Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
71/15.5JDLSB.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: BURLA QUALIFICADA
FALSIFICAÇÃO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
Data do Acordão: 02/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGA-SE PROVIMENTO AO RECURSO
Área Temática:
DIREITO PENAL – FACTO / FORMAS DO CRIME / CONCURSO DE CRIMES E CRIME CONTINUADO.
Doutrina:
- Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Penal, p. 91-100;
- Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª ed., p. 988-989 e 1007;
- Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, 2ª ed., p. 60.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 30.º, N.º 1.
Sumário :
I - De acordo com o art. 30.º, n.º 1, do CP, em caso de repetição da conduta, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Este preceito consagra um critério teleológico, e não naturalístico, para distin-guir entre unidade e pluralidade de crimes. A uma única conduta naturalística podem corresponder vários crimes (tantos quantos os tipos de crime violados); a várias condutas naturalísticas subsumíveis ao mesmo tipo legal pode corresponder um único crime. Neste último caso, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas. Sempre que exista uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e portanto existirá apenas um crime. Caso haja sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e portanto de infrações. A unidade de infrações pressupõe porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas ações naturalísticas. É este basicamente o critério vertido no nº 1 do art. 30º do CP, segundo a lição de Eduardo Correia.
II - Esta posição foi porém rejeitada por Figueiredo Dias há alguns anos, pro-pondo como critério fundamental da unidade ou pluralidade de infrações o da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica. No entanto, o mesmo autor reconhece que, quando apenas um tipo legal for violado, “será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível; a qual, no entanto, também ela, pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente.”
III - Analisados os factos dos autos, conclui-se pela unidade criminosa, ou seja, pela prática de um só crime de burla qualificada e de um único crime de falsificação, dada a unidade de resolução que presidiu a todo o comportamento do arguido desde o início até ao final. Com efeito, ele agiu aproveitando-se das facilidades concedidas pelas funções de “tesoureiro de facto” da assistente e da confiança que nele depositava a administração da mesma, situação que se manteve ao longo de toda a atividade criminosa, atividade que o arguido desenvolveu sem interrupções temporais significativas, tudo isto revelando uma única vontade, que perdurou desde a resolução inicial até ao termo do comportamento ilícito. Este quadro fáctico aponta indubitavelmente para a unidade de resolução e consequentemente para a unidade de crimes. Aliás, mesmo à luz da conceção de Figueiredo Dias, a mesma conclusão é inevitável, pois todo o comportamento do arguido assume indiscutivelmente um “sentido de ilicitude” unitário.

Decisão Texto Integral:

                Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório

           AA, com os sinais dos autos, foi condenado no Juízo Central Criminal de ..., da Comarca de ..., por acórdão de 13.7.2018, nas seguintes penas:
- por um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, a), do Código Penal (CP), na pena de 5 anos e 3 meses de prisão;
- um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, a) e e), e 3, do CP, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, foi o arguido condenado na pena única de 6 anos de prisão.

Foi ainda o arguido condenado a pagar à demandante/assistente BB, S.A. a quantia de € 1.544.242.[1]

Desta decisão recorreu o arguido, que alega em conclusão:

1. O recorrente foi condenado pela prática dum crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artºs 217º nº 1 e 218º nº 2 al. a) do Código Penal cuja moldura penal, em abstracto, é de pena de prisão de 2 (dois) a 8 (oito) anos de prisão, e, foi condenado num crime de falsificação de documento, crime este previsto e punido pelo art. 256º nº 1 als. a) e e), e nº 3 do Código Penal, cuja moldura penal, em abstracto, é de pena de prisão de 6 (seis) meses a 5 (cinco) anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.

2. Concretamente foi condenado, parcelarmente, nas penas de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses, e, 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses e em cumulo em tempo de 6 (seis) anos de prisão com o fundamento, sucinto, de elevadas exigências de prevenção geral, grau de ilicitude dos factos, intensidade dolosa, consequências, admissão quase integral dos factos, suas condições sociais, e,

3. Não obstante a ausência de antecedentes criminais, as elevadas exigências de prevenção especial. Assim,

4. O recorrente foi severamente condenado em prisão efectiva porque o Tribunal ad quo bastou-se na convicção da manutenção do passado modo de vida em desafogo financeiro, logo potencial factor de risco em termos de reinserção social. Ora,

5. A aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, artº 40º nº 1 do CP sendo que a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa, nº 2 do artº 40º do CP).

6. E, na determinação da medida da pena deve-se atender às circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor e/ou contra o agente, artº 71º do CP.

7. Ora, na determinação da pena de que se recorre, tanto parcelar como cumulada, com o devido respeito, mas o Tribunal não teve em consideração factores que deveriam ter prevalecido, mormente que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva.

8. In casu, o grau de ilicitude dos factos, no que ao recorrente diz respeito, pese se possa entender, tal como se entendeu no douto acórdão ora recorrido, como elevado, não se alcança que se verificam prementes exigências de prevenção especial, sendo certo que se perspectiva, pese humilde, mas uma relativa estabilidade social, e, no que tange ao laboral de momento, por já estar a trabalhar, não se pode aferir que o recorrente é irrecuperável e essa recuperabilidade se verifica em presídio.

9. Donde, se não pode concordar, com o devido respeito, pelo douto entendimento perfilhado de que “ … a gravidade objectiva dos factos na sua globalidade, e as elevadas exigências de prevenção, afastam a opção por pena não privativa da liberdade.”

10. Ainda, não se pode acompanhar uma vez que o sistema presidiário ainda não se adaptou aos fins das penas por dificuldades várias e em especial por falta de recursos humanos e económicos (atente-se que foi legislado em Agosto do último ano em que para suster o presídio carcerário se legislou no sentido da prisão domiciliária com recurso aos meios electrónicos ou até nas penas de curta duração serem convertíveis em trabalho a favor da comunidade ou em multa).

11. Assim, a reclusão para o recorrente não é remédio.

12. Atente-se que o recorrente, dada a sua já larga idade cronológica 56 anos, a súbita mudança de modo de vida, o arrependimento manifestado ao Tribunal e toda a sua vida passada e no até hoje com excepção dos autos em causa, sempre procurou ter e levar uma vida conforme o Direito.

13. Deste modo, respeitosamente, entende-se que deveria ser reformulada a medida das penas.

14. A pena em que foi condenado pela prática do crime de burla, 5 anos e 3 meses, sendo um crime punível em pena de 2 a 8 anos de prisão, situa-se no quase limite máximo da punibilidade, quando, face aos demais elementos abonatórios e que devem ser tomados em consideração, entende-se que impõem, dado que se pretende recuperar um cidadão, que seja punido em pena abaixo do meio da pena prevista, assim, parece-nos curial e justo que o recorrente deva ser condenado pela prática do crime de burla em pena inferior a 4 anos de prisão.

15. E, no que tange à prática do crime de falsificação de documento, crime que foi cometido em simultâneo com o crime de burla e para a consumação daquela, a pena em que foi condenado é demasiada excessiva.

16. Se o crime de falsificação de documento é punido com uma pena de 6 meses a 5 anos ou em multa de 60 a 600 dias, se o Tribunal entendeu, respeitosamente, ser de afastar a pena de multa, então deveria punir o recorrente em medida de prisão, se não próximo do mínimo que a mesma ficasse a meio do meio previsto.

