Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
326/12.0JELSB.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: NUNO GOMES DA SILVA
Descritores: RECURSO PENAL
DESPACHO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DEPOIMENTO
TESTEMUNHA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ACÇÕES ENCOBERTAS
AÇÕES ENCOBERTAS
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Data do Acordão: 03/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO PARCIALMENTE O ACORDÃO RECORRIDO
Área Temática:

DIREITO PROCESSUAL PENAL - PROVA - MEIOS DE PROVA - MEIOS DE OBTENÇÃO DE PROVA - AUDIÊNCIA / VALORAÇÃO DA PROVA / SENTENÇA ( NULIDADES ).
DIREITO PENAL - CRIMES EM ESPECIAL / TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
Doutrina:
- Costa Andrade, «Bruscamente no Verão Passado, a Reforma do Código de Processo Penal» Coimbra Editora, 2009, 106, 112; “Métodos ocultos de investigação (Plädoyer para uma teoria geral)”, Que futuro para o Processo Penal, Coimbra Editora, 2009, 526, 527, 535, 539, 540, 544, 545.
- Henriques Gaspar, “As Acções Encobertas e o Processo Penal”, Revista do CEJ, 2004, 52.
- Isabel Oneto, O Agente Infiltrado, Coimbra Editora, 2005, 118-120, 166-171, 179-180, 196-197.
- J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “CRP Anotada”, 4ª ed..
- Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal …, UCE, 4.ª ed., 685.
- Sandra Oliveira e Silva,A Protecção de Testemunhas no Processo Penal, Coimbra Editora, 2007, 151 e nota 289.
- Sandra Pereira, “A Recolha de Prova por Agente Infiltrado”, Prova Criminal e Direito de Defesa, Estudos sobre a Teoria da Prova e garantias de Defesa, Almedina, 2010, 153-154.
- Vinício Ribeiro, “Código de Processo Penal”: notas e comentários, Coimbra Editora, 2.ª ed., 976.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 516.º, 615.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 4.º, 123.º, 128.º, N.º 1, 138.º, N.º 3, 2.ª PARTE, 187.º, 323.º, 348.º, N.º4, 355.º, 379.º, N.º 1, AL. C).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º, 18.º, N.º 3.
D.L. N.º 15/93, DE 22-01: - ARTIGOS 21.º, 24.º.
LEI N.º 101/2001: - ARTIGOS 2.º, 3.º, N.ºS 1, 3, 4 E 6, 4.º, N.º1, 5.º.
LEI N.º 93/99, DE 14-07: - ARTIGOS 4.º, 5.º E 10.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 2010.01.13, PROC. N.º 6040/02.8TDPRT.S1;
-DE 2011.06.01, PROC. N.º 2/06.3PJLRS;
-DE 2011.09.21, PROC. N.º 556/08.0GVIS.C1.S1;
-DE 2015.04.17, PROC. N.º 1/13.9YGLSB.S1.
Sumário :
I - Estando fixado o objecto do processo consubstanciado num conjunto de factos é sobre eles que as testemunhas depõem e que além disso tendo já sido admitida a produção de prova testemunhal do “agente infiltrado” ele melhor do que ninguém poderia esclarecer os contornos da acção encoberta.
II - Se no caso, o tribunal decidiu não ser cabida a inquirição da testemunha num sentido não compreendido no objecto do processo considerando ser outro que não o da existência de uma acção encoberta o âmbito de intervenção da testemunha e de que teria conhecimento directo e sobre o qual poderia indicar com a necessária clareza a razão de ciência avançando ainda que sobre a abordagem daquele específica questão outra e mais pertinente prova estaria ao alcance dos recorrentes até porque estava evidenciado que a dita testemunha pela sua posição hierárquica não teria conhecimento directo dos contornos da acção encoberta, aí intervindo os poderes de direcção dos trabalhos que ao presidente do tribunal são cometidos pelo art. 323.º não se coloca a este propósito nenhuma questão de legalidade de prova e portanto da sua nulidade único âmbito em que a intervenção do STJ, por se tratar de uma questão de direito, seria justificada depois de o tribunal da relação se ter debruçado sobre a matéria. Não há, por isso, que conhecer nesta parte do recurso.
III - O que os recorrentes pretendiam com a junção aos autos de todo o expediente da acção encoberta é algo que esse expediente lhes não pode fornecer que seria aquilo que se passou fora do território nacional. Os invocados contactos estabelecidos entre o colaborador da DEA, que terá actuado como encoberto, o arguido X e os eventuais fornecedores de cocaína, algures na América do Sul, é matéria que o regime jurídico nacional das acções encobertas não pode alcançar nem no que toca à ponderação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade nem no que toca à supervisão jurisdicional nacional sobre essas actuações desde logo porque lhe escapa o conhecimento fáctico dos contornos dessas actuações e de nelas não intervir qualquer órgão de polícia criminal nacional assim ficando fora do alcance de uma avaliação que redundasse numa eventual proibição de valoração de prova. Mais, o relato da acção encoberta em si, enquanto documento descritor daquilo a que o agente assistiu não tem valor probatório, apesar do art. 4.º, n.º 1, da Lei 101/2001 inculcar a ideia de que é possível utilizá-lo em termos probatórios, se isso for absolutamente indispensável.
IV - Contra o que pretendem os recorrentes não está prevista legalmente a junção aos autos de todo o expediente da acção encoberta nem tal faria sentido desde logo perante as exigências de segurança dos intervenientes na acção encoberta que se não restringe à mera identificação propriamente dita, não se levantando obstáculo intransponível aos direitos de defesa do arguido mormente ao nível do respeito pelo contraditório, prevista como está a possibilidade de junção ao processo de um relato da acção encoberta (art. 3.º, n.º 6 e 4.º, n.º 1) e, o que é decisivo sobretudo para esse exercício do contraditório, a prestação de depoimento do agente encoberto certamente quem, mercê da sua intervenção directa, em melhor situação estará para esclarecer os contornos da acção encoberta designadamente ao nível da avaliação dessa intervenção quanto a poder ser configurada como a de um agente infiltrado ou de um agente provocador permitindo depois a conclusão sobre se a prova resultante dessa intervenção é ou não prova proibida. Pelo que não se verifica qualquer limitação desproporcionada do direito de defesa dos arguidos e dos limites mínimos do princípio do contraditório, ao contrário do invocado pelos recorrentes.
V - Tendo o tribunal decidido que o depoimento do “case-officer” decorreria com as formalidades previstas na Lei 93/99, de 14-07, ou seja, com ocultação de imagem e mediante a intervenção de um magistrado acompanhante e justificando-o com o facto de a lei se referir à “protecção do funcionário e terceiro”, que seria a qualidade do “case-officer” impor-se-ia que os arguidos desde logo arguissem a irregularidade do acto com o regime previsto no art. 123.º, do CPP, pois seria essa apenas a deficiência que eventualmente o afectaria uma vez que não está prevista a nulidade de tal acto sabendo-se que é taxativo o regime de arguição desse vício processual. Pelo que, sendo certo que o conceito de “terceiro” que pode merecer protecção na prestação do depoimento abrange apenas aquelas pessoas que não sendo funcionários policiais hajam tido intervenção na acção encoberta sob o controlo da PJ (o que não era o caso, o que de modo algum invalida o apelo ao regime do art. 4.º da Lei 93/99), é extemporânea a invocação de tal eventual vício, uma vez que se trata de irregularidade.
VI - A lei não prevê um limite temporal para a acção encoberta que pode até ser o prazo da própria prescrição do crime. Daí que se estabeleça no art. 5.º da Lei 101/2001 que os agentes podem actuar sob identidade fictícia para o efeito de participarem em acção encoberta e que essa identidade fictícia é válida por um período de 6 meses prorrogável por iguais períodos. A partir daqui haverá que fazer uma interpretação restritiva do que seja um prazo após o termo da operação para a elaboração do relato final, considerando-se os 6 meses para a revalidação da identidade fictícia como o prazo máximo de qualquer operação para efeitos de apresentação do relato. Faz sentido que assim seja pois a operação encoberta pode ter outros desenvolvimentos para lá daqueles que produzam determinado resultado que dê origem a um processo e que mercê desses desenvolvimentos o agente encoberto não esteja em condições de fazer chegar à acção encoberta informações sobre a parte já descoberta que possibilitem a elaboração do relato final relativamente a essa parte. Pelo que, também aqui improcede o recurso.
VII - O relato final da acção encoberta não foi sequer considerado meio de prova para formar a convicção do tribunal. Com ligação à acção encoberta apenas foi usado como material probatório o depoimento do agente encoberto relativamente ao qual a defesa teve oportunidade de exercer o contraditório questionando e confrontando o seu depoimentos nas mesmas condições da acusação. A acção encoberta tem requisitos próprios, que se não compaginam com os do art. 187.º, do CPP. Esses requisitos específicos são a reserva de lei cuja violação os recorrentes não invocam, nem poderiam invocar visto que a acção encoberta teve lugar para obter prova da prática de um dos crimes do catálogo do art. 2.º, da Lei 101/2001; e a reserva de juiz que também os recorrentes não põem em questão tanto que no relatório final se faz menção ao despacho judicial que autorizou o desenvolvimento do plano da acção encoberta. Pelo que, não houve violação dos pressupostos que poderiam determinar que o meio de obtenção de prova pudesse estar afectado na sua validade daí decorrendo uma proibição de valoração da prova obtida, não tendo, também, havido violação dos direitos de defesa mormente no exercício amplo do contraditório.
VIII - Resultou provada não somente uma acção mas um conjunto de acções concretas pessoalmente levadas a cabo pelos arguidos X e Y directamente relacionadas com o propósito de proporcionarem a terceiros a disponibilidade do produto estupefaciente que veio a ser apreendido não na disponibilidade daqueles mas dos demais o que contraria a tese da improvável ou impossível disseminação e leva a que esteja preenchido o tipo legal previsto no art. 21.º, do DL 15/93.
IX - Como já observado no acórdão de 09-04-2015, a argumentação com uso de aspectos factuais que não constam da matéria de facto dada como provada consiste em pronúncia sobre questão de que não podia conhecer-se nos termos em que o foram (art. 379.º, n.º 1, al. c), 2.ª parte, do CPP) daí resultando nulidade parcial da decisão recorrida. Para além disso, o acórdão recorrido não se pronuncia sobre a inexistência de suporte fáctico para preencher a agravante do art. 24.º, do DL 15/93, bem como se não pronuncia sobre as circunstâncias atenuantes para determinação da pena, pelo que existe omissão de pronúncia sobre este ponto, havendo também omissão de pronúncia sobre a medida da pena de um dos arguidos que já não é recorrente, nenhuma referência havendo sobre a medida das penas dos recorrentes tal como fora questionado no recurso que interpuseram. Daí resultando também nulidade parcial do acórdão recorrido (art. 379.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPP).

Decisão Texto Integral:

1. - No âmbito do processo nº 326/12.0JELSB do então 1º Juízo de Competência Criminal do tribunal de Almada (actualmente 2ª Secção Criminal, Juiz 6, da Instância Central da Comarca de Lisboa) foram julgados e condenados, por acórdão de 2014.01.14, AA e BB pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado previsto e punido nos arts. 21º, nº 1 e 24º, al. c) do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, nas penas de 11 anos de prisão e 8 anos e 6 meses de prisão respectivamente.

Foram ainda julgados e condenados pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, CC, DD  e EE, cada um, na pena de 7 anos de prisão.

DD foi também condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário do art. 291º, nº 1, al. b) do Código Penal) na pena de 1 ano de prisão. E, em cúmulo, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão.

Todos os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Aí, foi proferido um primeiro acórdão em 2014.05.29 na sequência de conferência.

Porém, os recorrentes tinham requerido audiência, nos termos do art. 411º, nº 5 do Código de Processo Penal (CPP) pelo que, por despacho de 2014.06.09 foi declarado esse primeiro acórdão declarado nulo.

Após a audiência que teve lugar foi proferido um segundo acórdão, em 2014.07.17.

Seguidamente, por despacho de 2014.09.12 foi declarado nulo o dito acórdão de 2014.07.17 na sequência de arguição nesse sentido feito por CC invocando omissão de pronúncia que foi reconhecida.

Finalmente, foi proferido acórdão em 2014.10.30 que negou provimento aos recursos que tinham sido interpostos.

Em seguida, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça os arguidos AA e BB.

Por acórdão de 2015.04.09 foi declarado nulo o mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e determinado que fosse proferido outro por haver omissão de pronúncia a relativamente a todos os (quatro) recursos interlocutórios bem como a diversos outros pontos, e ainda excesso de pronúncia quanto a determinados aspectos também ali referidos.
    Em 2015.06.18 foi proferido novo acórdão que negou provimento aos recursos.
   Os arguidos  AA e BB interpuseram novo recurso para o Supremo tribunal de Justiça  (em 2015.07.22) concluindo a motivação respectiva nos  termos seguintes (transcrição):

1. O acórdão é nulo uma vez que houve lugar a audiência e o Exmo Juiz Presidente não assinou o acórdão;

2. A defesa foi impossibilitada de formular perguntas ao inspector FF tendo o acórdão recorrido decidido pela improcedência da pretensão dos recorrentes com fundamento por um lado nos limites impostos pelos princípios da imediação e oralidade e por outro na sua inadmissibilidade legal atento o disposto no artigo 323º do CPP;

2.1. Acontece que, os princípios da oralidade apenas têm aplicação ao nível da apreciação da prova e já não na apreciação da sua legalidade;
2.2. Por outro lado, a proibição de realização de perguntas pela defesa do arguido colide com o principio do contraditório;
3. O colaborador "ERVA" não foi ouvido apesar de o tribunal entender da relevância na sua inquirição;
         3.1. O acórdão recorrido parte do pressuposto errado segundo o qual a pretensão dos recorrentes foi satisfeita, o que não é verdade, porquanto o tribunal veio a alterar a posição não admitindo o depoimento dessa testemunha;

3.2. Por outro lado os arguidos têm o direito de sindicarem a acção encoberta designadamente se a mesma foi autorizada e devidamente controlada;
3.3. O douto despacho interpretou as normas constantes do artigo 4º da Lei 101/2001 e do artigo 340º do CPP, com o sentido de que o tribunal ordenando a junção aos autos do relato a que alude o preceito citado, o mesmo fica cumprido com a junção de um relatório final elaborado por um agente encoberto.
Esta interpretação colide com o disposto no artigo 32º, nº 1 e 5, do CPP, uma vez que limita desproporcionalmente o direito de defesa do arguido;
3.4. Ora, existindo uma ação encoberta mas não se encontrando nos autos os requisitos de que depende a sua validade, esse meio de prova não pode ser valorado contra o arguido sob pena de as normas constantes dos artigos 127º, 355º do CPP, por referência aos artigos 3º e 4º da lei 101/2001 padecerem de inconstitucionalidade material por contenderem com o princípio do contraditório previsto no artigo 32º nºs 1 e 5 da CRP;

3.5. O douto despacho interpretou assim aquelas normas com o sentido de ser possível valorar meios de prova intrusivos nos direitos fundamentais dos cidadãos sem constar dos autos os pressupostos da sua validade;

4. Na análise dos argumentos relativos ao recurso da decisão final, o acórdão recorrido incorre nos mesmos erros, apontados aquele que foi anulado, designadamente primando por uma abusiva transcrição dos argumentos do acórdão de 1º instância quer ainda da resposta do Ministério Público aos recursos dos recorrentes;
5.Ora, visando o recurso dos recorrentes a impugnação da fundamentação do acórdão de 1º instância é tecnicamente incorrecto fundamentar-se a decisão com essa fundamentação impugnada;
6. Apesar de o acórdão recorrido reconhecer que o último encontro entre o agente encoberto e o arguido AA ocorreu no dia 31.07.2012 e o relato final elaborado no dia 10.10.2012, portanto muito para além das 48 horas impostas pelo artigo 3º n°6 da Lei nº 101/2001, não retira a consequência da sua ilegalidade;
6.1. O argumento utilizado pelo acórdão – segundo o qual a lei não estabelece qualquer prazo – atenta contra a letra clara da lei;

6.2. Uma interpretação da norma constante do artigo 3º, nº 6 da Lei 101/2001, de 25/8, conjugada com os artigos 127º e 355º do Código de Processo Penal que considere que o prazo de 48 horas se pode aferir por documentos/peças processuais não constantes da acção encoberta inquina aquela norma de inconstitucionalidade material por violar os artigos 18º, 25º, 26º e 32º da Constituição da República Portuguesa;

7. Ao argumento dos arguidos, segundo o qual a junção a estes autos da acção encoberta deveria de obedecer aos requisitos impostos pelo artigo 187º, nº 7 e 8 do CPP, o acórdão recorrido apenas diz que não assiste razão aos recorrentes;

7.1. Esta falta de resposta constitui uma manifesta insuficiência de pronúncia que equivale a ausência de pronúncia;

7.2. Uma interpretação das normas constantes dos artigos 127º, 187º, 190º e 355º do CPP que valore meios de prova (acção encoberta) para efeitos da formação da convicção do tribunal sem os mesmos serem sujeitos, em sede de julgamento, ao contraditório, designadamente dando a possibilidade ao arguido de sindicar a sua legalidade, como seja a de aceder às decisões judiciárias que os autorizaram e controlaram, inquina aquelas normas de inconstitucionalidade material por violarem o disposto no artigo 32º da CRP;

8. Mal andou o acórdão recorrido ao propender no sentido de que a actuação de um colaborador da Polícia Judiciaria, para efeitos de actuação com identidade fictícia, se afere por via do disposto no artigo 12, nº 2 da Lei 101/2001;

