Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3336
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: COMERCIANTE
GERENTE
DÍVIDA COMERCIAL
DÍVIDA DE CÔNJUGES
Nº do Documento: SJ200710110033362
Data do Acordão: 10/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - O conceito de comerciante em nome individual estrutura-se na base de duas noções fundamentais: capacidade e profissionalidade do exercício do comércio; por sua vez, esta última subdivide-se em outras duas: profissão e comércio.
II - Porque o exercício do comércio deve ser profissional, ou seja, é comerciante todo aquele que consagra total ou parcialmente a sua actividade à exploração da indústria mercantil, em vista de obter lucros, segue-se que não são comerciantes os gerentes, auxiliares de comércio e caixeiros, enquanto tais, embora possam adquirir essa qualidade quando, em desrespeito ao preceituado no art. 253º exerçam o comércio em nome próprio e por sua conta.
III - De acordo com o disposto na última parte da alínea d) do nº1 do artigo 1691º do Código Civil, conjugado com o nº1 do artigo 344º do mesmo o diploma, presumindo-se que a dívida foi contraída em proveito comum do casal, competia ao conjugue alegar e provar que a dívida não foi contraída com essa finalidade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 05.03.31, na 1ª Vara de Competência Mista de Coimbra, AA intentou contra BB e mulher CC a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário
pedindo
a condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia de € 20 085,90 euros e juros vincendos
alegando
em resumo, que emprestou aos réus essa quantia para estes utilizarem na sua actividade de compra e venda de antiguidades e obras de arte.
Contestando
e também em resumo,
a ré alegou que
- o direito autor se encontrava prescrito;
- a dívida não foi contraída por si;
- foi contraída apenas pelo Réu marido, quando a ré já estava separada de facto dele, não tendo a mesma sido contraída em proveito comum do casal.

Proferido despacho saneador – onde, além do mais, foi julgada improcedente a excepção da prescrição - fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.

Em 06.07.31 foi proferida sentença que julgou a acção procedente

A ré apelou sem êxito, tendo a Relação de Coimbra, por acórdão de 07.03.20, confirmado a decisão recorrida.

Novamente inconformada, a ré deduziu a apresente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

O recorrido não contra alegou.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
A) – alteração da resposta ao quesito 4º;
B) – qualidade de comerciante do réu;
C) – qualificação da dívida como comercial;
D) – identificação do devedor da dívida comercial;
E) – contracção da dívida em proveito comum do casal.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados na 1ª instância:
- O Autor juntou com a petição um cheque, com o n.º ..., datado de 2001-12-25 sacado sobre o banco Empresa-A, de 585.750$00, o qual posto a pagamento a 26-12-2001, foi devolvido pela Câmara de compensação em 31-12-2001, cheque este pertencente ao Réu BB, por este sacado, figurando no verso, no lugar destinado ao endosso o nome de CC – alínea a ).
- O Autor juntou com a petição um cheque com o n.º ..., datado de 2001-12-27 sacado sobre Empresa-B, S.A., de 4.988,00 Euros, o qual posto a pagamento a 26-02-2002, foi devolvido pela Câmara de compensação em 04-03-2002, cheque este pertencente ao Réu BB, por este sacado, figurando no verso, no lugar destinado ao endosso o nome de CC – alínea b ).
- O Autor juntou com a petição um cheque com o n.º ..., datado de 2002-02-27 sacado sobre a Empresa-B, S.A., de 4.988,00 Euros, o qual posto a pagamento a 26-02-2002, foi devolvido pela Câmara de compensação em 04-03-2002, cheque este pertencente ao Réu BB, por este sacado, figurando no verso, no lugar destinado ao endosso o nome de CC – al. c ).
- O Autor juntou com a petição um cheque com o n.º ..., datado de 2002-01-27 sacado sobre Empresa-B, S.A., de 4.988,00 Euros, o qual posto a pagamento a 28-01-2002, foi devolvido pela Câmara de compensação em 30-01-2002, cheque este pertencente ao Réu BB, por este sacado, figurando no verso, no lugar destinado ao endosso o nome de CC – al. d ).
- As quantias referidas nos cheques foram emprestadas pelo Autor aos Réus para estes comerciarem na sua actividade de compra e venda de obras de arte e antiguidades – quesito 1.
- Na altura o réu marido assinou a declaração junta com a petição inicial e que consta de folhas 4 dos autos – quesito 2.
- A Ré era sócia juntamente com o marido de um estabelecimento comercial pertencente à sociedade «Empresa-C, Ld.ª », que se dedicava à compra e venda de obras de arte e antiguidades, mas era só o marido que a geria e decidia os negócios, sendo a Ré apenas uma auxiliar – quesito 4.
- Os pais da Ré lhe entregavam por mês, primeiramente 120 000$00 e mais tarde 80 000$00 que utilizava na satisfação as suas necessidades - quesito 9.
- A Ré, pelo menos por uma vez, acompanhou o marido a casa do Autor sabendo que este ia solicitar ao Autor a concessão de um empréstimo para a sua actividade comercial – quesito 10.
- Em 13/7/00 a Ré deslocou-se a casa do Autor, na companhia de seu marido e de seu cunhado, DD, solicitando esta, um empréstimo de 1.798.000$00, ficando a ré e seu marido como fiadores daquela quantia, que deveria ser paga até 13-10-2000 – quesito 11.
- Para esta fiança assinaram os Réus e o DD, na presença do Autor uma declaração de dívida, tendo a Ré assinado essa declaração – quesito 12.
- O Réu utilizava dinheiro proveniente da sua actividade comercial na satisfação de necessidades do lar de ambos onde se incluía um filho da Ré - quesito 17.
- A Ré sempre viveu em comunhão de mesa e habitação com o Réu até à data em que o Réu marido ficou doente e foi hospitalizado – quesito 18.

