próprio Estado.

Da relevância social

F - Dados os valores supremos em contenda, a análise da questão agora aqui trazida é imperativa, cumprindo, pois, destacar, os enraizados valores socioculturais e socioeconómicos que se vêem ameaçados e que se traduzem na circunstância de uma menor, de muito tenra idade, se ver apartada da sua família - que não biológica mas, na verdade, afectiva e efectiva - para ser entregue a uma instituição para futura adopção, sabendo-se (e estando provado) que a menor está bem acolhida e integrada, bem cuidada e amada apenas e tão só com base numa leitura positivista da lei, apartada do seu espírito.

G - Não pode a sociedade deixar de alarmar-se com um comando que engrossa as fileiras de crianças institucionalizadas, com o fito único de cumprir a Lei; magoando profundamente os conceitos de família e do superior interesse da criança.

H - Na verdade, o acórdão recorrido não dedica uma única linha às ligações existentes entre a menor e a família afectiva, tampouco à dinâmica da família (que o é) alargada

ou, sequer, à circunstância de EE ser madrinha de baptismo da menor. Mais,

B2 - Breve enquadramento jurídico e factual

I - DD e CC, são pais biológicos das menores AA e BB, a primeira com três anos, a segunda, com dois anos de idade.

J - Após a sinalização das crianças e vários esforços de consolidação familiar, mercê do recrudescimento de episódios de violência entre o casal e, outrossim, de negligência nos cuidados das menores, a situação acabou por se tornar definitivamente indesejada.

K - Cabe notar que o sobredito DD foi criado desde os seus ...de idade pela mãe de EE, aqui recorrente (e tanto assim é que, o Tribunal a quo não deixa de apelidar DD e EE de “irmãos”, CC e EE como “cunhadas” e DD e FF como “cunhados”, ao mesmo tempo que se refere a BB como “sobrinha” de EE e FF…

L - A CPCJ e o Instituto da Segurança Social, I.P. pediram a intervenção de EE, madrinha de baptismo da menor BB, ora recorrente, a quem apelaram para aplicação da medida de confiança a pessoa idónea.

M - EE e FF estão com a menor BB há mais de dois anos¸ ao abrigo da medida de confiança a pessoa idónea.

N - Ao longo de todo o processo e compulsados os vários relatórios, resulta sobeja a capacidade e a disponibilidade de EE e FF para o exercício da parentalidade - dir-se-á, mesmo, de qualquer outro papel - em relação a BB.

O - Os ora recorrentes propuseram então, nos autos em curso, as seguintes possibilidades:

i) Prorrogação da medida de confiança a pessoa idónea;

ii) Conversão do processo em curso em antecâmara do processo de adopção;

iii) Conversão do processo em curso em antecâmara de um processo de apadrinhamento civil.

P - Somos então chegados à decisão – ora contestada – da retirada desta criança de um colo em que está segura e feliz - e integrada na sua família - para entrega a uma instituição e, posteriormente, a uma família que não conhece e em relação à qual não é seguro que a sua integração possa vingar.

Q - O aresto em crise (e bem!) refere o seguinte:

“Respeitando, naturalmente, as apreciações contidas na passagem transcrita da decisão recorrida, não acompanhamos a análise efetuada e, sobretudo, dissentimos da avaliação e caraterização que faz da família da EE, qualificando-a como de “família disfuncional”, no seio da qual existem “sucessivos conflitos”, com «acusações várias entre os diversos elementos, incluindo alegados abusos sexuais», e com crianças vulneráveis a serem entregues a outrem para que delas cuidem, aparentando ser «um modo de funcionamento normal e adequado» e que os recorrentes pretendem replicar com a BB e AA.” (…) “Uma tal caracterização não só não tem na factualidade apurada o necessário respaldo como aparenta estar, se não em contradição, pelo menos, em dessintonia com alguns fatos essenciais, nomeadamente o facto de a criança estar a ser bem cuidada pelo casal EE e FF, com as quais estabeleceu vínculos afetivos.”

R - Se é certo que é o próprio Tribunal quem assinala aquela contradição, não é menos certo que dela não retira qualquer consequência - o que não pode deixar de surpreender os recorrentes.

B3 Da violação da lei substantiva

B3.1. Do dissídio com a medida aplicada e da possibilidade de convolar o processo de Promoção e proteção em antecâmara do processo de adopção ou de apadrinhamento

S - Discorda-se do aresto em crise porquanto decide entregar a menor a instituição com vista a adopção futura e não discute - aliás, afasta - a possibilidade de aproveitar estes autos como antecâmara do processo de adopção ou apadrinhamento.

T - Tais possibilidades resultariam, pois, legitimadas da natureza – de jurisdição voluntária – destes processos, em que o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente, oportuna e actualizada.

U - O tribunal recorrido afasta o argumento esgrimido pelos recorrentes estribando-se nas normas imperativas do Regime Jurídico do Processo de Adoção (RJPA).

V - Não obstante, a intenção da ora recorrente não é afastar o regime da adopção, mas sim adaptá-lo àquele que é o superior interesse da BB, o que nos parece até legitimado pelo artigo 31.º RJPA.

X - Com efeito, os ora requerentes transmitiram e fundamentaram – formalmente – a sua vontade e condições para adoptar ou apadrinhar a menor,

Z - Ao mesmo tempo que iniciaram e instruíram o respetivo procedimento legal.

AA - A este propósito sublinhe-se que a ora recorrente pode, efetivamente, adoptar, porquanto tem menos de 50 anos de diferença da idade da menor adoptanda, vive em união de facto há já 11 anos, cumprindo assim os requisitos impostos pelo artigo 1979.º, n.º 1 e n.º 3 do CC, aplicável ex vi artigo 7.º da Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio – o que foi dado como assente.

AB - Está, assim, garantida uma adopção reflectida e ponderada, bem como a possibilidade de um acompanhamento próximo, que permita a identificação da criança com a família adoptante, com contemporaneidade de valores e ideias e, bem assim,

com proximidade geracional – aliás reforçada pela existência de uma irmã mais velha.

AC - Ademais, a BB reúne os requisitos ínsitos no disposto no artigo 1980.º, CC, porquanto foi, efectivamente, confiada a este casal requerente, no âmbito dos presentes autos de promoção e protecção.

AD - É inequívoco, no mais, que os pais biológicos consentem a adopção apenas e só quanto a este casal e não quanto a família terceira – cf. o disposto no artigo 1981.º, CC.

AE- No que atine aos requisitos ínsitos nos artigos 52.º e ss. da Lei n.º 143/2015, de 08 de setembro, sempre se dirá que resulta inequívoco dos autos que o casal requerente reúne todas as condições para lograr a efectivação do vínculo - o que resulta, igualmente, dos enunciados relatórios já juntos aos autos e, bem assim, da factualidade dada como provada.

AF – Conforme ilustrado por variada jurisprudência, o tardio despoletar do processo de adopção, não pode, pois, constituir um óbice à própria adopção.

Ainda que assim não se entenda – o que apenas cautelarmente se excogita

AG - A BB preenche os requisitos e, bem assim, os ora recorrentes estão em condições de envidar o apadrinhamento, mesmo que o respectivo procedimento junto da Segurança Social não esteja concluído – cumprindo as exigências legais previstas no artigo 11.º e seguintes do regime jurídico do apadrinhamento civil. Donde resulta que

AH - Sempre poderiam os ora recorrentes assumir-se como padrinhos civis, vontade que também manifestaram.

AI - Na senda da melhor doutrina, o apadrinhamento só se justifica perante uma situação de incapacidade duradoura dos pais para assumirem e exercerem as responsabilidades parentais – o que, em concreto, resulta sobejo.

AJ - Secundando a melhor doutrina, bem como variada Jurisprudência, o apadrinhamento representa uma nova relação jurídica alternativa às respostas até agora existentes de integração das crianças e jovens em meio familiar, surgindo, ademais, como medida tutelar tendencialmente definitiva e que não se dirige exclusivamente às situações de crianças e jovens em perigo, muito embora este seja, por excelência, o seu público-alvo.

AK - É, pois, o apadrinhamento civil uma forte possibilidade de integração para a menor BB: afectiva, social, jurídica e tecnicamente possível, conforme demonstrado.

AL - Não pode, outrossim, ignorar-se o caminho que este Supremo Tribunal de Justiça vem trilhando no sentido de acomodar as necessidades da vida e o superior interesse da criança, para o que citámos e transcrevemos o aresto do Supremo Tribunal de Justiça datado de 09/02/2021, relatado por Maria Clara Sottomayor.

AM - Queremos com isto significar que a jurisprudência e a doutrina vêm fazendo caminho no sentido de relegar soluções legalistas, para acomodar aquilo que são as soluções socialmente mais aptas a concretizar a preservação dos vínculos, a família e, destarte, o superior interesse dos menores. Mais,

AN - Da evolução legislativa do instituto jurídico da adopção resulta a clara opção do legislador, pela flexibilização do instituto da adopção, com a concomitante protecção dos adoptantes; mas resulta, outrossim, a clara preferência pela estabilidade da criança, enquanto baluarte do superior interesse da criança.

AO - A ser assim, a solução que vai sufragada pelo Tribunal recorrido e pela primeira instância, dissente da vontade do legislador - histórica e atual - pois propugnam um corte com a família alargada natural e, bem assim, a consequente desestabilização da menor, com a sua retirada desse contexto securizante e estável. Por outro lado,

AP - O acórdão recorrido, para fundamentar a sua opção, chama à colação o regime da família de acolhimento, constante do Decreto-Lei nº 139/2019, de 16 de setembro, arguindo que esta não pode ser família adoptiva, carreando o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 14.º respetivo.

AQ - Sucede que, in casu, os recorrentes não são família de acolhimento, mas, sim, família (idónea) a que foi atribuída a confiança da menor ao abrigo da medida de promoção e protecção nos termos já antes enunciados.

AR – Nesta confluência, ao julgar improcedente a pretensão dos recorrentes – qual seja a adopção, por eles, da BB, decretada no âmbito deste processo – o Tribunal a quo faz uma interpretação errada dos artigos 987.º e 988.º, ambos do CPC, artigos 34.º, 35.º, 62.º-A, 100.º e 117.º da LPCJP, os artigos 28.º, 31.º, 52.º do RJPA e os artigos 1576.º, 1979.º, 1980.º, 1981.º, todos do CC,

AS – E, por isso, deve tal aresto ser revogado e substituído por outro que, acolhendo a argumentação expendida, ordena a confiança da BB aos cuidados dos recorrentes até posterior decisão, nos presentes autos e pelo Tribunal, acerca do pedido de adopção requerido ou, sem prescindir,

AT - Sempre violou oTribunal a quo o disposto nos artigos 987.º e 988º do CPC, os artigos 34.º, 35.º, 62.º-A, 100.º, 117.º da LPCJP e artigos 2.º, 4.º, 5.º, 11.º, n.º 2, 13.º da Lei n.º 103/2009, 11.09, na sua redacção actual,

AU - Pelo que deve ser revogado e substituído por outro que, acolhendo a argumentação expendida, ordene a confiança da BB aos cuidados dos recorrentes até posterior decisão do Tribunal, acerca do pedido de apadrinhamento civil, o que deve ser realizado no âmbito destes autos, por admissível.

B3. 2. - Da violação dos princípios orientadores da jurisdição de menores a) Do Superior interesse da criança

AV - Atento o conceito do superior interesse da criança, não choca que se conclua, aliás na senda de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que possa o Tribunal aquilatar da possibilidade de adopção, no âmbito dos presentes autos.

b) Da prevalência da família – a família como núcleo afetivo mais do que biológico ou jurídico

AX - Impunha-se, s.m.o., outra conclusão quanto à família alargada disponível para acolher a menor BB, o que apenas será possível com um diferente, e mais consentâneo com a realidade, entendimento do conceito de família.

AZ - É a própria Lei que prioriza soluções que viabilizem o direito da criança a manter-se na sua família, nuclear ou alargada, ou noutra família que se revele idónea e com ela tenha estabelecido relação de afectividade recíproca, o que resulta inequívoco da alteração à Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, nomeadamente ao seu artigo 4.º, alínea h).

c) Do princípio da continuidade das relações psicológicas profundas

BA - Este princípio, introduzido pela Lei nº 145/2015, é produto da vontade do legislador de dar guarida ao direito das crianças à preservação das relações afectivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmonioso desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante; conforme é apanágio na Doutrina e Jurisprudência transcrita.

BB - Tal princípio é, pois, desvalorizado pela decisão ora posta em causa, pelos motivos já expostos.

d) Da confiança a instituição como medida de última ratio

BC - A Lei de promoção e protecção hierarquiza as medidas de promoção e protecção, sendo claro o privilégio por medidas no seio da família.

BD - Em reforço do que vem de dizer-se, e com estribo em dados oficiais, o prolongado tempo de permanência em instituição continua a ter uma expressão significativa no universo das crianças e jovens acolhidos institucionalmente, traduzindo, muitas vezes, percursos de vida que, embora ainda curtos, estão marcados por acolhimentos prévios ao atual.

BE - Tal princípio é, de igual forma – parece-nos – desconsiderado pela decisão ora posta em causa.

BF – O Tribunal a quo violou os princípios orientadores da intervenção institucional: da prevalência da família, da continuidade das relações psicológicas profundas e, ainda, da proporcionalidade e actualidade, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que, acolhendo a ratio de tais princípios, julgue procedentes as razões de dissídio suscitadas neste recurso de revista, as quais sejam, decisão de entrega da menor aos recorrentes, com vista à sua adopção por parte da recorrente, a decidir nos presentes autos ou, sem prescindir, o apadrinhamento civil.

B4. Da violação das normas e princípios do direito internacional com vigência direta e imediata na ordem jurídica nacional

BG - O Tribunal recorrido não debate a questão que tem que ver com a salvaguarda do superior interesse da criança nem, tampouco, a questão da família alargada e afetciva, limitando-se a arguir, até sem estribo factual, o regime da família de acolhimento e as incompatibilidades inerentes – que, s.m.o. não têm aplicação no caso concreto - para rematar a impossibilidade de adopção por banda dos ora recorrentes.

BH - Ademais, além de se furtar a apreciar a questão concreta, a solução lograda pelo Tribunal a quo é nada mais do que a que conduz ao corte de todas as relações desta menor com a sua família - ainda que meramente afectiva mas, outrossim, com a biológica - ignorando as competências daquela primeira e, bem assim, as suas convicções e os próprios pareceres técnicos (cuja discussão também omite).

BI - Queremos com isto significar que, qualquer que seja o fito da norma ou normas imperativas, tem de ser plástico e permeável o bastante para acomodar o caso concreto e o superior interesse da criança que o Tribunal recorrido não debate nem aprecia, conforme já se deixou antevisto.

BJ - Tal princípio - e os demais que daí arrancam e aos quais já tiveram os recorrentes ensejo de referir-se - são princípios que extravasam o direito interno e que, na verdade, se sobrepõem ao próprio texto legal no seu sentido mais literal - afinal aquele em que se estriba o aresto em crise.

BL - Ora, com respeito pelo consagrado no artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, teremos no topo da pirâmide, as normas e os princípios de Direito Internacional Geral ou Comum, uma vez que fazem parte integrante do ordenamento ou sistema jurídico nacional.

BM - O «superior interesse da criança», é um princípio de direito internacional público que decorre da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.

BN - Reconhecida de forma inequívoca a circunstância de ser este, o superior interesse da criança, um princípio de direito interno como, bem assim, um princípio de direito internacional público, resulta sobejo que, à luz do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, este princípio se sobrepõe ao direito positivado, mesmo que imperativo.

BO - Na mesma linha, o nº 2 do referido artigo 8.º CRP estabelece um regime de recepção automática, mas condicionada, das normas de direito internacional convencional.