17. Assim, salvo douto entendimento diferente, as penas de prisão deveriam ser estabelecidas em:

- 3 anos e 6 meses pelo crime de burla;

- 1 ano e 6 meses de prisão pelo crime de falsificação de documento

18. E no seu cômputo cumulatório, deveria ser fixada uma pena única de 5 anos, suspensa na sua execução mas sujeita ao regime de prova que melhor e doutamente fosse entendido.

19. Pois que o recorrente manifestou humildade, arrependimento, procurou inserir-se na sociedade laboral e assim afastou, até porque divorciado e já separado da então sua família, o fim último da ratio da prática do crime em que foi condenado.

20. É verdade que não reparou o mal que fez, todavia tal facto é-lhe impossível se bem que vontade para tal tivesse.

21. Mas em liberdade, em pena suspensa e com actividade laboral, logo com rendimento, quiçá um dia possa ressarcir quem prejudicou e repor o quantum que desviou, pois do futuro nada se sabe.

22. Doutra forma, em presídio, sem rendimentos e coarctado da possibilidade de viver a sua vida e no mundo laboral e social, pese do futuro nada possa prever mas o mais negro o será concerteza, correndo o perigo de por em prática os ensinamentos na escola do crime.

23. Tal quer dizer, que a punição é sancionatória e não preventiva nem ressocializadora.

24. Mas temos que acreditar no homem porque o recorrente reconheceu que errou, mostrou-se arrependido e manifestou ensejo de jamais repetir o erro que cometeu.

25. Desta forma, a pena a aplicar em cúmulo deveria situar-se nos 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, mas sujeita ao regime de prova.

26. Pois que, desta forma, sinceramente, além de justa seria recuperável e com tal não se corre o risco de, dada a vulnerabilidade presidiária, enveredar pela ilicitude.

27. Só em última ratio deve ser aplicada pena de prisão efectiva.

28. Pois que : “… as decisões dos tribunais não podem ter essa função exagerada de repressão.”

acórdão TRL de 17/05/2012 proc. nº 744/09.1SGLSB.L1

            Respondeu o Ministério Público, dizendo:

            1ª - Por douto acórdão, proferido nos autos em 13-7-2018, foi o arguido AA condenado na pena de 6 anos de prisão, pela prática, em concurso efectivo, de crimes de burla qualificada e falsificação de documentos.

2ª - Nenhum reparo nos merece a qualificação jurídico-penal dos factos praticados pelo arguido, assim como a pena única que lhe foi imposta.

3ª - Mostra-se adequada à conduta do arguido, a pena de prisão em que o mesmo foi condenado, nos termos dos art°s. 70° e 71° do C. Penal.

4ª - A qual não pode ser reduzida, atenta a gravidade dos factos em presença, praticados durante cerca de 14 anos e a indisponibilidade manifestada, pelo arguido, de efectuar o ressarcimento da lesada. Pelo que, são elevadas as necessidades de prevenção geral e especial.

5ª - Também não pode ser suspensa, na sua execução, porquanto não se verificam os pressupostos do art. 50° do C. Penal.

6ª - Não foi violado qualquer preceito legal.

Respondeu também a assistente/demandante, alegando:

A. O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões.

B. No caso concreto o Recorrente apenas recorre quanto à medida da pena que entende ser elevada, defendendo que deve ser reduzida para 5 anos, e suspensa na sua execução sujeita ao regime de prova.

C. O Recorrente defende que a pena de 6 anos é desadequada e que viola os princípios basilares do Estado de Direito Democrático…

D. Diga-se desde já que, salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão ao Recorrente, não merecendo qualquer censura o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo.

E. Violador dos princípios basilares do Estado de Direito Democrático foram os comportamentos do Recorrente, reiterados, ao longo de quase 15 anos.

F. Violador dos princípios basilares do Estado de Direito Democrático era punir o comportamento do Recorrente com outra pena que não fosse a de prisão efectiva.

G. O Tribunal a quo analisou, decidiu, e fundamentou a medida da pena que aplicou ao Recorrente.

H. As penas isoladas, aplicadas ao crime de burla qualificada e falsificação, situam-se perto do meio da moldura pena de cada uma dessas penas em abstracto,

I. Enquanto a ilicitude e a culpa do Recorrente são muitíssimo elevadas.

J. A forma como o Recorrente praticou os crimes, ao logo de quase 15 anos, beneficiando da confiança que a Recorrida depositava nele, apropriando-se de uma quantia muitíssimo elevada, ou seja, € 1.544.242,00, utilizando um plano previamente elaborado, e muita astúcia no seu desenrolar,

K. Acrescido do facto dos motivos da apropriação do valor serem totalmente fúteis, ou seja, o Recorrente utilizou o valor para adquirir bens de consumo, e ter um vida mais desafogada, isto é, para viver acima das suas possibilidade à conta do dinheiro de outros,

L. Bem como sem nunca ter demonstrado arrependimento, ou sem nunca ter praticado qualquer acto no sentido de ressarcir a Requerida,

M. Manifesta suficientemente e amplamente o elevado grau de ilicitude e culpa.

N. O Recorrente foi totalmente insensível, mesmo cruel, porque este sabia das enormes dificuldades que a Recorrida, e consequentemente, todo o grupo, estava a passar nos anos críticos de 2011 a 2014, e que podia colocar em risco a vida económica de todos os seus colegas e suas famílias, à altura perto de 120 colaboradores.

O. O Recorrente foi implacável e, por tudo o que fez, DEVE ser condenado a pena efetiva de prisão.

P. Caso se entenda que a pena de 6 anos, aplicada pelo Tribunal a quo, deve ser reduzida para 5 anos, tal como o Recorrente defende, o que não se aceita e apenas por uma questão de patrocínio se admite, há que ter em atenção que a suspensão da execução da pena não tem aplicação automática nos casos em que a pena de prisão não seja superior a cinco anos.

Q. O Recorrente defende, sem mais, a redução da pena de prisão para os 5 anos com a consequente suspensão da execução sujeita ao regime de prova, como se essa suspensão operasse automaticamente, bastando para tal esse requisito dos 5 anos… O que não é verdade.

R. Nos termos do n.º 1, do artigo 50.º, do Código Penal, para que o tribunal possa suspender a pena de prisão aplicada, tem de existir um primeiro requisito, sob pena de não ser possível a suspensão, que é o tal requisito da pena não ser superior a 5 anos, mas posteriormente têm de se verificar os restantes requisitos, a saber, se a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime, as circunstâncias deste, levam a concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficientes as finalidades da punição.

S. Como é óbvio, e por demais evidente, no caso concreto, mesmo que a pena de prisão não fosse superior a 5 anos, o que não se aceita, tudo o resto não leva a concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficientes as finalidades da punição.

T. Do que ficou provado, e que o Recorrente nem coloca em causa, a sua personalidade é um risco, que o Tribunal a quo sublinhou, as suas condições de vida igualmente, não existiu qualquer comportamento anterior ou posterior à pratica do crime que demonstrasse arrependimento, os crimes foram cometidos ao logo de anos, aproveitando a confiança existente, num desvio brutal de dinheiro, por motivos puramente fúteis.

U. Tudo para concluir que, impendentemente da duração da pena de prisão, superior ou não a 5 anos, nunca a mesma poderia ser suspensa na execução, uma vez que não estão reunidos os requisitos para tal, isto é, pela gravidade do comportamento, a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficientes as finalidades da punição.

V. Tendo o Tribunal a quo, ponderada toda prova produzida, e todos os circunstancialismos relevantes, aplicado bem a lei ao caso concreto, tendo decidido, fundamentadamente, a aplicação, em cúmulo, de uma pena de prisão efectiva de 6 anos, a qual se deverá manter!

