Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17933/12.4T2SNT.L1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: ESCRITURA NOTARIAL DE JUSTIFICAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
USUCAPIÃO
INVERSÃO DO TITULO DE POSSE
AQUISIÇÃO PAULATINA DA POSSE
CO-USUFRUTO
COMPROPRIEDADE
ELEMENTO OBJECTIVO DA POSSE
ELEMENTO SUBJECTIVO DA POSSE
PRESUNÇÃO DE POSSE
Data do Acordão: 06/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: IMPROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITOS REAIS / POSSE / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE / COMPROPRIEDADE / USUFRUTO.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO / REGISTO PREDIAL.
Doutrina:
- Antunes Varela, no “Código Civil” anot., à margem do art. 1439.º.
- Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, pp. 260, 261, 300.
- Manuel Rodrigues, A Posse, pp. 146, 232 e segs..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 343.º, N.º1, 1252.º, 1260.º, 1263.º, 1265.º, 1296.º, 1297.º, 1404.º, 1405.º, N.º1, 1406.º, N.ºS 1 E 2, 1439.º, 1443.º, 1446.º, 1450.º, 1472.º, 1473.º, 1476.º, 1479.º, 1412.º, 1413.º.
CÓDIGO DE NOTARIADO: - ARTIGOS 89.º E 101.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 684º, Nº 2, E 615º, Nº 1, AL. D), 1ª PARTE.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGO 116.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-ACUJ DO STJ DE 14-5-96, NO D.R., II SÉRIE, DE 24-6-96.
-ACUJ DO STJ Nº 1/08, DE 4-12-07.
Sumário :

1. Na acção de impugnação da escritura de justificação notarial recai sobre o R. o ónus de alegar e de provar os factos constitutivos do direito que pretendeu justificar através dessa escritura, mais concretamente, se for o caso, os factos que integram a aquisição originária do direito por via da usucapião.

2. Nos casos de contitularidade, o uso da coisa comum por algum dos contitulares do direito não determina a ampliação do âmbito objectivo da sua posse fora dos limites da sua quota, a não ser que se verifique uma situação de inversão do título de posse, nos termos dos arts. 1406º, nº 2, in fine, e 1265º do CC.

3. A aquisição por um dos co-usufrutuários de uma quota-parte do imóvel da posse, em termos de propriedade ou de compropriedade, de outra quota pode ser feita através de qualquer das vias previstas no art. 1263º do CC, seja a inversão do título de posse, seja a aquisição paulatina da posse.

4. A demolição e a reconstrução do edifício que é objecto do usufruto são da exclusividade do titular da nua propriedade (arts. 1446º e 1450º do CC), de modo que a prática desses actos pelo co-usufrutuário de uma quota-parte, de forma pública, com o conhecimento e sem a oposição do titular da nua propriedade da outra quota-parte é de qualificar como inversão do título de posse.

5. A persistência de uma situação em que o co-usufrutuário, a partir da demolição e da reconstrução do edifício, passou a actuar durante os subsequentes 37 anos como dono exclusivo de todo o prédio, de forma pública e pacífica, sem oposição dos demais titulares, revela uma situação de posse reportada ao direito de propriedade, fazendo presumir o elemento subjectivo, nos termos do art. 1252º, nº 2, do CC.

6. Impugnada a decisão da matéria de facto, cumpre à Relação apreciar formalmente se considera provados ou não provados certos factos, não podendo eximir-se a essa função mediante a preferência dada a considerações de natureza jurídica.

7. Confirmada a situação de posse através da prova de factos que revelam o elemento objectivo e que fazem presumir o elemento subjectivo que não foi elidido, fica prejudicada a omissão de pronúncia que afecta o acórdão da Relação, por falta de assunção de posição expressa sobre a prova ou a falta de prova do facto atinente ao elemento subjectivo da posse.

A.G.

Decisão Texto Integral:

I - AA e BB intentaram acção declarativa de simples apreciação contra CC e DD, pedindo que:

a) Se considere falso e impugnado o facto justificado na escritura de justificação promovida pelos RR. e outorgada em 1-6-12 no Cart. Not. de EE, em Sintra;

b) Se declare nula e sem nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, de forma que os RR. não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação ;

c) Se declare que os RR. não adquiriram pela usucapião e não são donos e possuidores do prédio a que a escritura se refere:

d) E se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base no documento impugnado.

Alegam que os RR. são apenas usufrutuários de ½ indivisa do prédio em questão, sendo os AA. proprietários da outra ½.

Os RR. declararam na referida escritura de justificação serem donos e legítimos possuidores da ½ pertencente aos AA., dizendo tê-la adquirido por usucapião, em virtude de estarem na sua posse em nome próprio, contínua, pública e pacífica desde 1975, em resultado de compra não formalizada efectuada aos AA. Porém, esta alegada venda nunca ocorreu e os RR. não possuem a totalidade do prédio, sendo falsas as declarações nesse sentido que constam da escritura de justificação.

Contestaram os RR., afirmando a veracidade dos factos que foram declarados na escritura de justificação notarial como geradores da aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre a ½ indivisa do prédio em causa registada a favor dos AA.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente, declarando impugnado o facto justificado pelos RR. na escritura mencionada e declarando ainda que os RR. não haviam adquirido, por usucapião, o direito de propriedade sobre a ½ indivisa do prédio em questão, considerando a invalidade da escritura para efeitos de inscrição no registo do facto justificado.

Recorreram os RR. e a Relação julgou procedente a apelação e, afirmando a aquisição por parte dos RR. da ½ do prédio registada a favor dos AA. por via da usucapião, revogou a sentença e considerou improcedente a acção de impugnação da escritura de justificação notarial.

Os RR. interpuseram recurso de revista em que concluíram o seguinte:

a) Resulta do acórdão recorrido uma errada interpretação do direito e consequentemente violadora do estatuído nos arts. 1258° e segs., 1258º, 1440°, 1442° e 1446°do CC.

b) Com a escritura de 25/9/75 a propriedade do imóvel em litígio passou a pertencer, em partes iguais aos AA e aos filhos dos RR., ou seja, passou a existir propriedade em comum, tal como é configurada no nº do art. 1405º do CC e foi reservado o usufruto a favor dos alienantes no que se refere à ½ indivisa vendida aos AA., e reservado também o usufruto a favor dos RR. no que se refere à ½ indivisa vendida aos filhos desta.

c) A R. passou, por via de tal constituição do usufruto, a exercer de imediato e até hoje, de modo inalterado, a posse sobre o prédio, sem que em algum momento se tenha verificado a alteração do animus (modificação da convicção com que exerce o poder de facto, sem ambiguidades cfr. Ac. do STJ de 19/9/13 (Granja da Fonseca) do referido exercício.

d) Assistindo a qualquer dos usufrutuários o poder de se servir da totalidade da coisa comum, só pode adquirir a propriedade no caso de se operar a inversão do título da posse, pela forma prevista no art. 1265° do CC.

e) Jamais ocorreu a inversão do título que habilitasse outra decisão senão a da 1ª instância, porquanto nenhum dos justificantes demonstram actos que a consubstanciasse.

f) A Relação parte uma premissa falsa para fundamentar o acórdão proferido. Assume que os RR. eram proprietários de ½, quando não é assim. Os RR. eram, desde o início da posse, usufrutuários.

g) Todos os actos praticados pelos RR. no prédio sub iudice, até à escritura de justificação celebrada em 2012, foram-no, na qualidade de usufrutuários da ½ pertencente aos filhos conforme foi por eles confessado na escritura de justificação. São actos cuja manifestação exterior não colide com essa qualidade.

h) A posse inicial dos RR. foi adquirida em consequência do usufruto sobre ½ indivisa, que conferiu aos RR. o direito de usar, fruir e administrar como um proprietário prudente e o direito real (menor) de usufruto tem no seu conteúdo externo, a mesma visibilidade que tem a do (possuidor como se) proprietário, como resulta dos factos provados.

