Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
74/16.2PAVFC.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: RECURSO PENAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
ROUBO AGRAVADO
TOXICODEPENDÊNCIA
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDER PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Área Temática:
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA – PARTE ESPECIAL / CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO / CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS.
Doutrina:
-Anabela Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, p. 371;
-Cavaleiro Ferreira, A medida da pena, Lisboa, p. 62;
-Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención en Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), p. 93, 96 a 98;
-Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, p. 227 e ss.;
-Hans. Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, Barcelona, 1981, p. 1190 e 1201 ; Evolución del Concepto Jurídico Penal de Culpabilidad en Alemana Y Austria”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, ISSN 1695-0194 05-01(2003);
-J. Pinto da Costa, Psicofármacos e outros Psicomodificadores e Imputabilidade, Revista de Investigação Criminal, n.º 13;
-Jackobs, Schuld und Prävention, Tübingen, 1976, p. 8 e ss.;
-Jorge Miranda, Constitução da República Portuguesa, Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 148 a 163;
-José Sousa e Brito, A medida da pena no novo Código Penal, Lisboa, 1984, p. 1;
-Luís Duarte Patrício, DROGA para que se saiba, Figueirinhas, 2002, p. 53.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 71.º, N.º 2 , 204.º, N.º 2, ALÍNEA F) E 210.º, NºS 1 E 2, ALÍNEA B).
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 412.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 18.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-06-2007, PROCESSO N.º 2277/07-5ª SECÇÃO;
- DE 12-07-2007, PROCESSO N.º 4098/06-5ª SECÇÃO;
- DE 06-01-2010, PROCESSO N.º 99/08.1SVLSB.L1.S1;
- DE 20-01-2010, PROCESSO N.º 587/08.0PAVFR.P1.S1;
- DE 13-10-2010, PROCESSO N.º 200/06.0JAAVR.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-01-2013, PROCESSO N.º 182/10.3TAVPV.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-03-2016, IN CJ/STJ, ANO XXIV, TOMO I, 2016, P. 273.
Sumário :
I  -   Não merece qualquer reparo a consideração dos factores a que o acórdão recorrido atendeu nos termos e para os efeitos do art. 71.º, n.º 2, do CP, à excepção da valoração que o tribunal a quo fez da culpa do arguido que, não só interveio numa posição subordinada à prevenção geral, como foi sobrevalorizada. Com efeito, o tribunal a quo atribuiu à culpa um “grau extremamente elevado”, sem ter em consideração a circunstância da actuação do arguido e de grande parte do seu percurso de vida ter subjacente a sua dependência do consumo de produtos estupefacientes.

II - O arguido teve, desde muito cedo, a sua capacidade de acção e a sua vontade condicionada pela dependência do consumo de estupefacientes que influenciou o seu percurso de vida e vem marcando o seu percurso criminoso. Ainda que a toxicodependência não anule a consciência do acto nem a liberdade de acção, não isentando, por isso, a responsabilidade criminal do agente, há que reconhecer que a pressão que a satisfação do vício exerce sobre o mesmo, é susceptível de enfraquecer, de algum modo, os mecanismos de autocontrolo, com o inerente reflexo no grau de culpa.

III -      Pelo que, contrariamente à posição assumida pelo tribunal a quo, não se possa deixar de atribuir maior relevância à consideração de que o arguido agiu sob a influência do consumo de produtos estupefacientes e pela necessidade de satisfazer o seu vício. Embora não tivesse ficado provado que o arguido tivesse agido num estado de privação de droga que tivesse criado nele um estado de impulsividade/compulsividade, atenta a toxicodependência do mesmo e a motivação para poder arranjar dinheiro para fazer face aos seus consumos de droga, permite considerar a existência, no caso, de uma diminuição da culpa.

IV- É ainda de atribuir valor atenuativo ao nível moderado da violência utilizada pelo arguido (intimidação sob a ameaça do uso de uma navalha), ao valor pouco significativo do produto do roubo, à confissão espontânea dos factos e ao facto das condições de vida do arguido não terem facilitado a sua integração social. Pelo que tudo ponderado se afigura como mais adequada a aplicação ao arguido da pena de 6 anos de prisão, em vez dos 9 anos de prisão aplicados pela 1.ª instância, pela prática de um crime de roubo agravado.

Decisão Texto Integral:
 
RECURSO PENAL[1]


                                    
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção do tribunal coletivo,  nº 74/16.2PAVFC da  Comarca dos ...- Instância Central- ... Secção Cível e Criminal –..., foi proferido acórdão, em 02.11.2016,  que decidiu:

« 1.  condenar o  arguido  AA  pela prática,  em autoria material, de um crime de roubo agravado, p. e p. pelos arts. 210º nºs 1 e 2 al. b) e 204º nº 2 al. f), ambos do Código Penal, na pena de nove anos de prisão;

2. manter a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA;

3. determinar a recolha de amostra de DNA ao arguido AA, e subsequente inserção na base de dados prevista na Lei nº 5/2008, de 12 de fevereiro;

4. determinar a perda a favor do Estado da navalha apreendida   e a correlativa entrega à Direção de Serviços do Património, da Direção Regional do Orçamento e Tesouro, no âmbito da Vice-Presidência do Governo Regional; e

5. condenar o arguido AA nas custas do processo, fixando a taxa de justiça em 3,25 UC.».

2. Inconformado, o arguido AA interpôs recurso deste acórdão, terminando as motivações com as seguintes conclusões:

«1. Concluindo e reproduzindo o acima alegado o arguido foi condenado a uma pena de prisão superior às exigências de prevenção geral e especial.

2. Foi violado o princípio da equidade.

3. Assim não o tendo entendido o douto Acórdão proferido violou o disposto no art.º 71 do C. Penal.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e por via dele, condenar-se o arguido em pena junto aos limites mínimos, ou próximos da média mas nunca ultrapassando por ser de Direito e de Justiça».

