Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ORLANDO NASCIMENTO | ||
| Descritores: | INVENTÁRIO DIVÓRCIO BEM COMUM DO CASAL COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS IMOVEL RECONSTRUÇÃO BEM PRÓPRIO OBRA NOVA COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS BENFEITORIA ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA | ||
| Data do Acordão: | 11/06/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE | ||
| Sumário : | O imóvel resultante da reconstrução e ampliação de uma casa antiga de dois pisos, com logradouro e anexos que era bem próprio de um dos cônjuges por lhe haver sido doada pela sua mãe, constitui bem próprio desse cônjuge, constituindo bem comum o crédito de compensação sobre o património desse cônjuge, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. Relatório. No âmbito dos autos de inventário para partilha de bens comuns, subsequente ao divórcio de AA e BB, sendo esta cabeça-de-casal, o ex-cônjuge marido apresentou reclamação à relação de bens, sobre a qual foi proferida decisão, declarando, além do mais, que o imóvel que identifica, propriedade da cabeça-de-casal sobre o qual o casal fez obras de valor superior ao prédio original tem a natureza de bem comum “…ficando, todavia, ressalvada a compensação entre patrimónios, tal como previsto no nº 2 daquele preceito legal”, a saber, o art.º 1726.º, do C. Civil * Inconformada com essa decisão, a ex-cônjuge mulher dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a revogação dessa decisão, a declaração do imóvel como bem próprio seu e o relacionamento como bem comum das benfeitorias nele realizadas. * O ex-cônjuge marido apresentou contra-alegações, pugnado pela confirmação da decisão recorrida. * A Relação proferiu decisão, revogando a decisão recorrida, declarando que o imóvel é bem próprio da cabeça-de-casal e que as obras realizadas no imóvel pelo casal constituem benfeitorias. * Inconformado com essa decisão, o ex-cônjuge marido dela interpôs recurso de revista, formulando as seguintes conclusões: A – O objeto do recurso configura-se apenas em relação ao segundo segmento versado sobre a terceira questão identificada pelo douto acórdão recorrido e sobre o qual o recorrente não se conforma, a saber, a apelação é «parcialmente procedente, revogando a decisão recorrida na parte em que decide que tendo em conta o valor atribuído às benfeitorias e o valor do terreno e da construção já existente, para efeitos do n.º 1 do art.º 1726º do C. Civil, assume o bem a natureza de bem comum do casal, a qual, nessa parte, será substituída por outra que decide considerar o valor das obras realizadas no imóvel que é bem próprio da cabeça de casal, como benfeitorias». B – O douto acórdão recorrido afirma que que apenas quando se está em face de uma habitação que já existia e era bem próprio de um dos cônjuges, tendo apenas sido melhorada e/ou ampliada se estará perante benfeitorias; contudo, neste mesmo acórdão foi decidido, quanto à primeira questão – que não integra o presente objeto de recurso – que «(…) o resultado do relatório pericial é que as obras, para além de ampliação, foram também de alteração, mas igualmente de reconstrução, já que se fala em demolição e ampliação, o que significa que houve também reconstrução das partes demolidas». C – Anteriormente à construção não havia uma habitação, nem, pelo menos, foi habitação do casal dissolvido. D – A decisão quanto ao segmento da terceira questão em causa estará a beneficiar, de forma substancial e indevida algo que quase não tinha valoração, atentos os valores em causa: a diferença substancial entre um terreno avaliado em € 47.090,00 e a construção antiga em € 12.550,00, face ao valor das benfeitorias de € 296.629,00, valor este que tampouco considera o próprio terreno. E – No entendimento dado no douto acórdão em crise, sempre se estaria em presença de um verdadeiro abuso de direito, na sua modalidade de “desequilíbrio no exercício”, atenta a violação da justa medida, numa “desproporção grave”, atento o sacrifício imposto ao recorrente em face do exercício do direito da recorrida, exercício este, pela sua desproporção, correspondente a um dano intenso e injustificado. F – Por decorrência das anteriores argumentações, a construção de uma moradia (no caso com piscina) por ambos os cônjuges num terreno de diminuto valor, tendo uma construção antiga com um valor equivalente a menos de 24 vezes o custo da construção nova – emergindo dessa forma algo de novo – corresponde a um prédio novo com identidade própria, como um bem comum do casal, sem prejuízo da devida compensação aquando a partilha do património comum do casal. G - É este o entendimento que se deverá retirar do previsto no art.º 1274º do CC – ao prescrever que no regime de comunhão de adquiridos, fazem parte do património comum do casal os bens por estes adquiridos que não estejam legalmente excluídos – sendo que, de acordo com o art.º 1276º do mesmo diploma legal que «os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e outra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações», sem prejuízo da devida compensação. H - Verifica-se, assim, quanto à matéria de direito que a interpretação jurídica realizada pelo douto acórdão – e sempre salvo o devido respeito -, está incorreta, porquanto violou o previsto nos artigos 1274º e 1276º do Código Civil, bem como o artigo 334º, igualmente do Código Civil, o que uma interpretação conforme estas normas e os factos provados determinaria que o prédio construído pelo casal divorciado ser relacionado, como bem comum, sob a verba n.