8.1. Com efeito, a actuação destes indivíduos com identidade fictícia rege-se pelo disposto no artigo 5º, nº 1 e 3 da citada Lei;

8.2. E neste sentido o colaborador "ERVA" actuou com nome fictício ao arrepio daquele normativo;
9. Apesar de toda a argumentação dos recorrentes, quanto à ausência de exame critico das provas e ainda de o acórdão do Supremo Tribunal ter feita menção desse vício, ainda assim o acórdão recorrido limita-se a dizer que os arguidos não têm razão, não fundamentando essa conclusão;
9.1. O acórdão limita-se, inopinadamente, a transcrever trechos do acórdão da 1º instância e da resposta do MP aos recursos dos recorrentes;
9. 2. Designadamente o acórdão recorrido não se pronuncia sobre uma das questões fundamentais desta concreta questão, a falta de exame critico, por banda do tribunal de 1ª instância, aos factos dados como provados nos pontos I a IV;

9.3. Também o acórdão não se pronuncia sobre a impugnação da matéria de facto, apesar de os recorrentes indicarem a/s provas que impunham decisão diversa;

10. Sobre a invocada necessidade de inquirição da "fonte 2" o acórdão recorrido ficou erradamente convencido de que esta testemunha foi ouvida tal como o agente encoberto "ERVA";
10.1. Ora, nenhuma destas testemunhas foi ouvida o que faz pressupor que não estivesse o acórdão recorrido em erro daria razão aos recorrentes;
10.2. É que o depoimento destas duas testemunhas era relevante para esclarecimento dos factos alegados pelos recorrentes nas suas contestações;
11.Apesar de o acórdão recorrido afirmar que se vai pronunciar sobre a invocada impugnação da matéria de facto dada como não provada o certo é que nem uma palavra sobre esta impugnação debita;
11.1. Isto apesar de os recorrentes terem identificado os factos impugnados bem como indicado os meios de prova que impunham uma decisão diversa;

11.2. Tal como não se pronuncia sobre a alegada inexistência de suporte fáctico para preencher a agravante do artigo 24º do DL 15/93, bem como não se pronuncia sobre as alegadas circunstâncias atenuantes para determinação da medida da pena;

12.Apesar de os recorrentes terem alegado que o produto estupefaciente não existia quando se iniciou a acção encoberta, que foram as autoridades que disponibilizaram os meios para o transporte da droga, que foi a Policia Judiciária que arrendou o armazém para guardar o produto estupefaciente bem como durante todo o percurso e guarda da droga o recorrente AA não ter qualquer conhecimento de todas estas circunstâncias, o acórdão não se pronunciou ou pronunciou-se de forma insuficiente sobre estas invocadas questões suscitadas pelos recorrentes;
12.1. O acórdão admite a legalidade de uma acção encoberta no caso de existir uma pré-disposição criminosa dos suspeitos pesar de os policias disponibilizarem os meios para o cometimento desse crime;
12.2. Uma interpretação das disposições conjugadas dos artigos 3º da Lei 101/2001, de 25/8 e 126º, 127º do CPP em que seja permitido, no âmbito de uma acção encoberta, disponibilizar meios para o transporte e guarda do produto estupefaciente apesar de existir uma pré-disposição criminosa do/s suspeito/s inquina de inconstitucionalidade material estas normas por afrontarem várias normas constitucionais, como sejam os artigos 182º e 32º.

13. Apesar de o acórdão indicar em epígrafe que vai pronunciar-se sobre a medida da pena, na respectiva fundamentação, vem a pronunciar-se sobre a pena de prisão atribuída a um arguido que não é recorrente nem recorrido: CC;

13.1. Do que resulta o acórdão ter omitido pronúncia quanto a este ponto;

14.O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, além do mais, detectou um vício ao acórdão da Relação: excesso de pronúncia ordenando que o mesmo fosse corrigido;

14.1. Ao arrepio do ordenado o Tribunal a quo manteve o mesmo vício e nem sequer sobre o mesmo se pronunciou;

Conclusões apenas relativas ao recorrente BB

15. Apesar de o acórdão recorrido aceitar que a resolução criminosa do recorrente BB ocorreu quando o produto estupefaciente já estava na posse da Policia Judiciaria o certo é que responde de forma insuficiente limitando-se a dizer que sendo o tráfico de droga um crime de perigo abstracto o bem jurídico foi violado;

15.1. Ora, nos crimes de perigo abstracto também é mister a violação do bem jurídico, pois sem que tal se verifique não existe crime;

15.2. No crime de tráfico de estupefacientes o bem jurídico protegido é a saúde pública;
15.3. Um dos pressupostos da prática do crime é que o agente coloque em perigo, objectiva e subjectivamente, esse bem jurídico, cuja norma visou proteger;
15.4. Deste modo, o recorrente não podia colocar em perigo o bem jurídico saúde pública, quando o produto estupefaciente já estava na posse da DEA e/ou da Policia Judiciaria e, portanto, insusceptível de ser disseminado no mercado dos consumidores;
15.5. Acresce que a posse do produto estupefaciente por banda da polícia implica a inexistência jurídica de objecto uma vez que a droga jamais seria disseminada pelos consumidores;

15.6. É esta a melhor interpretação a dar às normas constantes dos artigos 232º do CP e 21º do DL 15/93.
Outra interpretação inquina de inconstitucionalidade material as referidas normas por contenderem com o estatuído nos artigos 18º, 29° e 32º da CRP;

16. O recorrente nas suas conclusões sob os números 10 a 10.5 suscitou a questão de os factos dados como provados não serem susceptíveis de preencherem os elementos do tipo do crime de tráfico de estupefacientes;

16. 1. Porém, o acórdão omitiu pronúncia sobre esta questão;
16. 2. À cautela dir-se-á que os factos dados como provados não são susceptíveis de preencherem a tipologia do crime de tráfico de estupefacientes;
16.3. Na verdade, os factos dados como provados nos pontos III e LXXVI são genéricos e conclusivos necessitando de factos descritivos que os concretizem;
16.4. Estes factos genéricos e conclusivos não são susceptíveis de serem contraditados, pois é impossível ao cidadão/arguido fazer contraprova de que não se deslocou para Portugal para participar no transporte de droga, tal como é impossível fazer contraprova de que não armazenou ou não deu indicações a quem quer que seja no sentido de pedir para armazenar a droga apreendida;

16.5. Também os pontos IV, V, VI, VII, XVI a XXI, XXIX, XXXIV, XXXVIII, XL a XLIII, XLV, XLVI, XLIX, LI, LV, LVIII, LXXIII e LXXXVI se revelam completamente inócuos e sem qualquer relevância jurídica;

16.6. De resto nenhum dos factos dados como provados, no que concerne à responsabilidade do recorrente, é susceptível de preencher qualquer elemento objectivo do tipo da norma constante do artigo 21º do DL 15/93;

16.7. Deverá assim e por esta via o recorrente ser absolvido.

          O despacho de admissão do recurso tem data de 2015.09.01 (cfr fls 4086) mas o respectivo termo de recebimento tem data de 20015.09.21 (cfr fls 4087).
          O Ministério Público notificado em 2015.09.23 apresentou resposta em 2015.10.28 (cfr fls 4100), por conseguinte fora do prazo previsto no art. 413º, nº 1 CPP de todo o modo apenas consignando nada mais ter a acrescentar à resposta ao anterior recurso.

          Neste Supremo Tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido de considerar terem sido supridas parcialmente deficiências de que padecia o acórdão de 2014.10.30 considerando, porém, que subsistem outras deficiências que consubstanciam nulidade parcial do acórdão proferido em 2015.06.18.
          Foi cumprido o art. 417º, nº 2 CPP tendo os recorrentes reiterado a sua posição.

    Por despacho de 2016.01.08 do relator (fls 4133) foi determinada a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para ser colhida a assinatura do Sr. desembargador presidente da Secção Criminal onde o processo correu termos, ao abrigo do art. 615º, nº 2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 4º CPP  em virtude de o julgamento dos recursos ter tido lugar com audiência.
   O que foi cumprido em 2016.01.19 conforme declaração aposta no local próprio.

                                             *

2. - O resultado do julgamento quanto aos factos provados e não provados e respectiva fundamentação foi o seguinte:

2.1 – Factos provados:

I - O arguido AA em data não determinada de 2012, estando na Colômbia, decidiu transportar para Portugal, cerca de 340 Kg de cocaína, a qual se destinava a ser vendida na Europa.

II - Assim, em data não apurada que se situará em Julho de 2012, por forma também não determinada, o arguido AA fez chegar a Portugal vários fardos de cocaína que continham no seu interior cerca de 340Kg daquele produto estupefaciente, que guardou algures num barracão abandonado, sito num terreno localizado em Casal de Frade, Sesimbra, cujo acesso só era possível através de uma estrada com o piso em terra batida.

III - Depois de enviada a cocaína para Portugal, os arguidos AA e BB deslocaram-se para território nacional, com o objectivo de tratarem da venda daquele produto.

IV - Uma vez em Portugal, onde chegaram em data não determinada próxima mas anterior a 27.07.2012, contactaram os arguidos CC, DD e EE, de nacionalidade espanhola, e outros indivíduos de identidade não apurada, para os auxiliarem na realização das operações de venda e transporte do produto de estupefaciente, passando os cinco arguidos a colaborar entre si com vista a concretizar a venda da cocaína.

V - Evitando ser descobertos, os arguidos rodearam-se de todas as cautelas possíveis.

VI - Nessa perspectiva, todos os contactos que mantiveram entre si em território nacional foram feitos ou através de encontros pessoais ou, excepcionalmente, por telefonemas efectuados a partir de cabines telefónicas.

VII - No período compreendido entre 27.07.2012 e 31.07.2012 os arguidos desmultiplicaram-se em contactos entre si e com outros três indivíduos cuja identidade se não logrou apurar, contactos estes que serviram para organizar e planear todas as operações a realizar para concretizar a venda da cocaína e obter o pagamento.

VIII - No desenvolvimento destes contactos, no dia 27.07.2012, cerca das 12.45h o arguido AA encontrou-se com um outro indivíduo cuja identidade se não logrou apurar, numa esplanada de um restaurante junto ao “Mcdonald's”, em Cascais.

IX - Estiveram os dois a conversar durante cerca de 45 minutos, findos os quais se separaram, seguindo em direcções opostas.

X - No que diz respeito ao arguido AA foi para a estação da CP de Cascais, onde, de uma cabine telefónica, fez um contacto, após o que foi para o Centro Comercial "Cascais Villa" onde também efectuou telefonemas a partir de cabines.

XI - Pelas 13H50, o arguido AA abandonou o Centro Comercial e dirigiu-se novamente para o interior da estação de comboios, tendo ido solicitar informações nas bilheteiras sobre comboios para Madrid, acabando por regressar para o interior do centro comercial, onde voltou a fazer telefonemas a partir de uma cabine.

XII - Entretanto almoçou, fez mais contactos telefónicos de cabines e, por volta das 14.30h, dirigiu- se para a Av. marginal e Av. 25 de abril, onde andou a passear.

XIII - Finalmente, apanhou um táxi que o deixou na frente do Hotel S. Mamede, sito na Av. Marginal, Monte Estoril.

XIV - Uma vez aí, dirigiu-se para a zona dos jardins do Casino Estoril, onde esteve a passear durante cerca de 10 minutos. passado esse tempo, seguiu em direcção ao Hotel S. Mamede, onde entrou.

XV - Por volta das 16h50 o arguido AA saiu do Hotel S. Mamede e dirigiu-se novamente para a zona dos jardins do Casino Estoril, acabando por entrar na pastelaria "Pinto's", sito na Av. Clotilde, sentando-se numa mesa imediatamente a seguir à porta de entrada, com acesso visual para o exterior.

XVI - Cerca de 10 minutos depois entrou na referida pastelaria e juntou-se-lhe o arguido BB.

XVII - Pouco depois estes dois arguidos saíram da pastelaria Pinto's e dirigiram-se para o interior da viatura Citroen C4 Picasso, com a matrícula espanhola 452IGHR, que ali se encontrava estacionada, mais concretamente na R. Aida.

XVIII - Dirigiram-se novamente para o Hotel S. Mamede no referido veículo ..., que era então conduzido pelo arguido AA.

XIX - Este arguido, estacionou, foi ao Hotel, de onde regressou pouco tempo depois com uma mala, entrando no veículo que passou a conduzir, seguindo em direcção a Espanha, mais concretamente a Madrid, acompanhado do arguido BB.

XX. - Estes dois arguidos regressaram a Portugal no dia 29.07.2012, provenientes de Málaga.

XXI - No dia 30.07.2012, cerca das 10.50h, o arguido AA conduzia o veículo de matrícula ...., pela Avenida Marginal, em direcção ao Estoril, indo acompanhado do arguido BB e de uma terceira pessoa, de sexo feminino, cuja identidade se não logrou apurar.

XXII - Entretanto, este veículo parou junto no posto de abastecimento da Repsol, sito no parque de estacionamento da “Makro”, onde recolheu o arguido DD, que se juntou aos outros dois, passando a colaborar com eles na concretização da venda da cocaína que aqueles tinham feito chegar a Portugal.

XXIII - Seguiram, então, para o parque de estacionamento da “Seaside”, sito na Portela de Carnaxide, onde ficou o arguido DD, ali se juntando os arguidos EE e CC, os quais, aquando da chegada dos restantes, estavam sentados numa esplanada existente junto da referida “Seaside”.

XXIV - Também estes dois arguidos, e conforme previamente acordado, passaram a colaborar nas operações de concretização da venda e transporte da cocaína.

XXV - De seguida, estes três arguidos (DD, EE e CC) foram-se embora no veículo de matrícula ...., tendo ultrapassado o veículo de matrícula ...., onde seguiam os restantes arguidos, a quem acenaram, fazendo adeus.

XXVI - O veículo de matrícula .... dirigiu-se então para junto do Parque de Campismo de Lisboa, sito na Estrada da Circunvalação, em Monsanto, onde estacionou quando eram 11h27.

XXVII - Foi então que os arguidos DD e CC saíram da viatura dirigindo-se para o interior do Parque de campismo, tendo o segundo utilizado um cartão para entrar.

XXVIII - Enquanto isto, o arguido EE manteve-se no exterior da viatura, observando as movimentações de viaturas e pessoas em seu redor, designadamente, na tentativa de ver se estava a ser seguido.

XXIX - Cerca das 12h00, o arguido CC saiu do Parque de Campismo a conduzir uma viatura da marca Renault, modelo Traffic, de cor branca, com a matrícula ...., com o arguido BB no lugar de pendura.

XXX - Por sua vez, o arguido EE regressou à viatura C4 cinza  com a matrícula ... e ambas as viaturas seguiram para destino desconhecido.

XXXI - Entretanto, pelas 13h10 do mesmo dia 30.07, o arguido AA andava pelo Centro Comercial "Cascais Villa", onde efectuou diversos telefonemas, a partir de cabines, tendo abandonado aquele centro, por volta das 13h30.

XXXII - À saída voltou a encontrar-se com a mulher referida no artigo XXI, cuja identidade se desconhece, seguindo os dois, apeados, em direcção à estação dos comboios de Cascais.

XXXIII - Alguns minutos mais tarde, os dois entram para a viatura C4 com a matrícula ...., que arrancou para destino desconhecido, sendo, então, conduzida pelo arguido DD.

XXXIV - Quando eram 15.30h do mesmo dia 30.07.2012, os arguidos BB, AA e a mulher com quem fora visto pelas 13.30h, andavam novamente a passear-se nas zonas da estação de Cascais e das praias.

XXXV - Cerca de meia hora mais tarde os arguidos DD, EE e CC circulavam no veículo de matrícula .... nas redondezas do centro comercial, vindo a parar na Alameda Duquesa de Palmela, em Cascais.

XXXVI - Nessa altura, o arguido DD foi ao encontro do arguido AA e das outras duas pessoas com quem este se encontrava.

XXXVII - De seguida, o arguido EE estacionou a C4 cinza com a matrícula ..., na zona, e dirigiu-se apeado para a mesma artéria, ficando a cerca de 100 metros de onde se encontravam os restantes, a observar movimentações de pessoas e viaturas em seu redor.

XXXVIII - Pelas 17h10, os arguidos EE e CC regressaram à viatura C4 cinza com a matrícula .... e abandonaram o local, ao mesmo tempo que o arguido BB e a mulher que os acompanhava se deslocaram para o interior do “Mcdonald' s”, onde estiveram a olhar para o exterior, isto enquanto o arguido AA foi para a esplanada do “Mcdonald' s” e os arguidos EE e CC, cumprindo o seu papel de vigilantes do grupo, circulavam nas imediações do “Mcdonald's”, na viatura C4 cinza com a matrícula ....

XXXIX - Cerca de 5 minutos depois, sentou-se a conversar com o arguido AA o mesmo indivíduo que se encontrara com este no dia 27/07/2012, a quem se juntou, meia hora mais tarde, um terceiro indivíduo cuja identidade também se não logrou apurar.

XL - Durante o encontro destes três indivíduos, o arguido BB e a mulher acima referenciada mantinham-se a observar atentamente a partir do interior do “McDonald's”, ao mesmo tempo que a viatura C4 cinza com a matrícula .... fazia passagens frequentes nessa zona, em exercício de vigilância.

XLI - Pelas 18h09, o veículo de matrícula ...., levando no seu interior os arguidos AA, BB e DD circulava junto do Centro Comercial “Cascais Villa”, enquanto o de matrícula ... se encontrava estacionado nas imediações, estando no seu interior os arguidos EE e CC.