BP - Ora, tal leva-nos a invocar a Convenção sobre os Direitos da Criança que, s.m.o, nos parece ter sido ignorada no sentido em que o aresto recorrido não dedica uma linha a debater o superior interesse da BB e as consequências da sua institucionalização - medida, como é sobejamente consabido, de última ratio.

BQ - Na verdade, sobre o respeito e valorização do primado do superior interesse da criança, pronuncia-se, amiúde, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), -em Jurisprudência a que ora se recorre, supra transcrita - considerando que os Tribunais nacionais haviam andando mal aquando das decisões recorridas, justamente por preterirem o superior interesse da criança a favor da aplicação literal da lei.

BR – Ao actuar da forma descrita, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 3.º e 8.º da Convenção sobre os direitos das crianças.

B5. Da inconstitucionalidade que enferma a decisão em crise por violação do disposto nos artigos 36.º, nºs 5 e 6 da CRP, artigo 67.º e artigo 8.º, ambos da CRP

BS - O aresto refuta qualquer das soluções propugnadas pelos ora recorrentes, o que conflitua com o disposto nos artigos 36.º, nº 6 e 7, artigo 67.º e artigo 8.º, ambos da CRP,

BT - Porquanto afronta o primado do superior interesse da criança e a garantia e proteção à família.

BU - Várias vezes, em várias horas ao longo do presente dia e com recurso a vários browers, a signatária procurou dar aos autos o presente esforço recursório; porém, o sistema eletrónico de apoio aos Tribunais, quando inserido o número do presente processo assume um erro que impede a signatária de avançar (“o processo não foi encontrado”). Tal erro, deve-se exclusivamente à plataforma e não pode ser imputado à signatária ou aos ora recorrentes. Assim, e nos termos do disposto do artigo 140.º, CPC, requer-se a V. Exa. se digne admitir o presente recurso que, cautelarmente, se faz chegar via email com assinatura eletrónica digital e junto da 1.ª instância. Mais se junta documentos que atestam o referido erro e, bem assim, prova testemunhal.

C - JUNÇÃO DE PARECER DE JURISCONSULTO:

Nos termos do artigo 680.º e n.º 2 do artigo 651.º do CPC, junta Parecer da Ilustre Sra. Doutora II, o qual secundamos e ora reproduzimos na íntegra.

Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, em conformidade com as conclusões supra tecidas.”

32. O Ministério Público não apresentou resposta.

33. Por despacho de 28 de fevereiro de 2022, o Senhor Desembargador-Relator, considerando verificados os requisitos gerais de recorribilidade, remeteu os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.

34. A 25 de julho de 2022, EE e FF vieram expor que a primeira havia formalizado a sua candidatura a adotante de BB junto da equipa de adoção do Centro Distrital da Segurança Social de ..., assim como requerer a suspensão dos autos até à notificação, da Recorrente, do respetivo parecer.

35. A 9 de agosto de 2022, EE e FF vieram informar do parecer positivo do Instituto da Segurança Social à candidatura da primeira a adotante da menor BB, requerendo a respetiva apreciação.

36. Estando de novo em causa um recurso interposto a título de revista excecional, os autos foram remetidos à Formação do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 672.º, n.º 3, do CPC, em ordem ao apuramento dos pressupostos referidos no n.º 1 do mesmo preceito.

37. Por acórdão de 17 de novembro de 2022, a Formação do Supremo Tribunal de Justiça admitiu o recurso ao abrigo do art. 672.º, n.º 1, al. b), do CPC.

II – Questões a decidir

Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, estão em causa as seguintes questões de saber se o acórdão recorrido:

- deveria ou não ter prorrogado a medida de confiança a pessoa idónea;

- deveria ou não ter convertido o presente processo em antecâmara de processo de adoção;

- deveria ou não ter convertido o presente processo em antecâmara de processo de apadrinhamento civil;

- viola ou não o princípio do superior interesse da criança, da prevalência da família – a família como núcleo afetivo mais do que biológico ou jurídico, da continuidade das relações psicológicas profundas, da confiança a instituição como medida de última ratio;

- viola ou não normas e princípios do direito internacional com vigência direta e imediata na ordem jurídica nacional;

- se encontra ou não ferido de inconstitucionalidade por violação do disposto nos arts. 36.º, n.os 5 e 6, 67.º e 8.º da CRP.

III – Fundamentação

A. De Facto

Depois das alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação do Porto, foi considerada como provada a seguinte factualidade:

1. AA e BB nasceram, respectivamente, a ... de Abril de 2018 e ...de Junho de 2019 e são filhas de DD e de CC, nascidos, respectivamente, a ... de Agosto de 1985 e ... de Fevereiro de 1993

2. As crianças foram sinalizadas à CPCJ de... a 12 de Julho de 2019 pela equipa RLIS – Rede Local de Intervenção Social do Centro Social de ..., por baixas competências dos pais na prestação dos cuidados básicos das filhas relativamente à higiene e alimentação, sem que tal situação tenha conseguido ser debelada com o acompanhamento de tal entidade, sendo que já anteriormente uma vizinha tinha procurado a RLIS preocupada com a alimentação e higiene das meninas, comparando-as com uma neta sua que já comia sopas e a AA ainda não.

.3. O agregado familiar era acompanhado pela equipa técnica da RLIS desde Janeiro de 2019 tendo em vista a melhoria das competências dos pais por forma a garantir o bem-estar das meninas, tendo realizado várias sessões de sensibilização para os cuidados básicos e várias visitas domiciliárias.

4. Não obstante o referido em 3., os pais das crianças não adquiriram quaisquer competências, mantendo-se a situação de falta de cuidados ao nível da higiene das meninas e da sua alimentação, sendo que, numa das visitas domiciliárias realizadas pela RLIS, a equipa teve mesmo de ajudar os pais a prestar os cuidados de higiene básicos às bebés, dado que quando lá chegaram estavam com a roupa bastante descuidada e suja.

5. A habitação encontrava-se sempre com falta de higiene e organização.

6. Aquando da sinalização, os pais encontravam-se desempregados, referindo conseguir pagar algumas despesas com o rendimento que iam auferindo num restaurante ao fim-de-semana.

7. Os progenitores beneficiavam de alguns apoios económicos, nomeadamente, a nível da alimentação, estando integrados no Programa Alimentar POAPMC e ao nível habitacional, com apoio no pagamento da renda e no restabelecimento do contrato de água na habitação e foram encaminhados para obtenção do abono, cheque bebé e para a procura de emprego.

8. Aquando da sinalização, a habitação não tinha água canalizada, estando tal questão a ser solucionada junto dos serviços competentes.

9. No dia 17 de Julho de 2019, os pais identificaram os padrinhos das filhas à CPCJ, já haviam solicitado o Rendimento Social de Inserção; auferiam mensalmente a quantia de € 149,35 de abono de cada filha; a progenitora trabalhava umas horas num restaurante ao fim-de-semana no que auferia cerca de € 100,00; pagavam € 200,00 de renda de casa; € 20,00 de consumo de água; € 54,00 de consumo de electricidade e consumiam uma botija de gás por mês.

10. No dia 18 de Julho de 2019, a CPCJ de ... realizou visita domiciliária e constatou que a habitação era composta por um quarto, uma sala, uma cozinha e uma casa de banho exterior, sendo o aspecto exterior da casa razoável, mas o interior mau, com má higiene e com roupa suja no chão da casa de banho, estando a situação do fornecimento de água já solucionado.

11. No dia 23 de Julho de 2019, a CPCJ de ... realizou nova visita domiciliária e as roupas do quarto já estavam arrumadas e o armário tinha sido arejado, embora se mantivesse a falta de arejamento da casa e o pai continuasse a fumar no interior.

12. O pai iria iniciar trabalho a 1 de Agosto de 2019, num restaurante em ... e a mãe num outro restaurante, sendo que as meninas ficariam no fim-de-semana aos cuidados da avó materna.

13. A 6 de Agosto de 2019, o agregado familiar dos avós maternos das crianças, residente em ..., era composto pelos próprios e por quatro filhos, nascidos a... de Março de 2002, ... de Setembro de 2003, ... de Maio de 1991 e ... de Janeiro de 2009.

14. A avó materna era doméstica e tem o 6.º ano de escolaridade e avô materno, na altura era operário fabril e voluntário nos Bombeiros de ..., sendo que o filho mais velho trabalhava de noite numa fábrica.

15. A avó materna era beneficiária de Rendimento Social de Inserção e ia ser operada na quinta-feira seguinte no IPO à tiróide.

16. O agregado já solicitara o apoio para pagamento de renda.

17. A 9 de Agosto de 2019, a técnica da ... comunicou à ... que no dia anterior e estando as meninas em casa da avó materna, ficaram por minutos aos cuidados do tio de 10 anos.

18. Em face do referido em 17., a CPCJ de ... efectuou diligências no sentido de as crianças ficarem, a partir de então, nos fins-de-semana aos cuidados da madrinha da AA, LL, divorciada, residente em Espinho com o filho de 18 anos, que gere um café em tal cidade e que revelou ter dificuldades de autocontrolo, sendo que, na primeira ocasião, entregou as meninas aos pais algumas horas mais tarde por não conseguir acalmar o choro delas.

19. A 12 de Agosto de 2019, a CPCJ de ... celebrou acordos de promoção e protecção aplicando às crianças uma medida de apoio junto dos pais pelo período de seis meses, com revisões bimensais.

20. No âmbito dos acordos referidos em 19., os pais comprometeram-se a: aceitar todos os encaminhamentos que pudessem vir a ser efectuados pelas entidades que os acompanhavam, adoptando uma postura responsável no cumprimento das obrigações decorrentes daqueles; manter uma procura/manutenção de actividade laboral que fosse ao encontro das necessidades familiares salvaguardando as rotinas e saudável desenvolvimento das crianças; manter a sua habitação sempre higienizada (roupas arrumadas e lavadas, arejamento principalmente do quarto e sala – abrir janelas e portas pelo menos duas para circulação de ar; não fumar dentro da habitação, casa de banho limpa com especial atenção para a sanita) e devidamente organizada, aceitando a fiscalização das medidas por parte da Comissão ou outra entidade oficial, nomeadamente, através de visita ao seu domicilio; prestar todos os cuidados ao nível da educação, alimentação (conforme panfleto alimentação no 1.º ano de vida) (horários, adequação dos alimentos à necessidade das crianças), higiene (banho pelo menos em dias alternados, vestir roupa interior limpa a seguir ao banho, roupa adequada à temperatura ambiente), saúde, segurança (conforme livros de segurança infantil da APSI – Vale a Pena crescer em segurança 1 ano de vida) e conforto das filhas; assegurar que as filhas frequentassem a creche com assiduidade e pontualidade, assegurando o envio de tudo o que fosse solicitado pela instituição (ex. roupa, fraldas, papas, produtos de higiene); inteirar-se do comportamento e desenvolvimento das filhas, pelo que, deveriam procurar a educadora, comparecendo às reuniões e encontros que fossem agendados; assegurar um ambiente familiar estável e seguro, comunicando cordialmente entre si, evitando qualquer tipo de conflito intra e interfamiliar, assim como, como a vizinhança; assegurar a inexistência de quaisquer factores de risco e perigo que atentassem contra os direitos das crianças; na eventualidade de que pudessem vir a beneficiar de intervenção no âmbito da promoção e reforço das competências parentais, deveriam cumprir com o plano proposto pela entidade de primeira linha; definir e manter rotinas diárias, nomeadamente, no que respeita a horas de sono, alimentação e brincar (ex. garantir rotinas nos horários das refeições, momentos de brincadeira, acordar e deitar); proporcionar momentos saudáveis e de lazer em família, visando o reforço dos laços familiares; não prestar falsas declarações à entidades que os acompanhassem no âmbito dos acordos de promoção e protecção; comparecer na Comissão sempre que solicitados e caso surgisse algum problema, comunicar imediatamente à Comissão e a CPCJ comprometeu-se a: prestar todo o apoio possível a todos os elementos envolvidos nos acordos; a articular com os pais, creche, profissionais de saúde e com todas as entidades de primeira linha, de forma a assegurar o bem-estar e equilíbrio das crianças e a fazer todos os encaminhamentos que considerasse necessários para melhor concretizar os objectivos dos acordos.

21. Na sequência dos acordos referidos em 19. e 20., a CPCJ de ... acordou com a RLIS intervenção junto do agregado em semanas alternadas.

22. Na sequência dos acordos referidos em 19. e 20., a CPCJ diligenciou pela frequência das meninas em creche e pelo respectivo transporte, de forma gratuita para os pais.

23. A 19 de Agosto de 2019, as madrinhas das crianças, em contacto telefónico com a CPCJ de ..., solicitaram esclarecimentos relativamente à intervenção desta entidade, os quais lhes foram prestados.

24. A 22 de Agosto de 2019, o médico de família informava a CPCJ que a criança AA era seguida em consulta de saúde infantil na USF da ... desde Outubro de 2018, com assiduidade, verificando-se uma boa evolução dos parâmetros de crescimento e saúde psicomotora, havendo apenas a registar um episódio de eritema da fralda e alguma deficiência na higiene geral.

25. Já a BB era seguida em consulta de saúde infantil em tal USF desde o seu nascimento, com assiduidade, verificando-se uma boa evolução dos parâmetros de crescimento e saúde psicomotora, havendo apenas a registar alguma deficiência na higiene geral.

26. A 26 de Agosto de 2019, a CPCJ realizou uma visita domiciliária, estando presentes os pais e as crianças, sendo que, no início da mesma, às 10 horas e 30 minutos, estavam a dormir.

27. Na ocasião, os técnicos sensibilizaram os pais para a alimentação das meninas e da família (horários, alimentos e consistência); preparação do biberão da BB, quantidade de leite e tempos entre refeições; em relação à AA ainda para a segurança da casa, brincadeira, rotinas, fase do desenvolvimento infantil, estimulação da fala através da leitura dos pais em voz alta e banho; em relação à BB ainda para as rotinas, exames complementares de diagnóstico e banho e em relação aos pais também actividade laboral da mãe e gestão financeira (compras) e actividade de formação do pai.

28. Em Setembro de 2019, as meninas não tomavam o pequeno-almoço em casa antes de ir para a creche, sendo que a AA levava um biberão com leite frio na mochila e a mãe pedia à auxiliar para que lhe fosse dado no infantário.

29. No dia 16 de Setembro de 2019, a AA não compareceu na creche, alegadamente, por estar com febre.

30. Os pais não a levaram ao médico e quando a técnica da RLIS insistiu que o fizessem, a mãe disse que não havia necessidade e apenas telefonou para uma das enfermeiras da USF de ... que informou que deveria ser uma virose e que lhe dessem bastantes líquidos e sopa ao jantar.

31. A técnica da RLIS questionou a mãe se tinham legumes para fazer a sopa e ela respondeu que sim sem hesitar, tendo o marido DD dito que não tinham e para que ela dissesse a verdade.

32. A técnica da RLIS acompanhou então a progenitora na compra de legumes para confecção da sopa, uma vez que a menina tinha comido papa ao almoço.

33. Na tarde do dia 16 de Setembro de 2019, a técnica da RLIS sensibilizou os progenitores para a importância da alimentação das meninas e para o tratamento e armazenamento de roupas.

34. No dia 17 de Setembro de 2019, a BB foi para a creche sem beber o leite, só tendo parado de chorar quando lho deram.

35. No dia 22 de Setembro de 2019 o pai das crianças foi trabalhar para Espanha para as vindimas prevendo regressar a 26 de Outubro de 2019, mas aí permaneceu apenas durante uma semana e onde partiu um pé, sendo que por tal trabalho declinou o encaminhamento para formação profissional que lhe foi proposto pela CPCJ.

36. No dia 24 de Setembro de 2019, quando a auxiliar/motorista foi buscar as crianças a casa, a mãe tinha adormecido e teve de aguardar que preparasse as meninas, sendo que, mais uma vez, a AA foi para o infantário sem tomar o pequeno-almoço.

