Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4770/20.1T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: PERFILHAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
DIREITO AO NOME
APELIDO
PRINCÍPIO DA IMUTABILIDADE
DIREITOS DE PERSONALIDADE
TUTELA DA PERSONALIDADE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
DANO
JUSTA CAUSA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGAR A REVISTA
Sumário :
I. A perfilhação constitui um dos modos de estabelecimento da paternidade (art.1847 CC) e a acção de impugnação da perfilhação ( art.1859 CC) é concebida como uma verdadeira impugnação da paternidade, em que o seu deferimento implica que o acto de perfilhação fica sem efeito e por consequência a paternidade.

II. O direito ao nome consubstancia um direito de personalidade, com protecção Constitucional ( art.26 nº1 CRP) e civil ( art.s 70 e 79 nº1 CC).

III. Devido à função do nome, enquanto direito de personalidade, vigora o princípio da imutabilidade, ou seja, o nome não pode ser alterado. A lei ( art.104 CRC ) prevê, no entanto, duas excepções: (i)A modificação mediante autorização do Conservador dos Registos Centrais; (ii) Nas situações taxativamente plasmadas no nº2 do art.104 CRC, entre as quais a enunciada na alínea a) “ A alteração fundada em estabelecimento da filiação, adopção, sua revisão ou revogação e casamento posterior ao assento”.

IV. Procedente a ação de impugnação da perfilhação, o cancelamento do apelido paterno é uma consequência legal decorrente da alteração da filiação(  art. 104.º, n.º 1, e n.º 2, al. a), do CRC).

V.-Comunicada a sentença ao Registo Civil ao averbar-se no assento de nascimento a eliminação menção da paternidade e avoenga paterna deve averbar-se oficiosamente a alteração do nome do registado, consequente da perda do direito aos apelidos relativos à paternidade.

VI.- Cabe à demandada na acção de impugnação de perfilhação alegar e provar que a eliminação do apelido paterno lhe causa prejuízos, por violação do direito de personalidade ao nome, ou seja, a alegação de uma justa causa para a manutenção dos apelidos.

Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – RELATÓRIO



1.- O Autor - AA - instaurou acção declarativa, com processo comum, contra a Ré - BB.

Alegou em síntese, que a Ré, nascida em 18.0.1982, não é sua filha biológica, tendo procedido à perfilhação após o casamento celebrado com a progenitora. Sucede que, apesar de ter dela cuidado como sua filha fosse e cumprido os deveres de regulação paternal inerentes, mesmo após a dissolução do casamento com a respectiva progenitora, a Ré, por razões que desconhece, afastou-se do Autor, inexistindo qualquer relacionamento entre ambos.

Com vista à impugnação da perfilhação, pediu:

“A) Ser declarado que o Autor não é o pai biológico da R.;

 B) Ser decretada a anulação do ato de perfilhação, ordenando-se em consequência a anulação da filiação com o cancelamento do averbamento constante do assento de nascimento da R. a menção da paternidade do Autor, bem como a menção no registo de seus eventuais descendentes.”


1.2.A Ré não contestou.


1.3.- Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção procedente e, por consequência:

“a) Reconhecer que a BB não é filha de AA.

b) Ordenar que se elimine do registo de nascimento da BB a paternidade a favor de AA e correspondente avoenga paterna, eliminando-se o apelido dos Santos do nome daquela.  

Custas a cargo do autor.

Registe e notifique.

Após trânsito, cumpra-se o disposto no art.º 78.º do C.R. Civil.”


Consta a seguinte fundamentação:

“O estabelecimento da paternidade constitui uma manifestação do direito Fundamental "à historicidade pessoal" (Gomes Canotilho-Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 179), ou seja, do direito ao conhecimento da progenitura e da identidade pessoal (Alice Feiteira, Princípios Informadores do Estabelecimento da Filiação, Temas de Direito da Filiação, AAFDL, 1994, págs. 238-240).

A paternidade presume-se em relação ao marido da mãe e, nos casos de filiação fora do casamento, estabelece-se por reconhecimento (art. 1796º/2 do Código Civil).

In casu, a paternidade da BB em relação ao autor estabeleceu-se por perfilhação, nos termos do art. 1849º do Código Civil.