i) Embora, também, os pais do A. marido e da R. fossem usufrutuários, certo é que só os RR. detiveram a posse do prédio, posse, essa, titulada e adquirida pela qualidade de usufrutuários.

j) Os AA., não obstante fossem proprietários de ½ indivisa, estavam impedidos de exercer plenamente o direito de propriedade, onerado e diminuído pelo usufruto constituído a favor dos pais, usufruto que só com a morte deste se extinguiu. Os AA. não tinham a posse da ½ indivisa de que eram proprietários porquanto a mesma pertencia aos usufrutuários seus pais.

k) Até 4/6/05, data do óbito do pai, FF, a posse era detida em simultâneo, pelos seguintes usufrutuários: os pais do A. e da R. - usufrutuários de ½ indivisa - e a R., usufrutuária da restante ½ indivisa.

l) Foram os pais do A. marido e da R., e não os AA., quem tolerou e permitiu aos RR. a prática de todos os actos que os mesmos praticaram sobre o imóvel, de que só os RR. beneficiaram ao longo de todos estes anos.

m) Conforme é confessado pelos RR., o modo de exercício dos actos materiais iniciou-se logo após a escritura de 1975 e permaneceu imutável ao longo dos anos. Nenhum facto é indicado em todo o processo que seja determinativo da alteração do animus com que os RR. sempre agiram relativamente ao prédio. Perante os AA. e perante terceiros o comportamento dos RR. manteve-se imutável ao realizar obras e impedir o acesso ao imóvel desde 1975.

n) Jamais poderia ser permitido que a tolerância dos pais do A. marido relativamente aos actos praticados pela filha, ora R., habilitasse esta à aquisição da ½ indivisa por usucapião. Permitindo tal habilidade estar-se-ia a, por caminhos ínvios, permitir que os pais deserdassem um dos filhos ou pelo menos não respeitassem a quota-parte a que o mesmo tem direito.

o) O facto de terem sido os RR. quem promoveu e pagou as benfeitorias (e obras sobre todo o prédio), resulta do facto do usufruto ter sido, desde o início exercido relativamente a todo o imóvel, ou seja também na quota parte dos filhos da R., proprietários inscritos. Foi esse, desde o início, o modo concreto de exercício do direito, por parte dos detentores do direito ao usufruto simultâneo.

p) Na escritura de justificação de 2012, os RR. confessam serem usufrutuários da ½ indivisa pertencente aos respectivos filhos.

q) Para que tivesse havido inversão do título de posse seria necessário que os RR., em algum momento tivessem passado a efectuar obras e a exercer a posse com um animus diferente do inicial. No entanto, tal momento não está determinado nos autos nem foi alegado. Porque assim é resulta claro e evidente que o animus dos RR. permaneceu inalterado ao longo dos anos.

r) A demolição das casas existentes no prédio, logo em 1976, facto mais relevante de todos os praticados pelos RR., com a passividade dos pais da R. mulher, usufrutuários, prova que o animus com que exerciam a posse de usufrutuárias se manteve inalterada desde então.

s) Sendo a R. a única titular da posse sobre o imóvel só ela detém, como sempre deteve, desde 1975, o direito de autorizar quem quer que seja a utilizar e aceder ao bem. Ora, por maioria de razão, não é verdade que "a necessidade de autorização dos RR. para que os AA. entrem e utilizem o imóvel" signifique que houve inversão do título de posse. A necessidade de autorização para aceder ao prédio significa, isso sim, que estando a R. na posse do imóvel como usufrutuária, no qual vive e onde guarda os seus haveres, só ela pode permitir a quem quer que seja que aceda ao mesmo. Tal direito decorre da posse que a mesma detém, direito cujo exercício não determina, por si só, a inversão do título de posse.

t) A posse da R., porque titulada pelo usufruto foi, sempre, e não havia razão para que não fosse, exercida perante todos, AA. incluídos, de forma pública e pacífica.

u) É manifestamente irrelevante para a decisão a proferir nos presentes autos que o Tribunal da Relação tenha aditado aos factos dados como provados pela 1ª instância que os factos aludidos nas alíneas i, t. m, n, o, p, t, u, v e ab ocorreram à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

v) Os AA. sabiam e sempre souberam, bem como os restantes vizinhos que os RR. habitavam a casa. Apenas quando os RR. passaram a pretender, por via da escritura de justificação, aceder ao direito de propriedade dos AA., foram violados os direitos dos AA., violação a que reagiram ao propor a presente acção.

w) Os AA. através dos presentes autos não se opõem à posse dos RR.; opõem-se, isso sim, a que os RR. procurem adquirir a propriedade do imóvel por via de uma posse titulada por usufruto à qual não se opuseram nem se poderiam opor.

x) Não tendo havido inversão do título cabia aos RR. o ónus de provarem as afirmações constantes da escritura de usucapião, nomeadamente que adquiriam a propriedade de ½ indivisa do prédio por compra aos AA.

y) A sentença da 1ª instância que julgou a acção procedente e anulou a escritura de justificação resultou da convicção do Tribunal que, em sede de julgamento, teve oportunidade de aferir de perto, de modo imediato e com base nas reacções das testemunhas, o respectivo grau de ciência, a veracidade e convicção com que testemunhavam. Como bem julgou: "não lograram os RR. provar que ao ocuparem, utilizarem e fruírem o prédio em causa, ignorassem que lesavam direitos ou interesses alheios e agissem na convicção de serem donos da totalidade do prédio".

z) O silêncio dos AA. deveu-se ao respeito pela posse da usufrutuária.

aa) Os RR., porque usufrutuários, não tinham que provar a posse nos presentes autos porquanto a mesma decorre do direito de usufrutuária e por tal razão se presume.

bb) Assim, a prova da posse efectuada pelos RR. em sede de julgamento é absolutamente irrelevante para a decisão a proferir nos presentes autos. Na verdade, a única prova relevante para decisão seria a da veracidade do que foi afirmado em sede de escritura de justificação. Ou seja, deveriam os RR. ter provado que compraram e pagaram a casa aos AA. e essa prova, claramente e sem qualquer dúvida, não foi feita .

cc) Em alternativa, para evitar tal ónus, poderiam os RR. ter demonstrado que ocorreu a inversão do título, inversão que, atento o que acima se alegou, certo é que os RR. não lograram provar nem tão pouco alegaram factos, nomeadamente a data em que a mesma terá ocorrido nem, tão pouco, fizeram prova de terem manifestado aos Autores a modificação do animus possidendi.

dd) Por todo o já expresso, deverá ser revogado acórdão recorrido e substituído por outro que julgue a acção procedente, com as legais consequências.

Os RR. contra-alegaram e no âmbito das contra-alegações ampliaram o objecto do recurso, invocando a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, pretendendo que, se necessário for, seja determinada a remessa dos autos à Relação a fim de ser suprimida a omissão de pronúncia e, em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, se considere provado ainda que os RR., “ao ocuparem, utilizarem e fruírem o prédio mencionado … agiram na convicção de serem donos da totalidade do prédio”.

Cumpre decidir, tendo em conta a mudança de relator, por vencimento.

III – Factos provados:

1. O A. AA e a R. DD são filhos de --- e de ---, estes falecidos a 4-6-05 e a 24-3-86, respectivamente;

2. GG, nascida a ---, e HH, nascido a ---, são filhos dos RR.;

3. Por escritura pública de 25-9-75, com a epígrafe "COMPRAS E VENDAS", em que outorgaram, como 1ºs FF e mulher, II, como 2ºs CC e mulher, DD, outorgando CC também em representação dos seus filhos menores, GG e HH, e como 3º outorgante, AA, casado com BB, sob o regime de comunhão de adquiridos, disseram os 1ºs outorgantes:

- Que vendem aos 2ºs outorgantes, pelo preço de 5.000$00, já recebido, o usufruto, simultâneo e sucessivo de ½ indivisa de um prédio urbano sito no lugar e freguesia de ---, descrito na 2ª Secção da CRP de Sintra sob o nº 9.204, a fls. 116 v., do livro B-26 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. 2.144;

- Que vendem aos referidos menores, pelo preço de 5.000$00, já recebido, a nua propriedade de ½ indivisa do mesmo prédio;

- Que vendem ao 3º outorgante, pelo preço de 10.000$00, já recebido, reservando para si o usufruto, a raiz ou nua propriedade de ½ indivisa do prédio atrás identificado.