3. O Ministério Público na 1ª instância, respondeu, concluindo nos seguintes termos:

«- A pena em que o arguido foi condenado mostra-se adequada, ponderando as exigências de prevenção geral e especial, bem como a culpa;

- Inexiste qualquer violação do disposto nos artºs. 40º, nº 1, 70º e 71º, nºs. 1 e 2, do Código Penal.

Pelo exposto, deve o acórdão recorrido confirmar-se «in totum».

4. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu proficiente parecer, que se transcreve:

« 1. O recorrente insurge‑se com a medida da pena de prisão — 9 anos — imposta por acórdão do Tribunal de Ponta Delgada, de 2 de Novembro de 2016, pugnado por pena de medida inferior.

Assiste‑lhe razão. Efectivamente,

2. Relativamente à matéria de facto provada, sob II-12. e II-13. do acórdão recorrido, consta:

Mais se provou que:

12.           O arguido agiu sob a influência de produtos estupefacientes.

13. O arguido pretendia adquirir mais produtos estupefacientes, como efectivamente veio a fazê‑lo com os € 230.00 que retirou da caixa registadora.

3. Quanto às condições pessoais do arguido, sob III do acórdão recorrido, consta, nomeadamente:

Com cerca de quinze/dezasseis anos, o arguido refere ter iniciado o consumo de haxixe, progredindo para o consumo de drogas ditas “pesadas”, nomeadamente, heroína e cocaína e, mais recentemente, drogas sintéticas, às quais atribui a sua atual situação jurídica.

4. Mostra‑se, pois, provado, não só que o recorrente apresentava graves problemas de dependência de estupefacientes — nomeadamente, cocaína e heroína — mas também que cometeu o crime de roubo para adquirir, com os 230.00€ que retirara da caixa registadora, estupefaciente para consumir.

5. E sendo assim, na determinação da medida da pena, há que considerar a sabida dependência psíquica e psicológica que o consumo, nomeadamente de cocaína e heroína, implica, com o empobrecimento/ruína de várias áreas da vida (emocional, social, laboral, lúdica, económica), com a agravante da desestruturação da pessoa [2], e ter presente a provada influência das situações de toxicodependência na diminuição da liberdade de determinação da vontade em harmonia com os valores com tutela jurídico‑criminal, considerando a sabida “pressão” para obtenção directa ou indirecta de estupefacientes, num ciclo permanente de difícil superação — obtenção de meios, aquisição de produto, consumo do produto, obtenção de meios... —, fenómeno a que o legislador atende, como atestam as normas dos artigos 44.º, 45.º, 46.º, 47.º, 52.º e 55.º do Dec.‑Lei n.º 15/93, de 22/01.

6. Diga‑se ainda que, nesta área deve ter‑se em consideração a bem conhecida dificuldade de êxito de tratamento eficaz, pese embora as tentativas dos doentes em superarem a sua toxicodependência, com os consabidos frequentíssimos avanços e recuos ocorridos no período de tratamento. Por isso, as recaídas são frequentes, não sendo de estranhar que o doente muitas vezes claudique, reiniciando os consumos. Tal, porém, não pode ser fundamento para um agravamento da pena ou a desconsideração da sua toxicodependência, devendo antes constituir sobretudo um alerta para a necessidade de escolha e execução de um projecto concreto e estruturado de tratamento/acompanhamento da pessoa com problemas de toxicodependência.

7. No caso dos autos, verifica‑se que o Tribunal, ao fundamentar a decisão sobre a matéria de facto, começa por afirmar:

A convicção do tribunal assentou, em primeira linha, nas declarações confessórias do arguido, desde logo iniciadas em audiência com a singela expressão “é verdade”.

Expressão esta que, na sua simplicidade, bem espelha não estarmos perante um “delinquente”, mas sobretudo perante uma “pessoa doente”.

Aliás, o facto de o recorrente se afirmar vítima da sua toxicodependência — como consta no acórdão recorrido: «Sem embargo da declarações confessórias do arguido, não denotámos qualquer arrependimento; pelo contrário, a sua postura revelou ausência de crítica no que respeita aos comportamentos imputados, falta de empatia para com o ofendido, desvalorização da gravidade dos factos e toda uma atitude de vitimização face à toxicodependência, de resto em consonância com o relatório social» — revela, por um lado, uma forma de estar simples e genuína face à sua doença, e, por outro lado, acentua a gravidade da sua concreta dependência.

Pretender que o recorrente, que está há muito tempo — mais de 10 anos — num processo de crescente dependência de heroína e de cocaína, deve nutrir outro sentimento que não o de se considerar uma verdadeira vítima da sua circunstância, da sua dependência, é, salvo o devido respeito, não ter presente que ninguém se torna dependente de estupefacientes por assim o querer, e o quanto é difícil superar com êxito essa dependência, sobretudo quando escasseiam os meios de acompanhamento e concorre uma certa facilidade na obtenção do estupefaciente, por vezes, e lamentavelmente, bem próximo até de centros de atendimento a pessoas com problemas de toxicodependência.

8. Assim, tendo em consideração, nomeadamente:

— a natureza do crime praticado;

— o valor de que se apropriou — 230.00€;

— o facto de não ter causado ofensa à integridade física do ofendido;

— o facto de na génese da sua actuação encontrar‑se uma clara situação de dependência de estupefacientes;

— o facto de o recorrente ter cometido o crime de roubo para adquirir, com os 230.00€ que retirara da caixa registadora, estupefaciente para consumir;

— a conhecida influência das situações de toxicodependência na diminuição da liberdade de determinação da vontade em harmonia com os valores com tutela jurídico‑criminal, considerando a sabida “pressão” para obtenção directa ou indirecta de estupefacientes, num ciclo permanente de difícil superação — obtenção de meios, aquisição de produto, consumo do produto, obtenção de meios;

— a filosofia subjacente ao Dec.‑Lei nº 15/93, de 22.01, plasmada nos seus artigos 44.º, 45.º, 46.º, 47.º, 52.º e 55.º, no sentido de a intervenção penal dever concorrer, com o sistema de saúde, para o tratamento e reinserção da pessoa com problemas de toxicodependência que tenha, nomeadamente, cometido crimes com ela conexos;

— a confissão do recorrente,

parece-nos que uma pena de quatro anos de prisão, sem ofender o limite que a culpa constitui, responderá com suficiência às exigências da culpa e da prevenção.»

5. Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente   nada veio dizer.

6. Colhidos os vistos em simultâneo e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão, cumprindo apreciar e decidir.


***

II. FUNDAMENTAÇÃO

2. 1. Fundamentação de facto.

A 1ª  instância deu como provada e não provada a seguinte matéria de facto:

2.1.1. Factos  provados :

« Da acusação

1. No dia 24 de abril de 2016, cerca das 02:30, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado “..., explorado por BB, com o propósito de se apoderar de dinheiro e de objetos de valor que ali encontrasse;

2. Uma vez ali chegado, apercebeu-se de que o estabelecimento estava encerrado, encontrando-se o ofendido CC no seu interior;

3. Não obstante, o arguido logrou que o ofendido lhe abrisse a porta, sob o pretexto de precisar de um copo de água com açúcar;

4. Tirando partido do momento em que o ofendido abriu a porta para lhe entregar o solicitado copo de água, o arguido empurrou-a, logrando entrar no antedito estabelecimento comercial;

5. Em ato contínuo, o  arguido dirigiu-se à caixa registadora, tendo exigido ao ofendido que a abrisse e que lhe entregasse €5,00, ao que o este, assustado, acedeu abrindo a caixa registadora;

6. Ato contínuo, o arguido abriu uma navalha que transportava consigo, com 19cm de comprimento, sendo 8cm de lâmina, e disse ao ofendido: “Periquito, dá-me esse dinheiro todo senão mato-te aqui já”;

7.  Como  consequência  direta  e  necessária  do  comportamento  do arguido, e temendo ser morto ou fisicamente molestado, o ofendido permitiu ao arguido o acesso à caixa registadora, de onde este retirou e fez seus € 230,00 em notas de diverso valor facial e em moedas de €1,00.

8. Antes de abandonar o mencionado estabelecimento comercial, o arguido disse ainda ao ofendido: “Periquito, se disseres à polícia eu mato-te”, e encetou fuga apeada do local, levando consigo o dinheiro que retirara da caixa registadora;

9. Ao atuar da forma descrita, o arguido teve o propósito, concretizado, de fazer sua a quantia monetária acima indicada, que se encontrava na caixa registadora do estabelecimento comercial em apreço;

10. O arguido atuou da forma descrita, com o objetivo, concretizado, de se apoderar e de fazer sua a aludida quantia monetária, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que, ao fazê-lo, atuava contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo proprietário, fazendo o ofendido temer pela sua vida e integridade física;

11. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida;

Mais se provou que:

12. O arguido agiu sob a influência de produtos estupefacientes;

13. O arguido pretendia adquirir mais produtos estupefacientes, como efetivamente veio a fazê-lo com os € 230,00 que retirou da caixa registadora.

Das condições pessoais do arguido e a sua situação económica e das condutas anteriores aos factos:

14. O arguido provém de uma família numerosa, tendo os progenitores tido nove filhos, sete dos quais já se autonomizaram, encontrando-se um deles, atualmente, a cumprir pena de prisão na .... A situação económica do agregado familiar é de forte carência, beneficiando apenas de € 170,00 mensais e no rendimento incerto proveniente da  atividade  de  um  dos  filhos.

Vivem  numa  habitação  cedida  pelo Governo  Regional, pagando uma renda mensal de €25,00. A dinâmica familiar foi marcada pelo problema de alcoolismo e maus tratos perpetrados pela figura paterna a todos os elementos, com repercussões negativas no processo de socialização do arguido. Por imposição judicial, o progenitor foi alvo de uma medida de coação de afastamento em relação à esposa, tendo nessa altura, passado a pernoitar no porto das pescas, situação que se tornou degradante, voltando a reintegrar o seu agregado familiar, por decisão dos filhos e esposa, embora o casal tenha permanecido separado, vivendo o mesmo, atualmente, num anexo junto à moradia.

O arguido frequentou o sistema de ensino até ao 4º ano de  escolaridade, percurso  marcado  pelo insucesso, sobretudo devido ao comportamento desajustado em meio escolar, nomeadamente, de forte rebeldia, havendo por vezes necessidade da escola recorrer à intervenção policial para conter os conflitos. Nessa altura, e rede social do arguido caracterizava-se pela sua associação a grupos de pares, de conduta idêntica à sua e com um quotidiano desestruturado. Com cerca de quinze/dezasseis, o arguido refere ter iniciado o consumo de haxixe, progredindo para os consumos de drogas ditas “pesadas”, nomeadamente, heroína e cocaína e, mais recentemente, drogas sintéticas, às quais atribui a sua atual situação jurídica. Iniciou o seu percurso laboral com cerca de dezasseis anos de idade, no setor das pescas, percurso este que foi fortemente condicionado  pela  problemática  aditiva,  vindo  a  desenvolver  a  sua  atividade  de  forma irregular, ou seja, sempre que necessitava de dinheiro para a aquisição de drogas, sendo o rendimento económico  da mesma, aplicado nos consumos diários de substâncias ilícitas. Efetuou diversos tratamentos vocacionadas para a problemática da toxicodependência, em unidades distintas, tendo sempre registado recaídas. Antes da sua prisão preventiva a progenitora tentou que integrasse o Programa de Substituição de Opiáceos, o que resultou infrutífero. A integração no dito Programa somente ocorreu após a sua prisão preventiva. Em meio prisional, o arguido revela dificuldades de adaptação, traduzidas em dificuldades de relacionamento interpessoal, associadas a défices de autocontrolo, chegando à agressão física aos seus camaradas, situação que motivou a sua inserção em cela de segurança, onde se encontra atualmente. Relativamente aos factos, embora reconheça a sua ilicitude, revela pouca crítica em relação à gravidade dos mesmos e aos danos provocados nas vítimas, assumindo uma atitude desculpabilizante, relacionando-os com a sua toxicodependência e influência do grupo de pares. Apresenta reduzidas competências sociais e pessoais, revelando uma atitude de fraca motivação para alterar a sua conduta, mediante e estruturação do seu quotidiano. Na comunidade  é  conotado  como  um  indivíduo  problemático,  sendo  o  mesmo  associado  a práticas ilícitas e com dificuldades de autocontrolo dos seus impulsos.