A perfilhação que não corresponda à verdade é impugnável em juízo mesmo depois da morte do perfilhado (art. 1859º do Código Civil).

In casu, ficou provado que a BB não é filha do autor AA, devendo assim ser cancelado tal registo.

Assim sendo, terá a ação de ser considerada procedente e, consequentemente, ser eliminado o registo de paternidade da BB a favor do autor AA bem como a avoenga paterna”.


1.4.- Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação e a Relação, por acórdão de 21/6/2022, decidiu julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.

A Relação justificou a eliminação do apelido “Santos”, mesmo sem ser pedida, por se tratar de “um efeito – consequência possível e previsível - da procedência da impugnação da perfilhação, tal como se alcança da interpretação conjugada dos artigos 1796º, nº2, 1802º, 1847º, 1859º e 1875º, do Código Civil e das normas do Código do Registo Civil, v.g. artigos 103º ,104º, nº2 al) a) e 130º, nº1”, ou seja, é uma “consequência legal decorrente da alteração da filiação”.


1.5. A Ré recorreu de revista normal e subsidiariamente de revista excepcional.

Alegou, em resumo:

1)A Recorrente entende que a decisão proferida na primeira instância e o acórdão ora recorrido não estão entre si numa relação de conformidade, nos termos do artigo 671 nº3 CPC. Com efeito as duas questões objeto do recurso de apelação não foram discutidas na primeira instância.

2)A primeira, que respeitava à nulidade da sentença por excesso de pronúncia, não foi nem poderia ter sido, dado que, pela natureza das coisas, só foi suscitada após a prolação da sentença. A segunda questão respeitou a saber se a 1 .ª instância deveria ter decidido suprimir o apelido “dos Santos” do nome na Recorrente. A 1.ª instância tomou essa decisão sem qualquer fundamento, julgando-a um efeito automático da procedência da impugnação da paternidade por perfilhação.

3)O Tribunal da Relação de Lisboa ocupou-se da fundamentação dessa decisão, procurando (ainda que, salvo melhor opinião, erradamente) demonstrar a sua correção. De sorte que, em rigor, a diferença é mais drástica do que a “fundamentação essencialmente diferente” referida no artigo 671 nº3 CPC, pois, em rigor, a sentença proferida na 1.ª instância não contém qualquer fundamentação sobre o trecho.

4)Considerando-se que as decisões da 1.ª instância e do Tribunal a quo estão entre si numa relação de conformidade, o que por mera cautela de patrocínio se admite, o presente recurso deverá ser admitido enquanto revista excepcional.

5)Numa ação de impugnação da paternidade por perfilhação, não tendo o autor pedido que o apelido da ré fosse eliminado, e não tendo sido, portanto, discutida esta questão nos autos, pode a decisão do tribunal determinar que o apelido atribuído pelo perfilhante seja eliminado do nome da ré?

6) Numa ação de impugnação da paternidade por perfilhação, a decisão de eliminar o apelido atribuído pelo perfilhante do nome da ré pressupõe a conclusão de que essa ablação interessa à ré (ou lhe é indiferente) ou esta ponderação é dispensável?

7) O esclarecimento destas questões, dada a sua relevância jurídica, é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

8) A primeira versa, aliás, sobre os próprios fundamentos do processo civil, pois o que está em causa é saber se o réu deve contar com um efeito jurídico que não foi peticionado pelo autor, na assunção duvidosa e com limites dúbios e perigosos de que o ocultado efeito jurídico estaria implícito no pedido expresso.

9) A segunda questão é tanto ou mais relevante, porquanto se pretende saber qual é a ponderação de interesses de uma decisão jurisdicional que afeta o direito ao nome, que é um direito de personalidade merecedor de ampla tutela no nosso ordenamento jurídico, como decorre do artigo 26.º/1 da Constituição da República Portuguesa (adiante CRP) e do artigo 72.º do Código Civil . Em particular, importa saber se a supressão do nome pressupõe que o Tribunal conclua positivamente pelo interesse do réu (ou pelo menos pela indiferença do réu) neste efeito, ou se, pelo contrário, a ponderação dos interesses do réu não é pressuposto da decisão.

