Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
671/10.0TPLSB-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: CENTRO DE INSTALAÇÃO TEMPORÁRIA
COMPETÊNCIA
ESTRANGEIRO
HABEAS CORPUS
RECUSA DE ENTRADA EM TERRITÓRIO NACIONAL
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 12/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDA A PETIÇÃO
Sumário :


I - Enquanto que é a secção criminal do STJ o órgão competente para decidir o habeas corpus em virtude de prisão ilegal (cf. arts. 222.º e 223.º do CPP), já é o juiz de instrução da área em que se encontrar o detido o órgão competente para decidir o habeas corpus em virtude de detenção ilegal (cf. arts. 220.º e 221.º do CPP).
II - O recurso à providência de habeas corpus com a finalidade de reagir à decisão de recusa de entrada de cidadãos estrangeiros em território nacional, por via da discussão dos respectivos fundamentos, é um meio processual absolutamente impróprio e, por outro lado, nem a natureza da providência nem os respectivos fundamentos comportam essa finalidade.
III - A recusa de entrada de cidadãos estrangeiros em território nacional é da competência do director-geral do SEF, com faculdade de delegação. Essa decisão é susceptível de impugnação judicial, com efeito meramente devolutivo, perante os tribunais administrativos (cf. arts. 37.º e 39.º da Lei 23/2007, de 04-07). Por isso, é este o meio processual adequado à impugnação da decisão de recusa de entrada em território nacional.
IV - A medida de instalação em centro de instalação temporária, a que o requerente se encontra sujeito, tendo, embora, uma natureza substancialmente detentiva, obedece a todos os requisitos legais de que depende a sua aplicação e execução: a medida mantém-se no local legalmente permitido e previsto para o efeito (centro de instalação temporária de passageiros chegados por via aérea), foi determinada pela entidade competente, por estar ultrapassado o prazo de 48 h após a decisão de recusa de entrada (o juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal) e é motivada por facto pelo qual a lei a permite (a decisão de recusa de entrada em território nacional). Por isso, não se verifica fundamento para questionar a legalidade da medida a que o requerente se encontra sujeito.
V - Acresce que o requerente nem sequer fundamenta a sua petição na decisão do juiz do juízo de pequena instância criminal quando é ela que, afinal, determina a sua manutenção no centro de instalação temporária a aguardar reembarque. O que o requerente pretende é servir-se da petição de habeas corpus como meio de reacção processual à decisão administrativa de recusa de entrada em território nacional, visando, através da providência, alcançar a discussão da legalidade dos fundamentos daquela decisão. O que implica a manifesta falta de fundamento da petição de habeas corpus dirigida ao STJ.



Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça

I


1. AA, cidadão egípcio, no mais devidamente identificado nos autos, apresentou, através de advogado, no processo n.º 671/10.0TPLSB, do 2.º juízo, 3.ª secção, do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, em 29/11/2010, petição de habeas corpus, em virtude de se encontrar retido, pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), no aeroporto de Lisboa.

Invocando intentar a providência de habeas corpus ao abrigo do disposto nos artigos 222.º do Código de Processo Penal e 31.º da Constituição da República e com base na Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho (artigos 87.º e seguintes), o requerente alegou, em síntese:

– em 25/11/2010, quando regressava do cidade do Cairo, Egipto, o SEF entendeu recusar a sua entrada em território nacional, nos termos dos artigos 10.º e 32.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, devolvendo à companhia aérea a responsabilidade do seu transporte de retorno para o Egipto, cidade do Cairo;

– no entanto, reside legalmente e trabalha, desde 2000-2001, em território nacional, sempre tendo beneficiado de vistos de trabalho, autorizações de permanência e de residência, e sempre tendo pago as suas contribuições às finanças, à segurança social e demais instituições;

– a sua autorização de residência encontra-se, no momento, em sede de renovação temporária, nos termos do artigo 78.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, encontrando-se o respectivo processo, que não enferma de qualquer ilegalidade, apenas suspenso;

– tem mulher e dois filhos no Egipto a quem precisou de visitar por razões de urgência familiar,

– vindo o SEF a aproveitar a sua ausência por um breve período para lhe coarctar o seu direito de continuar a permanecer e a trabalhar legalmente em território nacional.