O arguido já sofreu as seguintes condenações por sentenças/ acórdãos transitados em julgado: (i) decisão de 26.04.2007, proferida no âmbito do processo sumaríssimo nº 233/06.6PAVFC do então Tribunal Judicial da Comarca de ..., pela prática de um crime de ameaça em 19.08.2006, em pena de multa; (ii) decisão de 22.04.2009, proferida no âmbito do processo comum singular nº 70/08.3PAVFC do então Tribunal Judicial da Comarca de ..., pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público em 26.02.2008, na pena de um mês de prisão suspensa na sua execução por um ano; (iii) decisão de 02.06.2009, proferida no âmbito do processo sumário  nº  165/09.6PAVFC  do  então  Tribunal  Judicial  da  Comarca  de ..., pela prática de um crime de condução sem habilitação legal em 23.05.2009, em pena de multa; (iv) decisão de 02.06.2009, proferida no âmbito do processo comum coletivo nº 662/08.0PGPDL do então Tribunal Judicial da Comarca de ..., pela prática de três crimes de roubo, um crime de ameaça e um crime de ofensa à integridade física simples, por factos entre 14.11.2008 e 25.12.2008, na pena única de quatro anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução condicionada ao tratamento à toxicodependência; (v) decisão de 12.11.2009, proferida no âmbito do processo comum singular nº 122/09.2PAVFC do então Tribunal Judicial da Comarca de ..., pela prática de um crime de ameaça agravada em 17.04.2009, na pena de dois anos e seis meses de prisão; (vi) decisão de 17.09.2010, proferida no âmbito do processo comum coletivo nº 12/09.9JAPDL do então Tribunal Judicial da Comarca de ..., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes por factos de 01.01.2009, na pena de três anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual período; (vii) decisão de 12.11.2009, proferida no âmbito do processo comum singular nº 230/09.0PAVFC do então Tribunal Judicial da Comarca de ..., pela prática de um crime de ameaça agravada em 16.09.2009, na pena de sete meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano; (viii) decisão cumulatória  proferida  no  processo  referido  em  (vii),  que  englobou  as  penas  parcelares aplicadas nesses autos e nos processos referidos em (iv) e (v), na pena única de cinco anos e três meses de prisão; (ix) decisão de 30.06.2011, proferida no âmbito do processo comum coletivo  nº  365/09.9PAVFC  do  então  Tribunal  Judicial  da  Comarca  de  ..., pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário e de um crime de furto simples, ambos em 05.11.2009, na pena única de um ano e três meses de prisão; (x) decisão cumulatória proferida no processo referido em (ix), que englobou as penas parcelares aplicadas nesses autos e nos processos referidos em (iv), (v), (vi) e (vii), na pena única de sete anos de prisão, cuja liberdade condicional foi concedida em 30.09.2015; (xi) decisão de 16.12.2015, proferida no âmbito do processo comum singular nº 1054/12.2TAPDL do então Tribunal Judicial da Comarca de ..., pela prática de um crime de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada em 15.03.2012, na pena única de um ano e sete meses de prisão substituída por horas de trabalho.


*

2.1.2. Factos não provados.

Não resultou provado que o ofendido tenha entregue € 5,00 ao arguido.


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2.2. Fundamentação de direito

Constitui jurisprudência assente que, de harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 412.º do Código de Processo Penal e sem prejuízo para a apreciação das questões de oficioso conhecimento, o objecto do recurso define-se e delimita-se  pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação.

Assim, a esta luz, a única questão a decidir incide sobre a medida da pena.     


*

2.2.1. Pugna  o recorrente  pela aplicação de uma pena de prisão próxima dos limites mínimos da  moldura penal correspondente ao crime por pela cometido,   argumentando que a pena de 9 anos de prisão que lhe foi aplicada é excessiva, por ter agido sob o efeito de estupefacientes, o que diminui a consciência sobre a ilicitude dos factos, e por ser superior às exigências de prevenção geral e especial.

Mais sustenta que tal pena viola ainda o princípio da equidade, por manifestamente excessiva  em  comparação com outras decisões judiciais em casos semelhantes.


*

Nesta matéria afirmou a decisão recorrida que:

« O crime em apreço é punível com pena de 3 a 15 anos de prisão (cit. art. 210º nºs 1 e 2 al. b) do CP).

« Os fins das penas são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do autor do crime na sociedade (art. 40º nº 1 do CP). Por seu turno, na determinação concreta da medida da pena deve atender-se à culpa do agente e às exigências de prevenção, conforme o disposto no art. 71º nº 1 do CP, aplicável ex vi do art. 47º nº 1 do mesmo diploma. Assim, é dentro  da  moldura  da  prevenção  geral  que,  desde  logo,  deve a  pena  ser  fixada,  sendo orientada pelo limite máximo fornecido pelo grau de culpa do agente – referencial que o julgador nunca pode ultrapassar – e pelo limite mínimo correspondente à tutela ótima das expectativas comunitárias na validade dos preceitos normativos violados. Em segunda linha, o quantum concreto da pena deve ser ponderado pelas necessidades de prevenção especial, isto é, deve ser alcançado, por um lado, atendendo às exigências da ressocialização e reintegração do agente e, por outro lado, visando que o mesmo se abstenha da prática de novos ilícitos.