10) Adicionalmente, salvo melhor entendimento, o acórdão proferido nos presentes autos está em contradição com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 25.10.2018 (Proc. n.º13823/13.... | CC) (do qual se junta cópia).

11) Com efeito, no acórdão ora recorrido, decidiu-se o seguinte:

 “Ora, no caso sub judice, o segmento decisório da eliminação registral do apelido do perfilhante, polariza-se especificamente como efeito - consequência possível e previsível - da procedência da impugnação da perfilhação, tal como se alcança da interpretação conjugada dos artigos1796°, n°2, 1802°, 1847°, 1859° e 1875°, do Código Civil e das normas do Código do Registo Civil, v.g. artigos 103°, 104°, n°2 al) a) e 130°, n°1.”

12)Segundo o acórdão em crise, a eliminação do apelido da ré na ação de impugnação da paternidade por perfilhação é uma consequência lógica implicada na procedência da ação.

11)No acórdão fundamento, a orientação adotada diverge da ora apresentada, porquanto se decidiu:

“A eliminação do apelido do autor da perfilhação do nome da criança não é uma consequência obrigatória/automática da procedência da acção de impugnação da paternidade por perfilhação. Tal só deverá ser determinado se decorrer dos factos provados que a eliminação desse apelido é do interesse da criança, designadamente tendo em conta o seu direito à identidade pessoal, na vertente do direito ao nome, como direito de personalidade.


1.6.- Por decisão do Relator de 4/1/2023 foi o recurso admitido como revista normal.



II – FUNDAMENTAÇÃO



2.1.- O objecto do recurso

As questões submetidas a revista, delimitadas pelas conclusões, são as seguintes:

Violação do princípio do dispositivo e da garantia de um processo justo e equitativo por não ter sido pedida a eliminação do apelido “dos Santos”;

O erro de julgamento, por interpretação da lei contrária à tutela do direito ao nome, ao determinar a eliminação registral do apelido “dos Santos”.


2.2. – Os factos provados

1. BB, nascida em .../.../1982, está registada como filha do autor, AA.

2. AA não é pai da ré BB.

A estes acrescem, porque documentados, ainda os seguintes:

3.A Ré BB, nasceu a .../.../1982, foi registada apenas como filha de DD.

4. O Autor, no dia .../.../1988, contraiu casamento com DD, posteriormente dissolvido por sentença de 7 de Março de 1995, transitada em julgado.

5. No dia 21 de Julho de 1989, o Autor perfilhou a Ré, filha da então sua esposa, assim ficando estabelecida a filiação.

6. A Ré BB em virtude do estabelecimento da filiação mudou o nome para DD, ou seja, acrescentou o apelido paterno “dos Santos”.


2.3. – Enquadramento geral

A perfilhação constitui um dos modos de estabelecimento da paternidade (art.1847 CC). Sendo um dos efeitos da filiação a atribuição dos apelidos, e porque a perfilhação efectivou-se depois do nascimento da BB, foi alterado o nome quanto ao apelido, ficando a constar o apelido paterno “dos Santos” ( art.1875 CC).

O Autor (muito embora se reporte ao pedido de anulação) instaurou a presente acção de impugnação da perfilhação ( art.1859 CC) concebida como uma verdadeira impugnação da paternidade, em que o seu deferimento implica que o acto de perfilhação fica sem efeito, ou seja, “ a perfilhação caduca por força da superveniência de um facto – a prova da não paternidade do perfilhante – que a torna um acto jurídico inútil” ( Guilherme de Oliveira, Impugnabilidade da perfilhação, 1977, pág. 23 ).

Uma vez decretada a impugnação da perfilhação e, portanto, afirmado que BB não é filha do Autor, está em causa na revista a consequente eliminação do apelido “dos Santos”, se para tal é necessário a dedução de pedido.

A sentença decretou a eliminação do apelido “dos Santos”, considerando que em consequência da procedência da acção de impugnação da perfilhação terá que “ser eliminado o registo de paternidade da BB a favor do autor AA bem como a avoenga paterna”.