XLII - Entretanto, já em Lisboa, o veículo de matrícula ... entrou para o parque de estacionamento subterrâneo dos Restauradores, saindo os três ocupantes, (AA, BB e DD) que se dirigiram para o restaurante "Valentino", sito na Rua Jardim do Regedor, Lisboa.

XLIII - Pelas 20h25, os arguidos BB e DD regressaram ao parque de estacionamento dos Restauradores e saíram com o veículo de matrícula .... momentos depois, acabando por parar a mesma em frente à “Pastelaria Suíça”, sita na Praça D. Pedro IV.

XLIV - Por volta das 22h30, do mesmo dia 30.07.2012, o veículo de matrícula ... estava estacionado no piso  -1 do parque de estacionamento do “Fórum Almada”, sem nenhum ocupante no seu interior.

XLV - Pelas 23h17 desse mesmo dia 30.07.2012, os arguidos AA, BB, DD, EE e CC sentaram-se numa mesa na zona da restauração no piso 2 do “Fórum Almada”.

XLVI - Cerca de 10 minutos mais tarde, saíram da zona da restauração e deslocaram-se para o parque de estacionamento no piso -1, tendo os arguidos AA, BB e DD regressado ao interior do centro comercial, enquanto os arguidos EE e CC caminharam em direcção à viatura Renault .....

XLVII - O CC entrou naquele veículo enquanto o EE retirou do mesmo um objecto que se não conseguiu identificar, após o que se dirigiu ao veículo de matrícula ...., que estava estacionado no mesmo piso do parque de estacionamento.

XLVIII - Pelas 23h41 ambas as viaturas de matrículas .... e .... abandonaram o parque de estacionamento, em direcção às paragens no exterior do “Fórum Almada”.

XLIX - Nesse local, os arguidos AA e BB entraram para a viatura C4 cinza com a matrícula ..., então conduzida pelo arguido EE, e o arguido DD entrou para a Renault ...., então conduzida pelo arguido CC.

L - Ambos os veículos se dirigiram para o parque de estacionamento exterior da "Norauto", junto ao “Forum Almada”, juntando-se-lhes o veículo de matrícula ..., onde vinham dois indivíduos não identificados.

LI - Cerca da 01h00, os três veículos abandonaram aquele local, seguindo o de matrícula .... para o Feijó, enquanto os outros dois, depois de inverterem a marcha, regressaram para a rotunda existente junto no parque da “Norauto”, estando os arguidos AA e BB no de matrícula ..... e os arguidos CC, EE e DD no veículo de matrícula ....

LII - Desta rotunda os dois veículos seguiram em direcção da Costa da Caparica, onde, às 23h00, andavam a circular.

LIII - Por sua vez, o veículo de matrícula ...., cerca das 00.57 h de 31.07.2012, estava em Casal de Frade, em Sesimbra, entrando para uma zona de terra batida, parando junto de um barracão abandonado, com as luzes apagadas, barracão este onde havia sido depositada a cocaína, e onde parte dela veio a ser apreendida.

LIV - Cerca das 08h00 de 31.07.2012, o veículo de matrícula .... estava estacionado na R. D. Sebastião, Costa da Caparica.

LV - Quando eram perto das 9h00 do mesmo dia, entraram para aquele veículo os arguidos AA e BB, que arrancaram em direcção ao “Fórum Almada”, tendo estacionado no parque coberto.

LVI - Ao mesmo tempo, no parque adjacente ao “Forum Almada” estava estacionado o veículo de matrícula ..., estando no seu interior os arguidos DD, EE e CC.

LVII - Entretanto, por volta das 09.30h do mesmo dia, os cinco arguidos reuniram-se a uma mesa, na área da restauração do “Fórum de Almada”.

LVIII - Pelas 10.37h um dos indivíduos não identificado já referenciado nesta acusação, abordou o arguido ...., com quem esteve a falar.

LIX - Ao mesmo tempo, no exterior do Centro Comercial circulava já o Citroen C4 com a matrícula .... com dois indivíduos no interior não identificados, a velocidade reduzida, que efectuou diversas vezes o percurso que medeia entre a rotunda das bombas de gasolina do “Jumbo”, em Almada, e a rotunda do “Fórum Almada”.

LX - Por sua vez, o veículo de matrícula .... encontrava-se estacionado no parque de estacionamento da “Norauto”, sem ninguém no interior.

LXI - Enquanto isto os arguidos AA e BB mantiveram-se no interior do centro comercial, tendo os restantes desaparecido para local desconhecido.

LXII - Pelas 11H20, o arguido CC voltou ao parque de estacionamento da “Norauto”, onde se encontrava o veículo de matrícula ...., abriu a respectiva porta traseira, espreitou para o interior do veículo e voltou a fechá-la, entrando, de seguida, para o lado do condutor.

LXIII - Este veículo foi aquele que estivera parado numa estrada de terra batida, em Casal de Frade, Sesimbra, junto a um barracão abandonado, cerca das 00.57h de 31.07.2012, conforme descrito no artigo LIII.

LXIV - Entretanto, o veículo de matrícula .... iniciou a marcha transportando os arguidos DD e EE no seu interior, sendo logo seguida pelo veículo de matrícula ...., cujo único ocupante era o arguido CC, tendo ambas as viaturas seguido pelo IC 20 em direcção à Costa da Caparica.

LXV - Ao chegar ao centro da Costa da Caparica, a viatura com a matrícula .... virou para a Av. Afonso de Albuquerque, continuando a ser seguida pela carrinha ...., que dela mantinha uma distância de cerca de 500 metros.

LXVI - Neste momento, quando aqueles dois veículos atravessavam a rotunda em frente ao Parque de Campismo do Inatel, a Polícia Judiciária, que os vinha a seguir, mandou parar o que tinha a matrícula .... e de seguida o que tinha a matrícula ...., que se encontrava parada na fila de trânsito, a cerca de 500 metros.

LXVII - Quando mandado parar o condutor da viatura de matrícula ...., o arguido DD, tendo-se apercebido da aproximação da Polícia Judiciária, tentou fugir, pelo que imprimiu maior velocidade ao veículo e avançou por entre as duas faixas de rodagem da via em que circulava, colidindo indiscriminadamente com os veículos que seguiam nas respectivas faixas, tendo, deste modo, atingido os veículos de matrícula ...., ...., ...., .... e ...., os quais ficaram amolgados nas partes embatidas.

LXVIII - O arguido DD conduziu o veículo da forma descrita, querendo furtar-se à acção policial, ciente de que deste modo colocava em risco a vida e a integridade física dos ocupantes dos veículos onde admitiu que pudesse vir a embater.

LXIX - Fê-lo igualmente ciente de que poderia danificar e até mesmo destruir os veículos em que embatesse, designadamente provocando um incêndio.

LXX - Não obstante esta conduta do arguido DD a Polícia Judiciária conseguiu imobilizar os dois veículos, ou seja o de matrícula ...., que ia a servir de batedor, e o que seguia atrás deste, de matrícula ...., conduzido por CC, na sequência do que deteve os arguidos CC, DD e EE.

LXXI - Paralelamente, a mesma Polícia revistou os dois veículos, tendo encontrado no de matrícula .... oito sacos de sarapilheira que continham no seu interior, cada um deles, vinte e cinco placas envolvidas em fita de cor preta, transparente com o logotipo 2012, num total de duzentas embalagens, que assim envolviam 234,300KG de um pó que sujeito a exame laboratorial se concluiu ser cocaína, substancia esta inscrita na tabela IB anexa ao DL.15/93 de 22.01.

LXXII - Esta carrinha fora a que cerca das 00H57 de 31.07.2012 estivera no terreno descampado, no Casal de Frade, Sesimbra, junto a uma casa abandonada.

LXXIII - No interior da Citroen Xsara Picasso, com a matrícula ...., cuja chave se encontrava na disponibilidade do arguido BB foi encontrado e apreendido um aparelho de navegação GPS, da marca Garmin, modelo nüvi I490, de cujo exame resultou a viagem feita a Madrid por este arguido e pelo AA, conforme descrito nos artigos XIX e XX.

LXXIV - Feita uma busca pormenorizada ao barracão sito no terreno localizado na Zona de Casal de Frade, onde fora visto o veículo de matrícula ..., conforme descrito no artigo 72°, foram ali encontrados quatro sacos de sarapilheira, sendo que três deles continham vinte e cinco placas envolvidas em fita de cor preta e transparente com o logotipo 2012, e um deles com apenas quinze placas envolvidas em fita de cor preta e transparente com o logotipo 2012, num total de noventa embalagens.

LXXV - As noventa embalagens apresentavam um peso total bruto de 106,200kg (cento e seis quilos e duzentos gramas) de um pó que submetido a teste rápido resultou ser cocaína.

LXXVI - Este produto tinha sido ali armazenado pelos arguidos, ou por alguém a seu mando, tal como o restante que lhes foi apreendido, e destinava-se, como se disse, a ser entregue a pessoas cuja identidade não se chegou a apurar, a quem tinha sido vendido pelos arguidos.

LXXVII - Todos os arguidos conheciam bem as características do produto que foi apreendido, bem sabendo que a sua detenção, transporte e comercialização era proibida por lei.

LXXVIII - No entanto, colaboraram entre si com vista a trazer a cocaína para Portugal e posteriormente vendê-la, visando com isso o arguido AA auferir ganhos elevados resultantes da venda de tal elevada quantidade de cocaína.

LXXIX – Agiram de comum acordo, deliberada, livre e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram punidas por lei.

 Condições sócio-económicas

LXXX - O arguido AA é natural de uma cidade rural da Colômbia, onde nasceu e cresceu integrado num agregado familiar constituído pelos progenitores e catorze irmãos germanos;

LXXXI - Completou 11 anos de escolariedade, tendo a partir dos 18 anos passado a dedicar-se a actividades de comercialização de café, em empresa familiar, de cuja exploração ainda retirava proventos;

LXXXII - Tem 5 filhos, 3 deles maiores;

LXXXIII - Na sequência de maior predominância das FARC no país onde vivia, alterou a sua residência para a Ilha de Saint Martin, Ilha do Caribe, onde se passou a dedicar e desenvolver à comercialização, por conta própria, de materiais de construção civil que adquiria em Bogotá e na Venezuela;

LXXXIV - Há cerca de 3 anos, a actual cônjuge (que também desenvolvia actividade profissional remunerada) e as suas duas filhas menores passaram a viver no Canadá, contribuindo o arguido para o seu sustento;

LXXXV - Através do Banco “Bancolombia” e de um cartão de visa associado ao arguido AA aquele disponibilizou a este a quantia de 6,600,000 pesetas, para pagamento de bens de consumo;

LXXXVI - O arguido BB é natural da Colômbia, onde nasceu e cresceu;

LXXXVII - Concluiu o ensino obrigatório, constituído por 11 anos de escolaridade;

LXXXVIII - Com cerca de 23 anos de idade passou a desenvolver actividade como motorista de pesados e taxista;

LXXXIX - Com cerca de 29 anos passou a explorar, por conta própria, um estabelecimento comercial de venda de produtos e artigos para bébé;

XC - Tem 3 filho menores;

XCI - Em Fevereiro de 2012, passou a residir em Espanha sozinho;

XCII - O arguido EE nasceu em Granada, Espanha;                                                                                                                                                                      

XCIII - Estudou até ao 8.° ano de escolaridade, que concluiu com 16 anos de idade;

XCIV - Inicialmente, desenvolveu actividade profissional remunerada na área da construção civil, após o que passou a desenvolver actividade profissional como condutor de veículos de transporte de passageiros;

XCV - Tem 4 filhos;

XCVI - Em momento anterior à data dos factos aqui em causa, residia sozinho beneficiando do apoio diário dos filhos, irmãos e cunhados em casa de quem fazia diariamente as refeições;

XCVII - Padece de doença infecto contagiosa, que lhe impõe terapêutica constante;

XCVIII - Frequenta consultas de psicologia e psiquiatria;

XCIX - Foi consumidor de estupefacientes, problemática entretanto ultrapassada;

C - Subsistia com cerca de € 500 por mês, provenientes do arrendamento de um imóvel e de trabalhos pontuais e ocasionais que ia desenvolvendo;

CI - O arguido DD concluiu o 8.° ano de escolaridade, após o que começou a desenvolver actividade profissional na área da carpintaria e pintura juntamente com o progenitor;

CII - Posteriormente, passou a explorar, por conta própria, um restaurante/hamburgueria, cujo negócio se ressentiu significativamente com a crise de 2007/2008;

CIII - Tem 4 filhos, um deles com dificuldades de desenvolvimento psico-motor;

CIV - O arguido CC estudou até ao 8.° ano de escolariedade, após o que concluiu, mais tarde, 3 anos de formação profissional, na área da electricidade;

CV - Com cerca de 12 anos começou a praticar motocross, o que veio a desempenhar de modo profissional até aos 20 anos, altura em que abandonou a actividade e passou a trabalhar como mecânico de motas, na empresa Yamaha, até ser dispensado da mesma em 2011, devido a quebra de actividade;

CVI - A partir daí passou a dedicar-se a uma oficina de motos, da qual retirava parcos rendimentos económicos;

CVII -  É casado e tem uma filha com 12 anos de idade.

Antecedentes criminais

CVIII - O arguido AA respondeu por branqueamento de capitais relacionado com o tráfico de droga nos EUA, tendo estado detido 9 anos;

CIX - O arguido EE já respondeu por crime contra a saúde pública, tendo sido condenado a 4 anos de prisão;

CX - O arguido DD respondeu por furtos;

CXI - Os restantes arguidos nunca responderam criminalmente nem cumpriram pena de prisão.

2.2 - Factos não provados:

Com relevância para os autos não se provou:

A) - Com referência ao descrito em I), que o arguido BB, em data não determinada, de 2012, estando na Colômbia, decidiu transportar para Portugal cerca de 340kgs de cocaína;

B) - Com referência ao descrito em II), que o arguido BB tenha participado nesses factos;

C) - Os arguidos BB, CC, DD e EE visavam auferir ganhos elevados resultantes da venda de tão elevada quantidade de cocaína;

Da contestação do arguido AA (fs. 1919)

D) O arguido conhecia um indivíduo “Árabe” há vários anos que lhe falou num tal “Capitão” que o pretendia conhecer;

E) Este Capitão foi há cerca de 6 anos condenado por tráfico de estupefacientes;

F) O objectivo deste indivíduo era não cumprir a pena de prisão a que tinha sido condenado;

G) Esse indivíduo deslocou-se à Colômbia, pelo menos em Maio de 2012, a fim de falar com indivíduos disponibilizando os seus serviços no sentido de organizar o transporte de cocaína para a Europa;

H) Falou com vários indivíduos com o referido propósito;

I) É através do “Árabe” que o arguido conhece o referido indivíduo, tendo este solicitado para que o apresentasse a um  grupo de indivíduos com capacidade para arranjarem grande quantidade de produto estupefaciente;

J) O arguido AA vivia com grandes dificuldades económicas;

K) O referido indivíduo contactou pessoalmente e na Colômbia, por diversas vezes, o arguidoAA no sentido de este lhe apresentar o referido grupo de pessoas;

L) O arguido, após grande insistência, acabou por anuir na proposta do referido colaborador e apresentou-lhe os referidos indivíduos;

M) Foi marcada uma reunião, ainda no mês de Maio, na Colômbia, entre os referidos indivíduos, na qual o arguido assistiu;

N) O colaborador ofereceu os seus serviços, mais concretamente, que dispunha de um barco que poderia proceder ao transporte de uma grande quantidade de cocaína desde a Colômbia até à Europa;

O) O referido colaborador disponibilizou todos os meios necessários e indispensáveis para o transporte, armazenamento, desembarque e entrega de cocaína no local a combinar na Europa;

P) Face à disponibilidade destes meios o referido grupo de indivíduos terá mandado entregar ao outro indivíduo, em ponto marcado por este, a cocaína que supostamente veio a ser apreendida;

Q) O arguido após lhe terem dito que a droga foi entregue ao colaborador referido, não mais teve conhecimento do trajecto que a mesma percorreu até ao momento que esse grupo de indivíduos lhe pediu para se deslocar a Portugal a fim de falar com o referido colaborador;

R) O arguido não sabe se a droga foi transportada por barco ou avião, nem onde a droga esteve armazenada até ser entregue no dia 25 de Julho à Policia Judiciária.

                                         *

2.3. – Fundamentação  da matéria  de facto (transcrição)[1]:

«A livre apreciação da prova constitui um dever do julgador que axiologicamente se lhe impõe por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana - i.e., emerge directamente dos artigos 1.° e 2.° da Constituição da República Portuguesa -, traduzindo-se na possibilidade de formar uma convicção pessoal da verdade dos factos, convicção essa ainda assim racional, assente em regras de lógica e experiência, objectiva e comunicacional.

O Supremo Tribunal de Justiça densifica o dever de fundamentação da sentença com o apelo a esta ideia: a decisão, “para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência”.

De acordo com o entendimento que tem vindo a ser professado pelo Tribunal Constitucional, “a valoração da prova segundo a livre convicção do julgador não significa uma apreciação contra a prova ou uma valoração que se desprendeu da legalidade dos meios de prova ou das regras gerais de produção de prova, ou seja, não é admissível uma valoração arbitrária da prova, sendo a convicção do julgador ‘objectivável e motivável’, conjugando-se com o dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade”

A avaliação em consciência a que se refere o preceito legal não há-de entender ou fazer-se com um fechado e insindicável critério pessoal e íntimo do julgador, mas com uma apreciação lógica da prova, com guias e directrizes objectivas, que leve a uma consubstanciação histórica dos factos que seja compatível com o acervo probatório constante dos autos.