Ora, no caso dos autos, as necessidades de prevenção geral são assaz elevadas, na medida da notória frequência da prática deste tipo de crime (mais de metade das denúncias  no  país  reportam-se  a  crimes  contra  a  propriedade) associada  quer  à  problemática  da toxicodependência – como foi o caso –, quer à grande percentagem de cifras negras, o que gera um forte sentimento na comunidade de necessidade de repressão pela Justiça.

Considerando a forma agravada do crime, entendemos que o grau de ilicitude situa-se  abaixo  da  média  atento  o  valor  subtraído e  o modo (pouco  gravoso) de execução do crime de entre as hipóteses cogitavelmente cabíveis na norma incriminadora, do que é exemplo não só o reduzido potencial ofensivo do meio usado, mas também a ausência de quaisquer danos de maior relevo não estritamente patrimoniais. Ainda assim, agiu no interior de um estabelecimento comercial, a “fora de horas”, onde apenas se encontrava o ofendido, claramente numa posição de desvantagem face ao arguido (com um plano orquestrado e munido da navalha), o que aumenta a ilicitude.

Já o grau de culpa é extremamente elevado face (i) ao descrito engodo criado para aceder ao local, sendo que o arguido sabia necessariamente que teria de haver – pelo menos – uma forte intimidação do ofendido, (ii) à forma violenta como se dirigiu a este compaginado com a sua forte perigosidade atento o reconhecido efeito de substâncias estupefacientes, (iii) ao motivo que o levou a praticar o crime, (iv) ao intenso dolo direto revelado (sem deixar de corresponder ao dolo típico deste tipo de criminalidade) e (v) e à circunstância de contar com um extenso historial criminal, sobretudo pela prática de variadíssimos crimes (especialmente contra as pessoas e contra o património), tendo agido poucos meses após lhe ter sido concedida  a  liberdade  condicional,  o  que  eleva,  e  muito,  as  necessidades  de  prevenção especial.

Não obstante, concedemos – como é habitual neste tipo de situações – que a envolvência das drogas duras possa ter diminuído a sua capacidade de valoração e, neste contexto, de se conter e agir de acordo com o Direito.

Notamos  que o  arguido  iniciou  o  percurso da marginalidade muito novo, num quadro de uma infância e de uma adolescência conturbadas, e desde jovem tem revelado uma ausência de vontade para se motivar de acordo com as regras sociais, do que é exemplo as várias penas que lhe têm vindo a ser aplicadas desde 2007, num total de oito condenações  excluindo as decisões  cumulatórias, pela prática de crimes de ameaça (x2), introdução em lugar vedado ao público, condução sem habilitação legal, roubo (x3), ofensa à integridade física, ameaça agravada (x3), tráfico de estupefacientes, resistência e coação sobre funcionário e furto simples.

O arguido demonstra, assim, uma total indiferença pelas penas que lhe foram sendo aplicadas, refletidas nos períodos de reclusão, e praticou o crime em pleno período de liberdade condicional e sob a égide do vício do consumo de drogas duras que teima em não debelar (muito embora os vários “tratamentos” realizados em instituições vocacionadas para o efeito), bem demonstrativo da sua irresponsabilidade e imaturidade.

Acresce  a  notória  desinserção  social,  familiar  e  laboral  do  arguido desde pequeno, posto que nunca conseguiu vingar nos estudos e, posteriormente, no mercado de trabalho, também fruto de uma vivência disfuncional e pobre, compaginado com os consumos de substâncias estupefacientes na adolescência. Tem reduzidíssimas competências sociais e pessoais, revelando uma atitude de fraca motivação para alterar a sua conduta, mediante e estruturação do seu quotidiano. E, mesmo em meio prisional, revela-se desordeiro e adota comportamentos agressivos para com os outros reclusos, em razão do que se encontra colocado numa sela de segurança.

Por seu turno, o arguido não apresenta sentido crítico, assume uma atitude desculpabilizante e, quanto aos factos, refugia-se no seu estado de toxicodependência, colocando-se no papel de uma “marioneta” nas mãos de uma vontade alheia e predestinada.

A favor do arguido milita apenas a sua idade ainda jovem (28 anos) e a confissão dos factos (embora de reduzido relevo para efeitos probatórios atenta a prova carreada nos autos).

Deste modo, considerando a moldura legal aplicável, ponderando os factos na sua globalidade e sopesando todas as referidas circunstâncias, consideramos justo, necessário, adequado e proporcional a aplicação de uma pena situada a meio da moldura abstrata, ou seja, de nove anos de prisão».