A Relação justificou a eliminação do apelido “Santos”, mesmo sem ser pedida, por se tratar de “um efeito – consequência possível e previsível - da procedência da impugnação da perfilhação, tal como se alcança da interpretação conjugada dos artigos 1796º, nº2, 1802º, 1847º, 1859º e 1875º, do Código Civil e das normas do Código do Registo Civil, v.g. artigos 103º ,104º, nº2 al) a) e 130º, nº1”, ou seja, é uma “consequência legal decorrente da alteração da filiação”.

A Ré/revistante recorre na parte relativa à eliminação do apelido, invocando dois tópicos:

a) O pedido de eliminação do apelido não resulta dos demais pedidos efectuados, nem deles deve ser subentendido, ocorrendo uma violação do princípio do dispositivo e da garantia de um processo justo e equitativo ( art. 32. CRP); entendê-lo desta forma é impor à ré um ónus que vai para além do previsto no art. 6.º do CC, pois depende da interpretação conjugada das normas dos arts. 1796.º, n.º 2, 1802.º, 1847.º, 1859.º e 1875.º do CC e 103.º, 104.º, n.º 2, al. a) e 130.º, n.º 1, do CRC, em conjugação com uma dada orientação jurisprudencial;

b) A supressão do apelido “dos Santos” não é um efeito automático da procedência da impugnação da perfilhação, mas antes deveria o tribunal ter ponderado os interesses e direitos da ré ao nome, sob pena de violação do disposto nos arts. 26.º, n.º 1, da CRP e 72.º do CC, pois a ré usa o apelido “Santos” há várias décadas, não sendo casada.


2.4. - Da violação do princípio do dispositivo e da garantia de um processo justo equitativo

O princípio do dispositivo, como corolário da autonomia privada e liberdade de autodeterminação, é uma das traves mestras do processo civil, que a par dos princípios do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, integram a garantia do processo equitativo ( art. 20.º, n.º 4, da CRP).

Não vale a pena teorizar sobre o princípio do dispositivo, referindo-se, sumariamente  apenas, que a doutrina tem qualificado o dispositivo em sentido próprio ou material, por corresponder ao exercício dos poderes de disposição colimados ao direito material, ou seja, cabe às partes iniciar a demanda e conformar o objecto do processo, e o princípio do dispositivo em sentido impróprio ou formal, traduzindo-se no impulso subsequente e a iniciativa probatória.

Neste contexto, a decisão judicial deve manter-se dentro das linhas delimitadoras que são a causa de pedir e o pedido, procedendo o tribunal à adequada qualificação jurídica, nos termos do art. 5.º, n.º 3, do CPC.

Verifica-se que na petição inicial, o Autor não pediu expressamente a eliminação do apelido “dos Santos”, pois formulou o seguinte pedido: A) Ser declarado que o Autor não é o pai biológico da R.; B) Ser decretada a anulação do ato de perfilhação, ordenando-se em consequência a anulação da filiação com o cancelamento do averbamento constante do assento de nascimento da R. a menção da paternidade do Autor, bem como a menção no registo de seus eventuais descendentes.

Porém, a eliminação do apelido do nome é uma consequência da impugnação da perfilhação, nos termos do art. 104.º, n.º 1, e n.º 2, al. a), do CRC,

Devido à função do nome, enquanto direito de personalidade, vigora o princípio da imutabilidade, ou seja, o nome não pode ser alterado. A lei ( art.104 CRC ) prevê, no entanto, duas excepções: (i)A modificação mediante autorização do Conservador dos Registos Centrais; (ii) Nas situações taxativamente plasmadas no nº2 do art.104 CRC, entre as quais a enunciada na alínea a) “ A alteração fundada em estabelecimento da filiação, adopção, sua revisão ou revogação e casamento posterior ao assento”.

Esta norma prevê expressamente a alteração do nome devido ao estabelecimento e à revogação da filiação.

No Código do Registo Civil Anotado, por Maria da Conceição Lobato Guimarães, Filomena Maria B. Máximo Mocica e Manuel Vilhena de Carvalho, em comentário ao art. 104.º, anotam que - “Quando por sentença se lança averbamento ao nascimento eliminando-se a menção da paternidade e avoenga paterna deve averbar-se oficiosamente a alteração do nome do registado, consequente da perda do direito aos apelidos relativos à paternidade – P.º 2/47 R.C. 34 da DGRN.”