Esclarecidas as premissas que orientam o Tribunal na fundamentação da matéria de facto, proceder-se-á, agora, à análise crítica e individual de cada meio de prova produzido em audiência de discussão e julgamento.


a) Da acção encoberta

Preliminarmente, porém, quedemo-nos nas declarações e defesa do arguido AA, a propósito do que se tratarão duas questões suscitadas pela Defesa em sede de audiência de discussão e julgamento e sobre as quais o Tribunal ainda não se tinha pronunciado.

Segundo o referido arguido, correspondem à verdade as circunstâncias de tempo, lugar e execução descritas no douto libelo acusatório; porém, a sua actuação foi determinada, ainda na Ilha de Saint Martin (onde residia) pela actuação de um terceiro, que agora se apurou ser um agente infiltrado, mas que a Defesa reputa de “provocador”, com a consequente nulidade de toda a prova assim obtida por emergente de métodos de prova proibidos (art. 126.° do Código de Processo Penal.

Esclareça-se que, desde fase embrionária dos autos, é pacífica a existência de uma acção encoberta, cujo junção do respectivo relato final foi ordenada os autos por despacho de 15 de Abril de 2013 na sequência de requerimento da Defesa (fls. 1388 a 1392, 5.° volume dos autos) e cuja legalidade vem sendo sindicada desde a fase da instrução (sem sucesso, diga-se).

Na destrinça entre a figura do agente infiltrado (com acolhimento na Lei n.° 101/2001, de 25 de Agosto) e a sua actuação como agente provocador esclarece o STJ o seguinte:

I - Têm sido, em geral, admitidas medidas de investigação especiais, como último meio, mas como estritamente necessárias à eficácia da prevenção e combate à criminalidade objectivamente grave, de consequências de elevada danosidade social, que corroem os próprios fundamentos das sociedades democráticas e abertas, e às dificuldades de investigação que normalmente lhe estão associadas, como sucede com o terrorismo, a criminalidade organizada e o tráfico de droga.

II - A pressão das circunstâncias e das imposições de defesa das sociedades democráticas contra tão graves afrontamentos tem imposto em todas as legislações, meios como a admissibilidade de escutas telefónicas, a utilização de agentes infiltrados, as entregas controladas.

III - No quadro normativo vigente, a actuação do agente provocador é normalmente considerada como ilegítima, caindo nos limites das proibições de prova, sendo patente o consenso da doutrina e da jurisprudência de que importa distinguir os casos em que a actuação do agente policial (agente encoberto) cria uma intenção criminosa até então inexistente, dos casos em que o sujeito já está implícita ou potencialmente inclinado a delinquir e a actuação do agente policial apenas põe em marcha aquela decisão. Isto é, importa distinguir entre a criação de uma oportunidade com vista à realização de uma intenção criminosa, e a criação dessa mesma intenção.

IV Com efeito, na distinção e caracterização da proibição dum meio de prova pessoal é pertinente o respeito ou desrespeito da liberdade de determinação de vontade ou de decisão da capacidade de memorizar ou de avaliar. Desde que estes limites sejam respeitados, não será abalado o equilíbrio, a equidade, entre os direitos das pessoas enquanto fontes ou detentoras da prova e as exigências públicas do inquérito e da investigação. A provocação, em matéria de proibição de prova só intervém se essas actuações visam incitar outra pessoa a cometer uma infracção que, sem essa intervenção, não teria lugar, com vista a obter a prova duma infracção que sem essa conduta não existiria.

E, em idêntico sentido, se pronunciou o Tribunal Constitucional que caracteriza o agente infiltrado como aquele que se insinua junto dos agentes do crime, ocultando-lhes a sua qualidade, de modo a ganhar a sua confiança a fim de obter informações e provas contra eles, mas sem os determinar à prática de infracções, ou seja, aquele usa o anonimato para recolher os indícios da execução da actividade criminosa que o seu autor já está anteriormente determinado a praticar. Aliás, como esclarece o Prof. Costa Andrade “a provocação em matéria de proibição de prova só intervém se as actuações desses agentes visam incitar outra pessoa a cometer uma infracção que, sem essa intervenção, não teria lugar, com vista a obter a prova de uma infracção que sem essa conduta não existiria (...)”.

Refira-se, por último e com pertinência para o tratamento factual da questão em apreço, que também o TEDH se vem pronunciando no sentido de permitir aos países que subscreveram a CEDH a utilização de meios mais invasivos dos direitos fundamentais, como o é, o recurso ao agente infiltrado (sem que com isso que ponha em causa o direito a um processo equitativo, consignado no art. 6.° da CEDH), quando está em causa uma criminalidade grave e sofisticada e conquanto os agentes infiltrados surjam apenas associados à prática criminosa, sem que contudo a tenham determinado.

Revertendo ao caso dos autos importa assinalar duas questões:
i) A linha de Defesa prosseguida pelo arguido no sentido de que foi utilizado um meio de prova proibido cinge-se à mera invocação e caracterização genérica de que a actuação do agente infiltrado foi “provocadora” mas sem que, contudo, especifique, concretize ou esclareça de que factualidade concretamente ocorrida entre si e os referidos indivíduos, resultou tão relevante constatação. Diz, apenas, a este propósito que actuou por “dificuldades financeiras” e na sequência da abordagem de um terceiro, mas tal motivação é, aliás, recorrente na prática do crime em causa e não surge, certamente, de nenhuma circunstância criada ou determinada pelo referido agente infiltrado.
ii) Os factos subsequentes à origem da decisão e resolução criminógena do arguido AA de deter para venda uma quantidade significativa de cocaína, que ocorreram na Colômbia e na Ilha de Saint Martin e que respeitam ao transporte e introdução em território europeu do produto estupefaciente não vêem descritos na acusação, nem são objecto da imputação penal aqui feita aos arguidos e nem teriam de o ser, dado que o crime que lhes é imputado se cinge à detenção, em Portugal, no dia 31 de Julho de 2012 (em divisão de tarefas e esforços com o objetivo comum partilhados pelos restantes arguidos) de 340 quilos de cocaína, com vista à sua posterior comercialização; isto é, a não ser que se conclua que, na origem da resolução criminosa esteve o recurso a um meio de prova proibido que, por força do chamado efeito à distância, cominou com a nulidade toda a demais prova obtida (o que mesmo assim e s.m.o. sempre exigiria uma análise casuística das condutas subsequentes empreendidas, no sentido de apurar se a referida determinação criminógena provocada por terceiros não se esgotara já e estava entretanto implementada no arguido uma nova resolução criminosa sem nexo de causalidade com a anterior provocação) a verdade é que tais factos são completamente irrelevantes para o concreto objecto dos autos aqui em causa e para a concreta imputação jurídico-penal que impende sobre o arguido - detenção de produto estupefaciente com vista à sua venda.

Tendo presente este enquadramento quedemo-nos agora na análise crítica e conjugada dos depoimentos do agente infiltrado português “Girassol” e bem assim do “case-officer” americano responsável pela supervisão do agente infiltrado americano (que actuou sob a égide e supervisão da DEA - Drug Enforcement Administration).

Com efeito, e apesar do referido em i), o Tribunal, no âmbito e uso dos poderes investigatórios que sobre si impendem com vista à descoberta da verdade material procedeu à inquirição, em audiência de julgamento, daqueles depoentes, com o desiderato único e exclusivo de apurar se a conduta do arguido Macias Nieto fora, ou não, determinada por terceiros.