37. No dia 25 de Setembro de 2019, a técnica da RLIS foi a casa do agregado, por duas vezes, no período da manhã, mas a mãe não lhe abriu a porta e quando aí regressou no período da tarde, esta disse-lhe que estava em casa, mas que não ouvira.

38. Na ocasião, a casa estava bastante desorganizada, tendo a mãe sido, novamente, sensibilizada para as responsabilidades que tem que ter para com as filhas, nomeadamente, na alimentação, higiene e rotinas, tendo respondido que iria ter mais atenção.

39. As meninas compareciam na creche com higiene deficiente e na semana de 27 de Setembro de 2019, verificaram-se mais situações de “biberão sujo” e “atrasos na entrega das meninas na carrinha”.

40. No dia 26 de Setembro de 2019, a mãe não abriu a porta à auxiliar/motorista para que as meninas fossem para a creche no transporte da instituição.

41. Pelas 9 horas, a mãe foi levar as meninas à creche e a auxiliar da sala constatou que a AA estava com febre, tendo a mãe sido contactada para a ir buscar, o que fez, fazendo-se transportar de táxi.

42. Nesse dia, a mãe não levou a menina ao médico, nem no dia seguinte, não obstante a técnica da RLIS lhe ter dito para o fazer.

43. No dia 27 de Setembro de 2019, a CPCJ deslocou-se a casa dos progenitores das crianças às 9 horas e 15 minutos e às 11 horas e 15 minutos e ninguém atendeu.

44. No mesmo dia, pelas 12 horas, a CPCJ contactou telefonicamente a madrinha da BB, EE e quando questionada acerca de disponibilidade de transitoriamente ficar com as meninas respondeu “sim, mas em que condições?” e que “isso é uma conversa para ter pessoalmente”.

45. Contactado telefonicamente o pai no mesmo dia, este concordou que as filhas ficassem ao cuidado de EE, desde que a mulher também concordasse, mas que não autorizava que fossem para uma instituição.

46. Logo após a CPCJ solicitou a colaboração da CPCJ de ... no sentido de realizar uma visita domiciliária a EE.

47. Às 15 horas e 35 minutos, a CPCJ contactou novamente EE e novamente questionada sobre a possibilidade de acolher as meninas em sua casa, respondeu “para ficar com a BB fico, com as duas não” e “para amanhã não tenho quem fique com elas” e acrescentou considerar que os pais não são capazes de cuidar das meninas.

48. Perante o referido em 47., a CPCJ de ... contactou telefonicamente a CPCJ de ... pedindo que ficasse suspenso o pedido de colaboração referido em 46.

49. Realizada nova visita domiciliária no mesmo dia, às 15 horas e 45 minutos, a mãe e a criança AA estavam em casa porque esta estava com febre, tendo sido informada sobre os recursos da comunidade (SASU de ... e Serviço de Urgência Pediátrica) a que poderia recorrer caso a menina se mantivesse em tal situação.

50. Na ocasião, o quarto tinha as roupas arrumadas e a cama estava feita, embora as fronhas das almofadas estivessem sujas; na cozinha, o fogão estava limpo, a louça lavada e o lixo no balde e em cima do fogão estava uma panela com sopa de legumes e ovo que a progenitora confeccionara no dia anterior; a máquina estava a lavar roupa, inexistiam roupas espalhadas e a sanita encontrava-se suja.

51. Após ter sido confrontada com a decisão da comissão restrita, a progenitora afirmou “foi só esta semana”, “melhorarei”, “não concordo com a ida das meninas para uma instituição”, “não posso viver sem elas” e retirou o consentimento para a intervenção da CPCJ de ..., tendo o processo sido remetido para o Juízo de Família e Menores de ....

52. A 7 de Outubro de 2019, a BB e a irmã AA eram assíduas na creche, sendo que a primeira apresentava uma falta justificada e a segunda, três.

53. A BB era uma criança bem-disposta e sorridente e apenas chorava aquando da hora das refeições ou com sono.

54. Reagia, tal como a irmã, de forma positiva e interactiva com as pessoas que lhe prestavam os cuidados básicos de alimentação, higiene e descanso, colaborando de forma tranquila nesses momentos.

55. Adaptou-se, tal como a irmã, bem à escola e às rotinas da mesma.

56. Mostrava um desenvolvimento sadio e harmonioso dentro dos parâmetros normais para a idade.

57. A progenitora revelava-se cooperante, interessada, responsável nos diversos assuntos relacionados com as filhas, informando, no que concerne à BB, das indicações dadas pela médica e enfermeira de família.

58. Demonstrava preocupação em saber como a BB se adaptara à creche, tendo estado presente nas duas primeiras reuniões de pais.

59. Era receptiva a informações e pedidos direccionados pela escola.

60. A 7 de Outubro de 2019, a BB e a AA revelavam bons cuidados de higiene e de saúde, embora, por vezes, o vestuário nem sempre fosse adequado à estação do ano e, no caso da BB, também ao tamanho e as roupas e mochilas, embora lavadas, cheiravam um pouco a humidade e a tabaco.

61. As meninas já chegavam à creche com o pequeno-almoço tomado.

62. A 7 de Outubro de 2019, ambos os progenitores estavam desempregados.

63. Aquando da realização da visita domiciliária por parte da Sra. Técnica da Segurança Social para elaboração do relatório de avaliação diagnóstica datado de 8 de Novembro de 2019, a casa estava fria e suja, sobretudo, no chão da sala e no quarto.

64. A AA dormia numa cama de grades e a BB numa alcofa colocada dentro de outra cama.

65. O quarto estava cheio de roupas amontoadas, bastante desorganizado e cheirava a tabaco.

66. As meninas tomavam banho numa pequena banheira colocada em cima da mesa da cozinha para não apanharem frio com a saída para a casa de banho.

67. Os carrinhos das meninas estavam abertos, à porta de casa, completamente sujos.

68. O casal continuava a demonstrar bastante dificuldade na gestão dos recursos económicos e não obstante os apoios de que beneficiaram para pagamento de renda, em Março de 2019, em Junho de 2019 e em Setembro de 2019, este último para pagamento de dois meses, tinha três meses de renda em atraso, mostrando-se, na ocasião, a progenitora surpreendida quando confrontada com tal facto, aparentando desconhecer tal realidade, dado que o pagamento da renda “é com ele”.

69. O dinheiro do apoio para pagamento de renda não foi utilizado para esse efeito.

70. O casal foi ainda apoiado em leite para a BB e com € 46,00 para restabelecimento do fornecimento de água.

71. Com o trabalho em Espanha nas vindimas, o pai auferiu € 200,00.

72. O pai gastava € 4,30 diariamente em tabaco.

73. Aquando da visita domiciliária referida em 63., integrava o agregado MM, de 22 anos, que mantivera contacto com o pai das crianças quando esteve em Espanha e lhe pediu ajuda.

74. MM esteve acolhida durante a menoridade numa instituição e foi depois transferida para um Lar residencial atentas as suas limitações intelectuais e ausência de suporte familiar.

75. A 8 de Novembro de 2019, o progenitor apresentava o último registo de remunerações na Segurança Social em Fevereiro de 2019.

76. A progenitora estava, desde meados de Outubro de 2019, a frequentar um curso de formação profissional na área da cozinha, entre as 9 horas e 30 minutos e as 16 horas e 45 minutos, remunerado com uma bolsa mensal de € 200,00.

77. A progenitora deixara de trabalhar no restaurante em ..., ao fim-de-semana, por perceber que tal obstava aos cuidados e acompanhamento das filhas.

78. A 29 de Outubro de 2019, o casal requerera o Rendimento Social de Inserção, cuja prestação mensal importaria na quantia de € 496,63.

79. O casal auferia, mensalmente, a quantia de € 299,70 a título de abono de família das filhas.

80. O agregado era apoiado mensalmente a nível alimentar pelo Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas, incluindo muitos legumes para a confecção de sopas.

81. O pai adoptava uma postura de desresponsabilização em relação à arrumação e organização da casa, respondendo, invariavelmente, “isso é com a CC”, assumindo, concomitantemente, um discurso acusatório e nada afectivo.

82. A creche das meninas e transporte escolar continuava a ser custeado pela Segurança Social.

83. A BB era seguida em consultas de neonatologia.

84. Aquando da realização do relatório referido em 63., a Sra. Técnica da Segurança Social contactou telefonicamente com a madrinha da BB, EE, a mesma mostrou-se disponível para acolher apenas a BB, mas não conseguia encarar um eventual acolhimento como temporário, considerando até desumano e acabando por afirmar “avaliem as coisas em consciência e assumimos a menina como se fosse nossa”.

85. EE encarava com reservas uma maior proximidade por parte da figura paterna da menina, “ele vai colar-se ao meu lado”.

86. Perante o referido em 84. e 85., a Sra. Técnica da Segurança Social articulou com a técnica gestora do processo na CPCJ que corroborou a sua apreciação inicial de que a madrinha da BB “não parece enquadrar-se no espírito da lei de promoção e protecção”.

87. No dia 11 de Novembro de 2019, após terem sido advertidos os progenitores pela Mma. Juiz do Juízo de Família e Menores de ... que as meninas lhes seriam retiradas caso não realizassem as mudanças que se impunham ao nível da higiene e organização da habitação e das roupas das meninas e o pai não iniciasse trabalho, o pai disse que a partir de quarta-feira ia provar ao Tribunal “quem é o DD”, querendo com isso dizer que iria fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para não haver razões de queixa sobre a forma como as meninas estavam a ser cuidadas por si e pela companheira.

88. A 14 de Novembro de 2019, a educadora de infância contactou a equipa técnica da RLIS do Centro Social de ..., dando-lhe conhecimento que as meninas apresentavam uma grande inflamação na zona da vagina, com grande vermelhidão.

89. Tal situação tivera início duas semanas antes e contactara os pais para que comprassem uma pomada adequada, o que não fizeram, nem contactaram os serviços para tal, nem levaram as meninas ao médico

90. No mesmo dia, a Sra. Técnica da RLIS conseguiu consulta no médico de família que constatou que a BB apresentava eritema das fraldas exuberante, com área púbica, perinial e vulvar envolvidas, com aparência de complicação micótica, pelo que foi medicada com Trosyd creme e recomendada a utilização da marca de fraldas anterior para minorar o risco de dermite de contacto e reforço das medidas higiénicas e que a AA apresentava eritema das fraldas, com área púbica e perinial e vulvar afectadas pelo que foi medida com o mesmo creme da irmã e recomendadas medidas higiénicas reforçadas.

91. A progenitora ficou responsável pela aquisição das pomadas durante a manhã e a Sra. Técnica da RLIS agendou atendimento para esse mesmo dia, às 14 horas, para que lhe fossem entregues para, posteriormente, entregar no infantário.

92. Os progenitores não compareceram ao atendimento, nem contactaram para justificar a falta.

93. Às 16 horas e 30 minutos, a Sra. Técnica da RLIS realizou uma visita domiciliária tendo sido recebida pelo progenitor e por MM.

94. Na ocasião, a casa estava suja e desarrumada e o pai referiu que havia sopa feita para as meninas no frigorífico.

95. A sopa estava estragada e só havia alho francês e nabo para a confecção de nova sopa pelo que a Sra. Técnica da RLIS disponibilizou dois sacos de um mix de legumes congelados para que fosse feita uma nova.

96. Entretanto, chegou a progenitora e confrontada com a não aquisição das pomadas referiu não terem dinheiro para o efeito, tendo a RLIS providenciado pela sua aquisição.

97. No fim do mês de Outubro de 2019, o casal recebeu um apoio de € 400,00 para pagamento da renda em atraso e o dinheiro foi gasto, parcialmente, pelo pai nas idas ao Hospital para tratamento do pé, deslocando-se de táxi, pagando € 20,00 por viagem, não obstante ter conhecimento do serviço de transporte gratuito disponibilizado pela Câmara Municipal de ... para o Centro Hospitalar de ... e ....

98. A 4 de Janeiro de 2020, a madrinha de BB enviou para o Juízo de Família e Menores de ... um email com o seguinte teor “Eu, EE, madrinha de BB, residente na Rua.... Pretendo me candidatar a ficar com a guarda da menor, se for declarado que os pais biológicos não têm condições monetárias e psicológicas para o efeito. Pedindo a v. excelência o poder a guarda até a sua maior idade”.

99. A 6 de Janeiro de 2020, GG enviou um email para o Juízo de Família e Menores de ... com o seguinte teor: “Eu, GG, marido HH, residentes na ..., venho por este meio candidatar-me a ficarmos com a guarda da menor, se for declarado que os pais biológicos não têm condições monetárias e psicológicas para o efeito. Pedido a vossas excelências o poder e guarda até à sua maior idade.”

100. No mesmo dia, enviou novo e-mail com o seguinte teor “Mais uma vez boa, A Guarda que estamos a pedir é para a AA. Eu GG sou neto da NN da a Sra. a quem o DD lhe chama de Mãe pois foi com 5 anos que a minha avó o recebeu.

A minha tia/madrinha também é madrinha da BB, a EE.

Sem outro assunto,

Com os melhores cumprimentos, (…)”.

101. A 13 de Janeiro de 2020, a madrinha da criança BB vinha mantendo diversos contactos telefónicos com a Técnica da Segurança Social, informando receber regulamente a menina em períodos mais ou menos curtos e fins-de-semana com o consentimento dos pai.

102. Manifestava a sua disponibilidade para assumir a guarda e cuidados da menina, denotando um apego crescente resultante da maior proximidade com a menina.

103. Mostrava-se cada vez mais apreensiva pois sempre que contactava os progenitores, estes pediam-lhe fraldas, leite, creme para a muda das fraldas, produtos alimentares.

104. A BB foi hospitalizada a 1 de Janeiro de 2020, no Hospital de ..., com uma bronquiolite, após incitamento da madrinha, com quem toda a família esteve na festa de passagem de ano, internamento que se manteve durante 10 ou 12 dias.

105. A 7 de Janeiro de 2020, a criança AA estava em casa sozinha com a MM e esta não abriu a porta quando a equipa técnica da RLIS aí se deslocou para saber do paradeiro da menina.

106. A tia materna das meninas, OO, reaproximou-se da sua irmã e das sobrinhas no contexto do internamento da BB e apercebendo-se da situação de carência vivenciada no agregado, dispôs-se a assegurar o jantar aos pais, a MM e AA, o que acabou por cessar devido ao facto do progenitor se ter mostrado arrogante e reivindicativo perante a refeição fornecida, postura que o marido de OO não aceitou.

107. Na altura, MM estava grávida e excessivamente magra, razão pela qual OO a recebeu em sua casa, sendo que os progenitores das crianças a pressionavam para regressar a casa.

108. A 13 de Janeiro de 2020, o progenitor continuava desempregado e a progenitora terminara o curso de formação profissional, tendo-lhe sido entregue uma ficha de inscrição para um novo curso com início a 20 de Janeiro de 2020 mas ainda não a efectuara.

109. A 14 de Janeiro de 2020, MM relatou à Sra. Técnica da RLIS que os progenitores das meninas se agridem mutuamente e que ela, inicialmente, tinha o cuidado de retirar as crianças do local e, posteriormente, as agressões começaram também a surgir sobre as meninas, já que quando elas choravam o pai dava-lhes chapadas, empurrava-as sobre os móveis, chegando mesmo, a certa altura, a atirá-las quando estavam com tosse para cima da cama de forma abrupta enquanto dizia “estou farto disto, já não tenho paciência para vos aturar”; que o progenitor das crianças lhe enviou uma mensagem pelo Facebook, no Domingo anterior, a dizer que se ia suicidar com as meninas; que nunca quis ir para nenhuma instituição por causa das meninas, dizendo “prometi à AA que ia fazer tudo por ela”; que chegou a manter relações sexuais com o pai das meninas uma vez porque ele a obrigou e que voltou a tentar diversas vezes, mas conseguiu sempre “despistá-lo”.