Por outro lado, tendo o Autor concluído pelo pedido “(…) ordenando-se em consequência a anulação da filiação com o cancelamento do averbamento constante do assento de nascimento da R. a menção da paternidade do Autor, bem como a menção no registo de seus eventuais descendentes”, parece estar implícito o pedido de eliminação do apelido.

Na verdade, por pedidos implícitos deve entender-se os pedidos que, embora não expressos na petição, conformam o objecto do processo por força da lei ( implícitos porque não precisam de ser deduzidos, pois derivam da lei) e aqueles que embora não expressamente abrangidos no acto postulatório  se possa deduzir pela interpretação  do pedido e causa de pedir. E a individualização e identificação do pedido implícito releva sobretudo as situações de cumulação aparente de pedidos.

Importa sublinhar que a Recorrente evidencia algum paradoxo, porque arguindo a violação do princípio do dispositivo para um pedido que resulta necessariamente do art.103, 104 nº2 a) e 130 nº1 CRC, como excepcção ao princípio da imutabilidade do direito ao nome, pretende, no entanto, a manutenção do apelido “dos Santos”, sem nunca sequer ter intervindo nos autos, nem solicitado expressamente tal pretensão, nem alegado quaisquer factos que possam sustentar esta sua pretensão.

Os factos que a Recorrente invoca para justificar a manutenção do apelido “dos Santos” são factos que nunca foram trazidos ao processo dentro do ciclo respectivo, pois não constam dos articulados da primeira instância, já que  a Ré não contestou, mantendo-se em revelia até à interposição do recurso de apelação.

Para que o tribunal pudesse ponderar a possibilidade de manutenção do apelido seria indispensável que a Ré o tivesse pedido na contestação, a título reconvencional. Ora, é, precisamente, isso que sucede no Ac. da Relação de Lisboa de 25/10/2018, (proc. nº 13823/13.... ) ,que a Ré indicou como fundamento de contradição com o acórdão recorrido. Só que naqueles autos, a ré, mãe dos menores, em sede contestação, pediu expressamente a manutenção dos apelidos do perfilhante, tendo alegado factos para esta manutenção, os quais resultaram provados e como tal foram fundamento para a decisão de manutenção dos apelidos dos menores, apesar da procedência da impugnação da perfilhação.

Porém, tal não sucede aqui e, por conseguinte, não há qualquer contradição de julgados.

A Recorrente alega ainda que a entender-se não existir uma violação do princípio do dispositivo constitui uma violação da garantia de um processo justo e equitativo, cfr. art. 32.º da CRP, porquanto impõe à Ré um ónus acrescido de conhecer uma dada orientação jurisprudencial em conjugação com os arts. 1796.º, n.º 2, 1802.º, 1847.º, 1859.º e 1875.º do CC e 103.º, 104.º, n.º 2, al. a) e 130.º, n.º 1, do CRC.

Porventura quereria reportar-se ao art.20 da CRP, mas mesmo que assim seja não lhe assiste razão. O due process plasmado na CRP é concebido em sentido amplo, não apenas como um processo justo na sua conformação legislativa (exigência de um procedimento legislativo devido na conformação do processo), mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça, e com implicações na tutela jurisdicional efectiva.

Para a densificação do princípio de processo equitativo muito tem contribuído a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a aplicação do art. 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), onde positivou expressamente o direito ao processo equitativo.

A Ré foi citada nos autos e decidiu não contestar, mantendo-se em revelia até à apelação, tendo sido notificada da sentença, conforme imposição legal.

A interpretação quer do acórdão recorrido quer da sentença é a que decorre da lei, uma vez que estando os factos relativos à filiação e ao nome sujeitos ao registo civil, a sua alteração, por estabelecimento ou por revogação através de sentença está obrigatoriamente sujeita a registo, conforme já exposto. As instâncias ao determinarem a eliminação do apelido “dos Santos” do nome da Ré, limitaram-se a cumprir o que decorre da lei, uma vez que nada foi pedido em contrário.  

Aliás, mesmo que tal comando positivo não constasse da decisão judicial, seria o apelido eliminado ao nível registral, por força do disposto nos arts. 78 e 104.º, n.º 2, al. a), do CRC.