Tais depoimentos constituem agora meio de prova testemunhal a apreciar livremente pelo Tribunal nos termos constantes do art. 127.° do Código de Processo Penal e com reporte cingido  “aos factos objectos da sua actuação”, como expressamente prescrito pela parte final do n.° 4 do art. 4.° da Lei n.° 101/2001, de 25 de Agosto, não se destinando, como pretende a Defesa, a alargar o objecto dos autos à actuação e intervenção das forças policiais e de autoridade. A pretexto do relato final da acção encoberta (e da sua natureza dogmática) e da questão suscitada pela Defesa do arguido AA na sessão de julgamento de 21.10.2013 (fls. 2176), sobre a qual recaiu a douta promoção de fls. 2241, sempre se dirá que lhe falece igualmente razão, porquanto, por um lado e conforme consta do despacho do Mmo JIC a legalidade da acção encoberta decorreu sob a sua supervisão e controlo jurisdicional e, por outro lado, mesmo que se entendesse que o disposto no n° 6 do art. 3° da Lei das Acções Encobertas respeita ao relato final - o que nenhum argumento literal ou teleológico sustenta - nenhum vício ou ilegalidade decorreria de tal inobservância porquanto, como se esclarece no aresto que ora se convoca, tal relato destina-se apenas a permitir o controlo processual da acção encoberta, não constituindo meio de prova
  Revertendo novamente ao depoimento desses agentes dir-se-á que, da análise crítica e conjugada dos mesmos resultou que, a partir da ilha em que residia, em Saint Martin, o arguido AA, por sua iniciativa, diligenciou, organizou e empreendeu, sempre de acordo com as suas directrizes, ordens e prescrições, pela aquisição de 340 kgs de cocaína ainda na América do Sul (junto dos produtores da droga) e sua introdução em território europeu, com destino a dois compradores finais. Especificando, pelo case-officer da DEA inquirido - o qual salientou deter conhecimento directo de factos relatados, uma vez que, a intervenção dos agentes infiltrados que actuam sob a égide da DEA (Drug Enforcement Agency) é, de acordo com os seus procedimentos standardizados, monotorizada, via áudio e imagem, em tempo real - foi esclarecido que o arguido AA participou numa reunião entre indivíduos de identidade não apurada mas que assumiram a tarefa de obter o produto estupefaciente (produtores) e o capitão do barco por si diligenciado para ir buscar a droga junto dos mesmos e carregá-la em alto-mar para ulterior transporte até ao continente europeu; nessa reunião, o arguido assumiu um papel preponderante e liderante, determinando quer o momento temporal em que o transporte da droga se faria (apenas em Junho, por o arguido ter dito que não a tinha de imediato) e o modo concreto desse transporte, que determinou que fosse através de veleiros até Portugal, por considerar que estes mais facilmente se eximiriam ao controlo e supervisão das várias autoridades policiais. Acresce que, durante o período acordado entre o arguido e o capitão do barco para o transporte da droga por via marítima até Portugal, o arguido AA estabeleceu regulamente contatos com o referido indivíduo, supervisionando e controlando o cumprimento daquilo que por si havia sido determinado quanto à forma e “timing” desse transporte.
Também na mesma senda, o agente infiltrado português, que participou nos factos ocorridos em Portugal entre os dias 27 e 31 de Julho de 2012, relativamente aos quais detinha, por isso, conhecimento directo e presencial, corroborou o anterior depoimento quanto ao papel preponderante e liderante assumido pelo arguido AA, em território português e no período temporal aqui especificamente em causa.
Em particular, o depoente descreveu pormenorizadamente o primeiro encontro com o arguido em Cascais encontro estabelecido entre os arguidos no “Fórum Almada”, no dia 30 de Julho de 2012, no âmbito do qual, a carrinha por que o arguido diligenciara e que determinara como sendo o veículo de transporte da droga até aos compradores finais, deveria ser deixada no parque de estacionamento e carregada com a droga por aqueles que a tinham introduzido em Portugal, vindo o arguido, no dia seguinte, buscá-la, altura em que procederia ao pagamento do produto e seguiria para junto do comprador final por si engendrado. Mais disse que, o arguido deu ordens expressas para a carrinha não ser carregada com a totalidade da droga que diligenciara pela introdução em Portugal (pois tinha dois compradores distintos, estando agora a “tratar” do primeiro deles e, em momento, ulterior diligenciaria pela venda do restante produto estupefaciente a outro comprador), o que efectivamente sucedeu, sendo que, no dia seguinte, 31 de Julho de 2012, os cerca de 234,300 kgs de droga, encontravam-se acondicionados na carrinha para o efeito indicada pelo arguido AA, pelo que foi então estacionada, conforme prévia combinação, no parque de estacionamento do centro comercial “Almada Fórum”.
Estes depoimentos revelaram-se isentos, desinteressados e coerentes entre si, assim logrando merecer a credibilidade do Tribunal.
Destes depoimentos - a propósito dos quais a Defesa exerceu amplo direito de contraditório em julgamento - não resultou qualquer factualidade concreta ou sequer indício de actuação provocadora dos agentes infiltrados que participaram na acção encoberta.
Acresce que, a conduta empreendida pelo arguido AA em Portugal antes inculcou no Tribunal a convicção do seu papel de liderança e proeminência originária quanto ao crime aqui em causa, não merecendo credibilidade a versão por si apresentada de que era um mero “intermediário” e se limitara a “apresentar” o produtor da droga a quem a iria ulteriormente introduzir em território europeu e proceder à sua venda a compradores finais, no que fora determinado exclusivamente por um terceiro.
Com efeito e desde logo, não se alcança o motivo pelo qual, a ser como por si invocado de que desempenhou um mero papel de intermediário entre quem produzia a droga e quem a introduzia em território europeu, veio a Portugal.
Na verdade, a crer-se na sua alegação, toda a sua conduta cingir-se-ia e esgotar-se-ia na apresentação daqueles dois grupos de pessoas, o que sucedeu em território não europeu.
Por outro lado, também não se mostra coerente nem consentâneo com a sua versão de mero “apresentador” de pessoas com interesses ilícitos em comum, a razão pela qual assumiu ter participado nas reuniões decorridas entre esses indivíduos e nas quais na sua versão, terceiros que não o próprio, engendraram, programaram e implementaram uma estratégia de introdução de uma quantidade significativa e qualidade específica de produto estupefaciente em território europeu.
Mais, também não se vislumbra a razão pela qual, se o seu papel era tão redutor como por si invocado, além de ter vindo para Portugal receber a droga, por que motivo se deslocou a Espanha e na sequência disso vieram, para Portugal, três indivíduos de nacionalidade espanhola, que viriam em momento posterior a ser detidos na posse do estupefaciente, numa viatura automóvel por estes conduzida.
Por último, também não mereceu credibilidade - por tal não ser consentâneo com as regras da experiência comum - a alegação do arguido de que actuara motivado por uma situação de grande dificuldades financeiras mas afinal, e segundo disse, apenas iria receber apenas a quantia de € 10.000 (dez mil euros), incoerente com a envergadura e riscos por si assumidos com a conduta transnacional empreendida.
Em síntese, não sobrevieram nos autos sequer indícios de a actuação dos agentes infiltrados que participaram na acção encoberta terem actuado como “provocadores”. Aliás, antes resultou que, após ter logrado a introdução em Portugal da quantidade e qualidade do produto estupefaciente aqui em causa (quantidade e qualidades essas, aliás, que não são questionadas pelo arguido), o arguido manteve sempre supervisão, acompanhamento e controlo, que se traduziu em contactos próximos e presenciais com os indivíduos que a transportaram, no diligenciamento por si de compradores finais para a droga e bem assim de três indivíduos de nacionalidade espanhola a quem, em comunhão de esforços e divisão de tarefas para um propósito comum, cabia, numa primeira fase, acautelar que não eram surpreendidos pelas autoridades e, num segundo momento, transportar a droga até ao destino final, segundo instruções e ordens do arguido. Note-se que, neste período temporal e enquanto se reuniu com os transportadores da droga, o arguido esteve sempre na zona de Cascais mas quando, em momento posterior (madruga de 30 de Julho para 31) e conforme por si ordenado, a droga deveria ser parcialmente carregada para a Renault Traffic, o que ocorreu em Sesimbra, o arguido esteve na Costa da Caparica, localidade próxima.
Finalmente, ressalte-se que, após esse carregamento, cessou a intervenção dos agentes infiltrados e a carrinha (e o estupefaciente ali depositado, segundo indicações do arguido AA) encontrava-se à ordem, disposição e sob o controlo imediato e exclusivo dos cinco arguidos que, todavia, na posse desta já empreendiam o seu transporte para outros destinos com vista à sua comercialização a terceiros, no que foram impedidos pela intervenção da PJ, que só então e neste contexto os deteve.
Assim sendo, a matéria relacionada com a concreta forma de introdução da droga em Portugal - e porque não se demonstrou que surja na sequência de uma actuação do arguido AA provocada por terceiros - não releva para o objecto dos autos, por dela nada se extrair quanto à concreta imputação jurídico penal que aqui impende sobre os arguidos, pelo que, não há lugar ao cumprimento do disposto no art. 358.°/1 do Código de Processo Penal, onde expressamente se consignou que se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na (...) pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, comunica (...).
Do que antecede resulta ainda, a fundamentação do Tribunal quanto à factualidade descrita na contestação do arguido AA que, naturalmente, e pelas razões que se acabam de explanar veio a ser considerada não provada, na medida em que está em manifesta contradição com o apurado em julgamento.
          Do objecto da pronúncia
          No que respeita à factualidade descrita em 7) a 67) dos factos provados, valoraram-se os depoimentos das testemunhas ...., ...., FF, .... e.... (inspetores da PJ) que, de modo isento, coerente e corroborado entre si, confirmaram as circunstâncias de tempo e lugar acima descritas, motivo pelo qual mereceram a credibilidade do Tribunal. As referidas testemunhas revelaram conhecimento directo e presencial da referida factualidade, o que decorreu da circunstância de, por um lado no exercício das suas funções, se encontrarem em diligências externas de acompanhamento e supervisão da conduta empreendida pelos arguidos, conforme resulta da reportagem fotográfica de fls. 247 a 261, 2.° volume dos autos e dos relatos de diligências externas constantes de fls. 48 a 59, 1.° volume e dos documentos de fls. 61, 62 e, por outro lado, terem participado na detenção dos arguidos nas circunstâncias descritas em 70) dos factos provados e bem assim nas diligências de buscas e apreensões que se seguiram à detenção dos arguidos.
          No que respeita às viaturas e bem assim à quantidade e qualidade do produto estupefaciente apreendidos valorou-se, em complementaridade com os depoimentos que antecedem (e com as próprias declarações do arguido AA que não pôs causa a sua quantidade nem qualidade), a reportagem fotográfica de fls. 71 a 77 (demonstrativa da carrinha modelo Renault traffic, de matrícula espanhola que acondicionava, simulado por uma esponja verde, 8 sacos, contendo 200 embalagens de produto estupefaciente), o exame pericial de fls. 765 (3° volume) e os autos de apreensão dos veículos Renault traffic e Citroen c Picasso (fls. 63 e 105 e 128, do 1° volume dos autos). No que concerne ao descrito em 19) e que está relacionado com a deslocação a Espanha - aliás, assumida pelos arguidos AA e BB - valorou-se ainda o exame efectuado ao GPS constante da viatura que os transportou quanto ao destino e percurso realizado por esses arguidos (fls. 653 a 657).
          A respeito dos factos constantes em 67 a 70 dos factos provados e que respeitam ao abalroamento de uma série de viaturas automóveis por parte do arguido DD com o fito de se furtar à acção policial foram ainda inquiridas as testemunhas ...., ...., ...., ...., que revelaram conhecimento directo e presencial dos factos, por serem os ocupantes das viaturas automóveis que tiveram intervenção no acidente descrito em 67). Todas as testemunhas, de forma espontânea, isenta e coerente entre si (assim logrando obter a credibilidade do Tribunal) confirmaram integralmente o vertido no douto despacho de pronúncia, em concreto que a viatura com a matrícula 5726FVC (Citroen C4) - em que seguiam os arguidos ... e ... - apercebendo-se da aproximação da PJ e a fim de se furtar a esta abalroou as demais viatura que se encontravam paradas na faixa de rodagem, paradas, por força de sinal vermelho de paragem que estava accionado, atingindo as seguintes viaturas ...., ...., ...., .... e ...., em que provocou danos, tendo inclusive levado à deflagração de um incêndio.
          Percorrida a prova produzida e sustentada em audiência pelo M.P. cumpre fazer uma breve referência às declarações que os demais arguidos prestaram em audiência, mas em momento final já após a produção de toda a demais prova.
          Genericamente tais declarações foram coincidentes com o douto libelo acusatório, excepção feita às declarações dos arguidos BB e EE que negaram estar relacionados e desconhecer o crime aqui em causa.
          Vejamos, pois.
  No que respeita ao arguido AA, a sua preponderância, papel de liderança e determinação sobre os demais arguidos remete-se para as considerações atrás explanadas aquando da apreciação crítica das declarações do arguido, aqui, nesta sede, complementadas e corroboradas pelos depoimentos dos inspectores da PJ a cargo de quem estava a vigilância e supervisão dos arguidos e pela reportagem fotográfica junta aos autos.
          O arguido BB, em sede de declarações, começou por assumir, espontânea e genericamente a globalidade das circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação quanto à sua presença, rejeitando, contudo, ter conhecimento do “negócio” em curso. Em concreto, afirmou que, veio a Portugal, por duas vezes, a partir de Espanha onde se encontrava (desde Fevereiro de 2012, a diligenciar no sentido da posterior ocupação da família, mas sem actividade, ocupação ou rendimento) a pedido do arguido AA que lhe telefonou, solicitando-lhe que a título de “favor” o viesse buscar a Portugal e conduzisse a Madrid, onde se encontraria com um amigo que daria àquele dinheiro para poder passar o Verão com a família. Acedeu a tal pedido, mediante a combinação de o arguido AA suportar as despesas de transporte, alojamento e comida, o que efectivamente sucedeu, tendo sido gastos cerca de € 150 e não tendo recebido qualquer outra contrapartida monetária.
          Instado, esclareceu que, só em 27 de Julho de 2012, conheceu os restantes arguidos e apenas por estes se terem encontrado e reunido com o arguido AA, nas circunstâncias de tempo e lugar aqui em causa.
          Mais esclareceu que, conheceu o arguido AA, há cerca de 5/6 anos, em Saint Martin, na Ilha onde este residia, por ocasião de uma festa nacional, tendo ficado amigos. Disse ser do seu conhecimento que ele trabalhava com artigos de construção civil, que trazia da Venezuela para a Ilha de Saint Martin.
          As suas declarações revestem-se ao Tribunal como inverosímeis e sem cabimento nas regras da experiência comum e da normalidade social.
          Com efeito, desde logo, não se alcança a efectiva e real relação entre este arguido e o arguido AA, pois o esclarecimento a esse respeito aventado pelo arguido não explica, nem justifica por que motivo, este último, alegadamente em dificuldades económicas em Portugal, lhe telefonaria para Espanha, onde se encontrava, sem qualquer ocupação ou rendimento, mas ainda assim tendo aceite transportar aquela arguido entre Portugal e Espanha sem qualquer contrapartida monetária. Também não se alcança o motivo pelo qual o arguido AA precisasse do seu específico e particular transporte (são conhecidos e abundantes os meios de transporte - via férrea ou avião - entre Lisboa e Madrid) e se sujeitasse a custear-lhe alojamento, gasóleo a alimentação numa situação em que ele próprio estava em dificuldades monetárias. Acresce que, da factualidade apurada até resulta que embora se deslocasse maioritariamente na viatura em que também seguia o AA, há diversas ocasiões em que é este último que conduz a viatura; por outro lado, após a chegada a Portugal dos outros três arguidos, o arguido - cuja linha de argumentação é no sentido de ter vindo a Portugal “fazer de motorista” do arguido AA - passa a conviver e privar com os restantes arguidos, designadamente com o arguido DD e CC, até sem a presença do arguido AA e, noutras ocasiões, seguindo na viatura automóvel mas conduzida pelo EE, tudo inculcando no Tribunal a convicção de que actuava como o seu “braço direito”, o seu “homem de confiança”.
          Acresce que, já em fase final de declarações e porque a esse respeito expressamente instado, negou ter ido juntamente com o arguido CC até ao parque de Campismo onde este se encontrava instalado e na viatura por ele conduzida.
          Também a este respeito não logrou merecer a credibilidade do Tribunal, por tal “correcção” ter decorrido, sem espontaneidade e após se ter apercebido de que a mesma era incoerente com o teor inicial das suas declarações no sentido de assumir todas as condições de lugar e tempo que lhe são imputadas nos autos e pôr em causa a sua “versão” de não participação dos factos e de alheamento face aos mesmos.
          Finalmente e também com apelo às regras da experiência comum e da normalidade social, se dirá que a versão de alheamento do sucedido invocada pelo arguido BB não merece credibilidade, por não se afigurar verosímil que, atenta a quantidade e qualidade de droga em causa, os montantes envolvidos e toda a conduta empreendida pelo arguido AA no sentido de dissimular a sua actuação - sem recurso a telemóveis e mediante encontros presenciais entre todos - aquele arguido permitisse a sua presença nesses encontros com terceiros e em que ficava a par do sucedido, se não fosse da sua confiança e não estivesse perfeitamente envolvido e participante no desiderato por todos prosseguido.
    Além disso, a sua presença e actuação como “homem de confiança” nos locais aqui em causa foi confirmada pelas testemunhas acima mencionadas - Inspectores da PJ encarregues das vigilâncias aos arguidos - os quais, pelas razões, então explanadas mereceram a credibilidade do Tribunal.
          Por seu turno, também o arguido CC assumiu as circunstâncias de tempo, modo e execução aqui em causa, esclarecendo que foi um terceiro, que apelidou de “Rafael” que, tendo travado conhecimento consigo e com o arguido EE quem lhe propôs que, arranjando duas viaturas automóveis, viessem a Portugal para nela carregar uma mercadoria que assumiu saber de proveniência ilícita, mas que rejeitou em concreto conhecer, a troco do pagamento de € 3.000. Asseverou que, até à sua vinda a Portugal, não antes tratava conhecimento com os arguidos AA ou BB, decorrendo, uma vez mais, da sua descrição dos factos aqui em causa a posição de liderança e preponderância do arguido AA sobre os demais, que marcava encontros, dava instruções e estabelecia contactos com terceiros para si desconhecidos, sendo que o seu depoimento se revelou, neste particular, coincidente e coerente com o depoimento do agente infiltrado “Girassol” quanto às ordens e combinações dadas pelo arguido AA quanto ao carregamento da carrinha com a droga e posterior entrega da mesma. Finalmente, sobre o referido “Rafael” disse que “este sumiu-se do mapa”...
          Neste particular, as declarações do arguido não lograram merecer a credibilidade do Tribunal, por ao tentar introduzir um tal de “Rafael” como o “mandante” de quem recebia ordens e instruções - mas cuja identidade mais pormenorizada desconhece e o actual paradeiro também . - antes perpassar para o julgador a ideia de que pretende, de algum modo, retirar proeminência e preponderância ao arguido AA, assim corroborando as declarações deste último que, todavia, não têm suporte em qualquer outro elemento de prova.
 Por seu turno, o arguido DD prestou declarações em sentido idêntico ao arguido CC, assumindo as circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, com igual menção à preponderância do tal “Rafael” como o indivíduo que lhes propôs o negócio (e a concreta tarefa de transportar a mercadoria) e de quem recebiam ordens e instruções, a troco do pagamento €3.000 (três mil euros), reconhecendo, contudo, ter percepção de que estaria a transportar mercadoria ilícita, embora não soubesse o seu concreto teor.
          Este arguido - à semelhança do arguido CC - procurou eximir de responsabilidades o arguido EE (seu Pai), cuja deslocação a Portugal justificou como tendo decorrido, por iniciativa sua, por receio de que o seu Pai - que padece de doença infecto-contagiosa e frequenta consultas de psicologia e psicologia - tentasse pôr termo à vida, não o querendo deixar sozinho em Espanha. Ou seja, segundo disse, o arguido ... veio a Portugal “passear”, estando completamente alheado da motivação do filho, dos demais arguidos ou do empreendimento conjunto que estes implementavam em Portugal.
          Tais declarações são inverosímeis e contrariadas pela factualidade aqui apurada, motivo pelo qual mereceram a credibilidade do Tribunal.
          Na verdade, o arguido EE - cuja saúde mental os arguidos procuraram caracterizar como muito frágil e toldada na sua capacidade de discernimento - afinal conduz as várias viaturas automóveis aqui em causa (factualidade descrita em 37.°) e até conduz a viatura ...., transportando os outros dois arguidos AA e BB, sem a presença dos arguidos CC e DD (veja-se a factualidade a respeito do ocorrido na parte final do dia 30 de Julho de 2012).
          Ora, tais condutas são muito pouco coerentes com um indivíduo de cujo discernimento se duvida, mas afinal se confia o suficiente para conduzir e transportar não só um veículo automóvel, mas até o veículo automóvel onde, em dado momento, seguiam os outros dois arguidos mais proeminentes.
          Por outro lado, a justificação aventada pelo arguido Torcuate também não se afigura plausível e verosímil; é que, instado, o referido arguido esclareceu até que a deslocação a Portugal estava prevista apenas por um dia e que, na localidade onde reside juntamente com o seu Pai (Granada) residem também os seus outros filhos e cunhados que, segundo o próprio, lhe prestam assistência diária e rotineira, pelo que o temor expresso pelo arguido Torcuate de deixar o “pai sozinho” era afinal infundado.
          No que concerne às condições sócio-económicas dos arguidos valoraram-se os relatórios sociais juntos aos autos, que se mostram corroborados pelas testemunhas de defesa inquiridas, a este respeito, em julgamento e bem assim com a documentação junta pelas Defesas.
          Finalmente, quanto aos antecedentes criminais valoraram-se as declarações a esse respeito produzidas pelos arguidos em audiência e corroboradas pelo teor das declarações dos arguidos aquando do 1.° interrogatório judicial a que foram sujeitos.

                                                       *

    3. – A primeira questão colocada pelos recorrentes diz respeito à falta de assinatura de um dos juízes desembargadores que intervieram no julgamento do recurso que teve lugar no Tribunal da Relação de Lisboa, concretamente do presidente da Secção Criminal.
            A omissão em causa foi já suprida de acordo com o previsto no art. 615º, nº 2 CPC ex vi art. 4º do Código de Processo Penal (diploma a que pertencem as normas adiante referidas sem indicação de origem) conforme mencionado supra e, por conseguinte, a nulidade está sanada nada mais havendo a acrescentar neste domínio.

                                                        *

            4. – A segunda questão colocada no recurso versa a decisão que o Tribunal da Relação proferiu sobre um primeiro recurso intercalar que os recorrentes AA e BB interpuseram.
            Recorde-se que esse primeiro recurso teve como objecto o despacho proferido na sessão da audiência de 2013.10.08 (cfr. fls. 2053) em virtude de, como resulta da acta respectiva, o mandatário dos recorrentes ter sido impedido pela Sra. juíza presidente de formular certa pergunta a um inspector da Polícia Judiciária (FF) com a qual pretendia seguir uma linha de defesa tendente a demonstrar que no decurso da investigação teriam sido evidenciadas determinadas provas e ocultadas outras. O requerimento formulado em acta terminava com o pedido de declaração de nulidade do citado depoimento.
          O despacho mencionado considerou estar assente a existência de um agente infiltrado por estar junto aos autos o relatório final de uma acção encoberta e ter sido admitido o depoimento do citado agente infiltrado, avançado ainda que, além disso, a testemunha cujo depoimento estava a ser posto em causa, sendo inspector da PJ, não tinha funções de chefia ou coordenação.
          No recurso foi invocado que a instância não realizada por ter sido negada pelo tribunal pretendia demonstrar que a conduta dos arguidos fora determinada por um agente provocador o que levaria a que a prova tivesse sido obtida por método proibido e logo fosse nula considerando ainda o mandatário que lhe estava a ser cerceado o exercício do contraditório.
          Mas ao contrário do que dizem os recorrentes não foi somente o limite imposto pela imediação e pela oralidade ou ainda a invocação do art. 323º que fundamentou a decisão de negar provimento a esse recurso intercalar.
          Foi também referido embora por meio de remissão para a argumentação do próprio despacho recorrido (cfr pags 97-98 do acórdão) que estando fixado o objecto do processo consubstanciado num conjunto de factos é sobre eles que as testemunhas depõem e que além disso tendo já sido admitida a produção de prova testemunhal do “agente infiltrado” ele melhor do que ninguém poderia esclarecer os contornos da acção encoberta.
          A questão colocada não cabe no âmbito de apreciação do Supremo Tribunal.
          Não há invocação de prova nula ou proibida no que toca estritamente ao depoimento da testemunha FF tudo se restringindo à alegada oportunidade de fazer certa pergunta à dita testemunha.
          Ora, como já foi assinalado pela jurisprudência[2] se é certo que o direito ao contraditório interfere com uma gama larga de direitos parcelares é certo também que mesmo no seu núcleo essencial, o da preservação das garantias de defesa, existe liberdade de conformação do legislador ordinário ainda que o princípio assuma expressão máxima na fase de audiência onde o arguido pode expor o seu ponto de vista quanto às acusações que lhe são feitas, contraditar as provas contra si apresentadas, pedir a realização de outras diligências e debater a questão de direito. Mas à excepção desse núcleo que visa impedir a prolação da decisão sem ter sido dada ao arguido a possibilidade de “discutir, contestar e valorar” não existe no espartilho constitucional forma que não tolere uma certa maleabilidade do princípio do contraditório.
          E é precisamente nesse quadro que se inscreve não só a determinação de que a testemunha depõe nos termos e limites legais ou seja sobre factos de que possua conhecimento directo e constituam objecto de prova (arts. 128º, nº 1 e 138º, nº 3, 2ª parte) como sobre o próprio procedimento para levar a cabo o depoimento com limitações ao contra-interrogatório, designadamente (cfr art. 348º, nº 4 e art. 516º CPC ex vi art. 4º).
          Se no caso, o tribunal decidiu não ser cabida a inquirição da testemunha num sentido não compreendido no objecto do processo considerando ser outro que não o da existência de uma  acção encoberta o âmbito de intervenção da testemunha e de que teria conhecimento directo e sobre o qual poderia indicar com a necessária clareza a razão de ciência avançando ainda que sobre a abordagem daquela específica questão outra e mais pertinente prova estaria ao alcance dos recorrentes até porque estava evidenciado que a dita testemunha pela sua posição hierárquica não teria conhecimento directo dos contornos da acção encoberta, aí intervindo os poderes de direcção dos trabalhos que ao presidente do tribunal são cometidos pelo art. 323º  não se coloca a este propósito nenhuma questão de legalidade de prova e portanto da sua nulidade único âmbito em que a intervenção do Supremo Tribunal, por se tratar de uma questão de direito, seria justificada depois de o Tribunal da Relação se ter debruçado sobre a matéria.
          Não há, por isso, que conhecer nesta parte do recurso interposto.