No mesmo escrito disseram os 2ºs e 3ºoutorgantes que aceitam estes contratos;

4. Sobre o prédio urbano descrito na 2ª CRP de Sintra sob o nº 4.017 e inscrito na matriz respectiva sob o art. 2.144, identificado na escritura referida na al. a), foram registadas:

- Pela ap. 3 de 02-10-1975, a aquisição a favor dos RR. do usufruto sobre a quota de ½ por compra a FF e a II;

- Pela ap. 4 de 02-10-1975, a aquisição a favor de GG e HH  (filhos dos RR.) da quota de ½, por compra a FF e a II;

- Pela ap. 7 de 17-10-1975, a aquisição a favor dos AA. da quota de ½  por compra a FF e a II;

- Pela ap. 8 de 17-10-1975, usufruto sobre a quota de ½ a favor de FF e a II, reserva na venda feita a AA;

5. O prédio mencionado em 3. compunha-se então de umas casas em muito mau estado, inabitáveis e que se encontravam desocupadas;

6. O R. apresentou à Câmara Municipal de Sintra um projecto de ampliação de uma casa, para habitação, que ali teve o nº de proc. 4.098/75;

7. O projecto de ampliação mencionado em 6. dizia respeito às casas referidas em 5.;

8. Em 1976 os RR. demoliram as casas referidas em 5., erguendo no seu lugar uma nova casa, de raiz, com rés-do-chão e 1° andar;

9. Tendo despendido cerca de 700.000$00 em tal obra;

10. Em 1975, os RR. e FF eram emigrantes em França e os seus filhos, GG e HH, então menores, viviam em Portugal, residindo com a avó materna, II, numa casa sita no ---;

11. Os RR. vinham a Portugal nas férias e mais algumas vezes por ano e viviam, então, na casa referida em 8., com os seus dois filhos, diariamente, ali comendo, dormindo, descansando, praticando os seus actos de higiene diária, recebendo amigos e familiares e a correspondência;

12. Em 1977 contrataram com os respectivos serviços o fornecimento de água e de electricidade para a casa e equiparam a casa com móveis e electrodomésticos, conservando, pintando e arranjando a casa, bem como os muros, desde aí até ao presente, tendo, no ano de 2001, feito nela obras, que consistiram, nomeadamente, na colocação de aquecimento central, modificação das casas de banho, acesso do rés-do-chão ao 1° andar e colocação de um novo chão no rés-do-chão;

13. Nisso despenderam quantia não apurada;

14. Os RR. possuem, desde 1975-76, as chaves da aludida casa, nela entrando, permanecendo e saindo sempre que querem e lhes apetece;

15. Os RR. não dão contas disso a ninguém, designadamente aos AA. e a FF ou a II;

16. Os RR. nunca pagaram a quem quer que fosse qualquer retribuição pela ocupação da casa;

17. Quando regressou definitivamente a Portugal, FF (pai do A. e da R.) continuou a viver na casa referida em 10.

18. Desde pelo menos 1976 os RR. não permitem a quem quer que seja, designadamente, aos AA. ou a FF e mulher entrarem no prédio ou por qualquer forma o ocuparem ou utilizarem, sem a sua autorização;

19. Em 1980-81, a R. sofreu uma depressão nervosa, tendo obtido uma pensão por invalidez do Estado Francês em 1981, passando, desde aí, a viver diariamente na dita casa pelo menos três ou quatro meses por ano, além dos períodos mencionados em 11., com os filhos do casal;

20. Em 2004, a R. regressou definitivamente a Portugal e passou a viver na referida casa durante todo o ano, com autorização do R.;

21. Os factos aludidos em 8., 12., 11., 14., 15. e 20. ocorreram à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém (facto aditado pela Relação a fls. 355);

22. Os RR. divorciaram-se, por sentença transitada em julgado a 20-2-04, não tendo partilhado o direito sobre o prédio mencionado em 3.;

23. Por escritura pública datada de 1-6-12, com a epígrafe "JUSTIFICAÇÃO", na qual intervieram, como 1ºs outorgantes, os RR. CC e DD e, como 2ºs outorgantes, JJ, LL e MM, foi declarado o seguinte:

"DECLARARAM OS PRIMEIROS OUTORGANTES:

Que o dissolvido casal deles primeiros outorgantes é dono e legítimo possuidor, com exclusão de quem quer que seja, de ½ indivisa do prédio urbano composto de casa de altos e baixos, com 50 m2 de área coberta, com um pátio com 41,5 m2, sito na vila e freguesia de ---, concelho de Sintra, descrito na 2ª CRP de Sintra sob o nº 4.017 e inscrito na matriz em seu nome, todo ele, sob o art. 2.144, com o valor patrimonial de 325,96 €.

Que no entanto aquela ½ indivisa do imóvel está ainda registada pela apresentação sete, de 17-10-75, a favor de AA e mulher BB, que foram casados sob o regime da comunhão de adquiridos, actualmente divorciados um do outro, não dispondo eles primeiros outorgantes de qualquer título formal que permita efectuar o registo em seu nome.

Que, porém, justificam o direito de propriedade sobre aquela ½ do imóvel com fundamento no seguinte:

Em finais de 1975, ainda no estado de casados sob o regime da comunhão geral, ajustaram a sua compra àqueles titulares inscritos - pelo preço, na altura de 150.000$00, que pagaram na totalidade - não tendo no entanto sido celebrada a respectiva escritura pública de compra e venda;

Desde aquela data, porém, entraram na posse e fruição daquela ½ que exerceram até hoje em nome próprio, sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, fazendo de todo o imóvel a sua habitação, uma vez que são usufrutuários da restante ½ sendo destas nus proprietários seus filhos (…), procedendo a obras de reconstrução total, mediante licença camarária emitida em seu nome, levadas a efeito a expensas exclusivamente suas, suportando todos os demais encargos e agindo em tudo o mais sobre tal metade em correspondência perfeita com o exercício do direito de propriedade.

Tal posse sobre a ½ do imóvel em nome próprio, contínua, pública e pacífica, nos termos referidos, conduziu à sua aquisição por usucapião, que ora invocam para efeitos de registo predial.

Que foram notificados os referidos titulares inscritos, nos termos do art. 99° do Código do Notariado.

DISSERAM OS SEGUNDOS OUTORGANTES:

Que confirmam as declarações dos justificantes”.

Importa ainda notar que na 1ª instância foi considerado não provado que “após a escritura de compra e venda (referida em 5.), mas ainda no ano de 1975, os RR. compraram verbalmente aos AA., que lhes venderam, pelo preço de 150.000$00, a ½ indivisa da nua propriedade do aludido imóvel de que eram donos”. Também foi considerado não provado que, “ao ocuparem, utilizarem e fruírem o prédio mencionado em 5., os RR. ignoravam que lesavam direitos ou interesses alheios e agiram na convicção de serem donos da totalidade do prédio”.

Porém, na decorrência do recurso de apelação e da impugnação da decisão da matéria de facto, a Relação considerou provado e aditou à matéria de facto que “os factos aludidos em 8., 12, 11., 14, 15. e 20. ocorreram à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém” (fls. 355).