110. No mesmo dia, a tia materna OO mostrou-se disponível para ficar a cuidar da AA, embora pudesse ter algumas dificuldades económicas, já tem que tem quatro filhos, ao tempo, com 14, 8, 6 e 1 ano.

111. Na ocasião, OO relatou à Sra. Técnica da RLIS que o seu irmão PP, tio materno das crianças e que estava muitas vezes em casa da progenitora da BB e da AA, tentou abusar do seu filho mais velho e que apresentou queixa contra o mesmo e que, na sequência disso, PP tinha de se apresentar na GNR de ..., semanalmente.

112. A 14 de Janeiro de 2020, os progenitores tinham cinco meses de renda em atraso e a senhoria já dera seguimento ao processo de despejo.

113. O casal tinha em casa um cão com o qual não tinham o mínimo de higiene, queixando-se os vizinhos do mau odor.

114. A 16 de Janeiro de 2020, foi proferido o seguinte despacho: “face à gravidade da situação que as menores se encontram, mas estando em curso diligências com vista a apurar uma alternativa no seio da família alargada para evitar o acolhimento residencial das crianças, alternativa que deverá contemplar as duas crianças ou pelo menos garantir que as mesmas possam manter contactos muito frequentes, com vista a manterem os laços fraternos, notifique a Técnica da Segurança Social, via telefone, para proceder à entrega no imediato das crianças a familiar com estas características ou, em alternativa, indicar vaga para o seu acolhimento, tudo no prazo aludido na douta promoção que antecede”.

115. Na sequência do despacho proferido em 114., a Sra. Técnica da Segurança Social informou o tribunal que pedira colaboração urgente com vista ao estudo das pessoas subscritoras dos requerimentos referidos de 98. a 100., impondo-se, no mínimo para o efeito, uma entrevista, uma visita domiciliária e a elaboração de informação ainda que breve, prevendo-se a sua obtenção no dia 20 ou 21 de Janeiro.

116. Para salvaguarda das meninas no fim-de-semana de 18 a 20 de Janeiro de 2020, a Sra. Técnica da Segurança Social acordou com a madrinha de BB que a recebesse em sua casa em tal fim-de-semana, assim como a irmã AA.

117. Mais informou a Sra. Técnica da Segurança Social que se encontrava assegurada vaga para acolhimento residencial das meninas, caso o tribunal assim o decidisse.

118. Não obstante o referido em 116., a 20 de Janeiro de 2020, a AA foi entregue ao casal GG e HH e a BB manteve-se, desde então, aos cuidados de EE onde ainda se encontra.

119. No dia 20 de Janeiro de 2020, quando contactados pela PSP de ... às 11 horas e 15 minutos, que repetidamente tocou à campainha, os progenitores acordaram, sendo visível humidade nos vidros e paredes associada a um frio gélido no interior da habitação.

120. EE nasceu a 22 de Julho de 1969, é divorciada, tendo dois casamentos anteriores dissolvidos, tem o 12.º ano de escolaridade e vive em união de facto há 12 anos com FF, divorciado, nascido a 15 de Abril de 1958, com o 9.º ano de escolaridade “antigo”.

121. O agregado de EE é também composto pela filha desta, QQ, actualmente, com 18 anos e estudante do 12.º ano de escolaridade, pretendendo integrar o ensino superior no próximo ano lectivo.

122. FF tem dois filhos, com 34 e 39 anos, ambos engenheiros electrónicos e com quem mantém um bom relacionamento.

123. EE é operária fabril desde 2013 na empresa “G..., Lda.” com um horário de trabalho das 8 às 18 horas e 10 minutos e às sextas-feiras até às 15 horas e aufere, em média, mensalmente, € 900,00.

124. É uma empregada cumpridora.

125. FF é operador de caixa no posto de combustível “...” da ..., em ..., tem um horário rotativo por turnos, das 6 às 15 horas e das 15 horas às 24 horas e aufere um vencimento mensal, em média, no montante de € 750,00.

126. É uma pessoa socialmente bem integrada e estimada.

127. A filha de EE, QQ, praticou actividades extracurriculares: ballet durante nove anos, ginástica rítmica, com participação nos campeonatos nacionais, ginástica, aeróbica, piscina, música e basquete.

128. O agregado habita num apartamento T3, inserido em zona residencial da cidade de ....

129. A habitação tem boas condições de habitabilidade e salubridade e dispõe de mobiliário e equipamento doméstico adequado.

130. Aquando da realização da visita domiciliária por parte da Sra. Técnica da Segurança Social, RR, a 17 de Janeiro de 2020, a BB dispunha de quarto individual, com mobiliário e equipamento adequado à sua faixa etária, tendo FF referido “é o quarto da princesa”.

131. No dia 17 de Janeiro de 2020, EE declarou à Sra. Técnica da Segurança Social, “sou madrinha consciente que quando assinei o papel não era para dar a prenda na Páscoa, o que é dito ser madrinha é que na falta dos pais é as madrinhas que o fazem (…), depois é o coraçãozinho, é o amor que eu porto por aquela criança, aquele sorriso enche-me os olhos, estou apaixonada, mas lá em casa estamos os três assim. O que eu pretendo é fazer pela BB aquilo que fiz até hoje pela QQ e assumir a responsabilidade da BB, de a educar e encaminhar na sociedade, a minha motivação será sempre aquela que tive e tenho em relação à minha filha. Eu não quero que os pais venham desestabilizar, a todos os níveis, não admito a ninguém que venha desestabilizar emocionalmente a BB, quero que ela seja bem encaminhada na vida, na sociedade, no seu íntimo, quero que ela seja uma criança feliz, com força no seu interior para enfrentar este mundo. O FF é uma pessoa com o coração do tamanho do mundo, é um excelente companheiro, sempre ao meu lado e a QQ não podia ser mais feliz”.

132. Na mesma ocasião, FF declarou “a EE estimula muito a criança, fala muito com ela. A minha relação com a EE não podia ser melhor, é para a vida (…), damo-nos todos muito bem cá em casa. A EE é uma pessoa maravilhosa, sempre disposta a fazer o bem, a ajudar (…) é uma pessoa muito metódica, muito certinha, tudo tem de estar muito organizado. Cá em casa toda a gente faz o que é necessário (…), somos uma família de verdade, todos ajudamos e vivemos todos uns para os outros. Em casa não há vícios, não há droga, álcool, tabaco. Passeamos muito juntos, sempre juntos, a QQ conhece Portugal inteiro, com a BB vais ser igual, irá sempre connosco, se ficarmos com ela, como desejamos (…) temos que lhe dar uma vida como demos aos outros, se calhar até melhor, porque temos mais disponibilidade mais paciência e mais experiência. A QQ na escola sempre participou em todas as actividades e em todos os eventos e em muitas actividades extracurriculares (…) e isso fez dela uma menina muito educada, muito desenvolvida, com uma visão da vida muito real (…) a QQ consegue, pela educação que teve, conviver na sociedade com todos, mas mantém-se no seu lugar, afastada do álcool, de drogas, não fuma. É isso que a BB irá ter, é a nossa maneira de ser, as crianças precisam de conviver e nada melhor que conviver na sociedade, integradas em actividades. Eu não vou permitir, por muito que nos custe, que os pais interfiram na educação da menina, a menina tem de crescer livre, saudável (…) as crianças são imprevisíveis, têm de estar sempre vigiadas, nunca as podemos deixar sozinhas, não nos podemos descuidar, é isso que acontece quando ela vem para nossa casa, sempre temos que ter muita atenção na menina. A menina quando vem da casa dos pais custa a adormecer, lida mal com o sono antes de dormir, depois é tranquilinha, maravilhosa.”

133. O casal declarou ainda “temos uma ligação muito forte com a menina e uma grande preocupação pela sua saúde e pelo seu bem-estar, gostamos e tratamos dela como se fosse nossa filha de verdade” e pretender integrá-la na creche da Misericórdia de ... “porque tem padrões de funcionamento, de regras, de educação e de bem-estar que não trocava por outra, fiquei muito feliz por a minha filha lá ter estado, é o que quero para a BB”.

134. EE, além de tia materna é madrinha de GG e este enviou os emails referidos em 99. e 100., na sequência de um contacto daquela para aferir da disponibilidade do mesmo e da sua mulher HH para cuidarem da criança AA, uma vez que ela se tinha disponibilizado para o efeito, relativamente à criança BB.

135. GG e HH viveram em união de facto um com o outro durante cinco anos e casaram em Outubro de 2019 e sempre desejaram ter filhos, mas por problemas de saúde de HH não puderam concretizar tal desejo em virtude dos tratamentos de fertilização não terem sido viáveis.

136. GG e HH só conheciam as meninas BB e AA por fotografias remetidas por EE.

137. GG e EE acordaram um com o outro que caso se concretizasse o acolhimento das meninas como ambos pretendiam, cada um asseguraria o fim-de-semana da outra criança na sua casa por forma a que as irmãs pudessem ter convívios sadios e manterem relação entre ambas.

138. O pai de HH, aquando do contacto efectuado pela Sra. Técnica da Segurança Social, declarou ter sido ele próprio abandonado aos cinco dias de vida e ter sido criado por uma mãe “adoptiva”, a qual nunca lhe escondeu a identidade da mãe biológica.

139. Por despacho proferido a 23 de Janeiro de 2020, foi decidido que até à diligência agendada para o dia 3 de Fevereiro de 2020, as crianças se mantinham nos agregados a quem foram entregues.

140. A AA não teve qualquer dificuldade de integração no novo agregado e decorrida uma semana, na visita domiciliária realizada pela Sra. Técnica da Segurança Social SS, que não conhecia, não manifestou qualquer dificuldade de interacção com esta, embora no início tenha recusado o colo.

141. Na ocasião, HH foi instando a menina a fazer as habilidades típicas da idade que lhe havia ensinado durante a semana, tendo a AA correspondido positivamente aos pedidos, acabando por imitá-la, fazendo as “gracinhas” pedidas: dançava, galinha põe o ovo, gesto com os dedos do “pai Lipe” ter ido trabalhar, etc.

142. Durante a primeira semana em casa do referido casal, a AA começou a dizer algumas palavras “pai”, “mãe”, “avó”, “avô” e “papa”.

143. A criança BB não revelou dificuldade de integração no novo agregado.

144. EE providenciou pela vacinação de BB a 30 de Janeiro de 2020, vacina que a menina tinha em atraso desde os 6 meses.

145. Também a BB interagiu com a Sra. Técnica da Segurança Social, RR, que não conhecia, a 31 de Janeiro de 2020, de forma sorridente e bem-disposta.

146. A BB integrou uma ama no dia 27 de Janeiro de 2020, por indisponibilidade de vaga nas creches de preferência da madrinha.

147. Por acordo de promoção e protecção havido e homologado por sentença a 3 de Fevereiro de 2020, foi aplicada às crianças BB e AA uma medida de confiança a pessoa idónea pelo período de seis meses, revista trimestralmente, sendo que BB, na pessoa de FF e EE e AA, na pessoa de GG e HH.

148. No âmbito de tal acordo, ambos os casais comprometeram-se, além do mais, a diligenciar no sentido de as menores terem contactos entre si, preferencialmente, pelo menos, de quinze em quinze dias e que os progenitores poderiam visitar as filhas em regime livre, em termos concretos a acordar com ambos os casais.

149. Na ocasião, foi transmitido pela Mma. Juiz que presidiu à diligência a ambos os casais, que as meninas ficariam ao seu cuidado no âmbito dos presentes autos, sempre a título precário, que não está em causa um projecto adoptivo, a menos que os próprios viessem, no futuro, a iniciar um processo desta natureza e que, em tal caso, poderiam ser confrontados com dificuldades jurídicas ao nível da dispensa do consentimento dos progenitores, do que declararam ter ficado cientes e ainda assim pretenderem ficar com as meninas à sua responsabilidade, tendo GG exibido um vídeo comprovativo em como a AA apresentava receio perante figuras masculinas de alguma idade e, em tal sequência, EE referiu a existência de uma suspeita antiga de abuso sexual da sua própria filha QQ pelo pai das meninas, suspeita que chegou a ser investigada em processo-crime, investigação que mereceu despacho de arquivamento.

150. GG e HH referiram, na ocasião, terem pensado em candidatar-se à adopção, mas que desistiram de tal projecto em face da demora previsível da entrega de uma criança.

151. A 3 de Fevereiro de 2020, a AA foi a uma consulta médica e foi-lhe diagnosticada candidíase genital e micose nas unhas dos pés.

152. No dia 24 de Fevereiro de 2020, a Sra. Técnica da Segurança Social, SS, solicitou ao Juízo de Família e Menores de ... agendamento de uma diligência judicial com o objectivo de se redefinir o projecto de vida da AA.

153. O casal GG e HH, após um conflito havido entre ambos, separou-se no dia 18 de Fevereiro de 2020, sendo que esta última levou consigo a AA para casa dos seus pais.

154. A 19 de Fevereiro de 2020, HH já tinha procedido à denúncia do contrato de arrendamento da casa de morada de família onde permanecia GG.

155. GG padece de depressão há muitos anos, o que o deixa emocionalmente instável, tendo tido acompanhamento psicológico, pedopsiquiátrico e mantendo acompanhamento psiquiátrico com toma de medicação.

156. EE tem conhecimento do referido em 155. e quer a mesma, quer o próprio casal GG e HH, quer os pais e irmã desta, omitiram tal facto às Sras. Técnicas da Segurança Social.

157. No segundo contacto mantido com a Sra. Técnica da Segurança Social, SS, a AA pediu-lhe colo, querendo mostrar todas as habilidades que tinha aprendido.

158. TT, irmão de DD, enviou um email ao tribunal no dia 2 de Março de 2020, com o seguinte teor: “conforme pedido, venho por este meio enviar a sua Meretissima Doutora Juíza as provas da violência doméstica, entre o meu irmão GG e a minha cunhada HH. Creio que não será o melhor meio familiar para a minha sobrinha AA. Pelo que avalie as minhas condições familiares e financeiras pois é meu desejo e da minha mulher, em acordo total do meu irmão DD e da minha cunhada CC, que a minha sobrinha venha para a nossa companhia”.

159. A 26 de Março de 2020, TT e mulher UU, residentes em França, solicitaram novamente ao processo que a criança AA lhes fosse entregue a coberto de uma medida de promoção e protecção.

160. No dia 23 de Março de 2020, o Sr. Presidente da Junta de Freguesia de ...contactou o Centro Social de ... solicitando informação sobre um casal (DD e CC) que teria feito uma denúncia aos jornalistas da C..., alegando estar a passar fome com as filhas menores e que ninguém os estaria a ajudar e que nunca tinham sido apoiados por nenhuma entidade.

161. O Sr. Presidente da Junta de Freguesia, não conhecendo o casal, já se deslocara a casa dele e questionados, continuaram a afirmar não ter o apoio de ninguém.

162. Na sequência do contacto referido em 160., a Sra. Assistente Social do Centro Social de ... realizou, de imediato, visita domiciliária com o Sr. Presidente da Junta.

163. Na ocasião, a casa estava desarrumada, descuidada, suja e com muita humidade nos tectos e paredes.

164. Existia comida cozinhada dentro de tupperwares no frigorífico e legumes no congelador (alhos francês e brócolos da última entrega do programa alimentar) e tinham ainda 11 pacotes de esparguete e 1 de arroz, leite, cereais e leguminosas em conserva.

165. Quando questionada a progenitora pela Sra. Assistente Social sobre se estavam a passar fome, respondeu que não, que só lhes faltava carne e peixe no congelador.

166. Na ocasião, o progenitor, por várias vezes, se exaltou com a companheira pela situação em que os colocou, alegando só ter sabido da denúncia após o telefonema ter sido feito.

167. O progenitor estava a exercer actividade profissional desde Fevereiro de 2020.

168. Foi-lhes atribuído um cabaz de alimentos essenciais e o Sr. Presidente da Junta de Freguesia comprometeu-se a dar um balde de tinta para poderem pintar os tectos e paredes com humidade.