Neste Supremo Tribunal de Justiça, o sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

1. A única questão submetida a reexame é a medida das penas parcelares e da única.

Peticiona a redução das penas parcelares para 3 anos e 6 meses (burla) e 1 ano e 6 meses (falsificação), e da única, para 5 anos, suspensa na sua execução, com regime de prova.

 Admitindo que a ilicitude dos factos é elevada, considera que não se «verificam prementes exigências de prevenção especial», por se perspectivar uma relativa estabilidade social, dado que já está a trabalhar, e que «a sua já larga idade cronológica 56 anos, a súbita mudança de modo de vida, o arrependimento manifestado ao Tribunal» justificam as apontadas reduções das penas.

2. A Ex.ma Procuradora da República junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso (1714-1728), referindo, nomeadamente:

 «Conforme resulta do acórdão recorrido, é elevado o grau de ilicitude dos factos, tendo em conta o valor do prejuízo causado – o qual ascende ao montante de € 1.544.242,00 e o período de tempo (conhecido) ao longo do qual perdurou a conduta delituosa – de 26-10-2001 a 4-2-2015.

 Por outro lado, o dolo, sendo directo, assume a sua modalidade mais intensa e a culpa é acentuada.

 O arguido assumiu quase integralmente a prática dos factos, em julgamento. Porém, embora verbalizasse algum arrependimento não manifestou qualquer intenção de ressarcimento da lesada. O que levanta sérias dúvidas sobre o seu verdadeiro arrependimento.»

E no que respeita à suspensão, aditou que «atenta a medida concreta da pena, a gravidade da conduta do arguido e a sua personalidade, não poderá senão fazer-se um juízo de prognose desfavorável, o que afasta, desde logo, a possibilidade de redução da pena única e a sua suspensão.»

3. Respondeu, igualmente, a assistente (1729-1736), concluindo, também, pela improcedência do recurso.

 Refere, nomeadamente, que a ilicitude e a culpa são muitíssimo elevadas, face à «forma como o Recorrente praticou os crimes, ao longo de quase 15 anos, beneficiando da confiança que a Recorrida depositava nele, apropriando-se de uma quantia muitíssimo elevada, ou seja, € 1.544.242,00, utilizando um plano previamente elaborado, e muita astúcia no seu desenrolar, K. Acrescido do facto dos motivos da apropriação do valor serem totalmente fúteis, ou seja, o Recorrente utilizou o valor para adquirir bens de consumo, e ter uma vida mais desafogada, isto é, para viver acima das suas possibilidades à conta do dinheiro de outros, L. Bem como sem nunca ter demonstrado arrependimento, ou sem nunca ter praticado qualquer acto no sentido de ressarcir a Requerida…. N. O Recorrente foi totalmente insensível, mesmo cruel, porque este sabia das enormes dificuldades que a Recorrida, e consequentemente, todo o grupo, estava a passar nos anos críticos de 2011 a 2014, e que podia colocar em risco a vida económica de todos os colegas e suas famílias, à altura com perto de 120 colaboradores.»

3.

3.1 Sem necessidade de acrescidas considerações, acompanhamos cabalmente a fundamentação do acórdão recorrido, a fls. 1687-1690, e ênfase que lhe é conferida pelas respostas acima sintetizadas.

Na verdade, não se vislumbra que as penas fixadas sejam merecedoras de censura correctiva, enquadrando-se dentro das molduras da culpa e prevenção, e obedecendo aos princípios gerais que a devem determinar

Em suma: É evidente ser de grau superior a ilicitude do facto, quer no que respeita à falsificação, quer quanto à burla.

 De igual modo é de grau muito elevado a culpa do arguido.

 Por outro lado, não se detectam circunstâncias atenuantes que justifiquem a pretendida redução.

 Embora tenha confessado os factos, não conseguiu “justificar a sua actuação, referindo que «ajudou senhoras em dificuldades», admitindo que adquiriu com os montantes de que se apropriou os bens apreendidos, limitando-se a verbalizar arrependimento, escudando-se numa postura de desculpabilização e vitimização, mencionando a tal respeito que se assistente se tivesse apercebido logo do sucedido, não teria prosseguido com a sua conduta” !!! (bold e sublinhado nossos - fls. 1669).

 Não obstante ser primário, tal como o acórdão recorrido salienta, são sensíveis as exigências de prevenção especial, nomeadamente se se atentar que tem “necessidade de ser valorizado por terceiros ou de usufruir de um bom nível de vida… Em termos de avaliação de risco, sobressaem… à necessidade de se promover junto de terceiros através de uma boa situação económica, ao desejo de ter um modo de vida mais desafogado financeiramente…”.

3.2 Finalmente, na ponderação do ilícito global, personalidade do arguido e sua projecção nos crimes praticados, a pena de a pena única, fixada em 6 anos de prisão, dentro da moldura do concurso de 5 anos e 3 meses a 7 anos e 7 meses de prisão, é perfeitamente adequada, respondendo às muito fortes exigências de prevenção geral e fortes de prevenção especial, ou seja, acata os critérios fixados no art. 77.º do Cód. Penal.

4. Em conclusão e pelas razões expostas, somos do parecer que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), respondeu o arguido desta forma:

- Efectivamente, a única questão apresentada pelo arguido recorrente é o reexame da medida das penas parcelares e única;

- E tal pedido resulta por, no seu modesto entendimento, a pena lhe aplicada ser excessiva e além de não ressocializadora é contrária ao efeito de integração na sociedade.

- Com efeito, o arguido recorrente confessou os factos e, se bem que não tenha conseguido explicar os seus actos, mormente a sua razão, a verdade é que se mostrou arrependido.

- E se, subjectivamente, o arguido recorrente, segundo a técnica que elaborou Relatório Social, “(…) apresenta alguns factores de risco ligados sobretudo a questões do foro económico e presentemente à sua situação de maior fragilidade a esse nível…” a verdade é que a mesma logo concluiu que o arguido recorrente “(…) revela algum dinamismo e capacidade para encontrar alternativas que poderão contribuir para a sua reinserção…”.

- E, de facto, o arguido recorrente, “Na sequência dos alegados acontecimentos (…) demitiu-se da empresa onde trabalhava na época, e desde então tem tido uma actividade profissional irregular ligada ao sector comercial e imobiliário e como motorista da ..., por conta própria, com alguns projectos de continuidade em ambas as actividades.”

- Daqui flui que o arguido recorrente, pese primário, tem perfeita consciência do retomar da sua vida na sociedade conforme o Direito. Aliás,

- Os presentes autos foram e são, até aos dias de hoje, o único entrave na sua vida.

- Não nega nem sente prazer pelos seus actos, mas tem consciência, aliás ao longo deste tempo demonstrada, que é capaz de responder e de, como cidadão, viver na sociedade com e em conformidade do Direito, logo, mantendo boa conduta e daí sem necessidades de maior para a sua socialização tanto mais que nunca mais se verificará reincidência. E,

- Como sempre, está predisposto a reparar a vítima dentro das suas vindouras capacidades vivenciais.

- Tem consciência dos seus actos que foram extremamente negativos e jamais os repetirá porque quer com honradez viver o resto da sua vida e cumprir os seus compromissos.