Já relativamente a outro facto cujo aditamento também foi solicitado pelos RR. (“ao agirem do modo descrito, o faziam na convicção de serem donos do prédio em questão”), a Relação não chegou a tomar posição efectiva sobre o mesmo, limitando-se a referir que os RR. nem sequer careciam de fazer prova de tal facto, uma vez que beneficiavam da presunção legal estabelecida no art. 1252º, nº 2, do CC, sobre o elemento subjectivo da posse (fls. 356).

Por causa desta opção, os RR., nas contra-alegações da revista, ampliaram o seu objecto, pretendendo que, por via da subsidiária, se reconheça a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, de modo que, suprindo tal nulidade, seja considerado expressamente provado também que os RR., “ao ocuparem, utilizarem e fruírem o prédio mencionado, agiram na convicção de serem donos da totalidade do prédio”.

III – Decidindo:

1. Para além da questão suscitada pelos RR. em sede de ampliação do objecto da revista, tendente à superação da nulidade do acórdão por falta de efectiva pronúncia sobre uma questão de facto que fora objecto do recurso de apelação, das conclusões do recurso de revista interposto pelos AA. ressaltam as seguintes questões essenciais:

a) Negação aos RR. da qualidade de possuidores, em termos de direito de (com)propriedade, relativamente à ½ do prédio que se encontra inscrito a favor dos AA., considerando estes que os RR. se mantêm simplesmente, desde 1975, na posição, de jure e de facto, de usufrutuários que efectivamente são da outra ½, por falta de inversão do título de posse;

b) Consideram que essa qualidade de titulares do direito de usufruto sobre ½ do prédio e de de possuidores desse usufruto era compartilhada com os pais do A. e da R., enquanto foram vivos, tendo sido estes, e não os AA., que toleraram os actos que os RR. praticaram relativamente a todo o prédio;

c) Verifica-se a falta do elemento subjectivo da posse relativamente à passagem da qualidade de usufrutuários para a de titulares exclusivos da ½ do prédio que está inscrita a favor dos AA.;

d) Consideram insuficiente, para efeitos de assunção da posse reportada à titularidade exclusiva da ½ pertencente aos AA. o facto de depender da autorização dos RR. a entrada no prédio, considerando que estes já detinham a qualidade de usufrutuários relativamente à outra ½.

2. Em termos formais, maxime ao nível do registo predial, a situação do prédio dos autos é a seguinte:

- Relativamente a uma quota-parte de ½, desde 2-10-75, encontra-se inscrito a favor dos RR. DD e do ex-marido CC o direito de usufruto e a favor dos seus filhos, GG e NN, a nua propriedade (mais rigorosamente a nua compropriedade;

- Relativamente à outra ½ indivisa, desde 17-10-75, encontra-se registada a favor dos AA. AA e mulher BB, a nua propriedade (mais rigorosamente a nua compropriedade), direito que até à morte dos seus pais FF e II se encontrava comprimido pelo usufruto dessa ½ a favor destes;

- Tais inscrições foram efectuadas com base numa escritura de compra e venda outorgada em 25-9-75, através da qual os pais FF e II, pais do A. AA e da R. DD, declararam vender aos AA., e estes comprar, com reserva do usufruto para os vendedores, ½ indivisa do prédio, em simultâneo com a venda aos RR. DD e ex-marido CC do usufruto da outra ½ indivisa e aos filhos destes, GG e NN, a respectiva propriedade (ou melhor a compropriedade).

Em suma, desde 25-9-75, a nua propriedade do prédio ficou a pertencer formalmente, em compropriedade, aos AA. e aos filhos dos RR., na proporção de ½ para cada, enquanto o usufruto de cada uma das ½ indivisas ficou a pertencer, respectivamente, aos pais do A. e da R. e aos RR., situação que foi devidamente levada ao registo predial.

Trata-se de uma situação que, sem embargo das implicações potenciais ao nível da administração do prédio, encontra toda a legitimidade na autonomia privada e na liberdade de disposição de direitos de natureza real como são o usufruto e a nua propriedade.

3. Em abstracto, a tal opção dos interessados poderia – e deveria - corresponder o exercício por cada um dos poderes formalmente correspondentes ao respectivo direito: os usufrutuários exerceriam – e exerceriam apenas - os poderes inerentes ao usufruto, nos termos que paralelamente estão previstos para a compropriedade (art. 1404º do CC), do mesmo modo que os comproprietários, por seu lado, exerceriam – e exerceriam efectivamente - os poderes inerentes a este estatuto jurídico, nos termos dos arts. 1406º e segs. do CC.

Ademais, como o usufruto é, por natureza, um direito temporário (art. 1439º do CC), não podendo exceder a vida dos usufrutuários (art. 1443º), aquele regime de coexistência entre a nua compropriedade e o usufruto tenderia, naturalmente, à prevalência da primeira no termo do usufruto (art. 1476º). E outro tanto poderia ocorrer com a compropriedade, agora dependendo da vontade das partes, uma vez que, não havendo obrigação de permanência na indivisão, qualquer dos comproprietários poderia, nos termos do art. 1412º do CC, despoletar os mecanismos tendentes a terminar com a indivisão, com resultados que poderiam variar entre a aquisição do imóvel por qualquer dos comproprietários ou a sua venda a terceiro, com divisão do respectivo produto pelos co-interessados em função de cada uma das quotas (art. 1413º do CC e arts. 925º e segs. do CPC).

Repare-se que decorrendo daquela escritura pública a distribuição pelos diversos interessados dos poderes jurídicos correspondentes a cada direito real de gozo parcelar, ocorreu no mesmo momento a transmissão da posse, como poder de facto inerente a cada qualificação jurídica, nos termos do art. 1263º, al. b), e c) (tradição material e simbólica da posse e constituto possessório). Posse que, a partir de então, se subdividiu em dois segmentos: aos comproprietários foi transmitida a posse concernente à nua compropriedade, sem confusão com a posse reportada ao direito de usufruto que passou, por aquelas vias, a ser exercida pelos usufrutuários.

Isto no campo dos princípios que, como se dirá mais adiante, foram quase de imediato contrariados e ultrapassados pela realidade.

4. Dirigindo a atenção ao modo como cada uma das posições jurídicas se encontra formalmente regulada no CC, o usufrutuário, embora titular de um direito real, tem os seus poderes diminuídos em comparação com os que foram desenhados para o direito de propriedade ou de compropriedade.

Trata-se de um direito real de gozo menor, o que resulta bem claro da definição que consta do art. 1439º do CC que se limita a conferir ao usufrutuário a possibilidade de gozar plenamente de uma coisa alheia, desde que respeite a sua forma ou substância, sendo os seus poderes circunscritos à fruição e administração da coisa, como o faria um bom pai de família e respeitando o seu destino económico (art. 1446º).

Como refere Antunes Varela, no CC anot., à margem do art. 1439º, “apesar de conferir ao titular o direito de gozar plenamente a coisa ou o direito, o usufruto não lhe atribui o poder de dispor plenamente desta coisa ou direito. Os poderes do usufrutuário estão sujeitos a um limite que é o respeito da forma e da substância da coisa ou do direito. Enquanto o proprietário, como titular de uma plena potestas in re propria, pode, em princípio, alterar livremente a forma e a substância da coisa, ao usufrutuário, como sujeito de um ius in re aliena, não é lícito fazê-lo sem consentimento do proprietário de raiz”.

Também Manuel Rodrigues, em A Posse, pág. 146, refere que ao usufrutuário “não pertencem, porém, os poderes de transformação, porque não pode alterar a forma ou a substância da coisa e é na alteração, modificação ou destruição no todo ou em parte da substância, que consiste o direito de transformação”.

Por semelhantes motivos, pertencem ao usufrutuário as reparações ordinárias e as despesas de administração da coisa, mas já as despesas com reparações extraordinárias são incumbência do nu proprietário (arts. 1472º e 1473º).

Por outro lado, sendo atribuído ao usufrutuário o poder de realizar benfeitorias úteis e voluptuárias, o art. 1450º impõe um limite a tal actuação: o de que não seja alterada a forma ou substância da coisa ou o seu destino económico.