Conclui que a sua libertação é imperativa e urgente, nos termos do artigo 217.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por actualmente se encontrar retido no centro de instalação temporária do SEF do aeroporto de Lisboa, sob detenção ilegal ou retenção ilegal.

Juntou vários documentos: declaração de inscrição na segurança social como trabalhador independente, declarações de rendimentos – IRS – relativas aos anos de 2007 e de 2008, pedido de autorização para viajar e informação de ausência de Portugal, formulado na qualidade de titular do processo de pedido de autorização de residência em Portugal, entrado no SEF em 24/08/2010.

2. O Exm.º Juiz dos Juízos de Pequena Instância Criminal de Lisboa prestou, na mesma data, informação nos termos do n.º 1 do artigo 223.º do Código de Processo Penal.

Da mesma constando, designadamente:

– que o requerente viu a sua entrada em território português recusada por falta de documento de viagem válido, pelo que, pretendendo opor-se à recusa de entrada, tem ao seu alcance o disposto no artigo 39.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho;

– dos autos não resulta que o requerente tenha sido retido ilegalmente;

– e, quanto à situação do requerente em Portugal, só o SEF a poderá esclarecer, sendo certo que informou que o requerente está ilegal em Portugal.

3. A providência mostra-se instruída com certidão de várias peças do processo.

4. Convocada a secção criminal, notificados o Ministério Público e o advogado do requerente, realizou-se a audiência (artigos 223.º, n.os 2 e 3, e 435.º do Código de Processo Penal).


II

A secção reuniu para deliberar, do que se passa a dar conta.

1. A certidão com que a presente providência se mostra instruída demonstra o que passamos a referir.

1.1. Segundo relatório de ocorrência do SEF, de 25/11/2010:

– o requerente AA, chegado ao aeroporto de Lisboa, no voo MS755, proveniente do Cairo, foi sujeito a controlo documental, no posto de fronteira do aeroporto de Lisboa;

– não sendo portador do necessário e adequado visto, ou documento que o substitua, relativamente ao fim pretendido de entrada e estada em território nacional;

– o requerente foi ouvido em declarações, pelo SEF;

– em resultado de diligência efectuada, confirmou o SEF que corre no departamento próprio inquérito contra o requerente por obtenção de autorização de residência com documentos fraudulentos;

– foi, por isso, nos termos do artigo 10.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 32.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, proposta a recusa de entrada do requerente em território nacional;

– proposta de que o requerente foi informado/notificado,;

– vindo a ser proferida decisão no sentido daquela proposta;

– e o requerente devidamente notificado dessa decisão, bem como a companhia aérea.

1.2. Em 28/11/2010, o SEF dirigiu-se ao Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, dando conta da recusa de entrada em território nacional do requerente e de não se ter concretizado o seu regresso ao Cairo na data e voo previstos (dia 27/11/2010, voo MS756), segundo indicação da companhia aérea, por o requerente se ter recusado a embarcar, e solicitando, em vista do não embarque do requerente antes de expirado o prazo de 48 horas, nos temos do n.º 4 do artigo 38.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, que fosse proferida decisão sobre a manutenção do requerente nas instalações existentes no aeroporto de Lisboa.

1.3. Veio, então, em 29/11/2010, a ser proferido despacho judicial que, “considerando que o Decreto-Lei n.º 85/2000, de 12 de Maio, veio, no seu artigo único, equiparar os espaços criados nos aeroportos portugueses a centros de instalação temporária de passageiros chegados por via aérea, até à implementação do regime jurídico previsto na Lei n.º 34/94, de 14 de Setembro,” autorizou o requerente a permanecer nas instalações do aeroporto de Lisboa, incumbimdo à transportadora a prestação de todo o apoio e a satisfação das necessidades básicas do requerente.

2. A Constituição da República, no artigo 31.º, n.º 1, consagra, com carácter de direito fundamental, a providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

«Trata-se de um direito subjectivo (direito-garantia) reconhecido para a tutela de um outro direito fundamental, dos mais importantes, o direito à liberdade pessoal.» (1) .