Perante estas circunstâncias e tendo em consideração que a determinação concreta da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção especial e geral (cfr. artº 40º e 71º do CP) entende a defesa que a pena a aplicar ao arguido não deverá ser superior, em cúmulo, a 5 anos e esta suspensa na sua execução, por se afigurar medida suficiente, adequada e proporcional ao caso e às suas especificidades, tendo em conta, até, que o crime de falsificação de documento pode ser punível, cfr. nº 3 do artº 256º do CP, em pena de multa.

Pelo que V. Exas., Colendos Juízes Conselheiros, sabiamente, ao dar procedimento ao pedido, estarão a colaborar na recuperação deste homem.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. A única questão colocada pelo recorrente é a da medida da pena.

Entende ele que as penas parcelares deveriam ser reduzidas para 3 anos e 6 meses de prisão quanto ao crime de burla, e de 1 ano e 6 meses quanto ao de falsificação, e, em cúmulo, ser fixada uma pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, ainda que com regime de prova.

Assenta basicamente a sua pretensão na confissão e no arrependimento, na sua “já larga idade cronológica, 56 anos” sem outros factos ilícitos que não os dos autos, e na inadequação da pena efetiva de prisão para punir a sua conduta, pelos efeitos danosos quanto à ressocialização, contestando ainda a existência de prementes de razões de prevenção especial na punição.

2. É a seguinte a matéria de facto apurada:

1 - A assistente BB, S.A., tem por actividade, entre outras, o aluguer de automóveis ligeiros, de passageiros e mercadorias com e sem condutor, importação e comercialização e reparação de automóveis, manutenção e reparação mecânica, eléctrica e electrónica de veículos automóveis e de suas partes e peças, e tem sede na ...

2 - No dia 5 de Junho de 2000 o arguido AA foi admitido pela assistente para desempenhar funções de escriturário de 1.ª, na sede da mesma, e no mês de Janeiro do ano de 2011 foi promovido à categoria de escriturário profissional, o que se verificou até ao dia 12 de Fevereiro de 2015.

3 - Contudo, na prática, o arguido assumiu as funções de tesoureiro da assistente desde o mês de Julho de 2001, competindo-lhe, designadamente, a movimentação e o controlo de contas, o recebimento de cheques e transferências bancárias de clientes, a emissão de cheques e documentos de lançamento para a contabilidade, o pagamento a fornecedores e o controlo das respectivas contas correntes, contactando pessoalmente com clientes e fornecedores, bem como registar diariamente estes movimentos de entrada e de saída de dinheiro, informática e contabilisticamente, e efectuar reconciliações bancárias.

4 - Para o exercício de tais funções foi-lhe disponibilizado o acesso às contas bancárias da assistente, e demais documentação e títulos de crédito com elas conexas, bem como às aplicações informáticas e credenciais necessárias à sua gestão e movimentação.

5 - Em data não concretamente apurada, mas pelo menos entre 26 de Outubro de 2001 e 4 de Fevereiro de 2015, o arguido decidiu valer-se da qualidade e disponibilidade proveniente do exercício dessas suas funções e da confiança que em si depositavam os membros da direcção e administração da assistente, para desviar e se apropriar de quantias pertencentes a esta sociedade, as quais destinou à conta bancária de que é co-titular com a arguida CC, no ... Banco, com o NIB ....

6 - Mais decidiu o arguido valer-se da circunstância de a assistente efectuar pagamentos mensais a fornecedores na ordem dos € 500.000,00 (quinhentos mil euros) e da administração e direcção apenas conferirem as datas e os valores que lhe apresentava para autorizarem pagamentos, bem como do conhecimento proveniente do exercício dessas suas funções para ocultar tal subtracção de valores, o que fez designadamente através da adulteração e eliminação de ficheiros e dados contabilísticos, e dos respectivos documentos justificativos, da manipulação de contas e dos ficheiros de reconciliação bancária. No referido contexto,

7 - Entre os anos de 2001 a 2008 o arguido utilizou cheques sacados sobre contas tituladas pela assistente no (então) XX e no YY, os quais preenchia e emitia à ordem dos CTT e apresentava ao administrador e ao director financeiro da assistente para que estes os assinassem, informando-os que se destinavam ao pagamento de serviços efectivamente prestados pela PT Comunicações à EE.

8 - Após estarem assinados o arguido alterava a denominação do beneficiário dos cheques, apondo por cima do escrito “CTT” o nome da arguida CC e o nome fictício de DD, e seguidamente escrevia estes respectivos nomes no verso dos cheques logrando assim endossá-los e depositá-los na referida conta bancária pertencente ao ... Banco de que é co-titular com a arguida.

9 - Seguindo este procedimento o arguido emitiu setenta e dois cheques [cinquenta e nove pertencentes a conta bancária da assistente no (então) XX e treze no YY], e depositou as quantias neles apostas na referida conta co-titulada com a arguida no ... Banco, no total de € 426.490,19 (quatrocentos e vinte e seis mil, quatrocentos e noventa euros e dezanove cêntimos), assim discriminados: (…)

10 - Para ocultar tal actuação o arguido não registou contabilisticamente todos os cheques que depositou na conta de que era co-titular com a arguida, e os registados foram objecto de estorno individual ou colocados em aberto na reconciliação bancária, e manipulou ficheiros de reconciliação bancária de modo a encaixar as verbas que ia subtraindo.

11 - Entre Agosto de 2007 a Março de 2012, na prossecução do mesmo plano de apropriação de quantias pertencentes à assistente, o arguido passou a utilizar uma aplicação bancária disponibilizada pelo ... Banco, denominada de PS2, através da qual eram enviadas a esta instituição bancária ordens de pagamento a fornecedores da EE, S.A..

12 - Para tanto, o arguido elaborava ficheiros nos quais fazia constar uma listagem de pagamentos a efectuar a fornecedores e a enviar à entidade bancária, e apresentava-os ao administrador e ao director financeiro da assistente para que estes os conferissem e assinassem.

13 - Após estarem devidamente assinados o arguido alterava os ficheiros na parte destinada ao nome e ao NIB de um fornecedor que constava da listagem, para o nome de “...” (sigla por si criada) e o NIB da conta de que é co-titular com a arguida no ... Banco, e enviava este ficheiro alterado, mas já devidamente assinado, à instituição bancária, para efeitos de processamento.

14 - Agindo deste modo, por noventa vezes, o arguido logrou que fosse transferido para a conta bancária de que é co-titular com a arguida no ... Banco o total de € 462.645,29 (quatrocentos e sessenta e dois mil, seiscentos e quarenta e cinco euros e vinte e nove cêntimos), assim concretizados: (…)

15 - Para dissimular esta sua actuação o arguido registava os valores transferidos na conta corrente de encontro de contas e noutras contas de passagem, e posteriormente fazia-os constar como regularizados pelas contas correntes de diversos fornecedores.

16 - De Março de 2012 a Fevereiro de 2015, na execução do mesmo plano, o arguido decidiu elaborar facturas fictícias para sustentar o envio de ordens de pagamento em nome da assistente ao YY, à ZZ e ao AAA, utilizando, para o efeito, o seu endereço de correio electrónico de trabalhador da EE, S.A., o qual estava autorizado ao envio de tais ordens em representação da assistente.

17 - Para que tais pagamentos fossem aprovados pela administração o arguido justificava-os como destinados à liquidação das facturas que criara, mas que não correspondiam a documentos originais e a serviços efectivamente prestados.

18 - Assim, o arguido apresentava à administração os documentos que corporizavam as ordens de transferência e as referidas facturas como documentos de suporte, e após as ordens estarem devidamente assinadas fotocopiava a assinatura que aí havia sido aposta pelo administrador da assistente e colava-a noutra ordem de transferência que criara com o mesmo valor mas com o nome do fornecedor “...” (sigla por si criada) e enviava-os às instituições bancárias.