Acresce ainda que quando o usufruto incida sobre prédio urbano, se este for destruído por qualquer causa, o direito do usufrutuário é transferido para o desfrute do solo, sendo que a reconstrução do prédio é, naturalmente, atribuição exclusiva do proprietário, nos termos do art. 1479º, e nunca do usufrutuário.

5. Também a situação de compropriedade e, por aplicação remissiva, a situação do co-usufruto (art. 1404º) encontra naturais condicionantes que visam a harmonização dos interesses nos termos que decorrem dos arts. 1403º e segs. Os poderes de cada uma das referidas categorias de interessados devem ser exercidos em conjunto (art. 1405º, nº 1) e, na falta de acordo sobre o uso da coisa, é lícito a qualquer dos contitulares (havendo co-usufruto, serão os co-usufrutuários) servir-se dela dentro do fim a que a coisa se destina e sem que lhe seja legítimo privar os demais consortes de igual direito (art. 1406º, nº 1).

Limitação que é levada ao ponto de, em regra, o uso da coisa que seja feito por qualquer contitular apenas determina uma situação de posse nos limites da respectiva quota (art. 1406º, nº 2, 1ª parte), a não ser que exista inversão do título de posse (arts. 1406º, nº 2, in fine, e 1265º).

Como veremos mais adiante, é aqui que se situa um dos pontos de ruptura dos direitos de natureza formal, o que é especialmente visível no caso concreto, atenta a matéria de facto apurada, potenciando o quadro jurídico regulador da posse e do instituto da usucapião resultados que, em princípio, seriam negados pela aplicação restrita das normas que regulam cada um dos direitos reais em causa ou cada uma das quotas indivisas de cada um desses direitos.

Com efeito se, como se refere no art. 1406º, nº 2, do CC, o simples uso da coisa na sua totalidade é insusceptível de ampliar o âmbito objectivo da posse para além da quota respectiva, tal restrição deixa de existir quando haja inversão do título de posse, em que, como refere Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, pág. 300, “a nova posse decorre de outro facto, apto a produzir a inversão, e não do simples uso da coisa comum”.

6. No caso concreto, deparamo-nos com a iniciativa dos RR. que se traduziu na outorga de uma escritura de justificação notarial, datada de 1-6-12, na qual fizeram exarar, através de declarações testemunhais, que em relação a ½ indivisa do prédio, precisamente aquela que no registo predial se encontra inscrita a favor dos AA., se assumiram como titulares de pleno direito. Tal posição jurídica ter-se-ia alegadamente iniciado com uma compra informal dessa ½ da nua propriedade feita aos AA. em 1975, cumulada com a qualidade de co-usufrutuários que os RR. formalmente já detinham em relação à outra ½ (cuja nua propriedade era dos seus filhos).

Essa posse foi revelada externamente através da realização de obras de reconstrução total por parte dos RR., demolindo as casas velhas e inabitáveis que lá existiam e com edificação de um prédio novo que passou a constituir a sua casa de habitação.

Ora, como tal situação possessória se teria iniciado em 1975, mantendo-se em 1-6-12 (37 anos depois), verificar-se-iam os requisitos da aquisição originária do direito de (com)propriedade sobre a referida ½ indivisa do prédio através da usucapião.

7. A escritura de justificação notarial constitui um mecanismo capaz de regularizar a situação registral de prédios em situações em que não exista plena conformidade entre o que formalmente se encontra declarado no registo e a titularidade dos direitos adquirida por via da usucapião decorrente da posse durante o período necessário em função das características da posse ou da natureza do bem em causa.

É um instrumento arriscado e do qual pode ser feito um uso abusivo, potenciando que se procurem justificar direitos, através de acto unilateral como é a escritura de justificação notarial, sem que se verifiquem os pressupostos da usucapião.

Os AA., em nome de quem se encontra inscrita a titularidade da referida ½ indivisa do prédio, impugnaram essa escritura de justificação notarial, arvorando-se titulares da compropriedade da referida ½ indivisa e negando essa qualidade aos RR.

Fizeram-no através da acção declarativa de simples apreciação negativa prevista nos arts. 116º, nº 1 do CRP, e nos arts. 89º e 101º do Cód. de Notariado.

Nos termos que decorrem do ACUJ do STJ nº 1/08, de 4-12-07, para que prevaleçam os efeitos jurídicos projectados através da justificação notarial, maxime, a presunção da titularidade do direito real, recai sobre os justificantes (RR. nesta acção) o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que pretenderam justificar para sustentar a alteração da inscrição registral.

Por conseguinte, para que a presente acção improceda, mantendo-se os efeitos que os RR. procuraram obter através da outorga da escritura de justificação notarial, é necessário que se apurem factos de que resulte a aquisição do direito em causa por via da usucapião, nos termos do art. 343º, nº 1, do CC.

Assim, para além de a lei prever o antídoto que pode evitar os efeitos negativos do uso abusivo da justificação notarial, não podemos deixar de creditar a tal instrumento uma elevada dose de pragmatismo e de eficácia que confluem para o objectivo da regularização registral de prédios, através da obtenção de um instrumento formal sem as exigências, os custos e as demoras inerentes quer à acção de justificação judicial, quer à acção de simples apreciação positiva para reconhecimento do direito real por usucapião, meios processuais de natureza contenciosa.

Relativamente aos casos verdadeiramente patológicos, os efeitos negativos para os titulares inscritos, cujos interesses podem ser afectados pela justificação notarial, acabam por ser atenuados com a atribuição do direito de acção que lhes permite confrontar judicialmente o justificante e onerá-lo com a prova dos factos justificativos da usucapião, à semelhança do que ocorreria numa acção de reconhecimento do direito real pela mesma via.

A experiência demonstra, aliás, que o uso razoável daquele mecanismo facilita e simplifica a regularização tabular dos prédios num sistema como o nosso em que, essencialmente fora dos grandes meios urbanos, ainda não está generalizada a percepção das vantagens do cumprimento dos requisitos formais no que concerne aos negócios que têm por objecto prédios rústicos e urbanos (outorga de escritura pública e registo predial dos factos) ou em que, com elevada frequência, se verifica uma desconformidade entre os aspectos de ordem substancial ou material e os aspectos de ordem formal atinentes ao património imobiliário.

8. Tendo sido questionada através da presente acção pelos AA. a justificação notarial do direito de compropriedade sobre ½ do prédio que os RR. promoveram, é verdade que nem todos os factos que estes alegaram para o efeito se apuraram, mas também é seguro que os factos que se provaram confirmam a verificação de todos os pressupostos de que depende o instituto da usucapião de imóveis, com efeitos na improcedência da acção de justificação notarial.

Não se provou que os poderes inerentes à compropriedade sobre a referida quota de ½ tenham sido transferidos através de contrato informal de compra e venda. Tendo os RR. alegado que tal contrato foi celebrado em 1975 e que, então, pagaram aos AA. o preço que fora acordado de 150.000$00, tal facto não se provou (ainda que os próprios AA. na petição inicial reconheçam a existência de negociações nesse sentido que, porém, não teriam logrado o resultado referido).

Porém, esse facto inicial não é imprescindível para que se confirme a aquisição da posse com características conducentes à usucapião, como, aliás, os próprios recorrentes reconhecem nas suas alegações. Realmente importante é o apuramento de factos que, por si, confirmem o facto jurídico invocado pelos justificantes, isto é, que se possa observar a prova dos factos integradores da usucapião. Modo de aquisição originário que, como decorre dos arts. 1287º e segs. do CC, depende unicamente da verificação de uma situação de posse prolongada de um bem em termos de revelar exteriormente o exercício dos poderes inerentes ao direito invocado, in casu, a titularidade, como comproprietários, da parcela de ½ inscrita a favor dos AA.