Em caso de prisão ilegal, a petição de habeas corpus tem os seus fundamentos expressa e taxativamente enunciados nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal. A ilegalidade da prisão deve provir de:

«a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

«b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

«c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»

Em caso de detenção ilegal, também a petição de habeas corpus tem os seus fundamentos expressa e taxativamente previstos nas alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 220.º do Código de Processo Penal. A ilegalidade da detenção deve provir de:

«a) Estar excedido o prazo para entrega ao poder judicial;

«b) Manter-se a detenção fora dos locais legalmente permitidos;

«c) Ter sido a detenção efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

«d) Ser a detenção motivada por facto pelo qual a lei a não permite.»

Sendo a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça o órgão competente para decidir o habeas corpus em virtude de prisão ilegal (artigos 222.º e 223.º do Código de Processo Penal), é o juiz de instrução da área em que se encontrar o detido o órgão competente para decidir o habeas corpus em virtude de detenção ilegal.

3. Feita esta clarificação sobre os pressupostos da providência de habeas corpus, torna-se manifesto, em face da situação em que o requerente se encontra – a aguardar o retorno, no aeroporto de Lisboa, em virtude de decisão de recusa de entrada em território nacional – a falta de fundamento da presente providência, na medida em que o requerente não se encontra preso nem detido ilegalmente.

3.1. Dos elementos com que a providência se mostra instruída resulta que ao requerente foi recusada a entrada em território nacional, facto que o requerente não contesta. O que, afinal, questiona é a legalidade dessa decisão.

A recusa de entrada de cidadãos estrangeiros em território nacional é da competência do director-geral do SEF, com faculdade de delegação (artigo 37.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, que aprovou o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional).

Sendo essa decisão susceptível de impugnação judicial, com efeito meramente devolutivo, perante os tribunais administrativos (artigo 39.º da Lei n.º 23/2007).

Ora, a decisão de recusa de entrada foi notificada ao requerente, nos termos do n.º 2 do artigo 38.º da Lei n.º 23/2007, segundo o qual a decisão de recusa de entrada é notificada ao interessado, com indicação dos seus fundamentos, dela devendo constar o direito de impugnação judicial e o respectivo prazo. Não pode, por isso, o requerente ignorar qual é o meio processual adequado à impugnação da decisão de recusa de entrada em território nacional.

O recurso à providência de habeas corpus com a finalidade de reagir à decisão de recusa de entrada, por via da discussão da legalidade dos respectivos fundamentos, é um meio processual absolutamente impróprio e, por outro lado, nem a natureza da providência nem os respectivos fundamentos comportam essa finalidade.

3.2. O cidadão estrangeiro a quem seja recusada a entrada aguardará o reembarque, a efectuar no mais curto período de tempo possível, ficando, nesse período, a cargo da transportadora.

Com efeito, nos termos do artigo 41.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 23/2007, a transportadora que proceda ao transporte para território português, por via aérea (como foi o caso), de cidadão estrangeiro que não reúna as condições de entrada fica obrigada a promover o seu retorno, no mais curto período de tempo possível, para o ponto onde começou a utilizar o meio de transporte e, enquanto não se efectuar o reembarque, o passageiro fica a cargo da transportadora, sendo da sua responsabilidade o pagamento da taxa correspondente à estada do passageiro no centro de instalação temporária ou espaço equiparado.

Sempre que não seja possível efectuar o reembarque do cidadão estrangeiro dentro do prazo de quarenta e oito horas após a decisão de recusa de entrada, do facto é dado conhecimento ao juiz do juízo de pequena instância criminal, na respectiva área de jurisdição, ou do tribunal de comarca, nas restantes áreas do País, a fim de ser determinada a manutenção daquele em centro de instalação temporária ou espaço equiparado, conforme n.º 4 do artigo 38.º da Lei n.º 23/2007.