19 - Agindo deste modo, por cento e dezasseis vezes, o arguido logrou transferir para a conta bancária de que é co-titular com a arguida o total € 655.106,52 (seiscentos e cinquenta e cinco mil, cento e seis euros e cinquenta e dois cêntimos), assim concretizados:

20 - Para ocultar tal subtracção de valores o arguido registava inicialmente as transferências na conta corrente de encontro de contas, na conta clientes e na conta fornecedores, e posteriormente reactivou cerca de oitenta contas de antigos clientes, inscrevendo nestas créditos e débitos, assim justificando os valores por si desviados.

21 - Com a conduta descrita o arguido logrou desviar e apoderar-se do valor total de 1.544.242,03 (um milhão, quinhentos e quarenta e quatro mil, duzentos e quarenta e dois euros) pertencente à assistente.

22 - Tal valor foi sendo creditado na identificada conta co-titulada pelos arguidos no ... Banco, com o NIB ..., a qual engloba duas contas que se encontram associadas: uma conta de depósito à ordem (n.º ...) e uma conta poupança (n.º ...), sendo que quando a de depósito à ordem não tinha saldo suficiente para as despesas diárias determinadas era automaticamente efectuada uma transferência da conta poupança para a de depósito à ordem, e sempre que a conta de depósito à ordem apresentava um saldo superior ao determinado era feita uma transferência no valor remanescente desta para a de depósito a prazo.

23 - Ao longo do período de tempo em apreço a identificada conta foi movimentada pelos arguidos, e com recurso ao dinheiro que nela foi sendo creditado o arguido procedeu ao pagamento de despesas gerais diárias próprias e do seu agregado familiar, tal como ao pagamento de € 1.000,00 (mil euros) mensais a título de renda pela casa de morada de família, no total de pelo menos € 14.000,00 (catorze mil euros), e adquiriu, entre outros, diversos bens de electrónica e informática, e três veículos automóveis: um Renault Megane, com a matrícula ...-UI, um Skoda 5J, com a matrícula ...-HH-..., e um Smart, MC, com a matrícula ...-PC.

24 - A arguida CC era titular de um cartão multibanco que estava associado à referida conta, tendo sido efectuados levantamentos de dinheiro que posteriormente foram depositados numa conta da ZZ (n.º ...) de que era a única titular – o que entre Abril de 2011 e Abril de 2015 se verificou num total de € 15.422,65 (quinze mil quatrocentos e vinte e dois euros e sessenta e cinco cêntimos) – e efectuou pagamentos de compras em diversas lojas, tais como das marcas Gant, Furla, Hugo Boss, Carolina Herrera, Lion of Porches, Calvin Klein.

25 - Entre Dezembro de 2009 a Janeiro de 2015 foram creditados na conta co-titulada pelos arguidos € 1.029.505,95 (um milhão, vinte e nove mil e quinhentos e cinco euros e noventa e cinco cêntimos), e debitados € 1.028.115,92 (um milhão, vinte e oito mil cento e quinze euros e noventa e dois cêntimos), e entre Dezembro de 2009 a Junho de 2015 foram efectuados levantamentos em caixas multibanco (ATM) em valor superior a € 385.000,00 (trezentos e oitenta e cinco mil euros) e pagamentos de compras e serviços num total superior a € 550.000,000 (quinhentos e cinquenta mil euros).

26 - Os arguidos contraíram casamento em 6 de Agosto de 1999, no regime de comunhão de adquiridos, e pelo menos à data dos factos em apreço viviam juntamente com os seus dois filhos, maiores, mas deles financeiramente dependentes, na residência sita na Rua ..., tendo o divórcio ocorrido em 29-10-2015.

27 - Nos anos em referência o arguido auferiu um vencimento mensal no valor de cerca de € 900,00 (novecentos euros) e a arguida no valor de cerca de € 700,00 (setecentos euros), e a conduta do arguido supra descrita permitiu-lhes que tivessem gastos acima do valor dos seus salários.

28. Ao actuar do modo descrito o arguido fê-lo sempre com o propósito conseguido de fazer suas as quantias descritas, cujo valor total conhecia, as quais sabia que se encontravam na sua disponibilidade apenas em virtude das funções de tesoureiro que exercia para a assistente, bem sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e em prejuízo da assistente.

29 - O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de alterar o nome do beneficiário aposto nos setenta e dois cheques que foram assinados pelos representantes legais da assistente e de escrever no verso dos mesmos, bem sabendo que tais cheques tinham sido assinados à ordem dos CTT, para pagamento de serviços efectivamente prestados à assistente, e que os representantes legais desta não haviam permitido o seu endosso.

30 - Mais sabia o arguido que ao entregar os referidos setenta e dois cheques devidamente preenchidos e assinados fazia crer às instituições bancárias que podia depositar o valor aposto em tais títulos na conta de que é co-titular com a arguida, o que conseguiu.

31 - Mais agiu o arguido com o propósito concretizado de, em todas as noventa ocasiões individualizadas, alterar o nome e o NIB do beneficiário das ordens bancárias que enviou através da aplicação PS2 ao ... Banco e de utilizar as assinaturas dos representantes da assistente que haviam sido apostas nas ordens originais, ciente de que a instituição bancária iria proceder à transferência dos valores para as contas indicadas e que mercê das alterações efectuadas iria ver creditados na conta de que era co-titular com a arguida tais valores, o que logrou.

32 - O arguido quis ainda criar facturas com números e elementos falsos com a intenção de tais documentos serem considerados como suporte à contabilidade da assistente, as quais bem sabia não corresponderem a serviços prestados à assistente, e de utilizar a assinatura do administrador da assistente para enviar, por cento e dezasseis vezes, ordens de transferência a instituições bancárias e deste modo ver creditado na conta de que é co-titular com a arguida valores que não lhe pertenciam.