Na acção de impugnação de justificação judicial, pese embora a sua natureza de acção de simples apreciação negativa, a prevalência da posição assumida pelos RR., sobre quem recai o ónus da prova dos factos constitutivos do direito justificado, não exige a demonstração de todos os factos que ficaram exarados na escritura de justificação, bastando a prova de factos que, por si, revelem aquele modo de aquisição originária que, nos termos da lei, permite sobrepor a uma situação formal sustentada no acordo translativo do direito e confirmada pela inscrição desse direito no registo predial, o peso da realidade traduzida no exercício persistente, público e pacífico dos poderes inerentes à titularidade do direito em causa.

Persistindo a controvérsia sobre a aquisição por usucapião da titularidade dos RR. sobre ½ do prédio que formalmente ainda está inscrita no registo predial a favor dos AA., a integração desse mesmo direito na esfera jurídica dos RR. por via da prescrição aquisitiva depende unicamente da verificação de uma situação de verdadeira posse, por um período mínimo de 20 anos, nos termos do art. 1296º, considerando que se trata de direito que incide sobre imóvel e que a posse dos RR. (referente à titularidade da ½ referida), não se encontrando titulada, se presume de má fé (arts. 1296º e 1260º do CC).

9. É verdade que em situações em que existe compropriedade o simples uso por parte de um dos contitulares da totalidade do bem não traduz, por regra, uma situação de posse mais extensa do que a que corresponde à quota respectiva. Tal extensão depende da inversão do título de posse, nos termos do art. 1406º, nº 2, in fine, do CC.

Ora, a realidade que se observa através da análise da matéria de facto provada, não corresponde simplesmente ao uso de todo o imóvel, antes à ideia da exclusividade plena desse imóvel em termos correspondentes aos do verdadeiro proprietário ou comproprietário.

Nessa medida, o mecanismo de aquisição da posse referente à titularidade absoluta dessa ½ registada a favor dos RR. não está unicamente dependente de uma situação de inversão do título de posse (art. 1406º, nº 2, in fine) que, apesar de tudo, também se verificou, podendo e devendo ser sustentada também na aquisição paulatina da posse revelada pelo exercício reiterado e duradouro dos poderes de facto correspondentes ao direito real pleno, nos termos do art. 1263º, al. a).

10. Parece-nos claro que, em situações como a dos autos, em que confluam sobre o mesmo bem a nua propriedade e o usufruto ou a compropriedade e o co-usufruto, atenta a similitude dos poderes com que se exterioriza cada um dessas categorias jurídicas, quer a inversão do título de posse, quer a aquisição paulatina da posse devam revelar-se através de actuações bem visíveis e de natureza inequívoca, que permitam efectivamente distinguir uma actuação enquanto mero usufrutuário ou co-usufrutuário que decorre do título formal existente relativamente a uma actuação correspondente à figura e aos poderes que legalmente são atribuídos ao proprietário ou ao comproprietário (cfr. Manuel Rodrigues, ob. cit., págs. 232 e segs. e Carvalho Fernandes, ob. cit., págs. 260 e 261).

Contra o que os recorrentes referem nas alegações, o facto de os co-usufrutuários terem passado a deter um título de posse relativamente ao co-usufruto de ½ indivisa do prédio não afastava obviamente a posse relativamente à nua propriedade transmitida precisamente, pelo mesmo mecanismo, para os comproprietários.

Por outro lado, a existência de uma posse de usufruto não colidia com a manutenção, na esfera dos comproprietários, da posse da nua compropriedade, evitando, que os usufrutuários passassem a agir em relação ao imóvel como titulares de um direito de propriedade ou de compropriedade, atenta a divisão de poderes consagrada entre a nua propriedade e o direito de usufruto, como ressalta dos arts. 1439º, 1446º, 1450º e 1479º do CC.

Todavia, a realidade com que nos defrontamos é bem diversa.

Logo de início e com persistência durante mais de 30 anos, os RR. assumiram-se efectivamente como donos e senhores da ½ indivisa que formalmente pertencia aos AA. (sendo a propriedade da outra ½ dos filhos dos RR.), contrariando, de um modo inequívoco e de forma totalmente pública, quer o usufruto dos pais do A. e da R., quer a titularidade da compropriedade dos AA., uns e outros manifestando uma passividade e uma inércia tal que permitiu que passo a passo se fosse reforçando a situação possessória (em termos de direito de propriedade) que se iniciou com a demolição das casas velhas e com a edificação de um novo edifício.

11. A figura da usucapião, atenta a sua elasticidade, apesar do rigor dos requisitos de que depende, constitui o mecanismo que a experiência revelou ser necessário para se estabelecer uma plena correspondência entre uma situação de posse duradoura, em termos correspondentes a um determinado direito real de gozo, e a titularidade desse mesmo direito real de gozo.

Podendo ser invocada mesmo em casos de má fé, desde que a posse duradoura, por um período 20 anos, seja pública e pacífica (art. 1297º), a usucapião é capaz de transformar o exercício de poderes de facto correspondentes a um determinado direito real de gozo num verdadeira situação jurídica com reconhecimento, por via originária, do respectivo direito real.

A facilitação da invocação deste modo de aquisição originária decorre ainda do estabelecimento de diversas presunções legais em matéria possessória com que o legislador pretendeu superar reais dificuldades de prova, mais uma vez, através de um salutar pragmatismo que levou a atribuir prevalência aos aspectos de ordem material sobre os de ordem formal.

Assim se compreende, por exemplo, a presunção legal acerca do elemento subjectivo da posse (animus) mediante a prova, não elidida pela parte contrária, dos factos reveladores do elemento objectivo (corpus), nos termos que constam do art. 1252º na interpretação que lhe foi dada pelo ACUJ de 14-5-96, no D. R., de 24-6-96.

12. Acima daquilo que emerge da escritura pública outorgada em 1975, através da qual os diversos interessados (pais, filhos e netos) acordaram e formalizaram a atribuição de direitos reais sobre o prédio, e para além do que emerge do registo predial, mais concretamente da inscrição registral de ½ do prédio a favor dos AA., a matéria de facto que se apurou na presente acção revela-nos o seguinte:

- Em 1975 o prédio em causa compunha-se então de umas casas em muito mau estado, inabitáveis e que se encontravam desocupadas;

- Em 1976, no âmbito de um projecto de ampliação que foi apresentado na Câmara Municipal, os RR. procederam à demolição das referidas casas e ergueram em seu lugar uma nova casa, de raiz, com rés-do-chão e 1° andar, no que despenderam na altura cerca de 700 contos (700.000$00);

- Em 1977 contrataram com os respectivos serviços o fornecimento de água e de electricidade para a casa e equiparam a casa com móveis e electrodomésticos, conservando, pintando e arranjando a casa, bem como os muros, desde aí até ao presente;

- Sendo os RR. emigrantes, quando vinham a Portugal nas férias e mais algumas vezes por ano e viviam na referida casa com os seus dois filhos, diariamente, ali comendo, dormindo, descansando, praticando os seus actos de higiene diária, recebendo amigos e familiares e a correspondência;

- Desde 1975-76, os RR. possuem as chaves da aludida casa, nela entrando, permanecendo e saindo sempre que querem e lhes apetece e sem darem contas disso a ninguém, nem aos AA., nem aos pais do A. e da R., FF e II;

- Os RR. nunca pagaram a quem quer que fosse qualquer retribuição pela ocupação da casa;

- O pai do A. e da R. que também era emigrante, quando regressou definitivamente a Portugal, continuou a viver noutra casa em ---;

- A partir de 1980/81 a R. passou a viver diariamente na dita casa com os filhos pelo menos três ou quatro meses por ano, além dos períodos em que vinha de férias e em 2004 a R. regressou definitivamente a Portugal e passou a viver na referida casa durante todo o ano;

- No ano de 2001, os RR. fizeram obras na casa que consistiram, nomeadamente, na colocação de aquecimento central, modificação das casas de banho, acesso do rés-do-chão ao 1° andar e colocação de um novo chão no rés-do-chão;

- Os referidos factos ocorreram à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém (facto aditado pela Relação);

- E desde pelo menos 1976 os RR. não permitem a quem quer que seja, designadamente, aos AA. ou a FF e mulher entrarem no prédio ou por qualquer forma o ocuparem ou utilizarem, sem a sua autorização.