                                                      *

          5. – A questão subsequente colocada pelos recorrentes, de modo agregado (cfr ponto II da motivação e conclusões 3. e 3.1 a 3.5), diz respeito ao segundo recurso intercalar que aqueles haviam interposto do despacho proferido na sessão da audiência de 2013.10.21 (cfr fls 2147-2149) e ainda ao terceiro recurso intercalar interposto (fls 2447) pelos arguidos AA e BB do despacho proferido na sessão da audiência de 2013.11.18 (fls 2254).
          5.1. - Aquele segundo recurso foi desencadeado, como resulta da acta da audiência, pela circunstância de os recorrentes terem pedido o acesso a todo o expediente da acção encoberta e não apenas a um seu “relatório final” e de pretenderem que fossem inquiridos dois agentes encobertos e não apenas um por considerarem ter havido diligências na acção encoberta que não estariam retratadas no “relato final”. O fundamento para pretender ter acesso a todo o expediente da acção encoberta era o de só desse modo poderem exercer o contraditório ao interrogar os agentes encobertos.
          De salientar que uma das pessoas a que os recorrentes se referiam como sendo um agente encoberto seria, como está mencionado ao longo do processo, um colaborador da DEA (Drug Enforcement Administration) designado por “Erva”.
          No recurso foi invocado, além do mais, que a interpretação do art. 4º da Lei nº 101/2001 e do art. 340º CPP segundo a qual o dever de junção aos autos do relato de (todas) as diligências da acção encoberta fica cumprido com a junção do “relatório final” feito por agente encoberto viola o art. 32º, nºs 1 e 5 CRP por infringir de modo desproporcionado o direito de defesa dos arguidos.
          Já o terceiro recurso foi desencadeado pela circunstância de o tribunal, deferindo posição nesse sentido do Ministério Público ter prescindido do depoimento do supra mencionado colaborador da DEA (designado por “Erva”) por alegadas razões de segurança e de ter admitido a depor o “case officer” daquela entidade responsável pela actuação desse colaborador nos contactos que teriam sido estabelecidos primeiramente com o recorrente AA, ou seja, por vídeo-conferência, com imagem e voz distorcidas (questão não retomada no recurso para este Supremo Tribunal).
          Foi invocada a insubsistência da razão para ser prescindida a testemunha “Erva” por razões de segurança quando está previsto (art. 4º da Lei nº 101/2001) um procedimento especial de protecção, procedimento esse de que não podia beneficiar o citado “case officer” por não ter actuado como agente encoberto.
          5.2 – Importará antes de mais fazer uma referência à linha de defesa seguida pelos arguidos AA e BB que contextualize as questões a abordar.

Essa linha de defesa dos arguidos procurou demonstrar, de acordo, aliás, com a versão dada por AA na sua contestação que teria sido alvo da actuação de um agente provocador e, por esse meio, envolvido nas operações de aquisição de cocaína e seu transporte operações essas que culminaram com a apreensão do estupefaciente.

Segundo essa versão, o arguido AA teria apenas servido de intermediário nos contactos entre um tal “Capitão” controlado pela DEA e certos fornecedores de cocaína da Colômbia. Apresentou os ditos fornecedores ao indivíduo colaborador da DEA e esteve com ambas as partes numa reunião na Colômbia em que que o dito colaborador se propôs efectuar o transporte do estupefaciente por via marítima num barco que teria à sua disposição e se propôs ainda disponibilizar o desembarque, armazenamento e entrega do estupefaciente na Europa. Nenhuma outra intervenção directa teve no assunto até ao momento em que pelo referido grupo de fornecedores lhe foi pedido que viesse a Portugal falar com o mencionado colaborador da DEA que estaria no centro das operações.

Esta versão que repete-se o arguido AA apresentou na sua contestação e na qual pretenderia fazer de si próprio um provocado não resultou provada e, quanto a isso, por se tratar de matéria de facto a intervenção do STJ não tem o âmbito que os recorrentes embora de forma enviesada lhe pretendem atribuir.

E não resultou provada em virtude de o tribunal, no cotejo entre a versão suportada pelo depoimento do recorrente em audiência e a outra prova produzida que consistiu na inquirição do agente especial da DEA controlador da operação desenvolvida na América do Sul e ainda na inquirição do agente envolvido na acção encoberta desencadeada em território nacional o tribunal não ter criado a convicção sobre a veracidade dos factos aduzidos pelo recorrente AA pois de acordo como o que consta de forma abundante da fundamentação da matéria de facto, de ambos os depoimentos resultou patente para o tribunal que o recorrente actuou sempre e designadamente em Portugal desempenhando um papel liderante e activo. Quer em todos os aspectos anteriores à chegada do estupefaciente a Portugal quer a partir da sua permanência em território português quer nos contactos que estabeleceu com os potenciais compradores de origem espanhola (cfr v.g. fls 2420-2423).
  5.3 – Em síntese, no despacho proferido na sessão da audiência de 2013.10.21 (fls 2148-2149), o tribunal tomou posição no sentido de considerar que a Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, procura conciliar interesses conflituantes que são, por um lado, o combate à criminalidade sofisticada e com reconhecidas dificuldades de investigação e, por outro, os direitos de defesa em particular o contraditório e nessa medida prevê o acesso ao relato da acção encoberta  admitindo, ainda que se proceda à inquirição dos agentes encobertos. Mas ambas as diligências a serem deferidas com carácter de excepcionalidade. E considerou estarem satisfeitas essas duas vias de salvaguarda por estar já junto um “relato final” da acção encoberta e ter sido deferida a inquirição do agente encoberto.
           O art. 3º da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, que estabelece os pressupostos da existência da acção encoberta dispõe:

1 - As acções encobertas devem ser adequadas aos fins de prevenção e repressão criminais identificados em concreto, nomeadamente a descoberta de material probatório, e proporcionais quer àquelas finalidades quer à gravidade do crime em investigação.
           2 - Ninguém pode ser obrigado a participar em acção encoberta.
           3 - A realização de uma acção encoberta no âmbito do inquérito depende de prévia autorização do competente magistrado do Ministério Público, sendo obrigatoriamente comunicada ao juiz de instrução e considerando-se a mesma validada se não for proferido despacho de recusa nas setenta e duas horas seguintes.

4 - Se a acção referida no número anterior decorrer no âmbito da prevenção criminal, é competente para autorização o juiz de instrução criminal, mediante proposta do Ministério Público.
            5 - Nos casos referidos no número anterior, a competência para a iniciativa e a decisão é, respectivamente, do magistrado do Ministério Público junto do Departamento Central de Investigação e Acção Penal e do juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal.

6 - A Polícia Judiciária fará o relato da intervenção do agente encoberto à autoridade judiciária competente no prazo máximo de quarenta e oito horas após o termo daquela.

Por seu turno, o art. 4º do diploma citado que tem a expressiva epígrafe “Protecção de funcionário e de terceiro” determina:

 

1 - A autoridade judiciária só ordenará a junção ao processo do relato a que se refere o n.º 5 do artigo 3.º se a reputar absolutamente indispensável em termos probatórios.

2 - A apreciação da indispensabilidade pode ser remetida para o termo do inquérito ou da instrução, ficando entretanto o expediente, mediante prévio registo, na posse da Polícia Judiciária.

            3 - Oficiosamente ou a requerimento da Polícia Judiciária, a autoridade judiciária competente pode, mediante decisão fundamentada, autorizar que o agente encoberto que tenha actuado com identidade fictícia ao abrigo do artigo 5.º da presente lei preste depoimento sob esta identidade em processo relativo aos factos objecto da sua actuação.
           4 - No caso de o juiz determinar, por indispensabilidade da prova, a comparência em audiência de julgamento do agente encoberto, observará sempre o disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 87.º do Código de Processo Penal, sendo igualmente aplicável o disposto na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho.

          Dá-se de barato que a menção feita no art. 4º, nº 1 ao “relato” «a que se refere o nº 5 do art. 3º» não tem efectiva correspondência com esta norma mas sim com o nº 6 do dito art. 3º, pois é aí que se faz menção ao relato.

          Se a acção encoberta foi desencadeada para reunir provas que permitissem a condenação pela prática de um crime grave dos elencados no diploma que a prevê (cfr seu art. 2º), ou seja, para fins de investigação criminal – não sendo ela própria um meio de prova, ao contrário do que erradamente dizem os recorrentes – cfr v.g. conclusões 3.4 ou 7.2 – naturalmente que o seu âmbito está limitado ao que se passa em território nacional.

          Como está explicitado supra a respeito da linha de defesa prosseguida pelo arguido AA o que os recorrentes pretendiam com a junção aos autos de «todo o expediente da acção encoberta» é algo que esse expediente lhe não pode fornecer que seria aquilo que se passou fora do território nacional. Como é óbvio, os invocados contactos estabelecidos entre o colaborador da DEA, que terá actuado como encoberto, o arguido AA e os eventuais fornecedores da cocaína, algures na América do Sul, é matéria que o regime jurídico nacional das acções encobertas não pode alcançar nem no que toca à ponderação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade nem no que toca à supervisão jurisdicional nacional sobre essas actuações desde logo pela razão óbvia de lhe escapar o conhecimento fáctico dos contornos dessas actuações e de nelas não intervir qualquer órgão de policial criminal nacional assim ficando fora do alcance de uma avaliação que redundasse numa eventual proibição de valoração de prova.

          O relato da acção encoberta será de resto somente um meio processual destinado a «permitir o controlo da regularidade e legitimidade da actuação oculta nos seus pressupostos e no seu modo de execução e a contextualizar os elementos ou indícios recolhidos nunca podendo conter (nem substituir) o testemunho ou as declarações do agente sobre os eventos observados»[3], controlo esse a exercer pelo juiz de instrução que, aliás, no caso presente, foi quem ordenou a junção aos autos desse relato o que veio a suceder antes de ser proferida a decisão instrutória. É nesse sentido que se orienta a generalidade da doutrina[4] considerando que o relato em si, enquanto documento descritor daquilo a que o agente assistiu não tem valor probatório, apesar do citado art. 4º, nº 1 da Lei nº 101/2001 inculcar a ideia de que é possível utilizá-lo “em termos probatórios” se isso for “absolutamente indispensável”.

          É particularmente expressiva a posição de Paulo Pinto Albuquerque[5] nos seguintes termos: «(…) o relato, isto é o texto escrito do agente encoberto que descreve o que ele fez, viu e ouviu, não é um documento (…) o relato serve essencialmente um outro propósito que não a documentação da prova: ele serve para que a autoridade judiciária possa controlar a contínua “adequação” da acção encoberte e decidir sobre a sua prorrogação, modificação e cessação. (…) o relato não tem qualquer força probatória na audiência de julgamento por força do princípio da imediação (art. 355º, nº 1). Só o depoimento pessoal do autor do “relato” (o agente encoberto) vale como meio de prova do que ele fez, viu e ouviu».

          Afinal, como resulta do já citado art. 4º da Lei nº 101/ nem mesmo a possibilidade de junção apenas do «relato» da intervenção do agente encoberto é ampla e incondicional. Ela apenas acontecerá se a autoridade judiciária competente a reputar de indispensável.

          Em resumo:

          O expediente completo da acção encoberta que os recorrentes pretendiam que fosse junto aos autos apenas poderia serviria para aferir do controle jurisdicional da acção encoberta desencadeada em Portugal na qual o agente encoberto do órgão de policia criminal nacional foi o designado “Girassol”. Segundo a posição da defesa dos recorrentes e na qual estes pretendiam evidenciar a existência de uma provocação feita ao arguido AA a junção desse expediente sempre seria irrelevante no sentido em que o controle jurisdicional efectuado apenas respeitou à acção encoberta em Portugal.

          Sobre o modo como, na versão dos recorrentes, decorreram os contactos entre o colaborador da DEA e o arguido AA na América do Sul e como se repartiram as responsabilidades pela aquisição, transporte e armazenamento da cocaína já em Portugal os factos respectivos resultaram não provados essencialmente a partir dos depoimentos do “case-officer” da DEA e do agente infiltrado.

          É bom notar, aliás, que a matéria do recurso interposto para este Supremo Tribunal atem-se sobretudo a questões de natureza formal-procedimental e não prosseguiu na defesa da tese invocada na contestação de que o recorrente AA teria sido alvo da actuação de um agente provocador.

5.4 - Tem sido referido por alguma doutrina nacional, mormente por Costa Andrade que se vem ocupando desde longa data dos chamados métodos ocultos de investigação, repercutindo embora parte da doutrina alemã, que «na polaridade dialéctica entre, por um lado, a eficácia na descoberta da verdade e na perseguição dos criminosos, a segurança e a reafirmação da validade das normas e, por outro, a liberdade e as garantias de defesa»[6] houve em tempos recentes uma mudança de paradigma que impôs o «enfraquecimento de conceitos e princípios basilares do processo penal do Estado Liberal se não mesmo a sua substituição por outros irreconciliavelmente antagónicos»[7].

Não foi por acaso, como a contragosto admite essa doutrina que as coisas caminharam nesse sentido, que surgiram esses “tropismos”, mas apenas porque a dimensão da criminalidade organizada e do terrorismo se tornou de tal forma pujante – captando meios que muitas vezes são superiores aqueles de que alguns Estados podem dispor  e conseguindo mesmo transformar certos deles em “Estados-párias” – com uma tal racionalidade estratégica e uma tão grande envergadura de alvos que atacou abertamente «os fundamentos da civilização e da construção social da realidade subjacente ao processo penal do Estado de direito» acabando por empurrar, é o termo, as sociedades ocidentais para a outorga de «um novo contrato social para reequilibrar a balança em desfavor das margens de liberdade reconhecida e reservada ao indivíduo» em que se institucionalizaram e banalizaram formas de investigação a que se atribui uma efectiva danosidade social com sacrifício de bens jurídicos e direitos fundamentais.

Há na crítica a essa legitimação dos meios ocultos de investigação uma certa ambivalência que de resto se reconhece[8] e que se reconduz de certo modo à pretensão quimérica de ter o melhor de dois mundos (passe o cliché em benefício da clarificação da ideia): um combate eficaz a formas de criminalidade altamente agressivas e lesivas e uma investigação absolutamente asséptica. Reconhece-se que o ataque aos fundamentos do próprio Estado é tenaz mas persiste-se em querer manter a todo o custo um modelo que se desfará inevitavelmente perante a virulência desse ataque para, logo em seguida, se admitir que «as vantagens e os créditos da investigação oculta são óbvios “maxime” em se tratando de perseguir as manifestações mais graves de criminalidade contemporânea, o crime organizado em geral e o terrorismo em particular (...) que adoptam formas de organização e de interacção social que as tornam imunes à intromissão e devassa das instâncias formais de controlo social»[9].

Concluindo-se, depois, que «a investigação clandestina veio para ficar configurando um dado da experiência jurídica actual e, não será arriscado acreditá-lo, do futuro[10]».

Posto isto, admite-se afinal ser possível que se configure um regime geral para a investigação clandestina que obedecerá a «esteios irredutíveis»[11] que serão em suma (i) a reserva de lei pois só serão admissíveis e válidos os meios ocultos de investigação se e na estrita medida em que gozem de expressa e específica consagração legal prevendo a medida de compressão dos direitos fundamentais; e (ii) o respeito por um «conjunto combinado de variáveis umas de carácter material-substantivo, outras de índole formal-procedimental: catálogo de crimes, grau de suspeita, subsidiariedade, autorização/ordenação por autoridade competente e informação da pessoa atingida depois de terminada a medida»[12]. Porquê o uso da designação «variáveis»? Porque todos os pressupostos são susceptíveis de graduação assumindo um «espectro de exigências acrescidas ou atenuadas segundo o princípio da proporcionalidade[13]».

Repisando, dir-se-á que em toda esta matéria da infiltração policial como técnica de investigação o último destinatário na informação averiguada pelo agente encoberto, que é o meio como se torna efectiva a infiltração é o Estado a benefício das suas funções mais elevadas e logo dos cidadãos mormente as que se referem à prevenção e repressão de formas particularmente danosas de criminalidade que pela sua invulgar dimensão afectam inclusivamente as bases necessárias de segurança e da estabilidade social do Estado[14]. Sem escamotear contudo que a infiltração policial que se situa ao nível da chamada prevenção normativa do combate à criminalidade e como tal incidindo sobre restrições de direitos podendo cerceá-los num plano qualitativo e quantitativo mercê das faculdades concedidas ao aparelho de Estado a esse nível pode ser problematizada não só ao nível dos princípios como também ao nível das regras gerais da condução do processo que como é sabido está configurado como instrumento essencial de tutela de valores constitucionalmente protegidos.

A chave da legitimação da infiltração policial está, portanto, na sua proporcionalidade e subsidiariedade porque se não é concebível, num Estado de direito democrático o recurso à violência ou a outras medidas que em absoluto desrespeitem valores e básicos direitos fundamentais, também se  pondera outrossim, hoje de forma preponderante, que tão pouco as garantias fundamentais podem ser pretexto inarredável para manter cristalizada a função do processo face a formas extremadas e inflexíveis de criminalidade.

Como foi assinalado, «as formas de investigação oculta figuram aqui como “medidas sucedâneas” (...) em relação a procedimentos de obtenção de prova que no processo não se podem impor coercivamente»[15]

A Lei nº 101/2001 dá conformação legal ao regime das acções encobertas em Portugal e, por conseguinte, corporiza a primeira e essencial exigência que a mencionada doutrina reivindica, a reserva de lei ainda que talvez não com a exigida «clareza e determinabilidade»[16] a respeito do teor do sacrifício do direito fundamental lesado e da previsão sobre o fim e os limites da intromissão.

Claro está, porém, que sendo a consagração legal de um meio oculto de investigação fará parte da sua matriz alguma compressão de direitos. Além de que lhe terá de estar ínsito, pois também isso faz parte da ponderação dos interesses conflituantes, um objectivo  de salvaguarda do agente encoberto que, como se aceitará sem ser preciso carregar demasiado as tintas, coloca em risco, nesta técnica policial, a sua integridade física e a sua vida e mesmo a de terceiros mormente dos que lhe sejam próximos. Isso mesmo foi reconhecido desde logo na Proposta de Lei 79/VIII onde pode ler-se:
«A primeira das preocupações traduz-se, desde logo, no princípio geral de que estas actuações estão sujeitas aos princípios da necessidade e proporcionalidade face à investigação a desenvolver. No mesmo sentido se estabelece uma supervisão jurisdicional destas actuações, que se traduz quer na necessidade de autorização prévia de magistrado quer no controlo jurisdicional a posteriori dessa mesma actuação e da prova obtida.