33 - O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que não tinha direito às quantias que desviou e creditou na conta de que é co-titular com a arguida, e que delas se apropriava contra a vontade da assistente e em proveito próprio, o que logrou, e que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
34 – O arguido AA admitiu a autoria da quase totalidade dos factos imputados, nos termos que resultaram provados, verbalizando arrependimento.
35 – O arguido é o mais novo de uma fratria de três irmãos, tendo o seu crescimento decorrido na ..., num contexto familiar socialmente ajustado, normativo, e pautado pelo bom relacionamento entre os membros, tendo o agregado uma situação económica modesta.
36 – O arguido iniciou os estudos com seis anos de idade, e até aos catorze anos de idade estudou de forma ininterrupta, tendo completado um curso comercial, tendo deixado a escola para ajudar o progenitor na sua actividade profissional de colecta de resina, ocupação que ainda manteve durante dois anos, até se candidatar como voluntária para as Forças Armadas.
37 – Ingressou aos dezassete anos de idade no exército, mas no decurso da formação desinteressou-se e desistiu desta opção profissional, tendo apenas concluído o período de serviço militar obrigatório.
38 – Aos dezanove anos de idade, e após deixar o serviço militar, o arguido deslocou-se para a cidade de Lisboa, onde começou a trabalhar no sector administrativo de uma empresa de venda directa de livros, permanecendo na mesma cerca de seis anos até a empresa falir, tendo tido outros empregos em empresas ligadas à venda de electrodomésticos, supermercados, canalizações, transportes internacionais ou turísticos, onde exerceu no sector administrativo funções variadas, que incluíam contabilidade, contas correntes, gestão administrativa e dos recursos humanos, que lhe possibilitaram adquirir uma significativa experiência profissional nesse sector.
39 – O percurso profissional do arguido decorreu sem períodos de desemprego, pautado por regularidade de trabalho e pelo desempenho de funções de crescente responsabilidade, tendo as mudanças de emprego surgido devido a factores externos, designadamente a falência das empresas ou por opção própria, na procura de melhores condições de vida para si e para a família constituída desde 1986, com a co-arguida do presente processo, e os dois filhos que nasceram desse relacionamento.
40 – Durante alguns anos a família constituída viveu de forma desafogada e fez despesas em bens não essenciais, sem grande critério de contenção, de que de forma geral todos usufruíram, sem os restantes membros do agregado questionarem a origem dos rendimentos.
41 – Na sequência dos factos objecto do presente processo, o arguido demitiu-se da empresa onde trabalhava, e desde então tem tido uma actividade profissional irregular ligada ao sector comercial e imobiliário, e como motorista da ..., por conta própria, tendo o arguido presentemente ganhos irregulares, mas suficientes para a sua manutenção pessoal.
42 – No âmbito pessoal o presente processo provocou uma ruptura conjugal e um maior afastamento dos filhos, com os quais o arguido já não tinha relações de grande proximidade, tendo igualmente um impacto significativo junto da família da arguida, a qual presentemente demonstra alguma revolta e indisponibilidade para se continuar a relacionar com o arguido.    
43 – O ambiente familiar presentemente é tenso e conflituoso entre os arguidos, motivado quer pela permanência do arguido na habitação, como pelo facto de o mesmo apenas participar nas despesas familiares de forma irregular.
44 – De acordo com o relatório social, relativamente aos factos imputados, o arguido «insere-os no contexto laboral e nas funções que lhe eram inerentes, contextualiza-os numa situação de oportunidade, mas não apresenta motivações pessoais relevantes, embora se salientem da sua parte, algumas características, como necessidade de ser valorizado por terceiros ou de usufruir de um bom nível de vida, (…)
Em termos de avaliação de risco, sobressaem algumas questões que podem configurar potenciais factores de risco ligadas, no caso do arguido, à necessidade de se promover junto de terceiros através de uma boa situação económica, ao desejo de ter um modo de vida mais desafogado financeiramente, e actualmente encontrar-se numa situação de maior fragilidade económica e laboral e sem suporte familiar consistente.
Como factores de protecção conta não obstante com algum dinamismo, capacidade de trabalho, e de adaptação a novas situações, o que poderá favorecer a sua reinserção futura.».
45 – Do certificado de registo criminal do arguido AA nada consta.
46 – A arguida CC é a filha mais nova de uma fratria de quatro irmãos, descendentes de um casal de agricultores, residentes na zona da ..., tendo crescido num contexto familiar normativo e exigente, e com uma dinâmica relacional adequada entre os membros, sendo a sustentabilidade familiar garantida pelas actividades laborais dos progenitores, sem dificuldades significativas.
47 – A arguida frequentou o ensino regular até ao 5º ano de escolaridade, com fraca motivação e aproveitamento, querendo abandonar precocemente os estudos, tendo por imposição de um tio prosseguido na escola até aos quinze anos de idade, sem contudo transitar de ano.
48 – Iniciou a actividade profissional aos dezasseis anos de idade, a tomar conta de um bebé, ocupação que manteve durante dois anos.
49 – Posteriormente integrou o agregado familiar de uma irmã mais velha residente em Lisboa, e passou a trabalhar num lar de idosos, actividade que abandonou ao fim de pouco tempo.
50 – Conheceu entretanto o cônjuge, co-arguido no presente processo, com quem casou aos vinte e dois anos de idade, tendo do casamento nascido dois filhos, actualmente maiores de idade.
51 – O casal mantinha alguma proximidade com a família da arguida, juntando-se habitualmente em períodos festivos, e o arguido era aparentemente bem aceite e integrava-se com facilidade nesse contexto familiar, desconhecendo a família nessa fase, as queixas da arguida a respeito do relacionamento do casal.
52 – A nível laboral a arguida fez um trajecto regular e investido, tendo recomeçado a trabalhar quando a filha tinha cerca de oito anos de idade, como ..., e ficou afecta durante cerca de dezoito anos ao Palácio Nacional ..., tendo transitado há cerca de seis anos para o Museu Nacional ..., onde se encontra presentemente em exercício de funções, com um vencimento de € 730,00 mensais.
53 – O arguido também mantinha actividade profissional regular, pelo que, a nível financeiro, o agregado usufruiu de uma situação de relativa estabilidade, ainda que modesta, até um período mais recente, em que o arguido apresentava um maior rendimento, tendo durante alguns anos o agregado vivido de forma desafogada, e efectuado despesas em bens não essenciais, sem grande critério de contenção, de que usufruíram de uma forma geral, sem questionar a origem dos rendimentos, permitindo-lhes esta nova condição financeira mudar para uma moradia arrendada, e dispor de um maior desafogo na vida quotidiana.
54 – Após a instauração do presente processo a arguida mudou de residência, para outra de menor valor de arrendamento, e iniciou o processo de divórcio do arguido, o qual permanece a viver na habitação da família, com a arguida e os dois filhos, contra a vontade desta.
55 – A arguida subsiste presentemente com dificuldades económicas, dependente apenas do seu vencimento, de alguma ajuda económica dos filhos, de trabalhos temporários que exercem, assim como do suporte das irmãs, que se têm mostrado solidárias e apoiantes nesta situação, não tendo a família alterado a imagem positiva detida sobre a arguida, tendo relativamente ao arguido adoptado uma postura de afastamento deste, evitando o contacto com o mesmo, revelando os filhos alguma dificuldade em dialogar com o progenitor, sendo a dinâmica familiar actual, tensa e conflituosa entre os arguidos.
56 – Do certificado de registo criminal da arguida CC nada consta.   

FACTOS NÃO PROVADOS

1 – Que a arguida CC tivesse conhecimento do referido em 5 da factualidade provada.

2 – Que aquando da actuação referida em 8 da factualidade provada, o arguido apusesse nos cheques os nomes de ... e ..., e que tais nomes fossem fictícios.

3 – Que a arguida com recurso ao cartão multibanco consultasse os movimentos bancários associados às contas englobadas, mencionadas em 22 da factualidade provada.

4 – Que a arguida tenha agido ciente que as quantias creditadas na conta de que era co-titular com o arguido não provinham da actividade profissional por este desenvolvida, mas antes, face à periodicidade e ao valor das mesmas, de facto ilícito típico contra o património, e que ainda assim quis delas apoderar-se e dispor, em detrimento de património alheio.

5 – Que a arguida tenha agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que agia contra a vontade da assistente e em proveito próprio, e que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

3. Resumidamente são estes os factos apurados:

O arguido foi admitido na sociedade assistente como escriturário em 5.6.2000, passando, a partir de julho de 2001, a desempenhar as funções de tesoureiro da empresa, competindo-lhe, designadamente, a movimentação e o controlo de contas, o recebimento de cheques e transferências bancárias de clientes, a emissão de cheques e documentos de lançamento para a contabilidade, o pagamento a fornecedores e o controlo das respetivas contas correntes, contactando pessoalmente com clientes e fornecedores, bem como registar diariamente estes movimentos de entrada e de saída de dinheiro, informática e contabilisticamente, e efetuar reconciliações bancárias.