Os factos, o direito e o recurso

A) – Alteração da resposta ao quesito 4º

No ponto 4º da base instrutória perguntava-se se “a ré não exerce, nem nunca exerceu, a actividade de compra e venda de obras de arte e antiguidade”.
A resposta na 1ª instância foi a acima transcrita, que aqui recordamos:
provado que a ré era sócia juntamente como o marido de um estabelecimento comercial pertencente à sociedade “Empresa-C, Lda.”, que se dedicava à compra e venda de obras de arte e antiguidades, mas era só o marido que a geria e decidia os negócios, sendo a ré apenas uma auxiliar”.
No acórdão recorrido entendeu-se restringir essa resposta apenas ao facto de que “era só o ré marido que geria e decidia os negócios, sendo a ré apenas uma auxiliar”.
Esse entendimento baseou-se em que não existiria nos autos documento que provasse aquela qualidade de sócia da ré e em que a resposta era excessiva, exorbitando a matéria do quesito.
A ré recorrente entende que está junta aos autos certidão comprovativa daquele qualidade da ré e que a resposta ao quesito dada na 1ª instância deve ser mantida.
Cremos que tem razão.

Na verdade, a folhas 52 dos presentes autos, encontra-se junta uma certidão emanada da Conservatória do Registo Comercial de Coimbra da qual consta que a ré é efectivamente sócia da sociedade “”Empresa-C, Lda.”.
Tem, portando, tal facto que ser considerado como provado, sendo certo que sempre teria que ser tomado em conta face ao disposto no nº3 do artigo 659º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, a resposta não se pode considerar excessiva, pois apenas é explicativa, movendo-se dentro do âmbito da matéria do quesito.
Limita-se a concretizar a actividade da sociedade que, aliás, consta da certidão da Conservatória, cujo conteúdo não foi impugnado.
Concluímos, pois, ser de manter a resposta ao quesito 4º dada pela 1ª instância.

B) – Qualidade de comerciante do réu

Nos termos do artigo 15º do Código Comercial “as dívidas comerciais do conjugue comerciante presumem-se contraídas no exercício do comércio”.
E nos termos da alínea d) do nº1 do artigo 1691º do Código Civil são da responsabilidade de ambos os conjugues “as dividas contraídas por qualquer dos conjugues no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal”.