*

Perante esta fundamentação e porque do teor  do acórdão recorrido ressalta, de imediato, que, na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, o Tribunal recorrido[3] deu primazia às exigências de prevenção  como critério fundamental, em detrimento da culpa, não poderemos deixar de encontrar nesta  decisão um pretexto para reforçar o papel desempenhado pelo princípio da culpa como fundamento e  definir o lugar que o mesmo deve assumir  entre os  critérios que hão-de nortear a tarefa  a realizar pelo juiz na determinação da medida concreta da pena.
Assim, cientes de que «em nenhum outro momento, o juiz incorpora tão dramaticamente a Justiça como quando fixa a pena aplicável»[4], começaremos por  precisar os princípios individualizadores, ou seja, os critérios em função dos quais o juiz deve individualizar e determinar concretamente a pena aplicável a um facto punível, ou ainda como se lhes chama, na doutrina alemã, as « causas finais de determinação da medida da pena»[5], o que nos remete para a questão prévia dos fins das penas e da sua antinomia. 
É que, como salienta Cavaleiro Ferreira[6], são os fins  do Direito Penal, ou seja, os fins da própria pena, que nos fornecem os fundamentos em que deve assentar a sua individualização”.
Em sentido idêntico refere Jeschek[7] que  « o paradigma da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois só partindo dos fins das penas claramente definidos se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena».
Daí que, seguindo esta linha de pensamento, fácil se torna aceitar, por um lado,  que, ao estabelecer, no art. 71º, nº1 do C. Penal, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é  feita em  função da culpa do agente e das exigências de prevenção»,  o legislador forneceu ao juiz e ao intérprete, como critérios, a  culpa e a prevenção, deixando, por isso, espaço para se apurar, de entre estes dois princípios, qual aquele  que  deve assumir primazia na realização do fim  da pena e, consequentemente, no momento da sua aplicação.
E, por outro lado, que  a ponderação das circunstâncias elencadas no nº2 deste mesmo  art. 71º do C. Penal está em grande medida dependente da interpretação que se fizer do seu nº1, isto é, da resposta a dar à questão da antinomia dos fins das penas e, em particular, à da relação entre culpa e prevenção, no contexto da aplicação concreta duma pena[8].
Assim, partindo destas duas premissas, importa esclarecer, tal como escreve Jeschek[9],  que «culpa e prevenção situam-se em planos distintos. A culpa responde à pergunta de saber se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim, como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta, da prevenção  em que se decide qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico.   
A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente uma finalidade da mesma».
Daí, no quadro das várias propostas doutrinais  sobre as relações entre culpa e prevenção, demarcar-se  daqueles que,  tal como Jackobs[10], elevam as exigências de prevenção geral como critério fundamental a ter em conta na determinação da medida da pena, em detrimento da culpa, pois, no seu dizer,   realçando-se a prevenção como critério fundamental, «desvanece-se, com prejuízo da justiça individual,  orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção».
E demarcar-se ainda daqueles que,  tal como Claus Roxin[11], restringem o papel primacial tradicionalmente desempenhado pelo princípio da culpa à função de “meio para a limitação da pena”, de  limite inultrapassável da medida da pena, argumentando que se a  culpa « é o limite superior da pena, também deve ser co-decisivo para toda a determinação da mesma que se encontre abaixo daquela fronteira», porquanto, « ao limitar-se a fixação concreta da pena a fins preventivos, a decisão do juiz perde o ponto de conexão com a qualificação ética do facto que é julgado, e a pena, por esse facto perde também todo a possibilidade de influir a favor daqueles objectivos de prevenção.
Só apelando à profundidade moral da pessoa se pode esperar, tanto a ressocialização do condenado, como também uma eficácia socio-pedagógica da pena sobre a população em geral».
Neste mesmo sentido pronunciaram-se  os   acórdãos do STJ, de 13.10.2010 ( proc. 200/06.0JAAVR.C1.S1) e  de  22.01.2013 ( proc. 182/10.3TAVPV.L1.S1-3ª Secção)[12].
Assim, perfilhando  a tese de Jescheck de que o princípio da culpa  é  o fundamento para poder responsabilizar-se pessoalmente o autor pela  ação típica e antijurídica que haja cometido mediante uma pena, sendo, simultaneamente, um requisito de punibilidade e um critério para a determinação da pena[13], é à luz desta perspetiva, que que se efetuará a  ponderação, quer  das circunstâncias, expressamente,  indicadas  no nº2 do  art. 71º do C. Penal, quer de outras que  sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infração do princípio da proibição da dupla valoração.
E tudo isto, no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional,  de que as restrições aos direitos, liberdades e garantias  devem  «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» ( art. 18º, nº2 da CRP), ou seja, no pressuposto de que  a pena de prisão  só é admissível quando se mostrar indispensável (princípio da necessidade ou da exigibilidade), quando se revelar o meio adequado para alcançar os fins ou finalidades que a lei penal visa com a sua cominação (princípio da adequação ou da idoneidade) e quando se mostrar quantitativamente justa, ou seja, não se situe nem aquém nem além do que importa para obtenção do resultado devido (princípio da proporcionalidade ou da racionalidade)[14].
E porque, no dizer de Jorge Miranda[15], a falta de necessidade ou de adequação traduz-se em arbítrio e a  falta de racionalidade traduz-se em excesso, facilmente se compreende a importância que, no âmbito da determinação da medida da pena,  assume o princípio da proibição de excesso, segundo o qual,  no dizer do  citado acórdão do STJ, de 13.10.2010,  « importa eleger a forma de intervenção menos gravosa que ofereça perspectivas de êxito e, assim, é possível que a dimensão concreta da pena varie dentro dos limites da culpa segundo a forma como se apresenta a concreta imagem de prevenção do autos».
Dito de outro modo e segundo Anabela Rodrigues[16] , este princípio não é mais do que um limite à intervenção penal derivado do fundamento da prevenção geral na necessidade social  e que implica, no âmbito da medida da pena, que a sua gravidade seja adequada à gravidade da lesão do bem jurídico ocorrida, pois de outro modo, correr-se-ia o risco de se transformar numa prevenção geral de intimidação.
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Dentro deste quadro e considerando a culpa como sendo critério fundamental na determinação da medida da pena, importa, agora, indagar se, no caso dos autos,  a decisão recorrida equacionou adequadamente a determinação do  fim da pena  na sua tríplice dimensão retributiva, preventivo-geral e preventivo-especial.

A este respeito, diremos, desde logo,  não merecer qualquer  reparo a consideração  dos factores a que o acórdão recorrido atendeu  nos termos e para os efeitos do citado art. 71º, nº2, à exceção da valoração que o tribunal a quo fez da culpa do arguido, que, a nosso ver, não só interveio numa posição subordinada à prevenção geral  como foi  sobrevalorizada.