169. No dia 6 de Abril de 2020, a progenitora enviou um email ao processo com o seguinte teor: “Olá boa noite Sra. Juíza… Eu chamo-me CC e o meu marido DD e somos pais das menores AA e de BB e estou a escreve para dizer que a minha filha AA vai fazer 2 anos no dia ... de Abril e que o Sr. GG não deixa fazer videochamada para desejarmos os parabéns a nossa filha… E a partir do dia 29 de Fevereiro de 2020 nos não sabemos nada da AA. Mas deixo referido que nos continuamos a ver a menor BB por videochamada”.

170. A 21 de Abril de 2020, o casal GG e HH estavam reconciliados.

171. O médico psiquiatra de GG que o acompanha desde 9 de Maio de 2019 confirmou o diagnóstico de quadro de sintomatologia depressiva associada a traços de personalidade reveladores de dificuldades em lidar com a frustração e de maior impulsividade.

172. A 21 de Abril de 2020, GG cumpria as orientações terapêuticas propostas, psicofarmacológicas incluídas, encontrando-se estabilizado, com humor adequado e sem alterações comportamentais, entendendo o médico referido em 171. que o quadro psiquiátrico de GG não o incapacita para o exercício das funções parentais.

173. A 21 de Abril de 2020, as meninas tinham mantido um convívio presencial em casa de EE e com a presença dos pais.

174. Na ocasião, segundo HH e EE, a AA, quando viu os pais, chorou, fugiu, escondeu-se e recusou qualquer contacto físico com os mesmos e a BB reagiu com indiferença e os pais não se esforçaram para recuperar o contacto das filhas.

175. No dia de aniversário de AA, ocorrido a ...de Abril de 2020, HH realizou uma videochamada para EE e BB para que lhe cantassem os parabéns.

176. HH e GG não convidaram os pais para a festa de aniversário da menina, não permitiram a realização de videochamada, alegando a primeira, não o ter feito em virtude do referido em 174. e por não querer que aqueles soubessem os seus contactos pessoais.

177. EE reportou à Sra. Técnica da Segurança Social SS, em Abril de 2020, que convivera muito com GG quando este era criança e que conheceu HH apenas no dia do casamento, tendo convivido presencialmente com a mesma algumas vezes.

178. Enalteceu as qualidades de HH em relação aos cuidados prestados à AA, reforçando, algumas reservas em relação a GG, que considera muito inseguro e imaturo.

179. A AA ficava muito feliz quando via a irmã presencialmente e em videochamada.

180. O referido em 158. e 159. ocorreu por sugestão de GG aquando da separação da mulher e por forma a impedir que a AA ficasse a cargo desta, sendo que, na ocasião, sugeriu a TT que pedisse também a entrega da criança BB, dizendo que o próprio tribunal privilegiava o facto de as duas meninas crescerem juntas, o que motivou a zanga de EE.

181. EE reportou à Sra. Técnica da Segurança Social, em Abril de 2020, que não indicou TT para acolher a AA porque reside em França e porque, num passado recente, recusou ser padrinho da menina.

182. A propósito do pedido formulado por TT e mulher UU, EE, GG e HH reportaram à Sra. Técnica da Segurança Social, em Abril de 2020 que o mencionado casal emigrou para França há cerca de três ou quatro anos, sendo falso que regressem a Portugal duas vezes por ano; que o casal apenas regressou separadamente e sem os filhos, duas ou três vezes, aquando da morte da mãe de UU, da doença da avó de FF e para tratar de uns documentos; que UU proibiu a vinda dos filhos ao casamento de GG e HH não obstante estes pagarem os bilhetes; HH está de relações cortadas com UU há cerca de três anos, motivado por uma publicação no facebook; que o casal foi recentemente despejado por falta de pagamento de rendas.

183. Por despacho proferido a 4 de Maio de 2020, foram mantidas as medidas de promoção e protecção aplicadas às crianças; indeferida a pretensão de TT e mulher e declarado territorialmente incompetente o Juízo de Família e Menores de ... para continuar a tramitar o processo, determinando a separação do mesmo quanto a cada uma das meninas e a sua remessa respectiva ao tribunal competente.

184. A 3 de Agosto de 2020, o agregado familiar de EE era também composto pela mãe desta, nascida a 24 de Janeiro de 1934, por ter sofrido um AVC em Novembro de 2019, esperando a primeira que a sua mãe volte para a sua própria casa, desconhecendo quando tal sucederá.

185. Aquando da elaboração do relatório tendo em vista a revisão da medida, datado de 3 de Agosto de 2020, FF declarou à Sra. Técnica da Segurança Social, actual gestora do processo, que “somos um tipo de casal… que deviam ser todos assim! Ela vive para a filha e eu acompanho”, alegando EE ter uma relação muito forte com a sua filha QQ e FF que a considera como sua filha.

186. Na ocasião, FF declarou ainda que “vivo para a família (…). Vivo para a sociedade. Vivo em função delas (…). Sou bonança… calmo, o que interessa é a família” e de seguida apontou o facto de ter deixado de fumar, como exemplo de altruísmo e responsabilidade que sente para com a família.

187. Referiu que “devia vincar mais o que pretendo”, considerando-se “mais flexível” do que a companheira e esta mais “assertiva” e que “a minha VV ferve em pouca água!” e depois, revelando apreço e admiração pela companheira declarou que com ela “as crianças são orientadas sem ter que bater… Há regras. As crianças criam-se com calma e muito cuidado”.

188. EE esteve algum tempo emigrada em França.

189. O casal ensinou a BB a chamar-lhes “mamã” e “papá” alegando que se chamasse “madrinha” e não “mãe” a EE, ficaria logo rotulada por terceiros e que pretendem habituar a menina a chamar “pai DD” e “mãe CC” aos pais.

190. Aquando do acolhimento de BB, a filha de EE, QQ assentiu no mesmo referindo “a menina não tem culpa de ter nascido”, mas colocou uma condição: que o acolhimento da bebé não poderia condicionar e impedir a sua ida para a universidade.

191. Aquando da realização da visita domiciliária para elaboração do relatório referido em 185., a BB apresentava-se bem cuidada ao nível dos cuidados básicos de higiene, vestuário e alimentação.

192. É uma menina com facilidade em relacionar-se, bem-disposta e muito cativante e “fácil” de cuidar ao nível da alimentação e banho.

193. Demonstrou muito à-vontade com o casal, com muita facilidade de interacção, muito sorridente para ambos os elementos e feliz.

194. Ambos os elementos do casal demonstraram muito afecto pela menina.

195. O casal disse-se muito apaixonado pela BB e emocionaram-se quando falaram dela e, em tom de brincadeira, disseram que a QQ vai ser doutora e a BB, engenheira e, já sem tom de brincadeira, ser sua intenção criar a BB e, se for essa a sua vontade, apoiá-la e facilitar-lhe a ida para a universidade, declarando ambos “está a ser criada como a nossa filha!”.

196. A BB continua integrada na ama, aguardando a existência de vaga na creche pretendida pelo casal.

197. EE e o companheiro FF decidiram vacinar a BB com uma vacina extra Plano Nacional de Vacinação, com um custo de € 90,00, por recearem que lha retirassem, acusados de negligência.

198. Ao longo das entrevistas que manteve com o casal, este abordou sempre a situação da AA e FF chegou mesmo a declarar “gosto muito da menina e tenho pena de não ter a outra” e aparentaram estar a ponderar o acolhimento dela também, captando que a medida que lhe estava aplicada não a estaria a proteger, mas na última entrevista disserem, com algum pesar, “não dá”.

199. A filha de EE, QQ, foi questionada sobre tal possibilidade e alertou o casal para o facto de assim como o pai das meninas ter deficit cognitivo, também estas poderão ter esse ou outro problema, pelo que não é prudente acolher duas crianças havendo esse risco, por ser demasiado “pesado”.

200. O agregado continua a habitar no apartamento T3, sendo que um é o quarto de QQ, noutro quarto dorme a mãe de EE e o terceiro é o quarto do casal, onde também dorme a BB numa cama de grades, não perspectivando o casal que aí deixe de dormir enquanto a mãe de EE permanecer no agregado.

201. Aquando da realização da visita domiciliária referida em 191., o apartamento mantinha-se devidamente mobilado e equipado, com condições de conforto e salubridade.

202. O agregado despende mensalmente a quantia de € 305,00 de renda de casa; cerca de € 140,00 em consumos de água e electricidade; € 39,90 de televisão e € 207,00 de prestação relativa à aquisição de veículo automóvel, sendo que o agregado tem dois.

203. O casal manifestou mais uma vez, tal como afirmara à Sra. Técnica da Segurança Social, RR, pretender construir uma casa no terreno que adquiriram em ..., mas ainda não saber quando tal sucederá.

204. Desde 20 de Janeiro de 2020 até à data do debate judicial – 4 de Fevereiro de 2021 -EE e FF proporcionaram aos pais três contactos presenciais com a BB, o último dos quais, no Natal de 2020 e os dois anteriores, dois/três meses após o acolhimento.

205. No Natal de 2020, DD e EE desentenderam-se relativamente ao projeto de vida da BB, tendo aquele acusado esta de lhe estar a tirar a filha e esta questionando-o se pretendia que, ao invés, a menina fosse para uma instituição e pressionou-o para que ele dissesse que queria que a filha ficasse com ela, tendo-lhe dito “só há um caminho: ou ela fica comigo aqui ou nunca mais a vês. Tu já as perdeste”.

206. Desde que a menina BB se encontra acolhida por EE e FF, as videochamadas mantidas com os pais, sempre ocorreram por iniciativa destes últimos, sendo que deste o Natal de 2020 até à data da primeira sessão do debate judicial não ocorreu nenhuma.

207. A progenitora tem o 12.º ano de escolaridade e o progenitor, o 6.º ano de escolaridade.

208. O progenitor é filho de um ex-cunhado de EE que quando se separou da mãe de DD, tendo este cinco meses de idade e ficou com ele aos seus cuidados, sentindo-se incapaz, o entregou aos cuidados da ex-sogra, mãe de sete filhos, crescendo nesse agregado.

209. Os progenitores da criança vivem em união de facto um com o outro há cerca de três anos, sendo que se conheceram num restaurante em ..., onde ambos trabalhavam, em Abril de 2017 após o que iniciaram união de facto, tendo a progenitora engravidado da AA em Agosto do mesmo ano.

210. Viveram até Janeiro de 2019 em casa da avó materna da menina em ..., tendo deixado tal agregado por desentendimentos entre aquela e o progenitor por causa da contribuição na renda da casa.

211. O casal procurou os serviços de acção social local em ... no dia 29 de Janeiro de 2019 após arrendarem a casa onde passaram a habitar desde então sita na Rua ....

212. Na ocasião, o progenitor trabalhava como empregado fabril e a progenitora estava desempregada.

213. O pai acabou por ser despedido por faltas ao trabalho, no mês de Fevereiro de 2019, ficando sem direito a subsídio de desemprego.

214. Em Outubro de 2020, o progenitor estava, desde 30 de Setembro de 2020, a trabalhar como empregado de mesa no Restaurante “...”, em ..., de terça-feira a Sábado, entre as 11 horas e 30 minutos e as 16 horas e auferia € 10,00 por dia.

215. A progenitora estava desempregada há mais de 12 meses e sem auferir qualquer rendimento.

216. Tinham 12 meses de renda em atraso e a progenitora afirmou terem já recebido uma notificação do Tribunal para saírem da casa.

217. Aquando da realização de visita domiciliária, em Outubro de 2020, a mãe afirmou não terem qualquer dinheiro e sobreviver com a ajuda alimentar do Centro Social de ....

218. Na ocasião, o pai manifestou à Sra. Técnica da Segurança Social, descontentamento e desapontamento face à relação e criticou a companheira: “sempre trabalhei sozinho. Ela só arranja umas horas na cozinha. Ela só procura formação. (…) estou por um fio para acabar a relação. Não vou dar cabo da saúde por causa de uma pessoa que não se preocupa com as filhas. (…). Se me tiram as filhas, eu saio da vida da CC. (…) Às vezes não faz o comer para mim… de vez em quando não faz sopa. Nas férias (quando as filhas ainda estavam junto dos pais) era eu que fazia a sopa para as minhas filhas” e quando questionado sobre se a companheira sabe da sua insatisfação respondeu “ela ainda não percebeu. Eu falo com ela, mas ela muda a conversa (…). Ela mente”.

219. Atendendo à situação de extrema pobreza e pese embora resistentes à intervenção, continuavam com o apoio do Centro Social de ... e haviam requerido o Rendimento Social de Inserção e a progenitora iniciara a frequência de ateliers do Centro e pretendiam candidatar-se a realojamento por parte da Câmara Municipal de ... o que pode levar anos a concretizar.

220. Na ocasião, a progenitora negou suporte da sua família e da do seu companheiro e mencionou que talvez a ajuda pudesse vir da família de EE, já que esta acolheu a própria mãe em sua casa, ficando assim desocupada a casa desta, mas que ainda não efectuara qualquer diligência ou pedido para ocuparem tal casa.

221. Na ocasião, a progenitora declarou à Sra. Técnica da Segurança Social que “em relação à BB não tenho nada a apontar quanto à família que está com ela. Mas eu ficava mais aconchegada se estivesse comigo. A BB é bem tratada. Tem tudo bom para ela. Escolhemos esta madrinha porque se algum dia acontecesse isto… a madrinha é a segunda mãe”, ter consciência que não tem condições para ter a BB consigo, mas acrescentou que “no futuro é para ficar comigo” e o pai declarou “estou a lutar por elas as duas”, “eu vou querer recuperá-las”, “a BB está linda. Sinto a falta da BB mas, até eu ter condições, está lá bem. Mas não aceito a adopção por parte da EE”.

222. A 17 de Novembro de 2020, os progenitores declararam perante Juiz, quando questionados sobre o que entendem ser melhor para a filha, concordarem que permaneça junto de EE e FF enquanto não reunirem condições para que volte para si.

223. Na mesma ocasião, EE declarou que os pais não têm estado com a BB porque não querem, nunca os proibiu e já os convidou para virem vê-la presencialmente e não o fizeram, também já os convidou para virem passar o Natal com ela, que sempre que os pais pedem fazem videochamada e questionada sobre o que acha ser melhor para BB, “que pretende para ela, o que pretende para a sua filha”.

224. EE desconhecia que os pais de BB estivessem na iminência de ser despejados.

225. O progenitor DD padece de deficit cognitivo.

226. Na terça-feira anterior à realização do debate judicial, a progenitora das crianças sofreu um aborto espontâneo (Facto eliminado pelo Tribunal da Relação).

227. Aquando da notificação para estar presente em ... no debate judicial, a progenitora da criança pediu a EE que os fosse buscar, o que esta recusou, sendo certo que também não o fez, na segunda sessão agendada não obstante já ter conhecimento do aborto, entretanto, sofrido por CC (Facto eliminado pelo Tribunal da Relação).

228. Os pais deslocaram-se de comboio para ... para estarem presentes na terceira sessão do debate judicial, custeando os bilhetes e EE foi buscá-los à estação de ... e transportou-os até ao edifício do tribunal (Facto eliminado pelo Tribunal da Relação).

229. Actualmente, o pai está desempregado e a mãe frequenta um curso de formação.

230. Em sede de debate judicial, a progenitora declarou entender que o melhor para a sua filha BB é ficar com EE e com FF até aos 18 anos e questionada sobre o que sucederia depois, respondeu “só a menor é que vai decidir”.

231. Em sede de debate judicial, o progenitor declarou concordar que a BB fique com a irmã, mas “não vou deixar de lutar pela minha filha”, “não as vou abandonar”, “vou jurar no tribunal porque vou lutar pelas minhas filhas até onde eu puder” e quase no final das suas declarações, a instâncias, declarou “vou já decidir! Prefiro que a menina fique com a VV porque tem mais condições do que eu” e concordar que a BB seja adoptada pela D. EE.