No acórdão recorrido entendeu-se considerar que a actividade de compra e venda de obras de arte e antiguidades, que só o réu BB geria e decidia, permitia qualifica-lo como comerciante, numa interpretação restritiva do entendimento geral tirado do disposto no nº1 do artigo 13º daquele Código que, mesmo sem uma continuidade perfeita, é comerciante quem pratica actos de mediação entre a oferta e a procura, habitual, estável, regular e sistematicamente, como modo de vida e com o objectivo de alcançar o lucro
A ré recorrente entende que em face da citada actividade do réu não se pode concluir que o mesmo fosse comerciante, na medida em que actuou como gerente da sociedade acima referida e as quantias emprestadas foram utilizadas pelo mesmo nessa qualidade, sendo que um gerente de um sociedade por quotas não pode ser considerado um comerciante.
Cremos que não tem razão.

O comerciante é a pessoa que pratica actos jurídicos patrimoniais em termos profissionais, isto é, que dirige a sua actividade económica nesse sentido – cfr. artigo 13º do Código Comercial.
O conceito de comerciante em nome individual estrutura-se na base de duas noções fundamentais: capacidade e profissionalidade do exercício do comércio; por sua vez, esta última subdivide-se em outras duas: profissão e comércio.
Não estando aqui em causa a capacidade, passemos à profissionalidade.

Convém notar que o verdadeiro sentido do termo profissão não coincide com o da linguagem vulgar, porquanto numa acepção rigorosa, por profissão entende-se apenas o exercício estável ou habitual de uma actividade como meio de vida.
A exigência de estabilidade ou habitualidade exclui, pois, que seja comerciante quem pratique isolada ou acidentalmente actos mercantis.
É necessário o desempenho normal e regular de uma ou mais actividades.
Mas, estabilidade e habitualidade não significam, porém, continuidade perfeita.
Esta pode faltar, como sucede com as actividades que, por sua própria natureza, só podem ser exercidas em épocas determinadas ou de tempos a tempos.
A estabilidade e habitualidade, aqui, referem-se apenas aos períodos em que essas actividades possam ser exercidas.
Tão pouco habitualidade e estabilidade implicam exclusividade ou sequer importância prevalente,
Além disto, para constituir profissão o exercício estável e habitual de uma actividade tem de ser realizada como meio de vida.

Acresce, ainda, que o fim lucrativo deve estar directamente ligado aos actos que qualificam ou identificam a profissão em causa e não a quaisquer outros de que sejam acessório.
E, não se afere o fim lucrativo em relação a cada acto de “per si”, mas à actividade no seu conjunto, porquanto não raramente o comerciante decide pratica certos actos com prejuízo, para, mais tarde, obter, pelo desenvolvimento da sua actividade, maiores proveitos.
Fernando Olavo “in” Direito Comercial, I, 2ª edição, págs. 401 e 405).

Porque o exercício do comércio deve ser profissional, ou seja, é comerciante todo aquele que consagra total ou parcialmente a sua actividade à exploração da indústria mercantil, em vista de obter lucros, segue-se que não são comerciantes os gerentes, auxiliares de comércio e caixeiros, enquanto tais, embora possam adquirir essa qualidade quando, em desrespeito ao preceituado no art. 253º exerçam o comércio em nome próprio e por sua conta.
Nesta medida tendo razão a recorrente quando afirma que o exercício do cargo de gerente de uma sociedade por quotas não qualifica o gerente como um comerciante.
Mas será que o réu, independentemente desse cargo, pode ser considerado um comerciante?
Cremos que sim.

Está provado que
- as quantias referidas nos cheques foram emprestadas pelo autor ao réu para este as utilizar na sua actividade de compra e venda de obras de arte e antiguidades – resposta ao quesito 1º;
- o réu assinou uma declaração em que se dizia o seguinte:
declaro que todos os empréstimos por mim solicitados ao Dr. AA se destinavam à compra de obras de Arte e Antiguidades se destinam à minha actividade comercial” – resposta ao quesito 2º;
- o réu era sócio e gerente da sociedade “Empresa-C, Lda.”, que se dedicava á compra e venda de obras de arte e antiguidades – cfr. resposta ao quesito 4º;

Face a estes factos e tendo os conceitos acima, não podemos deixar de concluir que os empréstimos foram feitos ao réu, não na sua qualidade de gerente, mas sim na sua qualidade de comerciante de obras de arte e antiguidades.
Não há qualquer facto – até porque nem sequer foi alegado pela ré na sua contestação – que indique que o réu tenha agido como gerente da sociedade.