Para o exercício de tais funções foi-lhe disponibilizado o acesso às contas bancárias da assistente, e demais documentação e títulos de crédito com elas conexas, bem como às aplicações informáticas e credenciais necessárias à sua gestão e movimentação.

A partir de 26.10.2001 e até 4.2.2015, o arguido decidiu valer-se da qualidade e disponibilidade proveniente do exercício dessas suas funções e da confiança que em si depositavam os membros da direção e administração da assistente, para desviar e se apropriar de quantias pertencentes a esta sociedade, as quais destinou à conta bancária de que é cotitular com a arguida CC, no ... Banco.

Mais decidiu o arguido valer-se da circunstância de a assistente efetuar pagamentos mensais a fornecedores na ordem dos € 500.000,00 e de a administração e direção apenas conferirem as datas e os valores que lhe apresentava para autorizarem pagamentos, bem como do conhecimento proveniente do exercício dessas suas funções para ocultar tal subtração de valores, o que fez designadamente através da adulteração e eliminação de ficheiros e dados contabilísticos, e dos respetivos documentos justificativos, da manipulação de contas e dos ficheiros de reconciliação bancária.

Assim, entre 2001 e 2008, o arguido utilizou cheques sacados sobre contas tituladas pela assistente no (então) XX e no YY, os quais preenchia e emitia à ordem dos CTT e apresentava ao administrador e ao diretor financeiro da assistente para que estes os assinassem, informando-os que se destinavam ao pagamento de serviços efetivamente prestados pela PT Comunicações à assistente.

Após estarem assinados o arguido alterava a denominação do beneficiário dos cheques, apondo por cima do escrito “CTT” o nome da arguida CC e o nome fictício de DD, e seguidamente escrevia estes nomes no verso dos cheques, logrando assim endossá-los e depositá-los na referida conta bancária pertencente ao ... Banco de que é cotitular com a arguida.

Seguindo este procedimento, o arguido emitiu 72 cheques e depositou as quantias neles apostas na referida conta cotitulada com a arguida no ... Banco, no total de € 426.490,19.

Entre agosto de 2007 e março de 2012, na prossecução do mesmo plano de apropriação de quantias pertencentes à assistente, o arguido passou a utilizar uma aplicação bancária disponibilizada pelo ... Banco, denominada de PS2, através da qual eram enviadas a esta instituição bancária ordens de pagamento a fornecedores da assistente.

Para tanto, o arguido elaborava ficheiros nos quais fazia constar uma listagem de pagamentos a efetuar a fornecedores e a enviar à entidade bancária, e apresentava-os ao administrador e ao diretor financeiro da assistente para que estes os conferissem e assinassem.

Após estarem devidamente assinados, o arguido alterava os ficheiros na parte destinada ao nome e ao NIB de um fornecedor que constava da listagem, para o nome de “...” (sigla por ele criada) e o NIB da conta de que é cotitular com a arguida no ... Banco, e enviava este ficheiro alterado, mas já devidamente assinado, à instituição bancária, para efeitos de processamento.

Agindo deste modo, por 90 vezes, o arguido logrou que fosse transferido para a conta bancária de que é cotitular com a arguida no ... Banco um total de € 462.645,29.

De março de 2012 a fevereiro de 2015, na execução do mesmo plano, o arguido decidiu elaborar faturas fictícias para sustentar o envio de ordens de pagamento em nome da assistente ao YY, à ZZ e ao AAA, utilizando, para o efeito, o seu endereço de correio eletrónico de trabalhador da assistente, pois estava autorizado a enviar tais ordens em representação da assistente.

Para que tais pagamentos fossem aprovados pela administração, o arguido justificava-os como destinados à liquidação das faturas que criara, mas que não correspondiam a documentos originais e a serviços efetivamente prestados.

Assim, o arguido apresentava à administração os documentos que corporizavam as ordens de transferência e as referidas faturas como documentos de suporte, e, após as ordens estarem devidamente assinadas, fotocopiava a assinatura que aí havia sido aposta pelo administrador da assistente e colava-a noutra ordem de transferência que criara com o mesmo valor mas com o nome do fornecedor “...” (sigla por ele criada) e enviava-os às instituições bancárias.

Agindo deste modo, por 116 vezes, o arguido logrou transferir para a conta bancária de que é cotitular com a arguida um total € 655.106,52.

Com a conduta descrita o arguido logrou desviar e apoderar-se do valor total de 1.544.242,03, pertencente à assistente.

4. O arguido fora pronunciado por um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, b), com referência ao art. 202º, b), ambos do CP, e duzentos e setenta e oito crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, a) e e), do CP.

Na sessão de julgamento de 5.6.2018, o Tribunal comunicou às partes, ao abrigo do art. 358º, nº 3, do CPP, a possibilidade de alteração da qualificação jurídica referente ao crime de abuso de confiança para o de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1, e 218º, nº 2, a), do CP, não tendo nenhuma das partes formulado qualquer requerimento (ata de fls. 1382).

A final, o arguido veio a ser condenado, como se referiu no início, por um crime de burla qualificada, nos termos indicados, e não de abuso de confiança, e por um único crime de falsificação de documentos.

A opção pela alteração da qualificação jurídica dos factos inicialmente integrados no tipo legal de abuso de confiança para o de burla mostra-se acertada. Na verdade, a apropriação ilícita por parte do arguido de valores pertencentes à assistente não se ficou a dever a uma inversão do título de posse, pois tais valores nunca foram entregues por título não translativo da propriedade ao arguido pela assistente, mas sim a uma apropriação fraudulenta, conseguida por meio de enganos astuciosamente provocados pelo arguido, atrás descritos, que determinaram a entrega dos referidos valores por parte da assistente.

Por outro lado, o Tribunal observou o procedimento correto para a referida alteração, cumprindo o disposto no art. 358º, nºs 1 e 3, do CPP.

Quanto à unificação das condutas num crime de burla qualificada e noutro de falsificação de documento, também aí a decisão foi correta.

Com efeito, de acordo com o art. 30º, nº 1, do CP, em caso de repetição da conduta, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Este preceito consagra um critério teleológico, e não naturalístico, para distinguir entre unidade e pluralidade de crimes. A uma única conduta naturalística podem corresponder vários crimes (tantos quantos os tipos de crime violados); a várias condutas naturalísticas subsumíveis ao mesmo tipo legal pode corresponder um único crime.

Neste último caso, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas. Sempre que exista uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e portanto existirá apenas um crime. Caso haja sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e portanto de infrações. A unidade de infrações pressupõe porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas ações naturalísticas. É este basicamente o critério vertido no nº 1 do art. 30º do CP, segundo a lição de Eduardo Correia.[2]

            Esta posição foi porém rejeitada por Figueiredo Dias há alguns anos, propondo como critério fundamental da unidade ou pluralidade de infrações o da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica.[3] No entanto, o mesmo autor reconhece que, quando apenas um tipo legal for violado, “será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível; a qual, no entanto, também ela, pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente.”[4]

Analisados os factos, conclui-se sem lugar a dúvidas pela unidade criminosa, ou seja, pela prática de um só crime de burla qualificada e de um único crime de falsificação, dada a unidade de resolução que presidiu a todo o comportamento do arguido desde o início até ao final. Com efeito, ele agiu aproveitando-se das facilidades concedidas pelas funções de “tesoureiro de facto” da assistente e da confiança que nele depositava a administração da mesma, situação que se manteve ao longo de toda a atividade criminosa, atividade que o arguido desenvolveu sem interrupções temporais significativas, tudo isto revelando uma única vontade, que perdurou desde a resolução inicial até ao termo do comportamento ilícito.