232. EE esteve durante muitos anos sem falar a DD, devido aos alegados abusos sexuais por parte deste à filha daquela.

233. Após o nascimento de BB, EE voltou a falar com DD e foi convidada pelo casal para ser a madrinha da menina.

234. Quando a progenitora engravidou da criança BB, o casal EE e FF pensaram em conjunto “provavelmente esta menina vamos de ter ser nós a criar” e foram a casa dos progenitores “ver como ela era” logo que teve alta hospitalar e, quando aí se deslocavam para a ver os pais pediam-lhes para levar fraldas, toalhetes e comida, o que aqueles faziam.

235. Em sede de debate judicial, EE declarou querer adoptar a BB se lhe for possível e não querer esconder a verdade à menina, “eu amo esta menina”; “podem ter visitas se o tribunal o entender, se o tribunal entender que é melhor o corte!... não sei se será positivo manter os pais por próximo”; “já à data queria o que quero hoje. Disseram-me não ser possível se os pais não concordassem”.

236. Em sede de debate judicial FF declarou querer adoptar a BB, nunca ter procurado saber quais os procedimentos legais para o efeito e não ver “obstáculo” a que esta chame também pai e mãe aos pais, “não me vejo já sem a minha menina”.

237. EE desconhece o que se passa, actualmente, na vida dos pais de BB e não mais lhes prestou qualquer tipo de ajuda após o acolhimento de BB.

238. Desde o acolhimento com os respectivos casais cuidadores, as irmãs BB e AA estiveram juntas apenas por quatro vezes, alegadamente, segundo FF por falta de vontade de HH que refere ter “feitio esquisito”.

239. Nada consta dos certificados de registo criminal dos progenitores nem do casal EE e FF.

240. EE e FF, no decurso do debate judicial e após lhes ter sido explicado como se processa legalmente a adopção, foram manifestar junto da Segurança Social a sua intenção de serem candidatos à adopção.

241. Inexiste alguém na família alargada que reúna condições para cuidar da BB e que com ela mantenha relação”.

B. De Direito

1. No Processo de Promoção e Proteção que correu os seus termos no Juízo de Família e Menores de ..., do Tribunal da Comarca de ..., com o n.º 2909/19.9..., foi aplicada a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção à criança BB, nascida a ... de junho de 2019, filha de DD e de CC, e irmã de AA, nascida a ... de abril de 2018.

2. Recorde-se que a Formação do Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 6 de setembro de 2021, à luz do art. 672.º, n.º 1, al. b), do CPC, admitiu o recurso de revista excecional interposto por EE e FF.

3. Apenas desse modo pode o Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer, por acórdão de 4 de novembro de 2021, das nulidades imputadas ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de julho de 2021, mandando baixar os autos em ordem à respetiva sanação.

4. Também por acórdão de 17 de novembro de 2022, a Formação do Supremo Tribunal de Justiça admitiu o recurso de revista excecional, interposto por EE e FF à luz do art. 672.º, n.º 1, al. b), do CPC.

Da adoção

1. Segundo o art. 69.º, n.º 1, da CRP, sob a epígrafe “Infância”, “[a]s crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de agressão e contra exercício abusivo da autoridade parental na família e nas demais instituições.”

2. O n.º 2 do mesmo preceito prevê a especial proteção que o Estado deve assegurar às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de uma ambiente familiar normal, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições. Define, assim, três situações típicas de perigo para as crianças: a orfandade, o abandono e a privação de um ambiente familiar normal.

3. É neste contexto que surge a LPCJP de modo a garantir o bem-estar e o desenvolvimento integral das crianças e jovens em perigo.

4. A intervenção do Estado e da sociedade limita-se às situações em que ocorre um perigo concreto para a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou do jovem.

5. Para esse efeito, essa intervenção tem lugar mediante a aplicação, segundo os princípios orientadores consagrados no art. 4.º da LPCJP, em especial aqueles da prevalência da família, da atualidade, da proporcionalidade, da responsabilidade parental e da audição obrigatória e participação, de uma das medidas de promoção e proteção tipificadas no art. 35.º, do mesmo diploma legal, que se encontram graduadas na proporção direta do seu impacto na vida da criança ou jovem.

6. O objetivo da intervenção do sistema de proteção, quer mediante as CPCJs quer por via judicial, consiste em pôr termo a determinada situação de perigo e estabilizar a situação do menor, seguindo-se a definição do seu projeto de vida.

7. Nos termos do disposto no artigo 100.º da LPCJP, “[o] processo judicial de promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens em perigo, doravante designado processo judicial de promoção e proteção, é de jurisdição voluntária.

8. Os processos de jurisdição voluntária encontram arrimo nos arts. 986.º e ss do CPC.

9. Conforme, o art. 106.º da LPCJP, o processo de promoção e proteção é constituído pelas fases de instrução, decisão negociada, debate judicial, decisão e execução da medida. Da ratio legis desta norma decorre uma clara preferência pela decisão negociada, o que, aliás, encontra o seu postulado lógico no artigo 110.º do mesmo diploma legal, que relega para debate judicial os processos quando não se preveja uma solução negociada – aqui inviável mercê da posição dos pais biológicos e, também, do Ministério Público.

10. Realizado o debate judicial, o Tribunal coletivo deliberou aplicar à menor BB a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, prevista nos arts. 35.º, n.º 1 al. g), e 38.º-A, da LPCJP, e, consequentemente, confiá-la à guarda do Centro de Acolhimento Temporário onde fosse recebida. Os Recorrentes EE e FF sustentam que esta decisão não tem “respaldo legal” e que conflitua com diversos princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, mormente os princípios do superior interesse da criança e da prevalência da família estabelecidos no art. 4.º da LPCJP.

11. Afigura-se inquestionável que o critério fundamental pelo qual o Tribunal tem de pautar a sua apreciação e decisão é o do superior interesse da criança2, conceito que se encontra em constante evolução: “uma noção cultural intimamente ligada a um sistema de referências vigente em cada momento, em cada sociedade, sobre a pessoa da criança, sobre as suas necessidades, as condições adequadas ao seu bom desenvolvimento e ao seu bem-estar cultural e moral3, que se pode traduzir no direito das crianças a que o seu interesse seja apreciado e constitua um critério decisivo quando estejam em causa diferentes interesses, assim como na garantia de que este direito prevaleça sempre que se tenha de adotar uma decisão que afete uma criança, um grupo de crianças ou as crianças em geral.

12. Do seu art. 36.º, n.os 5 e 6, decorre que a CRP “privilegia a família biológica como célula fundamental para o processo de socialização das crianças, já que é aí que se podem desenvolver as relações de afecto mais genuínas e os quadr os de referência mais personalizantes, forjados no histórico de cada família e no esteio dos papéis sociais desempenhados pelos respectivos progenitores4. Desses preceitos resulta também que a prevalência da família na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem em perigo é outro dos princípios orientadores da intervenção previstos no art. 4.º da LPCJP.

13. É esse primado da família que impõe ao Estado o dever de apoiar famílias que evidenciem carências várias nos planos material, da organização e gestão de recursos, social, sanitário e pedagógico (as famílias ditas disfuncionais) em ordem à criação de condições mínimas que permitam a todas as crianças e jovens a oportunidade de um desenvolvimento harmonioso.

14. VV, contudo, frequentes as situações de incapacidade para exercer uma paternidade/maternidade responsável, circunstâncias em que os progenitores, mesmo com apoio, revelam uma postura de incúria em relação aos filhos, negligenciando os respetivos cuidados básicos na alimentação, na higiene, na saúde e na educação: enfim, no desenvolvimento integral da criança. Mais grave, ainda, é a situação em que os progenitores manifestam incapacidade de auto-regeneração, falta de vontade de alterar comportamentos negligentes e remetem para terceiros a responsabilidade de criar e educar os seus filhos.

15. Nessas situações, os progenitores não constituem figuras de referência para a criança, porquanto não chegam a estabelecer com ela uma genuína relação afetiva gratificante e securizante.

16. A verbalização de sentimentos de afeto e de amor de nada vale, pois encontram-se seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, impondo-se então uma ponderação séria da rutura com a família de origem mediante a colocação da criança à guarda de instituição com vista a futura adoção, ao abrigo do disposto nos arts. 35.º, n.º 1, al. g), in fine, e 38º-A, al. b), da LPCJP, com referência ao art. 1978.º, n.os 2 e 3, do CC – ou colocando a criança à guarda de candidato selecionado para a adoção pelo competente organismo de segurança social, de acordo com o arts. 35.º, n.º 1, al. g), 1.ª parte, e 38.º-A, al. a), da LPCJP.

17. O superior interesse da BB não é conciliável com uma solução que dê prevalência à família biológica, pois que, na hipótese de se manter com os progenitores, continuará a ser negligenciada e a viver em situação de perigo e, por isso, a adoção, a sua integração numa família adotiva apresenta-se como a solução mais idónea ou com mais potencialidade para satisfazer as suas necessidades e promover os seus direitos.

18. Aliás, os Recorrentes EE e FF não se insurgem contra essa solução, pois eles próprios a pretendem, alegando que reúnem as “condições fáticas e jurídicas para consumar a adoção”.

19. No mesmo sentido se pronunciou o Instituto de Segurança Social, conforme requerimento anexado a 9 de agosto de 2022.

20. EE e FF já haviam manifestado essa mesma intenção e vontade de adotar a menor BB quando apresentaram alegações por escrito na sequência da frustração do acordo de promoção e proteção (art. 114.º, n.º 1, da LPCJP), porquanto pretendem que a adoção, por eles, dessa menor, seja já decretada no âmbito deste processo, pretensão que aqui, em sede recursiva, reafirmam.

21. O processo judicial de promoção e proteção é um processo de jurisdição voluntária (art. 100.º da LPCJP) e um dos princípios característicos destes processos, que a lei expressamente consagra, é o de que as decisões neles proferidas não formam caso julgado5, pois podem ser alteradas em qualquer altura se ocorrerem circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração (art. 988.º, n.º 1, do CPC). Note-se que esta superveniência pode ser objetiva – no caso de os factos se verificarem depois da decisão - ou subjetiva - quando os factos são anteriores à decisão mas não foram alegados por não serem conhecidos por quem tinha interesse na sua alegação.

22. Outra característica dos processos de jurisdição voluntária consiste na não sujeição do Tribunal a critérios de legalidade estrita (art. 987.º do CPC), prevalecendo o princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo, assim como os critérios de oportunidade e conveniência - “o critério decisório não está confinado à aplicação estrita do direito tal como configurado previamente de forma abstrata6.

23. Contudo, a prevalência desses critérios não permite ao julgador ignorar normas imperativas. Não lhe consente, nomeadamente, transformar um processo de promoção e proteção em processo de adoção, que tem uma regulamentação própria, contida na Lei n.º 143/2015, de 8 de setembro (doravante RJPA).

24. Segundo o art. 34.º, n.º 1, do RJPA, a prolação da decisão judicial constitutiva do vínculo da adoção depende, além do mais, de prévia declaração de adotabilidade acolhida no âmbito de processo judicial de promoção e proteção, mediante decretamento de medida de confiança prevista no art. 35.º, n.º 1, al. g), da LPCJP. Foi isso, precisamente, que se decidiu nos presentes autos mediante a o decretamento da medida de confiança a instituição com vista à adoção.

25. A razão não está com os Recorrentes EE e FF quando pretendem que fique, desde já, aqui constituído, no presente processo, o vínculo jurídico da adoção da menor BB e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de fevereiro de 2021, que invocam em arrimo da sua posição, não abona, nem podia apoiar, a sua tese7.

26. Está, pois, em causa uma situação para a qual não se encontra, no seio da família biológica da criança, uma resposta que garanta o seu integral e são desenvolvimento. Quer a adoção quer o apadrinhamento civil surgem como soluções possíveis. Contudo, parece que o apadrinhamento civil se encontra agora arredado, em virtude dos requerimentos apresentados por EE e FF, a 25 de julho de 2022, em que vieram expor que a primeira havia formalizado a sua candidatura a adotante da BB junto da equipa de adoção do Centro Distrital da Segurança Social de ..., assim como requerer a suspensão dos autos até à notificação, da Recorrente, do respetivo parecer, e a 9 de agosto de 2022, em que vieram informar do parecer positivo do Instituto da Segurança Social à candidatura da primeira a adotante da menor BB, requerendo a respetiva apreciação. O princípio da atualidade, consagrado no art. 4.º da LPCJP, impõe a consideração destes requerimentos apresentados a 23 de julho e a 9 de agosto de 2022.

27. Importa notar, nesta sede, que, de iure constituto, tal como os candidatos a padrinhos não podem ser candidatos à adoção, naturalmente que os candidatos a adotantes não podem ser candidatos a padrinhos.

28. Além do mais, não subsiste qualquer vantagem na manutenção da relação com os pais biológicos – como sucederia no caso de se acolher a solução do apadrinhamento civil -, encontrando-se seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação (art. 1978.º do CC).

29. De resto, a uma pessoa idónea que recebe uma criança ao abrigo de uma medida de proteção de confiança a pessoa idónea não está vedada a evolução da sua relação com a criança que lhe está confiada para uma solução tendencialmente definitiva relativamente ao projeto de vida dessa criança8. Entendimento diverso contrariaria, desde logo, o princípio do primado da continuidade das relações psicológicas profundas, introduzido na LPCJP em 2015: dever de respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu desenvolvimento saudável e harmonioso, devendo prevalecer as medidas que garantam a subsistência de uma vinculação securizante. No caso concreto, a vinculação securizante foi estabelecida com a pessoa idónea - EE - a quem a criança desde muito cedo foi confiada e com quem criou laços profundos de afeto e um sentimento de pertença claramente evidenciado nos relatos das técnicas que foram acompanhando a família.

30. A ideia de que uma pessoa não pode candidatar-se à adoção de uma específica criança com a qual estabeleceu já um vínculo afetivo compatível com a relação de filiação não colhe qualquer apoio na lei. Pois, na verdade, é isso que justamente acontece, inter alia, nos casos de adoção de filho de cônjuge e de confiança administrativa9.

31. Entendendo-se estarem reunidas as condições para esse encaminhamento, não se encontra justificação para uma solução de encaminhamento para a adoção por “terceiro”, se a pessoa idónea a quem a criança está confiada for, pelas entidades competentes - no caso concreto, o Organismo da Segurança Social - selecionada como candidata à adoção. Foi, sem mais, o que se verificou no caso em apreço, conforme requerimento anexado a 9 de agosto de 2022.

32. Muito frequentemente, estas crianças têm já uma situação de adotabilidade estabelecida. Mas não parece que o facto de essa situação se definir, no estrito cumprimento dos requisitos para a confiança com vista a futura adoção, tendo entretanto em vista a adoção já por uma determinada pessoa, não seja merecedor de acolhimento à luz do que é o superior interesse desta criança – princípio axiológico, fundante e estruturante do Direito das Crianças.

33. Insiste-se: ponderando-se estarem reunidas as condições para esse encaminhamento, não parece justificável uma solução de encaminhamento para a adoção por “terceiro” se a pessoa idónea a quem a criança está confiada for, pelas entidades competentes - no caso, o Organismo da Segurança Social - selecionada como candidata à adoção.

34. Via de regra, as medidas de promoção e proteção podem ser aplicadas a título cautelar (art. 35.º, n.º 2, da LPCJP), têm um prazo (arts. 60.º, n.ºs 1 e 2, e 61.º, da LPCJP) e estão sujeitas a revisão (art. 62.º da LPCJP). Isso não se verifica, em princípio, com a medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção, que não pode ser aplicada a título cautelar, dura até ser decretada a adoção e não está, em princípio, sujeita a revisão (art. 62.º-A, n.º 1, da LPCJP).

