Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
003641
Nº Convencional: JSTJ00018456
Relator: DIAS SIMÃO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
DESPEDIMENTO
ESCRITA COMERCIAL
EXAME À ESCRITA
DEVER DE COLABORAÇÃO DAS PARTES
Nº do Documento: SJ199304210036414
Data do Acordão: 04/21/1993
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N426 ANO1993 PAG491
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7629/91
Data: 06/24/1992
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR COM - SOC COMERCIAIS. DIR PROC CIV.
DIR TRAB - CONTRAT INDIV TRAB.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 27 ARTIGO 519 N1 N4 ARTIGO 534.
CCOM888 ARTIGO 41 - ARTIGO 44.
CCIV66 ARTIGO 9 N3 ARTIGO 519 ARTIGO 524.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1961/10/24 IN BMJ N110 PAG467.
ACÓRDÃO STJ DE 1963/01/22 IN BMJ N123 PAG578.
ACÓRDÃO STJ DE 1966/03/22 IN BMJ N155 PAG372.
ACÓRDÃO STJ DE 1970/06/05 IN BMJ N198 PAG156.
Sumário : I - Os artigos 42 e 43 do Código Comercial são normas de direito substantivo e de garantia do crédito dos comerciantes, do segredo e do êxito das suas operações, daí que se mantenham em vigor, prevalecendo as suas disposições especiais sobre as estatuições gerais do Código de Processo Civil, nomeadamente sobre o artigo
519 deste Código.
II - Sendo a sociedade comercial ré numa acção emergente de contrato de trabalho em que se pede a declaração de ilicitude do despedimento do Autor verifica-se o condicionalismo exigido no artigo 43 do Código Comercial para a efectivação do exame judicial à escrita comercial.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A propôs no tribunal do trabalho de Lisboa acção com processo ordinário contra Alcides e Saraiva, Lda., Autosaide-Gestão de Viaturas, S.A., Saidecar - Scave - Sociedade de Comercialização e Aluguer de Veículos, S.A., Stand Moderno - Sociedade de Representações de Automóveis F. Nunes de Carvalho, S.A. e Mecal - Sociedade de Representações e Comércio de Lubrificantes, S.A., negando haver celebrado com as rés um contrato de trabalho, para o exercício das funções de director administrativo e financeiro e pedindo se declare a nulidade do seu despedimento, por não ter sido precedido de processo disciplinar e carecer de justa causa e se condene as rés, solidariamente, a pagar-lhe as prestações pecuniárias vencidas e vincendas desde a data do despedimento até à data da sentença, bem como a reintegrá-lo no seu cargo, se não vier a optar pela indemnização de antiguidade.
Contestaram as rés por excepção, nomeadamente arguindo a ilegitimidade da ré Saidecar - Sociedade de Comercialização e Aluguer de Veículos, S.A. e por impugnação.
No despacho saneador, o Meritíssimo Juiz relegou o conhecimento daquela excepção para a sentença, em virtude de entender que, nos termos dos artigos 288, n. 1, alínea a) e 510, n. 2, do Código de Processo Civil, a sua apreciação somente deve ter lugar no caso de improceder a excepção da incompetência em razão da matéria do tribunal do trabalho, também deduzida pelas rés e cujo conhecimento se remeteu para a sentença.
Na fase da instrução, o autor requereu, além de outras provas, exame judicial sobre os livros diário, auxiliares e balancetes da ré Saidecar - Sociedade de Comercialização e Aluguer de Veículos, S.A., com a amplitude indicada no requerimento de folhas 90.
Apesar da oposição daquela ré, o Meritíssimo Juiz considerou verificarem-se os pressupostos legais que condicionam a efectivação do requerido exame e, consequentemente, determinou a sua realização.
Inconformada com tal despacho, a ré Saidecar - Sociedade de Comercialização e Aluguer de Veículos, S.A. interpôs recurso de agravo, havendo o tribunal da Relação de Lisboa negado provimento a esse recurso.