A segurança dos agentes é outro domínio sensível, quer por actuarem junto dos criminosos quer por estarem sujeitos a eventuais represálias. Assim, desde logo, ninguém pode ser obrigado a participar numa actuação encoberta. Além disso, prevêem-se regras de protecção do agente no que toca aos meios pelos quais a prova assim produzida é apresentada no processo e um regime de identidade fictícia.»

Mas aquela assumida compressão de direitos acaba por deixar intocado, assim se crê, o núcleo das variáveis acima enunciadas ao prever-se um restrito âmbito de aplicação (art. 1º) uma avaliação da proporcionalidade e da necessidade da medida (art. 3º, nº 1), a autorização/ordenação por autoridade competente (art. 3º, nºs 3 e 4) e mesmo a informação da pessoa atingida quando se possibilita a junção do relato ainda que, contra a posição dominante da doutrina como já mencionado supra, se lhe queira atribuir um pouco consistente efeito probatório.

É este regime – que potencialmente contém em si uma afirmada matriz da compressão de direitos – incompatível com as exigências nucleares do art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição como alegam os recorrentes? Afigura-se que não e que ele se contém dentro das balizas inultrapassáveis do art. 18º, nº 3 da Lei fundamental quando ali se determina que as leis restritivas de direitos liberdades e garantias não podem diminuir a extensão e o alcance dos preceitos constitucionais sobretudo se se ponderar que não é arbitrário, gratuito, desmotivado ou fútil o sacrifício ainda que parcial[17] de qualquer vertente das garantias de defesa. Sacrifício esse que só ocorre porque está em causa a salvaguarda não de um qualquer direito com consagração infraconstitucional mas de um interesse constitucional superior como é afinal a protecção dos fundamentos do Estado de direito (art. 2º da Constituição) que, como já sublinhado supra, a criminalidade organizada tem potencial para minar[18].

É certo que contra o que pretendem os recorrentes não está prevista a junção aos autos de “todo o expediente da acção encoberta” nem tal faria sentido desde logo perante as apontadas exigências de segurança dos intervenientes na acção encoberta que se não restringe à mera identificação propriamente dita, naturalmente, mas não se levanta obstáculo intransponível aos direitos de defesa do arguido mormente ao nível do respeito pelo contraditório prevista como está a possibilidade de junção ao processo, como já sublinhado, de um relato da acção encoberta (art 3º, nº 6 e 4º, nº 1) e, o que é decisivo sobretudo para esse exercício do contraditório, a prestação de depoimento do agente encoberto certamente quem, mercê da sua intervenção directa, em melhor situação estará para esclarecer os contornos da acção encoberta designadamente ao nível da avaliação dessa intervenção quanto a poder ser configurada como a de um agente infiltrado ou de um agente provocador permitindo depois a conclusão sobre se a prova resultante dessa intervenção é ou não prova proibida.

De frisar por último que as repetidas afirmações sobre a existência de «várias diligências que não estão retratadas no relatório final» não passa disso mesmo, uma mera afirmação que não especifica o que hajam sido essas diligências e não suportada em qualquer razão de ciência.

Em suma, não só não tem consagração legal o afirmado – pelos recorrentes – direito a «sindicar toda a acção encoberta» como não há «limitação desproporcionada»  do direito de defesa dos arguidos e dos «limites mínimos do princípio do contraditório».

          5.5 -   Quanto ao despacho proferido na sessão da audiência de 2013.11.18 (fls 2254) haverá que fazer uma breve referência aos seus antecedentes.
          Num requerimento entrado em 2013.11.05 (fls 2204), já no decurso da audiência o magistrado do Ministério Público deu conta de que a inquirição do colaborador da DEA que interviera nos primeiros contactos com o arguido AA, inquirição essa que fora requerida por este arguido na sua contestação (fls 1935-1939) não se poderia realizar «atentas as ponderosas razões de segurança pessoal e familiar do referido indivíduo». Mas nesse mesmo requerimento deu a conhecer que a DEA informara que estava disponível para «ser inquirido ainda que através de vídeo-conferência, com imagem e voz distorcidas o agente responsável pela investigação do caso “AA” ou seja o seu “case-officer”». E requereu a inquirição ao  abrigo do art. 340º.
          Ao requerimento em causa sucedeu-se um despacho em 2013.11.07 (fls 2206-2207) o qual, além do mais, considerou que estando a audiência de julgamento iniciada deveria ser o tribunal colectivo a decidir sobre o seu objecto na sessão já designada para 2013.11.18.
          Os mandatários dos arguidos foram notificados desse despacho com cópia do citado requerimento (fls 2210-2212).
          Na audiência de 2013.11.18 o mandatário dos ora recorrentes, exercendo o contraditório relativamente ao teor da comunicação oriunda da PJ (fls 2202) que fundamentou o requerimento do Ministério Público de fls 2204) começou por declarar que não prescindia da testemunha “Erva” na medida em que este poderia depor por teleconferência com distorção de voz e imagem.
          De seguida, foi então proferido despacho em que se consignou que se aceitava o fundamento invocado a respeito da impossibilidade de ser inquirido o designado “Erva” e que sendo intenção da defesa aprofundar os contornos da acção encoberta esse desiderato poderia ser atingido com a inquirição do “case-officer” indicado pela DEA como responsável pela investigação na sua fase americana, digamos assim. Mais foi decidido então que, como fora requerido pelo Ministério Público a inquirição do “case-officer” teria lugar com os procedimentos de protecção de identidade dos intervenientes em acções encobertas em virtude de o art. 4º da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, se estender a “funcionários e a terceiros”.
          Na sequência desse despacho, o mandatário dos recorrentes fez consignar na acta (fls 2254) o seguinte: «Uma vez que a defesa desde o início deste processo tem pugnado sempre pela descoberta da verdade material em coerência não pode deixar de concordar com a inquirição do referido indivíduo. Porém, alerta-se o tribunal que sendo esta uma testemunha de nacionalidade americana, habituada ao sistema processual americano que lhe deve ser comunicado os limites decorrentes da lei portuguesa relativos ao sue depoimento, designadamente que apenas se poderá pronunciar sobre os factos objecto dos presentes autos e mesmo em relação a estes apenas pode esclarecer factos de que tenha conhecimento directo, não podendo emitir opiniões, nem tão pouco esclarecer aquilo que ouvi dizer a outros intervenientes na acção encoberta designadamente ao colaborador “Erva”».
          Ora, esta declaração não pode deixar de ser considerada como uma adesão à decisão tomada pelo tribunal naquilo que se pode considerar uma posição vinculante no sentido em que dela se pode depreender que concordava com o decidido e que, por conseguinte, tal decisão não fora proferida contra o seu interesse processual bem pelo contrário (art. 401º, nº 1, al. b) acabando o recurso sobre tal questão por configurar uma atitude contraditória com aquele comportamento assumido anteriormente pelo careciam os  recorrentes  de legitimidade para o interpor.

  De notar ainda que a circunstância de os recorrentes terem questionado no recurso para a relação que o depoimento do “case-officer” como testemunha tivesse sido efectuado com as formalidades previstas na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, ou seja com ocultação de imagem e mediante a intervenção de um magistrado acompanhante (cfr arts. 4º, 5º e 10º da citada Lei) é desadequada e tardia.

          Tendo o tribunal decidido que esse depoimento decorreria com esses condicionalismos e justificando-o com o facto de a lei se referir à «protecção do funcionário e terceiro» que seria a qualidade do “case-officer” (cfr despacho na acta a fls 2254) impor-se-ia que os arguidos desde logo arguissem a irregularidade do acto com o regime previsto no art. 123º pois seria essa apenas a deficiência que eventualmente o afectaria uma vez que não está prevista a nulidade de tal acto sabendo-se que é taxativo o regime de arguição desse vício processual.

          Sendo certo também que a referência a um “terceiro” que pode merecer protecção na prestação do depoimento não é um qualquer “terceiro” mas apenas aquele que não sendo funcionário policial haja tido intervenção na acção encoberta sob o controlo da Polícia Judiciária (cfr art. 1º da mencionada lei nº 101/2001) e não era esse o caso que se apresentava o que de modo algum invalida o apelo ao regime do art. 4º da Lei nº 93/99.
          Era isso que o tribunal recorrido deveria ter equacionado se ponderados todos os elementos e dados possíveis de extrair da acta da audiência.
 5.6 – Em resumo, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça na parte em que são abordadas as decisões do Tribunal da Relação a respeito dos recursos intercalares é improcedente.

                                                       *

  6. – Relativamente ao acórdão da relação que apreciou o recurso interposto do acórdão final da primeira instância a primeira questão colocada pelos recorrentes (conclusões 6. 6.1 e 6.2) é a que respeita à elaboração do «relato final» da acção encoberta para lá do prazo de 48 horas a que alude o nº 6 do art. 3º da Lei nº 101/2001 já citado concluindo que não foi retirada qualquer consequência dessa «ilegalidade» e que a acção encoberta é nula.
          De notar que o «relato final» da acção encoberta foi junto aos autos  antes até de ser proferida decisão instrutória sem que os recorrrentes tivessem colocado qualquer questão de legalidade sobre o referido relato. Ainda assim ...
  Dizem os recorrentes que o último contacto entre o agente encoberto e o arguido AA ocorreu em 2012.07.31 e que o «relato final» foi elaborado em 2012.10.19 e que por isso «é nula a acção encoberta».

É certo que o relato junto aos autos não é um relato da intervenção do agente encoberto coevo da sua intervenção até 2012.07.31 e que este ou o seu superior hierárquico haveria de apresentar no prazo previsto no nº 6 do art. 3 da Lei nº 101/2001.
          Porém, não está evidenciado nem tem de estar – essa é a essência da “clandestinidade” da acção encoberta – que a intervenção do agente encoberto houvesse findado com o último contacto com o arguido AA. O que se sabe é que naquilo que a este processo respeita com a detenção dos recorrentes deixou de haver contacto com estes mas nada impede que se ponha em hipótese a possibilidade de a actividade encoberta ter prosseguido na medida em que o agente encoberto não ficou denunciado ou melhor seria dizer  revelado.
          De resto, nem tão pouco a lei prevê um limite temporal para a acção encoberta que como já foi admitido pode até «ser o prazo da própria prescrição do crime»[19].
          Daí que  se estabeleça no art. 5º da Lei nº 101/2001 que os agentes podem actuar sob identidade fictícia para o efeito de participarem em acção encoberta e que essa identidade fictícia é valida por um período de seis meses prorrogável por iguais períodos. A partir daqui também já se considerou, e bem salvo melhor opinião, que haverá que fazer uma interpretação restritiva do que seja um prazo após o termo da operação para a elaboração do relato final «considerando-se os seis meses para a revalidação da identidade fíctícia como o prazo máximo de qualquer operação para efeitos de apresentação do relato»[20].
          Faz sentido que assim seja pois a operação encoberta pode ter outros desenvolvimentos para lá daqueles que produzam determinado resultado que dê origem a um processo – neste caso com a detenção dos arguidos em 2012.07.31 – e que mercê desses desenvolvimentos o agente encoberto não esteja em condições de fazer chegar à acção encoberta informações sobre a parte já descoberta, digamos assim, que possibilitem a elaboração do relato final relativamente a essa parte. Para usar uma expressão recolhida do argumentário dos próprios recorrentes[21] a «vida da acção encoberta» pode perdurar para lá da detenção de quem venha a ser arguido num determinado processo.
          Não há, por isso, qualquer nulidade na ultrapassagem do dito prazo de 48 horas.

                                                         *

          7. – Já na segunda questão colocada no recurso (conclusões 7 a 7.2) argumentam os recorrentes que a junção aos autos da acção encoberta que teve o número 145/12.4TELSB deveria obedecer aos requisitos impostos pelo art. 187º, nºs 7 e 8 considerando ainda que a acção encoberta não poderia valer como meio de prova sem ser sujeita em julgamento ao contraditório.
          É cabida aqui uma breve observação. Os recorrentes criticam e com razão a insipiência da argumentação da decisão recorrida mas incorrem no mesmo defeito.
          Desde logo o que está em causa com a acção encoberta não é um meio de prova mas sim um meio de obtenção de prova. «Os meios de prova caracterizam-se pela sua aptidão para serem por si mesmos fontes do convencimento do juiz; são elementos que o juiz pode usar de modo imediato para fundamentar a sua decisão. Os meios de obtenção de prova são instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova»[22].
          Assim sendo não colhe a invocação do art. 355º e de violação do princípio do contraditório.
          Recorde-se que o nº 1 do citado artigo dispõe que «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência», sendo entendimento antigo e pacífico que esta norma visa «tão-só evitar que o tribunal possa formar a sua convicção, alicerçando-se em matérial probatório não apresentado e junto ao processo pelos diversos intervenientes e relativamente ao qual não tenha sido exercido o princípio do contraditório»[23] (sublinhado acrescentado).
          Ora, o relato final da acção encoberta, aliás junto aos autos desde a fase instrutória como já mencionado, nem sequer foi considerado meio de prova para formar a convicção do tribunal tal como está claramente expresso na fundamentação da matéria de facto. Com ligação à acção encoberta apenas foi usado como material probatório o depoimento do agente encoberto relativamente ao qual a defesa teve oportunidade de exercer o contraditório questionando e confrontando o seu depoimento nas mesmas condições da acusação.
          Na sua confusa argumentação pretendem ainda retomar a questão da junção aos autos de todo o expediente da acção encoberta e do controlo da sua legalidade invocando a similitude com o disposto nos arts. 187º e 190º.
          Na estrutura do Código de Processo Penal, o Livro III tem como epígrafe “Da Prova” e o seu Título III ocupa-se “Dos meios de obtenção de prova” sendo estes os “exames”, as “revistas e buscas” as “apreensões” e “as escutas telefónicas” cada um com o seu Capítulo onde é prescrito o iter processual próprio tido como adequado. O das “escutas telefónicas” é o que está previsto no Capítulo IV com específicos requisitos de “admissibilidade” (art. 187º) de enunciação das “formalidades das operações” (art. 188º) e da “extensão” das regras atrás referidas a outras formas de comunicação (art. 189º). Por fim, comina-se a sanção para a inobservância daquelas regras.
          Ora, nada disto acontece no que toca à acção encoberta que tem  as suas regras próprias, os seus requisitos, que se não compaginam com os do art. 187º. São mais singelos, concede-se, mas a especificidade deste meio de obtenção de prova é outra resumindo-se – passe a expressão – à presença de alguém, o agente encoberto, num determinado cenário onde se desenrolará uma acção criminosa e cuja actuação poderá ter como consequência nefasta mais consubstanciável, e essa sim a sindicar, a degradação dessa dita actuação numa provocação à prática de um crime.
          Esses requisitos específicos são, como já referido, a reserva de lei cuja violação os recorrentes também não invocam nem poderiam invocar visto que a acção encoberta teve lugar para obter prova da prática de um dos crimes do catálogo do art. 2º da Lei nº 101/2001; e a reserva de juiz que também os recorrentes não põem em questão tanto que no relatório final se faz menção ao despacho judicial que autorizou o desenvolvimento do plano da acção encoberta.
          Foi, aliás, precisamente o carácter reservado mas também limitado no plano da amplitude da intervenção na acção encoberta, o que justificou também a limitação ao acesso pleno do seu expediente, que acabou por determinar a impossibilidade de o agente encoberto poder usar no seu decurso meios fotográficos, fonográficos e electrónicos de registo tal como inicialmente previsto no art. 7º da Proposta de lei que acabou por ser eliminado em virtude de, então sim, haver subtração «ao rigoroso regime estabelecido para a autorização judicial de intercepções telefónicas e electrónicas no âmbito do Código de Processo Penal»[24].
          Por conseguinte, não houve violação dos pressupostos que poderiam determinar que o meio de obtenção de prova pudesse estar afectado na sua validade daí decorrendo uma proibição de valoração da prova obtida. E também não houve violação dos direitos de defesa mormente no exercício amplo do contraditório.

                                                       *

          8. – A questão seguinte que os recorrentes colocam (cfr conclusões 8., 8.1 e 8.2) diz respeito à (transcrição) «Identidade fictícia do colaborador “Erva”». Mas em rigor é praticamente imperceptível.
          O seu teor, no corpo da motivação, é o seguinte (transcrição):
          «Argumenta o recorrente que nos termos do artigo 5º, nº 1 e 3 da Lei 101/2001, os colaboradores não podem agir com identidade fictícia, sendo este de resto o entendimento propugnado por Paulo Pinto de Albuquerque.
            O acórdão responde que a actuação do colaborador “Erva” agiu a coberto do artigo 1º, nº 2 da citada lei.
            Observando o preceito fácil é de concluir que o mesmo nada tem a que ver com a questão colocada. Este preceito define o conceito de uma acção encoberta que é coisa bem diversa da legalidade de um colaborador actuar como agente encoberto com identidade fictícia. Esta figura está caracterizada no art. 5º da supra citada lei.
            É também por esta via nula a acção encoberta».
          É isto, sem mais, que os recorrentes invocam a propósito da intervenção do colaborador “Erva”.
          Parece assim que o desacordo com a argumentação do acórdão recorrido se cinge à circunstância de ter sido ali erradamente invocado o preceito do art. 1º, nº 2 da Lei nº 101/2001 em vez do art. 5º, nºs 1 e 3 do diploma.
           Apenas porque continua subjacente a questão da acção encoberta ter configurado um meio proibido de obtenção de prova se abordará esta questão.
          Para dizer que, como é óbvio, a intervenção de “Erva”, um colaborador da DEA, na acção encoberta tem naturalmente a configuração de um terceiro que actua sob controlo da Polícia Judiciária com ocultação da sua identidade e por conseguinte, a referência no acórdão recorrido ao art. 1º, nº 2 da Lei nº 101/2001 é correcta. Mas “Erva” é um nome de código como a acção encoberta teve o nome de código “Relva” (cfr relato final a fls. 1389-1392) que nada tem a ver com a identidade civil fictícia a que se refere o art. 5 da citada Lei e que só pode ser atribuída a “agentes da polícia criminal” mediante despacho do(a) Ministro(a) da Justiça. A afirmação de que o colaborador em causa actuou sob identidade fictícia é desprovida de qualquer base de sustenção.
          Nem há violação do art. 5º nem, muito menos, a este respeito nulidade da acção encoberta.