35. Salvo nos casos de adoção do filho do cônjuge, a adoção não pode ser constituída sem uma decisão prévia de confiança, em que se afirme que é esse o projeto de vida adequado à criança ou jovem (art. 34.º, n.º 1, do RJPA). Essa confiança pode revestir natureza administrativa, mediante decisão do Organismo da Segurança Social, nos casos em que tenha havido consentimento prévio para a adoção ou em que o candidato a adotante seja já, por via de providência tutelar cível, o titular das responsabilidades parentais (arts. 34.º, n.º 2, e 36.º, n.º 8, do RJPA), ou judicial, mediante declaração prévia de adotabilidade decidida no âmbito de processo judicial de promoção e proteção em que seja decretada a medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção.

36. Conforme o art. 38.º-A da LPCJP, a confiança judicial pressupõe que não existam ou se mostrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de uma das situações previstas no art. 1978.º, n.º 1, do CC, na redação que lhe foi conferida pelo RJPA.

37. Na doutrina e na jurisprudência prevalece o entendimento segundo o qual a prova de uma das circunstâncias previstas no art. 1978.º, n.º 1, do CC, não constitui presunção absoluta de que os vínculos afetivos próprios da filiação não existem ou estão seriamente comprometidos. Muito diferentemente, a inexistência ou o comprometimento desses vínculos constituiu um pressuposto autónomo. Com efeito, o processo de promoção e proteção pressupõe a apreciação das dificuldades parentais, a verificação da impossibilidade de mudança do comportamento parental, a ponderação da solução mais ameaçadora para o desenvolvimento da criança - a permanência no contexto familiar ou a rutura com o mesmo - e a averiguação dos comportamentos dos pais biológicos como seriamente comprometedores dos vínculos afetivos próprios da filiação.

38. A aplicação da medida de confiança a pessoa selecionada para adoção pressupõe a verificação de circunstâncias que justificam a rutura com a família biológica e a definição de um novo projeto de vida para a criança que, em obediência ao princípio da prevalência da família, prevê a transferência da criança ou jovem para outra família, com base numa verdade afetiva e sociológica, distinta da verdade biológica que funda o parentesco.

39. A natureza tendencialmente definitiva daquele projeto de vida, associada à forma como ele é imposto aos pais biológicos, no termo de um processo judicial participado e em que são assegurados os direitos e garantias de defesa, explica a exclusão da possibilidade de revisão da medida de promoção e proteção. Por isso, a medida manter-se-á até que transite em julgado a sentença que decrete a adoção da criança ou jovem. Garante-se assim, também, a estabilidade emocional e afetiva da criança ou jovem, assim como a do candidato a adotante.

40. A medida de promoção e proteção de confiança a pessoa selecionada para a adoção (arts.38º-A e 62º-A da LPCJP), além de afastar o perigo que ameaça o menor, visa simultaneamente a “confiança pré-adoptiva“, dispensando a ação prévia de confiança judicial destinada à adoção.

41. Conforme referido supra, toda a intervenção deve pautar-se e ter em conta o “interesse superior da criança”, princípio consagrado no art. 3.º, n.º 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, que a LPCJP destaca entre os princípios retores ou orientadores (art. 4.º, al. a)). Enquanto conceito indeterminado, o “interesse superior da criança” carece de implementação valorativa que deve ter como pauta de valoração ou referência de sentido o direito da criança ao desenvolvimento integral da sua personalidade – i.e., o ponto de vista teleológico que não pode ser descurado.

42. Pode dizer-se, de algum modo, que o Tribunal da Relação do Porto não decidiu totalmente segundo critérios de conveniência ou oportunidade. A sua decisão não foi, por conseguinte, tomada exclusivamente ao abrigo do art. 987.º do CPC.

43. Também o Supremo Tribunal de Justiça não está agora apenas a escolher soluções mais convenientes ou oportunas, intimamente ligadas à apreciação da situação de facto em que a menor BB se encontra.

44. Trata-se, pois, de uma decisão que não se encontra, assim, exclusiva e totalmente dependente da formulação de um juízo prévio de oportunidade e conveniência por parte do Tribunal.

45. O recurso a conceitos indeterminados permite a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso concreto ou à mudança das situações. Possibilita ainda uma espécie de osmose entre as máximas ético-sociais e o Direito, consente levar em conta os usos do tráfico, assim como uma individualização da solução (o que interessa nas relações familiares)10. Trata-se de uma manifestação mais clara da conformação e do desenvolvimento do Direito por parte a jurisprudência.

46. A decisão judicial que aplica o Direito, embora se encontre menos vinculada à lei no caso de a regra jurídica a aplicar conter conceitos indeterminados, está, porém, sujeita ao princípio da legalidade e não àquele da oportunidade11.

47. A lei vincula o Tribunal a determinadas decisões uma vez verificada a situação ou preenchidos os pressupostos enunciados – de forma mais ou menos (in)determinada - na sua hipótese. Pode, eventualmente, o Tribunal, em virtude do caráter indeterminado da previsão ou hipótese legal, ter de proceder a uma apreciação valorativa da situação de facto que tem perante si. Mas, uma vez assente que se verifica a hipótese legal, a decisão é, por assim dizer, extraída da própria lei12.

48. O conceito indeterminado permite ao legislador abordar aquelas realidades sociais que, por isso mesmo que se acham informadas por um dinamismo crescente, escapam a uma disciplina regulamentadora minuciosa estabelecida pela via da tipificação de hipóteses previamente definidas, assim como consente obviar à rigidificação de complexos normativos. Tratando-se de um domínio em que exerce o seu prudente arbítrio, a decisão do julgador é sempre fundada nos critérios indicados pela lei, mas a concreta definição da fisionomia relevante do caso exige uma reconstrução que tenha em conta os dados da realidade de facto13.

49. Pode concluir-se pela aplicação da medida da confiança a pessoa selecionada para a adoção, nos termos normais.

50. Efetivamente, a adoção surge como a medida mais eficaz de proteção das crianças e jovens em perigo.

51. O art. 1586.º do CC define a adoção como o vínculo que, à semelhança da filiação natural mas independentemente dos laços de sangue, se estabelece legalmente entre duas pessoas.

52. Este vínculo constitui-se por sentença judicial, o processo é instruído por um inquérito que, relativamente ao menor, averigua o seu desenvolvimento, saúde e situação familiar e jurídica.

53. Em regra, o candidato a adotar só pode tomar a criança a seu cargo, com vista a futura adoção, mediante confiança judicial, confiança administrativa ou através da medida de promoção e proteção de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção.

54. A medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção encontra-se prevista no art. 38.º-A, da LPCJP. Harmoniza-se com a Convenção dos Direitos da Criança, que, no art. 20.º, dispõe que “a criança temporária ou definitivamente privada do seu ambiente familiar ou que, no seu interesse superior, não possa ser deixada em tal ambiente tem direito à protecção e assistência especiais do Estado”. Nos termos da Convenção, cabe aos Estados Partes assegurar a tais crianças uma proteção alternativa, nos termos da respetiva legislação nacional, nomeadamente através da adoção. Assim, a medida aplica-se quando se encontram esgotadas as possibilidades de, no seio da família biológica ou da família alargada, proporcionar à criança as condições de que ela necessita para o seu desenvolvimento, crescimento, segurança, saúde, bem-estar e educação, estando definitivamente comprometidos os vínculos afetivos com a família de origem. Atendendo às suas consequências (como a rutura com a identidade biológica e genética), a aplicação daquela medida apenas deve ter lugar no caso de não ser possível manter a criança no seio da sua família biológica – como parece verificar-se in casu.

55. A essa medida estão fundamentalmente subjacentes três finalidades: desde logo, esclarecer a situação jurídica da criança perante os pais biológicos, determinando assim o seu “estado de adotabilidade”; depois, conferir segurança ao investimento afetivo dos adotantes; e, por último, reduzir o tempo dos períodos de institucionalização.

56. Reitere-se que o princípio do superior interesse da criança se reveste da máxima importância, pois, sempre que o julgador se depara com um processo de promoção e proteção terá de atender ao superior interesse da criança, sendo este o derradeiro critério a ter em consideração na decisão judicial (art. 4.º, al. a), da LPCJP, e art. 1978.º, n.º 2, do CC). A Convenção Sobre os Direitos da Criança impõe que “todas as decisões relativas às crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança” (art. 3.º). Esse princípio encontra-se consagrado não apenas na lei ordinária (v.g., arts. 1878.º, n.º 1, 1905.º, 1906.º n.os 2, 5, 7 e 1978.º, n.º 2, do CC, e art. 4.º, al. a), da LPCJP), como também na CRP e ainda na ordem jurídica internacional, através da Convenção sobre os Direitos da Criança (arts. 3.º, n.º 1, 9.º e 18.º).

57. O art. 1978.º, n.º 1, al. d), do CC, cuida das crianças colocadas em perigo grave pelos pais que não cumprem as suas responsabilidades parentais. Assim, um dos pressupostos da intervenção é o não exercício, ou o exercício deficiente, das responsabilidades parentais por parte dos progenitores. É esse comportamento, ativo ou omissivo, que constitui perigo real para a criança. A intervenção do Estado junto das crianças em perigo é imperativo constitucional estabelecido no art. 69.º da CRP. Compete à sociedade e ao Estado Português o dever de proteger as crianças das situações suscetíveis de pôr em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação e desenvolvimento.

58. Para o preenchimento valorativo do conceito de perigo, o art. 1978.º, n.º 3, do CC, remete para a LPCJP (art. 3.º). O perigo é a situação em que se encontra a criança que vê ameaçada a sua existência ou integridade física ou psíquica. A criança está em perigo quando se encontra ameaçada na sua segurança, saúde, formação, educação e desenvolvimento. A gravidade do perigo pressupõe a existência ou a possibilidade de surgimento de danos graves para a criança. Um problema de saúde mental dos progenitores pode implicar um perigo real para os filhos e, além disso, comprometer seriamente os vínculos próprios da filiação, pois abala seriamente a sua capacidade parental e também a relação afetiva com as crianças.

59. A criança tem direito, quando a família biológica não é capaz de promover o seu desenvolvimento pleno, pondo em perigo o seu crescimento enquanto pessoa humana, a ter uma família capaz de lhe proporcionar todas as condições que lhe permitam desenvolver plenamente as suas aptidões físicas, intelectuais e afetivas.

60. Pode, assim, dizer-se que não se afigura possível infirmar a pretensão dos Recorrentes EE e FF com o argumento de que a situação por si almejada subverte a lógica que preside ao instituto da adoção e segundo o qual o processo de vinculação observada e aceitação mútua é pressuposto do período de pré-adoção estabelecido entre duas pessoas que se encontram por efeito do matching ou da correspondência estabelecida pelos técnicos que percorreram uma lista de candidatos à adoção e outra de crianças em situação de adotabilidade14.

61. A confiança da menor BB a instituição com vista à adoção não parece ser a solução que melhor serve o seu interesse, mas antes a sua continuação à guarda e cuidado dos Recorrentes, mantendo-se os laços afetivos que estabeleceu com os seus cuidadores e permitindo a subsistência das relações psicológicas profundas, a subsistência e a qualidade dos seus vínculos afetivos. É que a criança, que desde tenra idade – i.e., desde os sete meses - foi criada por EE, com quem construiu fortes laços afetivos semelhantes aos da filiação, encontra-se em perigo em termos psicológicos, uma vez que a relação afetiva que estabeleceu com aquela não se encontra devidamente acautelada15. Apenas a aplicação da medida da confiança a pessoa selecionada para a adoção é suscetível de evitar que BB sofra graves danos psicológicos e emocionais e de pôr termo à situação de instabilidade em que se encontra – e em que, provavelmente, se viria a encontrar no caso de ser confiada a instituição com vista à adoção - e, deste modo, satisfazer o seu superior interesse (cf. art. 4.º, al. a), da LPCJP, segundo o qual o interesse superior da criança implica a tutela da “continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas”). “A separação das pessoas que se habituou a amar, como pai e como mãe, causa à criança uma dor semelhante à morte dos pais. Trata-se, portanto, de um perigo psicológico e emocional profundíssio para uma criança, e ao qual os tribunais não podem ser insensíveis (…)16.

62. Respeita-se também o direito de BB de vir a integrar uma família funcional, que lhe permite o desenvolvimento pleno das suas capacidades enquanto pessoa.

63. A propósito da medida prevista no art. 35.º, al. g), da LPCJP, diz-se “carecer a criança de uma família, seja ela biológica ou adotiva, devendo optar-se pela integração nesta última quando o agregado familiar apresenta disfuncionalidades estruturais, percecionáveis, nomeadamente, através dos elementos colhidos relativos ao historial de vida pregresso dos seus cuidadores ou familiares, indicativos de uma incapacidade de mudança dos seus disfuncionais hábitos de vida17. Apenas em último recurso se deve lançar mão da institucionalização da criança em virtude dos conhecidos efeitos nefastos que lhe estão associados. O art. 35.º, al. g), da LPCJP, prevê, como alternativa, a confiança da criança a pessoa selecionada para adoção – qualidade que a Recorrente EE atualmente tem.

64. Refira-se, por fim, o art. 1868.º, n.º 3, do CC, segundo o qual “[e]xcecionalmente, ponderada a idade do adotado, a sua situação familiar ou qualquer outra circunstância atendível, pode ser estabelecida a manutenção de alguma forma de contacto pessoal entre aquele e algum elemento da família biológica ou, sendo caso disso, entre aquele e a respetiva família adotiva e algum elemento da família biológica, favorecendo-se especialmente o relacionamento entre irmãos, desde que, em qualquer caso, os pais adotivos consintam e tal corresponda ao superior interesse do adotado”.

65. Deste modo, encontram-se reunidas as condições para um encaminhamento para a adoção, aplicando-se desde já a medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção, permitida pelo art. 1978.º, n.º 1, do CC. Com efeito, não deve esquecer-se que a interpretação/aplicação da lei deve ser norteada pelo superior interesse da criança (art. 1978.º, n.º 2, do CC), cuja concretização deve ter por referência o direito ao desenvolvimento integral da sua personalidade (art. 69.º, n.º 2, da CRP)18.

66. Fica, por conseguinte, prejudicado o conhecimento das questões de saber se o Tribunal da Relação do Porto deveria ou não ter prorrogado a medida de confiança a pessoa idónea; se deveria ou não ter convertido o presente processo em antecâmara de processo de adoção; se deveria ou não ter convertido o presente processo em antecâmara de processo de apadrinhamento civil; se viola ou não o princípio do superior interesse da criança, da prevalência da família – a família como núcleo afetivo mais do que biológico ou jurídico, da continuidade das relações psicológicas profundas, da confiança a instituição como medida de última ratio; e se viola ou não normas e princípios do direito internacional com vigência direta e imediata na ordem jurídica nacional.

(In)constitucionalidade(s) normativa(s)

1. Os Recorrentes EE e FF não suscitaram, cum summo rigore, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa especificamente dirigida a uma concreta norma jurídica, conforme lhes era exigido pelo art. 72.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. Com efeito, nunca individualizaram uma específica norma jurídica cuja inconstitucionalidade pudesse ser apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça. As passagens das suas conclusões em que se procede a uma referência genérica a questões de inconstitucionalidade são as seguintes:

O aresto em crise estriba-se no RJPA, mormente na leitura dos artigos 34.º/1, nos termos do qual é necessária a prévia declaração de adotabilidade decidida no âmbito de um processo judicial de promoção e proteção, mais concluindo que “a razão não está com os recorrentes quando pretendem que fique, desde já, aqui constituído o vínculo jurídico da adoção da menor BB”.

Ao longo do presente excurso, tiveram, já, os recorrentes oportunidade de versar sobre aquele que se lhes assoma ser o superior interesse da criança e, bem assim, em como ele contende com a solução propugnada pelo Tribunal recorrido.

Ademais,

Tiverem já oportunidade de esgrimir o seu argumentário a respeito da possibilidade de os autos presentes, de promoção e proteção, poderem servir como antecâmara daquele vínculo ou, pelo menos, do apadrinhamento civil (sobre o qual, como já se disse, o Tribunal recorrido não versa).