A situação com que se depara é a de o requerente se manter no centro de instalação temporária de passageiros chegados por via aérea do aeroporto de Lisboa, a aguardar o retorno ao ponto de origem, por decisão judicial. Decisão que, aliás, foi suscitada por não ter sido possível, dentro de quarenta e oito horas, efectuar o reembarque do requerente, por razão a ele exclusivamente imputável (a recusa em reembarcar).

Releva, ainda, ter em conta que, nos termos do artigo 4.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 34/94, de 14 de Setembro, pode ser determinada a instalação temporária de estrangeiro que tente penetrar em território nacional sem para tal estar legalmente habilitado, assim que a sua permanência na zona internacional do aeroporto perfaça quarenta e oito horas, devendo o SEF, no decurso desse prazo, logo que seja previsível a impossibilidade do reembarque do estrangeiro, nesse prazo, dar conhecimento ao tribunal competente, a fim de ser proferida a decisão sobre a manutenção daquela situação ou a instalação em centro próprio.

E, finalmente, considerar que, segundo o artigo único do Decreto-Lei n.º 85/2000, de 12 de Maio, até à implementação do regime jurídico previsto na Lei n.º 34/94, os espaços criados nos aeroportos portugueses, por força da Resolução do Conselho de Ministros n.º 76/97, de 17 de Abril (2) , são equiparados a centros de instalação temporária de passageiros chegados por via aérea, incumbindo às transportadoras a prestação de todo o apoio e a satisfação das necessidades básicas dos passageiros em causa e competindo à entidade responsável pelo controlo de fronteira a manutenção e gestão dos centros e a coordenação desses apoio e satisfação das necessidades básicas dos passageiros retidos.

3.3. Sendo este o quadro legal a que se subordina a instalação de passageiros não admitidos em território nacional e que aguardam reembarque, é evidente que não cabe, no caso, invocar a ilegalidade da “retenção”, “detenção” ou “prisão” do requerente como, indiscriminadamente, o requerente apelida a sua manutenção no centro de instalação temporária do aeroporto de Lisboa.

A medida de instalação em centro de instalação temporária, a que o requerente se encontra sujeito, tendo, embora, uma natureza substancialmente detentiva, obedece a todos os requisitos legais de que depende a sua aplicação e execução: a medida mantém-se no local legalmente permitido e previsto para o efeito (centro de instalação temporária de passageiros chegados por via aérea do aeroporto de Lisboa), foi determinada pela entidade competente, por estar ultrapassado o prazo de quarenta e oito horas após a decisão de recusa de entrada (o juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa) e é motivada por facto pelo qual a lei a permite (a decisão de recusa de entrada em território nacional).

Não se verifica, por isso, fundamento para questionar a legalidade da medida a que o requerente se encontra sujeito.

E, bem vistas as coisas, o requerente nem sequer fundamenta a sua petição na decisão do juiz do juízo de pequena instância criminal quando é ela que, afinal, determina a sua manutenção no centro de instalação temporária a aguardar reembarque. O que o requerente pretende é, como já dissemos, servir-se da petição de habeas corpus como meio de reacção processual à decisão administrativa de recusa de entrada em território nacional, visando, através da providência, alcançar a discussão da legalidade dos fundamentos daquela decisão.

O que implica a manifesta falta de fundamento da petição de habeas corpus dirigida a este Supremo Tribunal de Justiça.


III

Termos em que, se delibera indeferir a petição apresentada por AA por falta de fundamento bastante (artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal), e julgá-la manifestamente infundada.

Nos termos do n.º 6 do artigo 223.º do Código de Processo Penal, o requerente é condenado no pagamento de 10 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 02/12/2010

Isabel Pais Martins (relatora)
Manuel Braz
Santos Carvalho
___________________
(1) Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, p. 260

(2) Que determinou a criação nos aeroportos portugueses de espaços próprios para a instalação dos passageiros não admitidos em território nacional e que aguardam reembarque, na consideração da frequência com que ocorrem situações de impossibilidade de reembarque de cidadãos estrangeiros objecto de recusa de entrada em território nacional no prazo de quarenta e oito horas em razão das dificuldades com que muitas vezes se deparam os operadores de transporte aéreo em providenciar a viagem de regresso (conforme se pode ler no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 85/2000, de 12 de Maio).