Novamente irresignada, aquela ré recorreu para este Supremo Tribunal, concluindo na sua alegação: a) deve dar-se provimento ao recurso, substituindo-se a decisão impugnada por outra que defira a oposição da recorrente quanto ao requerido exame à escrita; b) o Acórdão recorrido violou o disposto no artigo 43, do Código Comercial e fez incorrecta aplicação do estatuído no artigo 519, do Código de Processo Civil.
Contra-alegou o autor, defendendo a confirmação do Acórdão recorrido.
O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido do improvimento do recurso.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
I - A fim de assegurar a adequada eficácia aos poderes de instrução, de disciplina e de direcção da causa atribuídos ao Juiz, em harmonia com uma concepção publicistica do processo, a lei impõe às partes e a terceiros o dever de colaborar no descobrimento da verdade e na sua administração da justiça. Dispõe, com efeito, o n. 1, do artigo 519, do Código de Processo Civil que todas "as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados".
Todavia, este dever de cooperação para a descoberta da verdade, não obstante o objectivo visado, tem limites, ditados pela ideia de não exigibilidade. Desde logo, o n. 4, daquele artigo 519 estatui que fica "salvo o disposto quanto à exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos". A ressalva estabelecida neste normativo tem por finalidade manter, no concernente à exibição judicial dos livros de escrituração comercial, por inteiro e dos documentos a ela relativos, o regime consagrado no artigo 42, do Código Comercial - Também relativamente à utilização de documentos em poder de terceiro, o artigo 534, do Código de Processo Civil preceitua que o "disposto nos artigos anteriores não é aplicável aos livros de escrituração comercial, nem aos documentos relativos a ela", situação que é disciplinada no artigo 43, do Código Comercial.
Deste modo, o dever de colaboração, fixado no referido artigo 519, em nada afecta os regimes especiais estabelecidos nos mencionados arts. 42 e 43, referentes à escrituração comercial. Estes preceitos não respeitam apenas à produção de provas; trata-se de normas de direito substantivo e de garantia do crédito dos comerciantes, do segredo e do êxito das suas operações. Daí que os citados artigos 42 e 43 se mantenham em pleno vigor, prevalecendo as suas disposições especiais sobre as estatuições gerais do Código de Processo Civil (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1950, pág. 330; Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 1984, pág. 467; Fernando Olavo, Direito Comercial, I, 2 ed., pág. 350; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Outubro de 1961, 22 de Janeiro de 1963, 22 de Março de 1966 e de 5 de Junho de 1970, Boletim do Ministério da Justiça, ns. 110, pág. 467, 123, pág. 578, 155, pág. 372 e 198, pág. 156).
Aqueles artigos 42 e 43 estão directamente relacionados com o princípio do segredo da escrituração mercantil acolhido no artigo 41, do Código comercial, nos termos do qual nenhuma "autoridade, juízo ou tribunal pode fazer ou ordenar varejo ou diligência alguma para examinar se o comerciante arruma ou não devidamente os seus livros de escrituração mercantil". Esta regra sofre, porém, vários desvios, designadamente os impostos por aqueles artigos 42 e 43, que se referem, respectivamente, à exibição judicial por inteiro dos livros de escrituração comercial e ao exame judicial limitado dos mesmos livros.
Tanto a exibição como o exame judicial pressupõem uma causa já instaurada ou a instaurar, onde vêm a servir de meio de prova, distinguindo-se estas figuras na medida em que a primeira abrange todos os livros e documentos da escrituração, ao passo que o exame é limitado à parte dos livros e documentos necessário ao esclarecimento dos factos controvertidos na causa em que foi requerido ou ordenado; o exame judicial é um meio de prova mais restrito, recaindo unicamente sobre os lançamentos referentes a determinados pontos que, por meio dele, se pretendem apurar.
No caso "sub iudice", não está em causa a exibição judicial por inteiro dos livros de escrituração comercial da recorrente, mas tão somente o exame judicial limitado, previsto no referido artigo 43.
Segundo este normativo, fora dos casos previstos no artigo precedente (exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos a favor dos interessados em questões de sucessão universal, comunhão na sociedade e no caso de falência) "só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de ofício, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida", acrescentando o seu parágrafo único que o exame deve ser feito no escritório do comerciante, em sua presença e que se limitará "a averiguar e extrair o tocante aos factos especificados que tenham relação com a questão".