Ora,

A solução adotada pelo aresto em crise e, bem assim, pela primeira instância, não teve o ensejo de cogitar aquele superior interesse, aquela sobredita possibilidade e, ademais, a proteção constitucional da família - na verdade, a esta última, o aresto também não se dedica concretamente, mormente à problemática circunstância de se tratar esta, de verdadeira família, que ultrapassa os vínculos legais e/ou biológicos que possam (ou não) subsistir.

Nem o Acórdão nem os recorrentes dissentem da circunstância inequívoca de não terem os pais biológicos capacidade de exercer a parentalidade.

Sem embargo,

Tal não pode contender com a possibilidade de ser entregue aos seus tios, ora recorrentes.

Na verdade,

O aresto em crise (e bem!) refere o seguinte:

“Respeitando, naturalmente, as apreciações contidas na passagem transcrita da decisão recorrida, não acompanhamos a análise efetuada e, sobretudo, dissentimos da avaliação e caraterização que faz da família da EE, qualificando-a como de “família disfuncional”, no seio da qual existem “sucessivos conflitos”, com «acusações várias entre os diversos elementos, incluindo alegados abusos sexuais», e com crianças vulneráveis a serem entregues a outrem para que delas cuidem, aparentando ser «um modo de funcionamento normal e adequado» e que os recorrentes pretendem replicar com a BB e AA.”

Prossegue o douto Acórdão:

“Uma tal caracterização não só não tem na factualidade apurada o necessário respaldo como aparenta estar, se não em contradição, pelo menos, em dessintonia com alguns fatos essenciais, nomeadamente o facto de a criança estar a ser bem cuidada pelo casal EE e FF, com as quais estabeleceu vínculos afetivos.”

Se é certo que é o próprio aresto quem assinala aquela contradição, não é menos certo que dela não retira qualquer consequência - o que não pode deixar de surpreender os recorrentes.

Com efeito,

E embora pese esta circunstância, louvando-se de doutrina que não tem aplicação ao caso concreto - como, aliás, reconhece, contraditoriamente, o aresto, conclui-se o seguinte:

“E sobre o princípio da prevalência da família discorre assim:

«Deve salientar-se, ainda, que na nossa prática judiciária no TFM, a família alargada, apesar de aparentemente se poder apresentar como operacional, não se revela, muitas vezes, como solução a médio e longo prazo para garantir o desenvolvimento estruturado da criança. Quando a família alargada, no passado, não foi capaz de proteger a criança dos progenitores, para além de revelar a inexistência de vínculo para com aquela, indica a incapacidade para fazer face às investidas dos progenitores que, na ânsia de recuperarem a guarda do filho, boicotam a inserção deste em qualquer agregado. No contexto referido os pais impõem a sua presença, exigindo contactos com os filhos, interferindo na organização das suas rotinas, manipulando e exibindo o seu modelo de vida tóxico, levando à exaustão os familiares que acabam por desistir de acolher a criança no seu seio”.

Concluindo que “há que reconhecer que, no caso, não estão afastados estes perigos, apesar de os progenitores terem manifestado já que estão dispostos a dar o seu consentimento para adoção da BB (mas só pelos aqui recorrentes)”.

Ora,

Antes de avançarmos no concreto ponto que nos detém, diga-se, desde já, que os ora recorrentes têm mantido com os progenitores a relação o bastante que lhe permita ver a BB crescer, mas sem que lhes seja permitido interferência no seu modo de vida. Aliás, refira-se que os ora recorrentes foram amiudadas vezes censurados em sede de debate judicial por manterem esta distância relativa - haja linha de conta, e em jeito de recordatória, que EE foi veementemente criticada por não ter ido buscar o irmão e cunhada a casa, para presencialmente participarem no debate judicial, o que apenas não fez por motivos de cariz profissional.

Mas, volvendo à concreta questão:

Servindo-se da doutrina citada supra e da interpretação que faz do artigo 34.º, nº 1, RJPA, o aresto refuta qualquer das soluções propugnadas pelos ora recorrentes, o que conflitua com o disposto nos artigos 36.º, nº 6 e 7, artigo 67.º e artigo 8.º, ambos da CRP.

Com efeito,

O artigo 36.º da CRP concede a garantia, fundamental, não apenas dos pais, que não devem ser apartados dos filhos, mas, outrossim, dos filhos, que não devem ser apartados dos pais.

Em concretização desta garantia fundamental, o artigo 67.º, CRP protege a família, designadamente, contra fatores de destruição ou desagregação familiar, que ponham em causa a família enquanto instituição.

De seu turno, o artigo 8.º, CRP, nos termos já enunciados e para os quais remetemos por motivos de economia processual, convoca o primado do superior interesse da criança, princípio de jaez internacional que se sobrepõe ao direito positivado na ordem interna.

Assim,

A decisão em crise, ao lançar mão das interpretações em que se estriba, aparta BB da sua família e da possibilidade de nela crescer e vivenciar a sua identidade social mas, outrossim, biológica. Outrossim, ao mesmo tempo que não cogita o seu superior interesse, o Tribunal recorrido aparta a família de BB.

Neste conspecto, resulta concluir que a solução propugnada, e agora recorrida, afronta o texto Constitucional na sua dimensão de garantia e proteção à família - o que, desde já, se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

Neste sentido, veja-se o aresto do Tribunal Constitucional, datado de 04/02/2017, tirado no Processo 605/2016, relatado por Teles Pereira:

«15. O direito à convivência entre os membros da família é uma projeção subjetiva da tutela da unidade da família, condição indispensável à realização pessoal dos seus membros: dos pais, como pais; dos filhos em relação aos pais, como filhos; e dos próprios filhos nas relações entre si, como irmãos. O papel específico do pai ou da mãe e dos filhos nas relações entre si e com os pais pressupõe, com efeito, a possibilidade de algum tipo de convivência.

Um dos efeitos da medida de promoção e proteção que tem por objeto a confiança a pessoa selecionada para adoção ou a instituição com vista a futura adoção prevista no artigo 35.º, n.º 1, alínea g), da LPCJP consiste precisamente em os pais ficarem inibidos do exercício das responsabilidades parentais em relação à criança confiada, deixando de poder conviver com ela e, inclusivamente, de a visitar ou estabelecer outros contactos; a medida em causa «dura até ser decretada a adoção e não está sujeita a revisão» (cfr. o artigo 1978.º-A do Código Civil e o artigo 62.º-A, n.ºs 1 e 2, da LPCJP, na redação da Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto). Por isso, tal medida põe necessariamente em causa o direito fundamental dos pais conviverem com os seus filhos a quem a medida tenha sido aplicada, assim como o direito fundamental destes últimos conviverem com os seus pais. Trata-se em ambos os casos de posições jurídicas subjetivas constitucionalmente protegidas enquanto direitos, liberdades e garantias.

É esse, na verdade, o sentido da jurisprudência constitucional relativa à garantia consagrada no artigo 36.º, n.º 6, da Constituição:

«Esta garantia, que consiste em os filhos não poderem, em princípio, ser separados dos pais, não constitui apenas um direito subjetivo dos próprios pais a não serem separados dos seus filhos, mas também um direito subjetivo dos filhos a não serem separados dos respetivos pais. Eventuais restrições aos mesmos direitos apenas serão possíveis mediante decisão judicial, nos casos especialmente previstos por lei e verificados os pressupostos expressamente previstos na Constituição: quando se torne necessário salvaguardar os direitos dos menores, por os pais não cumprirem os seus deveres para com eles. Assim se pretende proteger a família, como o impõe o artigo 67º, nº 1, do texto constitucional.

(…)

À família, considerada na Lei Fundamental como "elemento fundamental da sociedade", hão de ser facultadas "todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros", seguramente porque se entende depender o harmonioso desenvolvimento do ser humano das relações estabelecidas com a família. Afinal, é aí que o ser humano inicia as suas relações com os outros e desenvolve a sua personalidade, sendo no relacionamento, nomeadamente afetivo, que estabelece com os pais, que desperta a sua consciência individual e coletiva, a sua própria forma de ver o mundo.

A família, sobretudo a família nuclear, contribui, pois, decisivamente para a identificação do próprio indivíduo, sendo aí que ele encontra as suas raízes e os seus primeiros laços afetivos. Como afirmam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., anotação V ao artigo 67º, pág. 351):

(…)

No mesmo sentido, ANABELA COSTA LEÃO, destaca a importância do artigo 36.º, n.º 6, no quadro da tutela constitucional multifacetada da família:

«A proteção da família implica a proteção da unidade da família, que tem no direito à convivência entre os seus membros a sua manifestação mais relevante. Tal implica, desde logo, para o Estado, uma obrigação de facere - criação de condições que permitam essa convivência -e uma obrigação de non facere - não impedir essa convivência. Nessa dimensão jurídica -defensiva, ou negativa (de não ingerência) o direito à convivência reveste natureza de direito, liberdade e garantia, seja diretamente a partir do art. 36.º, seja analogamente a partir do art. 67.º

No n.º 6 do art. 36.º é visível o cruzamento de técnicas de proteção da família enquanto bem constitucionalmente protegido na sua dupla dimensão objetiva-subjetiva, uma vez que o princípio da não separação entre pais e filhos é, simultaneamente, uma garantia da unidade familiar e, no plano subjetivo, não apenas um direito subjetivo dos pais a não serem separados dos filhos, mas também um direito subjetivo dos filhos a não serem separados dos pais. Daí que, por imposição constitucional, os pais só possam ser separados dos filhos nos casos extremos de, por irresponsabilidade ou negligência, não cumprirem para com eles os seus deveres fundamentais, e por decisão judicial.» (v. Autora cit., "Anotação ao Acórdão TC n.º 232/2004 (expulsão de estrangeiros com filhos menores a cargo)" in Jurisprudência Constitucional, n.º 3, (jul./set. 2004), pp. 25 e ss., pp. 31-32).»”

2. A mera invocação de uma norma ou princípio constitucional – arts. 36.º, n.os 5 e 6, 67.º e 8.º da CRP - não configura uma suscitação processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Impunha-se aos Recorrentes EE e FF identificar a específica norma jurídica ordinária que estaria em contradição com as normas ou princípios constitucionais invocados, detalhando o conteúdo e a extensão da interpretação normativa alegadamente inconstitucional. Porém, os Recorrentes limitaram-se a afirmar, de modo vago e não concretizado, que o acórdão recorrido não decidiu de acordo com os princípios e normas que referem. O Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de “normas jurídicas” ou de “interpretações normativas” (art. 277.º, n.º 1, da CRP), não se encontrando instituído um sistema de fiscalização das próprias decisões jurisdicionais.

3. Na verdade, os Recorrentes EE e FF não suscitaram qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando-se a manifestar a sua divergência com o acórdão recorrido, no mero plano da aplicação da lei. Trata-se de uma discordância com a aplicação do Direito – e não com a conformidade constitucional de certas normas (ainda que numa certa interpretação).

4. O que os Recorrentes EE e FF questionam não são as normas, interpretadas em desarmonia com a Constituição, mas antes a decisão judicial que, inconstitucionalmente, na sua perspetiva, os teria prejudicado.

5. Note-se, por último, a propósito da jurisprudência do Tribunal Constitucional citada pelos Recorrentes EE e FF, que, no caso em apreço, não existe qualquer relação jurídico-familiar, nos termos do art. 1576.º do CC, entre eles e a menor BB, sendo aquela apenas madrinha de batismo desta.

IV - Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em decretar a aplicação à menor BB da medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção - EE -, revogando-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de janeiro de 2022.

Sem custas.

Lisboa, 17 de Janeiro de 2023


Maria João Vaz Tomé (Relatora)

António Magalhães

Jorge Dias


Voto de vencido

Só a 25 de Julho e 9 de Agosto de 2022, já na pendência do recurso de revista, os recorrentes deram conta da candidatura da recorrente a adoptante e do parecer positivo da segurança social. Porém, a segurança social apenas a admitiu como candidata, não a seleccionou para a adopção, para os efeitos do art. 38º-A da LPCJ.

Parece, portanto, que teria de haver uma reavaliação da segurança social, no sentido de a seleccionar eventualmente como adoptante, sob pena de se estar a usurpar uma competência que é do organismo da segurança social.

Como assim, teria anulado a medida de confiança à instituição e determinado a baixa dos autos à 1ª instância para a designação de novo candidato (eventualmente a recorrente) à adopção.

      

António Magalhães

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1. Da autoria da Senhora Prof. Doutora Ana Rita Alfaiate.↩︎

2. A propósito do princípio do interesse superior da criança, vide Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, Coimbra, Almedina, 2021, pp. 59 e ss..↩︎

3. Cf. Rui Epifânio/António Farinha, Organização Tutelar de Menores Anotada e Comentada, Coimbra, Almedina, 1997, p. 326; Pedro Raposo de Figueiredo, “A Residência alternada no quadro do atual regime do exercício das responsabilidades parentais – a questão (pendente) do acordo dos progenitores”, in Revista Julgar, n.º 33, Set./Dez. de 2017, p. 106..↩︎

4. Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de outubro de 2012 (Tomé Gomes), proc. n.º 213/11.0TMFUN.L1-7 – disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎

5. Têm a força própria do assim denominado caso julgado rebus sic stantibus.↩︎

6. Cf. António Santos Abrantes Geraldes/Luís Filipe Pires de Sousa/Paulo Pimenta, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Coimbra, Almedina, 2020, p. 437.↩︎

7. O acórdão, prolatado no processo n.º 211/20.2T8STC.E1.S1 e relatado por Maria Clara Sottomayor, encontra-se disponível para consulta in www.dgsi.pt e tem o seguinte sumário:

I. Para que o direito responda às necessidades da vida e para que o interesse do adotando seja completamente protegido, deve entender-se que a expressão “confiança”, ínsita no artigo 1980.º, n.º 3 do Código Civil, tem um sentido amplo, englobando a confiança da criança a uma terceira pessoa, ao abrigo de uma medida de proteção (por exemplo, apoio junto de outro familiar ou confiança a pessoa idónea), ou, ao abrigo de uma decisão judicial proferida num processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais. II. Verifica-se o requisito de adotabilidade – capacidade da adotanda – nos casos em que, tendo a confiança administrativa com vista a futura adoção sido decretada depois de a menor atingir mais de 15 anos de idade, se demonstre que a guarda da menor foi confiada, antes de esta completar 15 anos, à requerente da adoção, por acordo entre esta e os pais biológicos, homologado pelo tribunal num processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais.↩︎

8. Cf. Parecer anexado.↩︎

9. Cf. Parecer anexado.↩︎

10. Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, p.114.↩︎

11. Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, pp.114-115.↩︎

12. Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, p.115.↩︎

13. Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, pp.119-120.↩︎

14. Cf. Parecer anexado.↩︎

15. “Estas alterações legislativas refletem os dados da psicologia que confirmam que a separação da criança das pessoas que, independentemente dos laços biológicos, desempenharam a função parental, causa às crianças danos psicológicos e de saúde mental, como depressões, fúrias violentas, adaptação superficial às outras pessoas, angústias, risco de instabilidade afetiva ou fuga, assim como a experiência de um sofrimento emocional e um retrocesso no desenvolvimento. Os tribunais devem considerar estes danos nas suas decisões”. Cf. Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, Coimbra, Almedina, 2021, p.10”.↩︎

16. Cf. Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, Coimbra, Almedina, 2021, p.101.↩︎

17. Cf. Beatriz Marques Borges, “Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo: Perspectivas Futuras do Modelo Judicial”, in Revista Julgar, n.º 24, Set./Dez. de 2014, pp. 167 e ss.↩︎

18. Cf. Maria Clara Sottomayor, “Anotação ao art. 1978”, in Código Civil Anotado – Livro IV – Direito da Família, Coimbra, Almedina, 2022, p.1017.↩︎