Está provado que o réu exercia a actividade de compra e venda de obras de arte e antiguidades
Tal não era incompatível, em princípio, com a sua actividade de gerente da sociedade.
Pelo menos, não existem factos que indiquem essa incompatibilidade.
A actividade de compra é venda é, por si própria e notoriamente, uma actividade lucrativa.
Por outro lado, se o réu exercia uma actividade, os actos em causa no caso concreto em apreço não podiam ser considerados actos isolados.
O exercício de uma actividade não é o exercido de um acto isolado.
E se as quantias emprestadas eram para o réu as utilizar nessa actividade, é de concluir pela estabilidade ou habitualidade da mesma.
Concluímos, pois, que o réu tinha a profissão de negociante de obras de arte e antiguidades.
Ou seja, era um comerciante.

C) – Qualificação da dívida como comercial

No acórdão recorrido entendeu-se que a dívida proveniente do empréstimo tinha natureza mercantil porque resultava dos factos dados como provados que foi contraída pelo réu marido sendo ele comerciante e que as correspondentes importâncias lhe foram cedidas pelo autor para o mesmo as utilizar na sua actividade de compra e venda de obras de arte e antiguidades.
A ré recorrente entende que a dívida não é substancialmente comercial, porque não foi contraída no exercício do comércio do réu, mas no exercício das suas funções de gerência, na prossecução do objecto da sociedade comercial por si gerida.
Não tem razão.

A dívida era comercial por natureza, quer subjectiva, quer objectiva.
O réu actuou na qualidade de comerciante de obras de arte e antiguidades, como acima ficou referido.
E a dívida foi contraída pelo réu para o exercício dessa actividade.
Logo, no exercício da sua profissão.
Logo, no exercício do comércio.
A dívida era, portanto, comercial.

D) – Identificação do devedor da dívida comercial

A recorrente entende que ainda que se entendesse que a dívida era substancialmente comercial – como se entendeu – a responsável por ela seria sempre a sociedade “Sociedade Empresa-C, Lda.”, porque o comerciante seria ela e só ela.
Já vimos que não é assim.
Comerciante foi o réu, conforme o acima decidido.
Não actuou como gerente da sociedade, caso em que esta seria a responsável.
A dívida é, pois, da responsabilidade do réu e não da sociedade.


E) – Contracção da dívida em proveito comum do casal

No acórdão recorrido entendeu-se que não se provou que a dívida não tenha sido contraída em proveito comum do casal.
A ré recorrente entende que não se provou que a dívida tenha sido contraída em proveito comum do casal.
Nem tinha que se provar tal facto.
Na verdade e de acordo com o disposto na última parte da alínea d) do nº1 do artigo 1691º do Código Civil, conjugado com o nº1 do artigo 344º do mesmo o diploma, presumindo-se que a divida foi contraída em proveito comum do casal, era à ré que competia alegar e provar que a dívida não tinha sido contraída com essa finalidade.
Ora a ré não elidiu essa presunção.
Não provou factos que alegou a esse respeito.
Não ficou demonstrado que a ré se encontrasse separada de facto do réu, com rendimentos e necessidades separadas, vivendo cada um na sua própria residência, que o réu gastava tudo o que auferia na sua actividade no seu próprio e exclusivo proveito, nada revertendo a favor do património comum do casal e que a ré vivia com o que os seus pais lhe davam – respostas negativas e restritiva os pontos 5 a 9 da base instrutória.
Sendo assim, a dívida em causa presume-se contraída em proveito comum do casal

Concluímos, pois, que por força da conjugação do disposto nos transcritos artigo 15º do Código Comercial e alínea d) do nº1 do artigo 1691º do Código Civil, a ré recorrente é responsável, juntamente com o réu seu marido, pela dívida deste para com o autor dada como demonstrada na presente acção.
Pelo que não merece censura o acórdão recorrido.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 11 de Outubro de 2007

Oliveira Vasconcelos
Duarte Soares
Santos Bernardino