13. Na presente acção está unicamente em causa a ½ indivisa que se encontra inscrita a favor dos AA., sendo os RR. usufrutuários da outra ½ indivisa  (cuja nua compropriedade era dos seus filhos).

A actuação dos RR., tendo por referência unicamente aquela ½ indivisa revela, com inequivocidade, uma actuação externa que longe, muito longe, dos poderes atribuídos formalmente ao usufrutuário, corresponde efectivamente ao género de poderes exercidos relativamente a prédios urbanos pelo proprietário pleno ou, ao menos, pelos comproprietários.

Com efeito só a assunção dessa posição absoluta permite compreender a amplitude dos actos que foram praticados pelos RR. logo de início, com a demolição e reconstrução do prédio à sua custa, prosseguindo durante os subsequentes 37 anos, sem a menor oposição de quem quer que fosse, designadamente dos AA., e de forma inteiramente pacífica e inquestionada.

Como já se disse, não cabem nos poderes formais dos usufrutuários os actos de demolição e de reconstrução de edifícios, actuação que, contudo, os RR. praticaram sem que fosse suscitada a menor oposição de quem quer que fosse, quer dos pais da R., que eram co-usufrutuários da ½ em causa nesta acção, quer dos AA. que eram os titulares da nua compropriedade dessa parcela.

Posto que ao usufrutuário caiba, em termos formais, a fruição do prédio e a sua administração, os RR. assumiram declaradamente, durante mais de 30 anos, uma posição que ultrapassou em muito o círculo de poderes do direito real menor de usufruto, avançando, sem limites impostos por qualquer outro interessado, para uma actuação persistente como verdadeiros e exclusivos titulares da referida ½ do prédio, extravasando os poderes formais que já detinham, juntamente com os seus filhos, em relação à outra ½.

14. A inversão do título de posse relativamente à ½ indivisa registada a favor dos AA. parece-nos manifesta e nem sequer é prejudicada, por um lado, pelo facto de os pais do A. e da R. serem, de jure, co-usufrutuários dessa ½ e de, por outro lado, os próprios RR. serem co-usufrutuários de jure da outra ½, cuja nua-compropriedade pertencia, também de jure, aos seus filhos.

Em relação aos pais do A. e da R., formalmente usufrutuários daquela ½ indivisa, a actuação dos RR. nunca poderia deixar de ser qualificada como de inversão do título de posse (art. 1265º) relativamente ao usufruto, pois só assim se compreende o grau de passividade que mantiveram até ao seu falecimento em relação ao uso e fruição de todo o prédio por parte dos RR., estando dependente da autorização destes (deste modo contrariando o estatuto do co-usufruto que formalmente existia) a entrada daqueles no prédio.

Já quanto aos AA., uma vez que se encontravam numa posição jurídica diversa da dos usufrutuários, a inversão do título de posse nem sequer é exigível para se considerar iniciado o período conducente à usucapião sobre a titularidade plena da ½ de que os AA. eram formalmente os comproprietários, relevando, para este efeito, a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício dos poderes inerentes ao direito da nua-compropriedade, nos termos do art. 1263º, al. a) (aquisição paulatina da posse).

Ainda assim, essa inversão também é visível e é demonstrada pelo facto de os RR. actuarem em relação a todo o prédio como se fossem proprietários plenos, praticando actos que ultrapassaram largamente os poderes de fruição e de administração que pertenciam ao usufrutuário, avançando pelo campo dos actos de transformação da coisa que apenas ao proprietário ou aos comproprietários em conjunto seria conferida.

Ao agirem dessa forma totalmente pública e ante a prolongadíssima inércia dos AA. que em tudo consentiram, desde a demolição, à reedificação, com apresentação de um projecto em seu exclusivo nome na Câmara Municipal, os RR. manifestaram inequivocamente a sua oposição aos AA., nos termos do art. 1265º do CC, com o que, à vista destes interessados e sem a mais leve oposição, esvaziaram praticamente de conteúdo o seu formal direito de compropriedade.

15. Mas ainda que não se tivesse verificado relativamente aos AA. tal inversão do título de posse, nem assim faltaria apoio para a posição que os RR. pretenderam justificar, sendo a posse relativamente à compropriedade dos AA. adquirida através de uma prática reiterada, pública e duradoura, nos termos do art. 1263º, al. b), do CC.

Posse que tendo como ponto de partida inicial o acto de demolição de 1976, foi reforçada com a reedificação da nova moradia, logo transformada na habitação exclusiva dos RR., primeiro como casa de férias, depois como residência alternada e por fim como residência permanente, sempre com exclusão de outros indivíduos, com especial destaque para os AA., assim como para os falecidos pais do A. e da R.

Enfim, foi como titulares efectivos da ½ indivisa registada a favor dos AA. e sobre que existia usufruto a favor do pai do A. e da R. e compropriedade a favor dos AA., e não como meros usufrutuários da outra ½ indivisa que os RR. agiram quando, confrontados com um terreno com umas casas velhas, procederam à sua demolição, sem que alguém se lhes opusesse.

Foi naquela qualidade, e não na de meros administradores usufrutuários, que os RR. apresentaram o projecto de reconstrução, de que resultou a edificação da moradia onde passaram a viver sempre que se deslocavam a Portugal e, depois, quando houve uma transferência definitiva.

Conclusão reforçada com a realização pelos RR. de novas obras de vulto em 2001, tudo com a aludida e generalizada passividade dos AA. e dos pais do A. e da R.

Semelhante passividade dos AA., reveladora do abandono efectivo dos poderes que formalmente lhe eram atribuídos pelo título de aquisição da compropriedade da ½ indivisa, se constata quando se verifica que consentiram, sem revelarem a menor oposição, que os RR. se assumissem como efectivos proprietários da moradia, na qual terceiros apenas poderiam entrar com a sua autorização, numa clara demonstração do pleno domínio que excluía qualquer interferência de outros interessados.

16. Nenhuma dessas actuações se confunde com o exercício de poderes inerentes ao mero usufruto, pois que, como se disse, não cabe nos poderes formais do usufrutuário, nem muito menos do mero co-usufrutuário, demolir o prédio, reedificá-lo e passar a encará-lo como coisa exclusiva e plena.

Nem se diga que isso se deveu a algum acto de tolerância, quer dos falecidos co-usufrutuários, quer dos AA., uma vez que, sem embargo da interferência que nestes processos têm as relações familiares, não há razão alguma que justifique uma tal inércia durante 37 anos e que, aliás, apenas terminou quando os RR. promoveram a regularização registral do prédio na parte referente à ½ indivisa em nome dos AA.

Repare-se que é da natureza da posse potenciadora da usucapião o desprezo mais ou menos manifesto pelos direitos que formalmente são sustentados em documentos ou no registo predial mas que são persistentemente negados no terreno da execução prática.

O facto de inicialmente os RR. não passarem de usufrutuários da outra ½ e ainda que se aceite que toda a actuação que tiveram e que mantiveram ocorreu à revelia dos demais interessados, com o conhecimento claro e inequívoco de que estavam afrontar os direitos de terceiros (dos AA. e dos pais do A. e da R.) e a extravasar largamente os poderes que lhes eram atribuídos pelo referido estatuto de co-usufrutuários, nem assim o instituto da usucapião deixa de prevalecer sobre aqueles aspectos formais.

Para tais situações em que a posse tenha sido iniciada e mantida com má fé, a lei limita-se a estabelecer um alongamento do prazo para a aquisição por usucapião, passando de 15 anos para 20 anos por esse exclusivo motivo.