º 1, sem prejuízo da devida compensação à recorrida. NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER PROCEDENTE, ASSIM SE REALIZANDO O DIREITO E FAZENDO JUSTIÇA. * A ex-cônjuge mulher apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido. * Neste Supremo Tribunal de Justiça o relator proferiu despacho determinando que, nos termos do disposto na parte final do n.º 1 e no n.º 3, do art.º 272.º, do C. P. Civil, os autos aguardassem a votação e publicação do Acórdão, na Revista Ampliada n.º 985/20.0T8VCD-B.P1.S1, grosso modo, sobre a questão jurídica objeto desta revista. Publicado esse acórdão o relator proferiu nos autos o seguinte despacho: “Como prenunciado no anterior despacho proferido no âmbito desta revista, no dia 10 de setembro de 2025 foi publicado no Diário da República n.º 174/2025, Série I de 2025-09-10, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2025, de 10 de setembro, de uniformização de jurisprudência (AUJ n.º 9/2025), nos termos previstos no art.º 686.º, do C. P. Civil, decidindo que: “A obra edificada (casa de morada de família) por dois cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, com dinheiro ou bens comuns, em terreno próprio de um deles, constitui coisa nova que é bem próprio do cônjuge titular do terreno e dá lugar a um crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial”. A questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pelo Recorrente consiste em saber se o imóvel deve ser declarado bem próprio do ex-cônjuge mulher e as obras nele realizadas pelo casal, como benfeitorias, como decidiu o tribunal a quo ou se o imóvel deve ser declarado bem comum e a Recorrida compensada, nos termos do n.º 2, do art.º 1726.º, do C. Civil, como decidiu a 1.ª instancia e pretende o Recorrente. Confrontado o objeto da revista com o AUJ n.º 9/2025 constatamos que o mesmo estabelece doutrina uniformizadora no sentido de que A obra edificada … é bem próprio do cônjuge titular do terreno, sentido de decisão que também informa o acórdão recorrido, mas decide diversamente deste em relação ao que denomina de crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, que o acórdão recorrido decidiu “…considerar o valor das obras realizadas no imóvel que é bem próprio da cabeça de casal, como benfeitorias”. Como também resulta do confronto entre o AUJ n.º 9/2025 com o voto de vencida nele exarado pela Exm.ª Conselheira, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, que declarou que Aplicaria o regime das benfeitorias (úteis), o crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial decidido pelo AUJ n.º 9/2025 não se confunde com as benfeitorias decididas pelo tribunal a quo. Atento o objeto destes autos de revista, decorrente da reclamação à relação de bens, importará determinar o que é que, em concreto, constará na relação de bens como património comum. Dispondo a parte final do n.º 1, do art.º 1789.º, do C. Civil, que “Os efeitos do divórcio …retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges” um dos sentidos de decisão possíveis será a inscrição na relação de bens do crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com o valor da obra na data a que se reporta o art.º 1789.º, n.º1, do C. Civil, citado, e eventuais juros moratórios até à data da partilha ou outra, mas outros sentidos de decisão haverá. Tratando-se de uma questão nova, sobre a qual as partes não tiveram oportunidade de se pronunciar, atento o disposto nos n.ºs 1 e 3, do C. P. Civil, este Supremo Tribunal de Justiça não poderá dela conhecer sem que as partes exerçam o seu direito de contraditório, pronunciando-se sobre a mesma na extensão que considerem adequada à defesa dos seus interesses. Assim, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 655.º, do C. P. Civil, determino a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, dias sobre a questão cuja conformação agora delineámos, no prazo de dez dias.”. * Na sequência da notificação do despacho antecedente: - O Recorrente apresentou requerimento pronunciando-se no sentido de que a compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova deverá constar na relação de bens, como ““crédito a favor do património comum do casal”, embora avaliado pela regra das benfeitorias úteis, avaliação que deverá ter conta o bem da obra nova em comparação com o imóvel pretérito (terreno e ruinas), à data da partilha”. - A Recorrida apresentou requerimento dizendo, além do mais, que o valor do crédito do património comum deve corresponder às benfeitorias realizadas no imóvel, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, devendo constar na relação de bens o valor de € 132.439,76 ou não existindo nos autos elementos factuais que permitam estabelecer o efetivo custo das benfeitorias deverão os autos descer à primeira instância. * 2. Fundamentação. A) Os factos. A matéria de facto a considerar é a que resulta do relatório deste acórdão, sendo certo que as instâncias não fixaram autonomamente a base fáctica em que se estruturaram as suas decisões. * B) O direito aplicável. O conhecimento deste Supremo Tribunal, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto da revista, é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2, 639.