Começando por  este último aspeto, há que reconhecer, em consonância com o recorrente,  que o tribunal a quo, atribuiu à culpa um “grau  extremamente elevado”, sem ter em consideração a circunstância  da atuação do arguido e de grande parte do seu  percurso de vida ter subjacente a sua dependência do consumo de produtos estupefacientes, limitando-se, neste campo, a conceder, em abstrato, que « a envolvência das drogas duras possa ter diminuído a sua capacidade de valoração e, neste contexto, de se conter e agir de acordo com o Direito».

Vejamos, então, se a factualidade provada deve impor, no caso concreto,  uma maior diminuição da culpa, tal como defende o arguido.
Para tanto, impõe-se ter presente que  a Organização Mundial de Saúde define como caraterística da toxicodependência, o desejo invencível ou necessidade de continuar a consumir droga e de a procurar por todos os meios; a tendência para aumentar a dose progressivamente devido à tolerância  que gera a droga  e a dependência de ordem psíquica e, muitas vezes,  física em consequência da droga.  

No mesmo sentido, escreve J. Pinto da Costa[17] que,  na  toxicodependência « há um desejo intensíssimo ou necessidade de continuar a consumir e a procurar a substância de qualquer maneira, com tendência para o aumento da dose, dependência psíquica e física dos efeitos da droga com repercussões nocivas sobre o indivíduo e a colectividade».

Ora, basta  atentarmos  nos factos dados como provados e supra descritos sob os nºs 12, 13 e 14, para facilmente se concluir que  o arguido teve, desde muito cedo, a sua capacidade de ação e a sua vontade condicionada pela dependência do consumo de estupefacientes, que, influenciou o  seu percurso de vida e vem marcando o seu percurso criminoso.

Com efeito, nesta matéria, ficou provado que:

- o arguido agiu sob a influência de produtos estupefacientes. 

- pretendia adquirir mais produtos estupefacientes , como efetivamente veio a fazê-lo com os € 230,00 que retirou da caixa registadora.

- o arguido que, tem atualmente 28 anos de idade, iniciou, com cerca de quinze/dezasseis,  o consumo de haxixe, progredindo para os consumos de drogas ditas “pesadas”, nomeadamente, heroína e cocaína e, mais recentemente, drogas sintéticas, às quais atribui a sua atual situação jurídica.

-  iniciou o seu percurso laboral com cerca de dezasseis anos de idade, no setor das pescas, percurso este que foi fortemente condicionado  pela  problemática  aditiva,  vindo  a  desenvolver  a  sua  atividade  de  forma irregular, ou seja, sempre que necessitava de dinheiro para a aquisição de drogas, sendo o rendimento económico  da mesma, aplicado nos consumos diários de substâncias ilícitas.

- efetuou diversos tratamentos vocacionadas para a problemática da toxicodependência, em unidades distintas, tendo sempre registado recaídas.

-  antes da sua prisão preventiva a progenitora tentou que integrasse o Programa de Substituição de Opiáceos, o que resultou infrutífero. A integração no dito Programa somente ocorreu após a sua prisão preventiva.

- entre as várias condenações já sofridas pelo arguido, consta uma condenação, pela prática de três crimes de roubo, um crime de ameaça e um crime de ofensa à integridade física simples, por factos entre 14.11.2008 e 25.12.2008, na pena única de quatro anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução condicionada ao tratamento à toxicodependência e  uma outra,  pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes por factos de 01.01.2009, na pena de três anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual período.

Ora, ainda que a toxicodependência não anule a consciência do acto nem a   liberdade de ação, não isentando, por isso, a  responsabilidade criminal do agente, há que reconhecer  que a pressão  que  a satisfação do vicio exerce sobre o mesmo, é suscetível  de enfraquecer,  de algum modo, os mecanismos de auto-controlo, com o inerente reflexo  no grau de culpa.

Daí que, contrariamente  à posição assumida pelo tribunal  a quo, não se possa deixar de atribuir maior relevância  à consideração de que o arguido agiu sob a influência  do consumo  de produtos estupefacientes  e pela  necessidade de satisfazer  o seu vício.

Contudo, isso não significa  que essa dependência possa ter o elevado valor atenuativo que o recorrente reclama, pois, para que assim fosse,  importava, como refere o acórdão do STJ, de 12.07.2007 ( proc. nº 4098/06-5ª Secção), que  tivesse ficado provado que o crime por ele praticado  tinha  resultado das  necessidades aditivas, isto é, que o arguido  tivesse agido num estado de privação de droga que tivesse criado nele um estado de impulsividade/compulsividade.

Ora,  nada disso ficou provado, sendo certo que a circunstância de se ter dado como assente que o  arguido  agiu sob a influência de produtos estupefacientes e que  pretendia adquirir mais produtos estupefacientes, como veio a fazer  como os €230,00 que retirou da caixa registadora, não significa necessariamente que tenha atuado naquele estado.

Contudo, atenta a toxicodependência do arguido  e a motivação do mesmo para poder arranjar dinheiro para faze face aos seus consumos de droga, não nos custa aceitar uma diminuição da culpa, na medida em que, como refere o acórdão  do STJ, de 20.01.2010 ( proc. 587/08.0PAVFR.P1.S1- 3ª Secção), a prática de crimes por toxicodependentes, nomeadamente aqueles que possibilitam a apropriação de dinheiro ou de bens facilmente convertíveis em moeda, é frequentemente apresentada como consequência da pressão que a satisfação do vício exerce sobre o agente.