Este quadro fáctico aponta indubitavelmente para a unidade de resolução e consequentemente para a unidade de crimes.

Aliás, mesmo à luz da conceção de Figueiredo Dias, a mesma conclusão é inevitável, pois todo o comportamento do arguido assume indiscutivelmente um “sentido de ilicitude” unitário.

Conclui-se pois pela correção do acórdão recorrido no que tange à qualificação jurídica dos factos.

5. Nos termos do art. 71º, nº 1, do CP, a pena é determinada em função da culpa e das exigências da prevenção.

O relacionamento entre culpa e prevenção vem exposto no art. 40º do CP, na redação do DL nº 48/95, de 15-3, relativo aos fins das penas, que, ao dispor que a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo porém a pena ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do mesmo art. 40º do CP), veio atribuir à pena natureza preventiva, e não retributiva, ao invés do que acontecia na versão originária do Código Penal.[5]

A culpa não é, pois, fundamento da medida da pena, mas somente o seu limite. A pena tem como finalidade primordial a prevenção geral (“proteção dos bens jurídicos”), entendida como prevenção positiva, ou seja, como afirmação contrafática da validade das normas perante a comunidade; é nessa moldura que devem ser valoradas as exigências da prevenção especial, intervindo a culpa apenas como limite máximo da pena, como travão inultrapassável às exigências preventivas.

É neste quadro que, para determinação da medida concreta da pena, há que atender, de acordo com o nº 2 do citado art. 71º, às circunstâncias do crime, nomeadamente à ilicitude, e a outros fatores ligados à execução do facto, como a gravidade das consequências deste; o grau de violação dos deveres impostos (al. a)); a intensidade do dolo ou da negligência (al. b)); os sentimentos manifestados pelo agente e os fins ou motivos que o determinaram (al. c)); as condições pessoais e económicas do agente (al. d)); a personalidade do agente (al. f)); e a sua conduta anterior e posterior ao crime (al. e)).

6. Analisemos os factos apurados.

Estamos perante um comportamento ilícito reiterado, praticado de forma frequente e metódica, no espaço de catorze longos anos (entre 26.10.2001 e 4.2.2015).

A infidelidade aos interesses da assistente por parte do arguido começou pouco depois de lhe serem confiadas as funções que lhe abriram as portas à prática criminosa e só cessou quando a administração da assistente descobriu o comportamento fraudulento do arguido e o confrontou com os factos, sendo pois de presumir legitimamente que esse comportamento prosseguiria indefinidamente, não fosse essa atitude da assistente.

É de salientar também o refinamento e a diversidade dos procedimentos fraudulentos praticados pelo arguido, que lhe asseguraram ao longo dos anos a ocultação da atividade criminosa. Esta especial perícia não pode deixar de ser valorada negativamente.

Assim, múltiplas e intensas são as agravantes que pesam contra o arguido, a saber:

- o muito levado grau de ilicitude dos factos, acentuado pela sofisticação dos procedimentos adotados pelo arguido para apropriação dos valores pertencentes à assistente e para ocultação e disfarce da sua prática;

- o dolo, também muito intenso e prolongado;

- o extensíssimo número de ações ilícitas;

- a frequência e regularidade da sua prática;

- a violação da confiança nele depositada pela assistente, não só pela existência do vínculo laboral, como sobretudo pelas concretas funções atribuídas ao arguido, que lhe impunham um especial dever de fidelidade;

- o elevadíssimo dano patrimonial provocado - € 1.544.242,00.

Em contrapartida, algumas atenuantes se provaram:

- a confissão, que não foi propriamente “espontânea”, mas releva na medida em que o arguido, quando confrontado com os factos, imediatamente se demitiu da empresa;

- o arrependimento;

- a ausência de antecedentes criminais.

É evidente porém o muito limitado valor destas atenuantes.

Numa ponderação global, ressaltam as fortíssimas exigências de prevenção geral, que será despiciendo enfatizar.

Também as exigências de prevenção especial são prementes, atendendo à personalidade revelada pelo arguido na atividade criminosa.

A moldura penal do crime de burla qualificada é de 2 a 8 anos de prisão.

Por sua vez, a do crime de falsificação é de 6 meses a 5 anos de prisão, ou multa.

Tendo em conta as circunstâncias dos crimes e as exigências preventivas, as penas fixadas (5 anos e 3 meses de prisão para a burla, 2 anos e 4 meses para a falsificação) afiguram-se ajustadas, porque satisfazem os interesses preventivos, gerais e especiais, e não excedem a medida da culpa.

Saliente-se que seria inteiramente desadequada, por não cumprir minimamente as exigências preventivas, a opção pela pena de multa no crime de falsificação.

Quanto à pena única, dir-se-á muito brevemente que a mesma se mostra inteiramente justa e adequada.

Na verdade, nos termos do art. 77º, nº 1, do CP, o concurso é punido com uma pena única, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. E o nº 2 acrescenta que a pena única aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares (não podendo ultrapassar 25 anos de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares.

            A determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71º do CP); e ainda a um critério especial: a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua relação mútua, agora reavaliada à luz do conhecimento superveniente dos novos factos. Ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente.

Essa apreciação deverá indagar se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de caráter fortuito ou acidental, não imputável a essa personalidade, para tanto devendo considerar múltiplos fatores, entre os quais a amplitude temporal da atividade criminosa, a diversidade dos tipos legais praticados, a gravidade dos ilícitos cometidos, a intensidade da atuação criminosa, o número de vítimas, o grau de adesão ao crime como modo de vida, as motivações do agente, as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo.

No caso dos autos, a pena única tem como limite mínimo 5 anos e 3 meses e máximo 7 anos e 7 meses de prisão.

A pena foi fixada em 1ª instância em 6 anos de prisão.

Esta medida, que pouco excede o limite mínimo, é inteiramente adequada, por se ajustar a uma avaliação correta da personalidade do arguido, que demonstra uma evidente propensão para a prática de ações ilícitas na vertente dos crimes fraudulentos contra a propriedade.

Qualquer pena abaixo da que foi estabelecida, nomeadamente uma pena de prisão suspensa, como pretende o arguido, abalaria intoleravelmente a confiança da comunidade na proteção dos bens jurídicos violados.

Nenhuma censura merece, pois, a decisão recorrida.

III. Decisão

Com base no exposto, nega-se provimento ao recurso.

Vai o arguido condenado em 5 UC de taxa de justiça.

                                   Lisboa, 6 de fevereiro de 2019

 Maia Costa (Relator)


Pires da Graça (com declaração de voto no sentido de que “A culpa é também fundamento da pena, pois que a pena ao ser determinada em função da culpa, pressupõe o conhecimento da medida desta para poder definir o limite daquela”.)

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ires---

[1] Foi absolvida a arguida ..., que se encontrava acusada da prática de um crime de recetação, p. e p. pelo art. 231º, nº 1, do CP.

[2] Ver especialmente A Teoria do Concurso em Direito Penal, pp. 91-100.
[3] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª ed., pp. 988-989, e 1007.
[4] Ob. cit., p. 991.
[5] Assim, Figueiredo Dias, ob. cit., p. 78.
Taipa de Carvalho fala antes de uma “conceção preventivo-ética”, “preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa” (Direito Penal, Parte Geral, 2ª ed., p. 60).