Havendo sido garantida a intervenção no processo, chamada a ele pela citação, a Ré nada fez. Daqui se concluiu a inanidade da alegada violação do direito fundamental a um processo equitativo.


2.5.- Do erro de julgamento, por interpretação da lei contrária à tutela do direito ao nome, ao determinar a eliminação registral do apelido “dos Santos” – violação do direito de personalidade.

O nome tem por função a identificação e individualização das pessoas, apresenta-se, portanto, como um sinal distintivo. É por isso que toda a pessoa, após o nascimento tem de ter um nome, que é composto pelo chamado nome próprio e pelos apelidos ( art.1875 CC ).

E o art.102 nº1 a) CRC impõe que para além dos requisitos gerais, o assento de nascimento deve conter “a) O nome próprio e os apelidos”.

No tocante à sua natureza jurídica, já foram avançadas várias teorias: a da propriedade (entende o nome como integrando o património) a teoria negativista ( o direito não como um direito), teoria do estado ( o nome como elemento do estado da pessoa) e teoria do direito da personalidade, sendo esta a concepção hoje predominante.

Tradicionalmente, o direito ao nome era considerado como um verdadeiro direito de propriedade, o que foi defendido, entre nós, por Cunha Gonçalves (Tratado de Direito Civil, vol. I, págs. 206/207 e Pedro Chaves (Comentário do Código de Registo Civil, 3.º ed., 1937, págs. 145 e 165) sendo esta tese rejeitada, bem como o paradigma que entendia o direito ao nome como uma instituição de Direito Público, de tipo policial.

Actualmente predomina o modelo que considera o nome como um direito de personalidade, tal qual como se mostra consagrado no nosso ordenamento jurídico (sobre a evolução das teorias, Manuel Vilhena de Carvalho, O nome das pessoas e o direito, Coimbra, Almedina, 1989, págs. 21 e segs, e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IV. Pessoas, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, págs. 241)

Neste contexto, o direito ao nome consubstancia um direito de personalidade, com protecção Constitucional ( art.26 nº1 CRP) e civil ( art.s 70 e 79 nº1 CC).

Não obstante a individualização de situações particulares do direito de personalidade, tal não implica uma tutela fragmentada, pois a personalidade é una, e o art.70 CC prevê uma cláusula geral., ou seja, os direitos de personalidade especiais estão enraizados no direito geral de personalidade, enquanto “direito- matriz”, “pois os “objectos” deles são antes a projecção do objecto verdadeiro desta tutela jurídica que é a personalidade no seu todo” ( Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pá.206), o que equivale a dizer que  “a personalidade “física ou moral” do “individuo” humano tutelada pelo artigo 70 do Código Civil está considerada globalmente e é abrangida pelo seu carácter unitário, multifacetado, dinâmico e individualizado” ( Capelo de Sousa, Direito Geral de Personalidade, pág.152).

O direito de personalidade especial ao nome ( arts.72 a 74 CC), porque o nome exprime determinada identidade,  abrange  a faculdade de identificar os indivíduos dos demais ( identidade própria) e de que nas relações sociais o atribuam ao seu titular, que o pode defender contra a utilização indevida por terceiro.

Esta relevância é enfatizada por Antunes Varela ( RLJ ano 116, pág. 145), pois, citando Karl Larenz, explica que o direito ao nome “é o direito de personalidade por excelência. O nome é, de facto, a insígnia fonética (o vocábulo ou conjunto de vocábulos) que marca o indivíduo no mundo. É o sinal vocabular que (seja na comunicação oral, seja na linguagem escrita) se destina a distinguir cada homem, na sociedade em que vive, de todos os outros homens”.

No mesmo sentido, Manuel Vilhena de Carvalho ( loc cit., pág.27)  para quem “o direito ao nome (no seu sentido mais lato = nome próprio + apelidos) sendo necessária e imediata consequência da personalidade, como seu eficaz complemento, é o direito de personalidade por excelência.”

A nossa ordem jurídica consagra o princípio da imutabilidade do nome, o que se mostra relacionado, conforme refere Carla Ramos Monge ( “Do nascer ao morrer (e até mais além): a importância do nome e os seus reflexos na jurisprudência”, Revista do CEJ, n.º 2 (2º Semestre 2021) - pp. 143/180) com o interesse na identificação das pessoas e da função pública e social que o nome desempenha.