O exame judicial limitado pode, assim, ser requerido por qualquer das partes em litígio ou ser ordenado oficiosamente pelo juiz, supondo sempre uma acção judicial em que existem interesses controvertidos, onde directamente se discutem direitos e obrigações das partes, surgindo o exame da escrituração como meio de fixar esses direitos e obrigações, cuja determinação constitui o objecto da causa.
Podendo o exame ter lugar "a instâncias da parte", não "pode haver dúvida de que a escrituração pode ser examinada tanto a requerimento da parte contrária, como do próprio comerciante a quem pertencem os livros" (Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, I, 3 ed., pág. 591). Efectivamente, o exame judicial limitado pode "ter por objecto a escrituração de qualquer das partes no processo, sendo até permitido que qualquer delas requeira exame à sua própria escrita, pois o artigo 44, do Código Comercial admite que esta seja invocada em seu benefício" (Fernando Olavo, ob. cit., pág. 354).
O exame judicial pode ainda incidir sobre a escrituração de quem não seja parte na causa, desde que, apesar dessa circunstância, tenha interesse ou responsabilidade na questão debatida (cfr. cit. artigo 43). Na verdade, dispõe aquele artigo 43 que pode proceder-se a exame quando a pessoa a quem pertença a escrita tenha interesse ou responsabilidade na questão, resultando do artigo 27, do Código de Processo Civil a possibilidade de existirem pessoas que, apesar de não serem partes na causa, têm na questão em litígio interesse ou responsabilidade. É o que acontece nos casos de solidariedade activa ou passiva, se apenas um dos credores reclama o cumprimento da obrigação ou se esse cumprimento só é exigido a um dos devedores, nos termos do n. 2, do mencionado artigo 27, situação em que os restantes credores e devedores, não sendo partes, têm, respectivamente, interesse e responsabilidade na causa (cfr. artigos 519 e 524, do Código Civil).
Nessa hipótese, ou seja, quando o exame for requerido nos livros de terceiro, estranho ao processo (não parte), a doutrina e a jurisprudência dominantes têm entendido não ser licito o exame na escrita de quem não possua interesse ou responsabilidade na questão controvertida.
Mas essa exigência somente se justifica no caso de a escrita pertencer a terceiro, uma vez que, sendo os livros e documentos de qualquer das partes no processo, não faz sentido referir tal pressuposto, em virtude da sua existência ser inerente à própria qualidade de parte na acção. Qualquer outra interpretação do mencionado artigo 43 revelar-se-ia incongruente e irrazoável do ponto de vista jurídico, não podendo, consequentemente aceitar-se, dado que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. n. 3, do artigo 9, do Código Civil).
Aliás, o regime estabelecido naquele artigo 43 está directamente relacionado com o disposto no citado artigo 534, que se reporta à utilização da escrituração comercial em poder de terceiros (cfr. Alberto dos Reis,
Loc. cit.; Fernando Olavo, ob. cit., pág. 356).
Ora, a agravante é parte na causa, como ré, pelo que se verifica o condicionalismo legalmente exigível para a efectivação do requerido exame.
De resto, ainda que o referido pressuposto fosse exigível no caso vertente e independentemente de a apreciação da questão atinente à invocada ilegitimidade passiva ter sido relegada para a sentença, o interesse e possível responsabilidade da recorrente na relação material controvertida são bem patentes. Basta atentar no articulado inicial, onde se atribui à recorrente a qualidade de sujeito de um contrato de trabalho celebrado com o autor e se responsabiliza pelas consequências decorrentes do despedimento ilícito promovido pela entidade empregadora, para logo se concluir pelo seu interesse e eventual responsabilidade na questão debatida.
II - Pelo exposto, decide-se negar provimento ao agravo.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 21 de Abril de 1993.
Dias Simão;
Chichorro Rodrigues;
Calixto Pires.
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 5 de Junho de 1991 do Tribunal do Trabalho de Lisboa, 4 Juízo, 3 Secção;
II - Acórdão de 24 de Junho de 1992 da Relação de Lisboa.