E ainda que, a nosso ver, esta realidade não deixe de revelar  “ a outra face da moeda”, na medida em que ela própria constitui também um factor criminógeno muito sério, a demandar acrescidas exigências de prevenção geral  e especial de ressocialização,  nos termos  deixados expostos  pelo acórdão recorrido, a verdade é que  não podemos aceitar que a culpa, enquanto razão de ser da pena e principal critério fundamentador da medida da pena, possa ser “ultrapassada”  pela necessidade de realização  da finalidade de prevenção geral e especial.   
Isto porque há que ter em conta, tal como refere o acórdão do STJ, de 30.03.2016[18], que « na sua essência a pena é retribuição da culpa e, subsidiariamente, instrumento de intimidação da generalidade e, na medida do possível, de ressocialização do agente».
Neste contexto, entendemos ainda ser de atribuir valor atenuativo, ao  nível moderado da violência utilizada  pelo arguido ( intimidação do ofendido sob a ameaça de uso de uma navalha), ao valor pouco significativo do produto do roubo ( de modesto valor atenuativo, dada sua aleatoriedade ), à  confissão espontânea  dos factos,  feita logo no início das suas declarações  em audiência e com a singela expressão “ é verdade”, conforme consta da motivação da decisão sobre a matéria de facto ( que, a nosso ver,  não deixa de ser relevante apesar da  ausência de arrependimento por parte do arguido) e ao facto das condições de vida do arguido  não terem facilitado a sua integração social ( situação económica do agregado familiar, de forte carência; dinâmica familiar marcada pelo problema de alcoolismo e maus tratos perpetrados pela figura paterna a todos os elementos).
Mas tudo isto sem menosprezar as elevadas  exigências de prevenção, quer geral positiva quer especial de socialização, considerando, por um lado, ser mais difícil de conseguir a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e por outro lado, o perigo de recaída,  evidenciado pelas sucessivas condenações em prisão que tem sofrido desde 2007, pela circunstância de, ter prevaricado estando há cerca de 6 meses em liberdade condicional, pelo fracasso das tentativas de sujeição a tratamento da toxicodependência, pela resistência a integrar o Programa de Substituição de Opiáceos  e  pelo facto de continuar a manter dificuldades em adequar a sua conduta ao dever ser, mesmo no estabelecimento prisional, onde  passou a integrar o referido programa.
Daí que, na ponderação  destas e das demais circunstâncias ocorrentes mencionadas no acórdão recorrido, à luz do falado princípio da proporcionalidade, julgamos ser de reduzir a pena de 9 anos aplicada ao arguido, afigurando-se-nos adequada a pena de 6 anos  de prisão.
E nem se diga, como o faz o recorrente, que, comparando com outras decisões judiciais  em  casos semelhantes, designadamente  no caso decidido pelo acórdão do STJ, de 21.06.2007 ( proc. 2277/07-5ª Secção), deve ser-lhe aplicada uma pena próxima do patamar médio de 3 anos e 5 meses, sob pena de violação do princípio da equidade.  
É que, para além  de serem diferentes  os factos considerados provados  num e noutro casos, este Supremo Tribunal está impedido de pronunciar-se sobre a bondade daquela decisão.

Procede, pois, apenas  parcialmente o recurso interposto pelo arguido.


***
 
III. Decisão

Termos em que acordam na 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

1. Conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido AA, na parte respeitante à medida concreta da pena, determinando o cumprimento de uma pena de prisão efetiva de 6 (seis) anos pela prática do crime de roubo agravado, p. e p. pelos arts. 210º, nºs 1 e 2, alínea b) e 204º, nº2, al. f), ambos do Código Penal.

2. No mais, confirmar a decisão recorrida.

Por o recurso ter obtido provimento parcial não são devidas custas, de harmonia com o disposto no art. 513.º, n.º 1 do CPP.

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de março de 2017

(Texto elaborado e revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2, do CPP).



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[1] Relato nº 32, Rosa Tching
[2]      Cf. Luís Duarte Patrício, DROGA para que se saiba, Figueirinhas, 2002, p. 53.
[3] Certamente, na esteira dos ensinamentos de Figueiredo Dias, para quem as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível , na reinserção do agente na comunidade,  restringindo a culpa à função de limite máximo da medida da pena. Cfr. “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime”, Editorial de Notícias, págs. 227 e segs.
[4] José Sousa e Brito, in, “A medida da pena no novo Código Penal”, Lisboa, 1984, texto poli., p. 1
[5] Cfr. Claus Roxin, in, “Culpabilidad y prevención en derecho penal” (tradução de Muñoz Conde – Madrid, 1981, pág. 93. 
[6] In, “A medida da pena”, Lisboa,  pág. 62.
[7] Cfr. H.H. Jescheck, in, “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, II, Barcelona, 1981, pág. 1190, nota 5.
[8] Cfr. Hans. Heinrich. Jescheck,  in, “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, II, Barcelona, 1981, pág. 1201.
[9] In “Evolución del Concepto Jurídico Penal de Culpabilidad en Alemana Y Austria”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, ISSN 1695-0194 05-01(2003).

[10] In “Schuld und Prävention”, Tübingen, 1976, pág. 8 e segs.
[11] Cfr. Claus Roxin,in “ Culpabilidad Y Prevención en Derecho Penal” (tradução de Muñoz Conde – 1981), págs 96-98. 
[12] Publicados in www. dgsi.pt.
[13] Cfr. . Hans. Heinrich. Jescheck,  in “Evolución del Concepto Jurídico Penal de Culpabilidad en Alemana Y Austria”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, ISSN 1695-0194 05-01(2003).
[14] Neste sentido, Cfr. Acórdão do STJ, de  06.01.2010 ( proc. nº 99/08.1SVLSB.L1.S1).
[15] In, “Constitução da República Portuguesa”, Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, págs. 148- 163.
[16] In, 2 A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, pág. 371.
[17]  “Psicofármacos e outros Psicomodificadores e Imputabilidade, in Revista de Investigação Criminal, nº13.
[18] Publicado na CJ/STJ, Ano XXIV, Tomo I, 2016, pág. 273.