17. Quer em relação à inversão do título de posse, quer à aquisição paulatina da posse, a inequivocidade dos elementos objectivos que integram o animus sugere ou faz presumir o elemento subjectivo.

Embora a Relação, no acórdão que incidiu sobre a impugnação da decisão da matéria de facto tivesse revelado que os elementos probatórios reapreciados conduziam à afirmação expressa do elemento subjectivo, isto é, da intenção manifestada pelos RR. de agirem como titulares plenos da ½ registada a favor dos AA., a verdade é que não deixou consignado em termos formais o resultado dessa convicção.

Se a Relação não tinha dúvidas quanto ao facto de que os RR. agiram em toda a sua actuação como se proprietários fossem de todo o prédio em causa, melhor faria se procedesse em simultâneo à integração desse facto no leque de factos provados, como corolário de tal premissa, em lugar de se limitar a afirmar que o elemento subjectivo da posse (animus) era revelado, através de presunção legal, pelos demais factos apurados que integram o elemento objectivo ou o corpus.

Assim é seguramente, como foi decorre do art. 1252º do CC, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do STJ, de 14-5-96, mas tal consideração revela-se mais ajustada em sede de qualificação jurídica dos factos considerados provados em que, a afirmação do elemento subjectivo da posse pudesse fundar-se não apenas na presunção legal não elidida, como ainda na prova efectiva do facto subjectivo. Ou seja, com o aditamento daquele facto, a Relação acrescentaria à motivação do acórdão um outro fundamento que lhe permitiria sustentar a existência do elemento subjectivo da posse não apenas numa presunção legal (art. 1252º do CC) decorrente dos actos através dos quais foram exteriorizados os poderes sobre o prédio, como ainda em factos que revelavam, por si só, esse elemento subjectivo, saindo reforçada a fundamentação do aresto.

Verifica-se, assim, a nulidade por omissão de pronúncia que foi arguida subsidiariamente pelos RR. na ampliação do objecto da revista.

Apesar disso, não se extrairão relativamente à nulidade do acórdão da Relação, por omissão de pronúncia, os efeitos projectados pelos arts. 684º, nº 2, e 615º, nº 1, al. d), 1ª parte, do CPC, que ficarão prejudicados, uma vez que, como se referiu anteriormente, a restante matéria que as instâncias consideraram provada revela-se bastante para sustentar a posição que os RR. viram reconhecida no acórdão da Relação, não havendo qualquer interesse prático na declaração daquela nulidade do acórdão e na posterior remessa dos autos à Relação.

Aquele elemento subjectivo da posse extrai-se, por via de presunção legal, da referida factualidade em que se traduziu a inversão do título de posse, assim como a aquisição paulatina da posse sobre a referida ½ indivisa, atento o disposto no art. 1252º, na interpretação que foi feita pelo ACUJ deste Supremo de 14-5-96, no D.R., II Série, de 24-6-96.

Na verdade, essa presunção legal de posse que emerge dos factos provados relativamente ao elemento objectivo não se mostra elidida por qualquer facto que tenha sido alegado pelos AA.

18. Por conseguinte, ficando prejudicada a declaração da nulidade do acórdão arguida pelos RR. em sede de ampliação do objecto da revista, mais não resta do que confirmar o resultado que foi declarado pela Relação, isto é, a improcedência da acção de impugnação da justificação notarial.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando, ainda que com uma fundamentação não totalmente coincidente, o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo dos recorrentes.

Notifique,

Lisboa, 25-6-15

Abrantes Geraldes (relator por vencimento)  

Tomé Gomes                    

Tavares de Paiva (com voto de vencido conforme declaração junta)

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Voto vencido com os seguintes fundamentos:

Estamos perante uma acção de simples apreciação negativa, que visa, como é sabido, fundamentalmente impugnar a própria escritura e os factos nela declarados ou inseridos .

 Daqui resulta, a aplicação do disposto no art. 343 nº1 do C. Civil, que prescreve um regime especial de ónus de prova, fazendo recair sobre os RR o ónus de provar os factos constitutivos do direito afirmado (declarado) na escritura.

 No caso em apreço, os RR na aludida escritura declararam antes ter comprado aos autores metade indivisa da nua propriedade do prédio, prova que não lograram fazer nesta sede, sendo certo também, que da escritura também não resulta por eles declarado qualquer situação que configure uma inversão de título de posse, nos termos do art. 1265 do C. Civil.

 Note-se que a “ a inversão de título de posse é uma forma de aquisição originária e instantânea de posse, no sentido de que se adquire uno actu, ou seja, no preciso momento em que se verifica o processo de inversão”( cfr. neste sentido Orlando de Carvalho in  Direito das Coisas edição  Coimbra Editora pag. 299).

Significa que no caso dos autos e mais propriamente na escritura de justificação, nunca os RR alegaram uma situação de inversão de título de posse (ou seja um acto inequívoco de oposição), mas uma situação fáctica bem diferente, como foi o caso de terem alegado que compraram aos autores a sua metade do prédio, o que é bem diferente de uma situação de inversão de título de posse.

Era pois, necessário que na escritura constasse/ou fosse referenciado um acto de oposição inequívoco no sentido que o detentor quer, doravante possuir para si e para que este significado se imponha, deve adoptar condutas e comportamentos (actos) positivos, materiais ou jurídicos, na presença ou com conhecimento daqueles a quem se opõe, reveladores do processo psicológico de inversão do animus .

Como diz, Oliveira Ascensão, in Direito Civil – Reais 4ª ed. pág. 99 “ a oposição tem de ser categórica, de modo a sobrepor-se à aparência que era apresentada pelo título”.

Efectivamente, na escritura nada consta nesse sentido, no que, aqui, interessa para esse efeito, relativamente à demolição das “casas existentes no prédio construíram outra e passaram a só permitir a entrada dos autores na casa edificada com a sua autorização.”

Acresce que em termos da posse dos RR, os factos teriam também de resultar inequívocos e concludentes no sentido de provar que os RR sempre agiram na convicção de serem donos da totalidade do prédio, prova que, a nosso ver, não se mostra feita e também não resulta da factualidade provada nomeadamente quando confrontada com a própria escritura ( art. 371 nº1 do C. Civil)  em que os RR figuram expressamente como usufrutuários de metade do prédio.

E compreende-se que assim fosse, pois, os RR sendo meros usufrutuários, a posse que exerciam sobre o prédio estava em consonância e em conformidade com essa qualidade e não com uma posse correspondente ao direito de propriedade, pois, não se provou que agissem como donos da metade que era dos AA (cfr. factualidade não provada, matéria que a Relação não alterou).

E sendo assim à partida, os RR não obstante terem desenvolvido actos susceptíveis de preencher o corpus, o certo é que em termos de direito real de propriedade, lhes faltava o animus e, isto porque, sabiam bem por terem participado na escritura de 25.09.1975, que não eram donos da metade que era dos AA (art. 343 nº1 do C. Civil).

E não provando a posse correspondente ao direito de propriedade da metade dos AA, não há que observar no caso a presunção, a que alude o nº 2 do art. 1252 do C. Civil.

 Acresce também que sendo os RR, usufrutuários e não comproprietários, segundo os elementos constantes nos autos, nomeadamente a escritura de 25.09.1975, não tem aqui aplicação o disposto no art. 1406 nº 2 do C. Civil. 

Por último importa também registar que não estamos, aqui, perante uma acção de reivindicação constitutiva, em que se pretenda o reconhecimento da propriedade, tanto mais que os RR não deduziram qualquer pedido reconvencional nesse sentido.

Portanto, não tendo os RR provado o que haviam declarado na aludida escritura de justificação, prova que lhes competia (art. 343 nº1 do C Civil) a acção deveria proceder e consequentemente considerar-se impugnada a escritura com todas as consequências.

Nestes termos manteria a decisão da 1ª instância.

Tavares de Paiva