º 1 e 2, do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso), observando, em especial, o estabelecido nos art.ºs 682.º a 684.º, do C. P. Civil. Atentas as conclusões da revista, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pelo Recorrente consiste tão só, em saber se o imóvel deve ser declarado bem próprio do ex-cônjuge mulher e as obras nele realizadas pelo casa, como benfeitorias, como decidiu o tribunal a quo ou se o imóvel deve ser declarado bem comum e a Recorrida compensada, nos termos do n.º 2, do art.º 1726.º, do C. Civil, como decidiu a 1.ª instancia e pretende o Recorrente. Conhecendo. A questão que constitui o objeto da presente revista tem na sua base um facto complexo identificado na decisão da primeira instância que decidiu a reclamação à relação de bens, a saber, que o casal que foi constituído pelo Recorrente e pela Recorrida realizaram obras de “…reconstrução e ampliação de uma casa antiga de dois pisos, com logradouro e anexos, que é bem próprio da Cabeça-de-casal, por haver sido doada pela sua mãe, tal como, aliás, consta do respetivo registo predial” e que, em substância, é composto de dois factos, a saber, um primeiro facto, que é a titularidade do direito de propriedade da Recorrida sobre o imóvel e um segundo facto, que é a realização pelo casal de obras de reconstrução e ampliação. O cerne da decisão a proferir sobre esta mesma questão, que as instâncias decidiram em oposição, situa-se em saber, relativamente aos identificados factos, o que é comum dos ex-cônjuges que deve ser partilhado e que como tal deve ser inscrito na relação de bens e o que constitui bem próprio do ex-cônjuge titular registral. Tratando-se de questão objeto de decisões judiciais divergentes foi a mesma decidida neste Supremo Tribunal de Justiça pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 9/2025, de 10 de setembro1, no sentido de que: “A obra edificada (casa de morada de família) por dois cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, com dinheiro ou bens comuns, em terreno próprio de um deles, constitui coisa nova que é bem próprio do cônjuge titular do terreno e dá lugar a um crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial”. Esta jurisprudência, que aqui tem plena aplicação, permite-nos, desde já, concluir em relação ao litígio sub judice que o imóvel dos autos constitui bem próprio da Recorrida, não integrando os bens comuns do casal e não tendo nessa qualidade que ser levado à relação de bens para efeitos de partilha. Como bem comum do casal e para efeitos de partilha o que tem que ser levado à relação de bens, nos próprios termos do Acórdão Uniformizador, é “…um crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial”. Tendo subjacentes razões de celeridade, economia e eficácia processuais, Recorrente e Recorrida foram ouvidos nos autos sobre a natureza deste crédito em ordem a apurar-se da possibilidade de nestes mesmos autos se poder decidir “…o que é que, em concreto, constará na relação de bens como património comum”, tendo esgrimido as divergências evidenciados pelo relatório supra, quanto ao tempo e modo de cálculo do crédito de compensação determinado pelo Acórdão Uniformizador. Nestas circunstâncias processuais, não poderá ser proferida por este Supremo Tribunal de Justiça, que é um tribunal de recurso de revista e não um tribunal de instância com plena competência em matéria de facto, decisão sobre tais divergências, por não se encontrar fixada a matéria de facto pertinente, com contraditório das partes e decisão das instâncias e por a questão, ela mesma, não ter sido objeto de decisão de direito, não podendo o conhecimento e decisão deste Supremo Tribunal ir além do que decorre do objeto da revista. E assim, improcedendo a revista no que respeita à natureza do imóvel em causa, que é um bem próprio da Recorrida e nessa qualidade não integrará a relação de bens, procede a mesma em parte que respeita ao bem comum a ser levado à relação de bens, que é “…um crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial”, de valor ilíquido, como determina a al. c), do n.º 1, do art.º 1098.º, do C. P. Civil. A revista não pode, pois, deixar de ser concedida em parte, no que respeita ao bem comum que deve ser levado à relação de bens e que é o crédito de compensação do património comum sobre o património da Recorrida, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, com valor ilíquido. * 3. DECISÃO. Pelo exposto, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcialmente a revista no que respeita ao bem comum que deve ser levado à relação de bens e que é o crédito de compensação do património comum sobre o património da Recorrida, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, com valor ilíquido. Custas pelo Recorrente e pela Recorrida, na proporção de 4/5 pelo primeiro e 1/5 pela segunda, por lhes terem dado causa nessa estimada proporção, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2, do art.º 527.º, do C. P. Civil. Lisboa, 06-11-2025 Orlando Nascimento (relator) Emídio Santos Carlos Portela __________
1. Publicado no Diário da República n.º 174/2025, Série I de 2025-09-10. |