E Manuel Vilhena de Carvalho ( loc cit, pág. 29 ) adianta que é compreensível “a razão de ser da imutabilidade do nome: se ele não fosse em regra, fixo, gerar-se-ia a maior das confusões na identificação das pessoas, a que se destina, com a maior repercussão na vida social e jurídica, quer nas relações estabelecidas entre particulares, quer nas relações destes com o Estado”.

O Professor Antunes Varela ( loc cit, pág. 210 )considera que a atribuição do nome tem como primeiro interesse a identificação da pessoa, a fim de que não seja confundida com os restantes membros da comunidade, mas não deixa de destacar outros interesses pessoais inerentes à fixação do nome atinentes à verdade biológica – “além da individualização da pessoa, abstractamente considerada, o nome civil, correspondendo a um sentimento desde há muitos séculos radicado na colectividade, visa alcançar esse objectivo mediante remissão para o facto biológico da sua procriação. As pessoas não querem ser individualizadas de qualquer modo. Desejam que a sua individualização, através do nome civil seja feita mediante a indicação de quem são filhos e da família a que pertencem”.

Esta doutrina foi acolhida, por exemplo, no Ac STJ de 29/01/2004, proc. n.º 3153/03, ( em www dgsi)  em cujo sumário se lê – “ I - A atribuição do nome visa satisfazer, antes de mais, e fundamentalmente, um interesse do próprio indivíduo, sendo nesta perspectiva individualista ou personalista que o nome é considerado, seja no texto constitucional (art.º 26/1) seja no CC (art.º 72/1). II - O nome de uma pessoa é igualmente, em resultado de uma tradição secular, o meio de operar a ligação do indivíduo aos seus progenitores. III - E pode ainda ser um elo de ligação sentimental de uma pessoa ao património moral do seu clã familiar, visando a perpetuação dos valores morais ligados ao nome da família.”

Como já se observou, o princípio da imutabilidade do nome tem pois excepções e está proficuamente explicitado no Ac da Relação de Lisboa  de 12/11/2009 ( proc nº 3231/08), disponível em www dgsi ), proferido no âmbito de uma alteração de um nome de uma pessoa já maior de idade, no qual se reconheceu que este princípio geral da imutabilidade do direito ao nome tem excepções que decorrem das alíneas do n.º 2 do art. 104.º do CRC e também as que resultam do processo de alteração do nome, mediante autorização do Conservador dos Registos Centrais, nos termos dos arts. 104.º, n.º 1, 278.º, 279.º e 282.º do CRC.

Revertendo ao caso dos autos, cumpre referir, em primeiro lugar, que a pretensão da ora recorrente, para além de extemporaneamente manifestada, por ter sido tão só trazida aos autos na apelação, não se mostra sustentada na factualidade provada. Trata-se, de resto, de uma questão nova, não submetida à validação do tribunal da 1ª instância.

 Com efeito, os factos provados permitem tão só a procedência o pedido do autor, isto é, a procedência da impugnação da perfilhação, mas não permitem que a pretensão da Ré, ora recorrente possa sequer ser equacionada, uma vez que não há factos provados que a possam suportar.

Acresce que os apelidos no nome do indivíduo visam demonstrar a sua filiação, a qual por regra tende a ser coincidente com a verdade biológica, excepto em alguns casos de perfilhação.

Por haver tratado uma situação com alguns pontos semelhantes ao caso presente, ainda que não idêntico, salienta-se o Ac. do STJ de 07/10/2003, Proc. n.º 2700/03, relatado pelo Conselheiro Afonso Correia ( disponível em www dgsi.pt ) em que após acção de impugnação de perfilhação com retirada dos apelidos paternos, veio o ex-perfilhado pedir, junto do Registo Civil, a manutenção da utilização dos apelidos paternos, o que foi indeferido. Este aresto entendeu que “Como há pouco decidiu este Supremo Tribunal e Secção «o nome de uma pessoa (física) é composto de vocábulos que, carregados de sentido familiar, moral, espiritual e social, constituem na sua unidade global um elemento de identificação ou de individualização inseparável da personalidade do titular”.