                                                        *

          9. – Em seguida (conclusões 9. a 11.1), manifestam o seu desacordo sobre a argumentação da decisão recorrida a propósito de um conjunto de questões atinentes com a matéria de facto como a ausência do exame crítico da prova, a impugnação da matéria de facto a que haviam procedido no recurso interposto para a relação, a necessidade de inquirição de uma testemunha (não identificada e designada como “fonte 2”).
          O acórdão deste Supremo Tribunal de 2015.04.09 que anulou o acórdão do Tribunal da Relação de 2014.10.03 fez realmente referência à omissão de pronúncia a propósito do não conhecimento nesse acórdão de vários aspectos que contendiam essencialmente com a matéria de facto mas também com matéria de direito porque ali não havia referência alguma  de terem sido apreciados. Foi o caso quanto aos pontos  3.6.1, 3.6.2, 3.6.3, 3.6.4, 3.6.5, 3.6.6, 3.6.8, 3.6.10, 3.6.11, 3.6.12, 3.6.13 e 3.6.14 enunciados a partir da alegação dos recorrentes na motivação do seu recurso para o Tribunal da Relação. Mas também assinalou que o fazia independentemente de aos recorrentes assistir ou não razão (cfr fls 3827).
          O certo é que mal ou bem – mal ou de modo insuficiente na opinião dos recorrentes – o acórdão ora em recurso tomou posição sobre essas matérias (cfr seus pontos 3.1.4, 3.1.5, 3.1.6 e 3.1.7) e, por conseguinte, as nulidades a esse respeito podem ter-se como supridas sendo que a avaliação da pouca ou muita consistência da argumentação usada a propósito de questões que contendem com a matéria de facto não é da competência deste Supremo Tribunal por se tratar pois a sua apreciação está-lhe vedada enquanto puro tribunal de revista de acordo com o previsto no art. 434º.
          O que vale por inteiro a propósito do que os recorrentes dizem ter sido a sua alegação (cfr conclusão 12 e ilações tiradas nas conclusões 12.1 e 12.2) de que o estupefaciente «não existia quando se iniciou a acção encoberta», «que foram as autoridades que disponibilizaram os meios de transporte para a droga», que «foi a Polícia Judiciária que arrendou o armazém para guardar o produto estupefaciente» e de «durante todo o percurso e guarda da droga o recorrente Luís Nieto não ter qualquer conhecimento de todas estas circunstâncias». Tudo isto é matéria de facto que aliás não foi alegada na contestação dos recorrentes e não consta dos factos provados e a que também não há alusão nos factos não provados.
 Nessa medida sendo totalmente despropositada (cfr mencionadas conclusões 12.1 e 12.2) a invocação neste recurso de que houve uma disponibilização dos meios pela polícia para o cometimento do crime e de que é inconstitucional «uma interpretação das disposições conjugadas dos artigos 3º da Lei 101/2001 e 126º, 127º do CPP em que seja permitido, no âmbito de uma acção encoberta, disponibilizar meios para o transporte e guarda do produto estupefaciente apesar de existir uma pré-disposição criminosa do/s suspeito/s inquina de inconstitucionalidade material estas normas por afrontarem várias normas constitucionais, como sejam os artigos 182º e 32º». Recorde-se o que está provado nos factos II e III, LXXVI, LXXVII e LXXVIII que constitui o limite factual do que pode ser considerado na apreciação jurídica da causa e que não dá suporte algum à pretensão dos recorrentes:
         II - Assim, em data não apurada que se situará em Julho de 2012, por forma também não determinada, o arguido AA fez chegar a Portugal vários fardos de cocaína que continham no seu interior cerca de 340Kg daquele produto estupefaciente, que guardou algures num barracão abandonado, sito num terreno localizado em Casal de Frade, Sesimbra, cujo acesso só era possível através de uma estrada com o piso em terra batida.

III - Depois de enviada a cocaína para Portugal, os arguidos AA e BB deslocaram-se para território nacional, com o objectivo de tratarem da venda daquele produto.

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LXXVI - Este produto tinha sido ali armazenado pelos arguidos AA e BB, interpolação] ou por alguém a seu mando, tal como o restante que lhes foi apreendido, e destinava-se, como se disse, a ser entregue a pessoas cuja identidade não se chegou a apurar, a quem tinha sido vendido pelos arguidos.

LXXVII - Todos os arguidos conheciam bem as características do produto que foi apreendido, bem sabendo que a sua detenção, transporte e comercialização era proibida por lei.

LXXVIII - No entanto, colaboraram entre si com vista a trazer a cocaína para Portugal e posteriormente vendê-la, visando com isso o arguido AA auferir ganhos elevados resultantes da venda de tal elevada quantidade de cocaína.

Também por isso, ou seja, pelo modo como ficou circunscrita a matéria de facto aos acontecimentos ocorridos em Portugal como aliás é sublinhado ao longo da fundamentação respectiva  da decisão da 1ª instância nada há mais a apreciar sobre o ponto referido naquele acórdão de 2015.04.09 a respeito de ser ou não controvertida a imputação da co-autoria pelo crime de tráfico de estupefaciente ao recorrente AA por este, segundo afirma, durante mais de um mês não ter tido o domínio funcional dos factos designadamente quanto ao transporte e armazenamento do estupefaciente (cfr ali ponto 3.6.7) em virtude de o acórdão ora recorrido se ter pronunciado assinalando essa limitação factual (cfr pag. 155 que faz fls 3943 do processo).
          Improcede, pois, este conjunto de questões. 

                                                        *

          10. – Formula-se na motivação um outro conjunto de questões resumidas nas respectivas conclusões «apenas relativas ao recorrente Edil Luna».
          Que começam (cfr conclusões 15 a 15.6) pela da resolução criminosa e pela invocação de ser necessário para ter como assente a violação do respectivo bem jurídico que se diz ser a saúde pública, alegando-se que o recorrente não podia colocar em perigo esse bem jurídico quando o produto estupefaciente estava na posse da DEA e da PJ e, portanto, insusceptível de ser disseminado pelos consumidores o que também implicaria a «inexistência jurídica de objecto» do crime. E prossegue-se (cfr conclusões 16 a 16.7) com a alegação a propósito do carácter genérico e conclusivo de vários factos sobre a inexistência de factos susceptíveis de preencher o tipo de crime de tráfico de estupefacientes e o pedido de absolvição.
          Como é sabido e tem sido reiteradamente afirmado pela jurisprudência o tipo de crime fundamental de tráfico de estupefaciente previsto no art. 21º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, apresenta uma estrutura altamente abrangente que procura compreender comportamentos muito diversos[25] importando por isso uma específica análise do caso concreto.
 Do mesmo modo está assente que naquela norma está construído «um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo. A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta. Crime de perigo abstracto é o crime que não pressupõe nem o dano nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para casuar um perigo para um desses bens jurídicos. Os tipos de perigo abstracto descrevem acções que, segundo a experiência conduzem á lesão não dependendo a perigosidade do facto concreto mas si de um juízo de perigosidade geral... Finamente é, também, um crime de perigo abstracto porque não pressupõe nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos abstraindo de algumas das outras circunstancias necessárias para causar um perigo desses bens jurídicos.»[26]
          Ora, o que está provado – e esse é o limite inultrapassável para a apreciação do recurso – é que o recorrente BB e o co-arguido AA se deslocaram a Portugal para tratar da venda do produto estupefaciente e que contactaram outros indivíduos e os outros co-arguidos para os auxiliarem na realização das operações de venda e transporte desse produto, passando os cinco arguidos a colaborarem entre si com vista a concretizar a operação de venda e compra. Também se descrevem nos factos provados um conjunto de contactos que os arguidos AA e BB mantiveram com os restantes  arguidos e terceiros, contactos esses que incluiram uma deslocação a Espanha. Assim como está provado que os contactos de AA e do ora recorrente BB com os arguidos CC, DD e EE culminaram com a apreensão do estupefaciente já em poder destes produto esse que, como também está provado, tinha sido armazenado pelos arguidos AA e BB ou por alguém a seu mando.
          Houve pois, não somente uma acção mas um conjunto de acções concretas pessoalmente levadas a cabo pelos arguidos AA e BB directamente relacionadas com o  propósito de proporcionarem a terceiros a disponibilidade do produto que veio a ser apreendido não na disponibilidade daqueles mas dos demais o que contraria a tese da improvável ou impossível disseminação e leva a que esteja preenchido o tipo legal previsto no art. 21º do Dec Lei nº 15/93 nem sequer se percebendo, em rigor a invocação feito do art. 23º do Código Penal (é este o artigo invocado na conclusão 15.6).
          Nem se diga, como faz o recorrente que os factos acima enunciados são impossíveis de contraditar. Bastava demonstrar que a versão dada em audiência para a sua presença no país que o tribunal não acolheu, como está expresso na fundamentação, era a que correspondia à verdade para logo por exclusão ficar afastada a sua participação nos factos que permitem a imputação pelo crime de tráfico de estupefacientes.
          A este respeito invoca-se que a interpretação dos arts. 23º do C. Penal e 21º do Dec. Lei nº 15/93 é materialmente inconstitucional «por contenderem com o estatuído nos arts. 18º, 29º e 32º da CRP».
          Não se argumenta, como é timbre, em que consiste essa inconstitucionalidade material sequer se ela abrange os 3 números do art. 18º, os 6 números do art. 29º e os 9 números do art. 32º (visto que o 10 é naturalmente de excluir. Afirma-se, simplesmente.
          De todo o modo sempre se referirá que tal invocação não tem fundamento pois tem como ponto de partida um pressuposto de facto, a permanente indisponibilidade do estupefaciente que se não verifica como resulta do exposto.
          Improcedem, pois, as conclusões da motivação relativas ao recorrente ... .

                                                        *

          11. – Aqui chegados é altura de referir a existência de deficiências já antes apontadas ao acórdão de 2014.10.03 que o acórdão ora recorrido não supriu integralmente e que voltam a ser objecto de interpelação no recurso em apreciação.
          11.1 - Invocam os recorrentes (cfr conclusões 14 e 14.1) que o acórdão deste Supremo Tribunal de 2015.04.09 apontou ao mencionado acórdão da relação o vício de excesso de pronúncia e que este não tomou posição sobre ele.
           O que apenas em parte é correcto.
          Na verdade, no acórdão de 2015.04.09 deste Supremo Tribunal fez-se expressa alusão à circunstância de no então acórdão recorrido (de 2014.10.03) se ter feito a transcrição de um extenso segmento da resposta do Ministério Público aos recursos (fls 3098-3101 e 3114-3119) como se se tratasse de argumentação própria consistindo o vício em daí resultar como adquiridas várias referências factuais que não constavam dos factos provados (cfr ali pags 48-50)
          Ora, essa transcrição foi eliminada apenas subsistindo agora – indevidamente – referências (repetitivas; cfr fls 3911/v-3912/v, 3929/v-3930, e 3941/v) à entrega pelos co-arguidos aos arguidos ... e ... da quantia de € 200.000.
          Dessas apenas é relevante a que consta da pag 152 pois é a única, tal como está formulada, que contende directamente com o recurso dos arguidos AA e BB e que é a seguinte (transcrição): «O arguido BB acompanhou AA ao “Almada Forum” para entabular as “últimas” conversações com os arguidos espanhois e receber o dinheiro do produto estupefaciente, os já referenciados € 200.00 (duzentos mil euros)».
          Ora, como já observado no acórdão de 2015.04.09 a argumentação com uso de aspectos factuais que não constam da matéria de facto dada como provada consiste em pronúncia sobre questão de que não podia conhecer-se nos termos em que o foram (art. 379º, nº 1, al. c), 2ª parte) daí resultando nulidade parcial da decisão recorrida.
          11.2 – Invocam ainda os recorrentes (cfr conclusão 11.2) que o acórdão ora recorrido não se pronuncia sobre «a inexistência de suporte fáctico para preencher a agravante do art. 24º do DL 15/93 bem como se não pronuncia sobre as circunstâncias atenuantes para determinação da pena».
          Na verdade há omissão de pronúncia sobre este ponto assim como há também manifesta omissão a respeito da medida das penas (cfr conclusão 13 e 13.1) pois o acórdão recorrido acaba apenas por se pronunciar sobre a medida da pena de um dos arguidos que já não é recorrente (CC; pags 183 e ss) nenhuma referência havendo sobre a medida das penas dos ora recorrentes tal como fora questionado no recurso que interpuseram (cfr conclusões 17 a 17.4 e conclusões 13. a 13.3 das motivações dos recursos interposto para a relação pelo arguido AA e BB, respectivamente). Daí resultando também nulidade parcial do acórdão recorrido (art. 379º, nº 1, al. c), 1ª parte).
 
                                                       *

          12. – Em face do exposto decide-se:
          A) Conceder parcial provimento ao recurso dos arguidos AA e BB anulando-se parcialmente o acórdão recorrido por excesso e omissão de pronúncia quanto às questões supra identificadas nos pontos 11.1 e 11.2 sobre as quais em novo acórdão se deverá tomar posição.
          B) Negar provimento ao recurso quanto a todas as demais questões suscitadas.
          Sem tributação.


          Feito e revisto pelo 1º signatário


Lisboa, 10 de Março de 2016

Nuno Gomes da Silva (Relator)
Francisco Caetano
         
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[1] Sem menção das notas de rodapé insertas no texto do acórdão da 1ª instância.
[2] Cfr Ac STJ de 2010.01.13, proc 6040/02.8TDPRT.S1
[3] Cfr Sandra Oliveira e Silva in “A Protecção de Testemunhas no Processo Penal”, Coimbra Editora, 2007, pag. 151 e nota 289.
[4] Além de Sandra Oliveira e Silva, ob e loc cit, também Sandra Pereira no estudo “A Recolha de Prova por Agente Infiltrado” in “Prova Criminal e Direito de Defesa, Estudos sobre a Teoria da Prova e garantias de Defesa, Almedina, 2010, pag. 153-154.
Também o Conselheiro Henriques Gaspar (“As Acções Encobertas e o Processo Penal”, Revista do CEJ, 2004, pag. 52) refere que vistas as exigências do contraditório em audiência, o relato da acção, se for junto ao processo, só poderá ter relevância em termos probatórios de julgamento com a intervenção do próprio agente encoberto.
Isabel Oneto in “O Agente Infiltrado”, Coimbra Editora, 2005, pag 196 pronuncia-se em sentido parcialmente diferente, salientando que a função do relato é essencialmente a avaliação da conformidade da acção encoberta mas admitindo ainda assim a sua relevância em termos probatórios.
[5] Cfr “Comentário do Código de Processo Penal …” UCE, 4ª ed., pag. 685.
[6] Cfr Costa Andrade, “Métodos ocultos de investigação (Plädoyer para uma teoria geral)” in “Que futuro para o Processo Penal”, Coimbra Editora, 2009, pag 526. No mesmo sentido, «Bruscamente no Verão Passado, a Reforma do Código de Processo Penal» Coimbra Editora, 2009, pag. 106
[7] Ibidem, pag 527
[8] Cfr Costa Andrade, in «Bruscamente ...» loc cit
[9] Cfr Costa Andrade, in «Métodos ocultos ...» cit. pag 535
[10] Ibidem, pag 539
[11] Ibidem, pag 540
[12] Ibidem, pag 545
[13] Ibidem, pag 545
[14] Neste sentido Isabel Oneto, ob cit., pags 166-171.
[15] Cfr Costa Andrade, in «Métodos ocultos ...» cit. pag 544
[16] Cfr Costa Andrade in «Bruscamente ... » cit, pag. 112
[17] Cfr J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “CRP Anotada”, 4ª ed. pag.
[18] Cfr Isabel Oneto, ob cit. pags 179-180.
[19] Cfr Isabel Oneto, ob cit., pag 197.
[20] Isabel Oneto, ibidem.
[21] Cfr 7º § da parte III.1 da motivação
[22] Cfr Acórdão STJ de 2015.04.17, proc 1/13.9YGLSB.S1
[23] Cfr Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal: notas e comentários, Coimbra Editora, 2.ª ed., p.976, citando acórdão do STJ, de 25.02.1993, BMJ, n.º 424, p. 542.

[24] Cfr Isabel Oneto, ob cit, pag. 118-120 dando conta das vicissitudes da aprovação do Regime Jurídico das Acções Encobertas em sede parlamentar e referenciando a posição crítica de José Mouraz Lopes, autor do trecho entre aspas ( in “Jornal Público de 2001.06.10), contra a proposta inicial e a eventual desmesura das possibilidades de actuação de agentes infiltrados.
[25] Cfr como mero exemplo o Acórdão STJ de 2011.09.21, proc 556/08.0GVIS.C1.S1
[26] Acórdão STJ de 2011.06.01, proc 2/06.3PJLRS