Podemos concluir que este acórdão, apesar de algo datado, limita a utilização de apelidos de forma directa com a filiação, permitindo apenas que o nome contenha os apelidos coincidentes com a filiação do indivíduo e por consequência com a ligação à família.

Tem sido esta a concepção da doutrina e jurisprudência portuguesa, já que a filiação e respectivas implicações, tal como positivava na lei civil, arranca de um paradigma predominantemente biologista.

No citado Ac da Relação de Lisboa de 25/10/2018 decidiu-se pela manutenção dos apelidos de dois menores após a procedência de acção de impugnação da perfilhação, decidindo pela sua manutenção por razões de superior interesse da criança.

Contudo, esta posição não é transponível para a presente situação, porquanto aqui nada foi pedido nesse sentido, não existindo factos que permitissem fazer proceder esta pretensão da ré/ora recorrente.  Além disso, excepcionou a aplicação das normas registais e do Código Civil relativas à filiação por conta do superior interesse das crianças afectadas por aquela decisão, o que claramente se afastava dos interesses a ponderar nos presentes autos.

Carla Ramos Monge em recente artigo com data de 2021 (  In Do nascer ao morrer (e até mais além): a importância do nome e os seus reflexos na jurisprudência”, Revista do CEJ, n.º 2 (2º Semestre 2021) – págs. 171-176) acentua  que “o regime jurídico da filiação vigente em Portugal assenta no princípio da correspondência entre a verdade biológica e a verdade jurídica, tendo como pedra basilar o direito de cada indivíduo à sua identidade pessoal”, destacando  aquela decisão da Relação de Lisboa de 25/10/2018 bem como alguma jurisprudência dos tribunais brasileiros, onde já se permitiu a possibilidade de manter/adquirir apelidos por força da filiação afectiva (parentalidade sócio-afectiva)  para além da filiação biológica.

Muito embora a realidade sociológica da família contemporânea imponha uma espécie de metamorfose dos paradigmas no direito da família dos tempos modernos, a verdade é cabia à Ré alegar e provar que a eliminação do apelido “dos Santos” violava de forma desproporcional o direito de personalidade, com consequências prejudiciais, o que não fez.


2.6.- Síntese conclusiva

1.A perfilhação constitui um dos modos de estabelecimento da paternidade (art.1847 CC) e a acção de impugnação da perfilhação ( art.1859 CC) é concebida como uma verdadeira impugnação da paternidade, em que o seu deferimento implica que o acto de perfilhação fica sem efeito e por consequência a paternidade.

2. O direito ao nome consubstancia um direito de personalidade, com protecção Constitucional ( art.26 nº1 CRP) e civil ( art.s 70 e 79 nº1 CC).

4. Devido à função do nome, enquanto direito de personalidade, vigora o princípio da imutabilidade, ou seja, o nome não pode ser alterado. A lei ( art.104 CRC ) prevê, no entanto, duas excepções: (i)A modificação mediante autorização do Conservador dos Registos Centrais; (ii) Nas situações taxativamente plasmadas no nº2 do art.104 CRC, entre as quais a enunciada na alínea a) “ A alteração fundada em estabelecimento da filiação, adopção, sua revisão ou revogação e casamento posterior ao assento”.

5. Procedente a ação de impugnação da perfilhação, o cancelamento do apelido paterno é uma consequência legal decorrente da alteração da filiação(  art. 104.º, n.º 1, e n.º 2, al. a), do CRC).

6.-Comunicada a sentença ao Registo Civil ao averbar-se no assento de nascimento a eliminação menção da paternidade e avoenga paterna deve averbar-se oficiosamente a alteração do nome do registado, consequente da perda do direito aos apelidos relativos à paternidade.

7.- Cabe à demandada na acção de impugnação de perfilhação alegar e provar que a eliminação do apelido paterno lhe causa prejuízos, por violação do direito de personalidade ao nome, ou seja, a alegação de uma justa causa para a manutenção dos apelidos.



III – DECISÃO



Pelo exposto, decidem:


1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Condenar a Recorrente nas custas.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Abril de 2023


Jorge Arcanjo ( Relator )

Isaías Pádua

Manuel Aguiar Pereira