Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | MAIORIDADE APLICAÇÃO DE LEI ESTRANGEIRA IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE CADUCIDADE DA AÇÃO PRAZO DE CADUCIDADE | ||
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Data do Acordão: | 09/29/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I. Numa interpretação do artigo 6.º, n.º 2, do Código da Família da Ucrânia à luz do sistema jurídico, pode concluir-se que a maioridade é atingida aos dezoito anos, em conformidade com o disposto no artigo 34.º, n.º 1, do Código Civil da Ucrânia, sem prejuízo dos casos em que se reconhece expressamente ao menor com idade igual ou superior a catorze anos um estatuto especial para determinados efeitos. II. Estando vedado pelo artigo 136.º, n.º 3, do Código da Família da Ucrânia que a pessoa registada como pai impugne a paternidade quando o filho seja maior mas tendo este, in casu, somente dezasseis anos à data da propositura da acção, não pode julgar-se improcedente a invocada excepção de caducidade. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO 1. AA propôs acção de impugnação de paternidade pedindo a exclusão da paternidade em relação ao menor BB, devendo este ser considerado apenas filho de CC e ordenando-se a retificação do registo de nascimento quanto à menção de paternidade e da avoenga paterna. Alega o autor que BB nasceu em .../.../2000, na ..., mas não é seu filho biológico, apesar de assim se encontrar registado, porquanto à data do nascimento, o autor era casado com a mãe CC desde 21.09.1996, assumindo a paternidade e reconhecendo o menor como seu filho. Porém, a ré manteve relações sexuais com outro homem nos primeiros 180 dias dos 300 que precederam o nascimento do menor, sendo este o resultado daquele relacionamento. Deixou de agir como pai do menor logo que soube que não era pai biológico do mesmo, o que veio a confirmar por exame pericial efetuado em 2008, em que se concluiu que a probabilidade de paternidade do autor em relação ao menor é praticamente nula. Alega que se encontra em tempo para impugnar a paternidade porque: (i) de acordo com a legislação aplicável (ucraniana) ainda se encontra a correr o prazo para instaurar a presente acção pelo próprio menor e porque o autor deixou de o tratar como seu filho, assim que tomou conhecimento do resultado do exame (2008); (ii) o menor nasceu na ... e, à data do nascimento, o autor e a ré viviam na ..., sendo de nacionalidade ucraniana e casados entre si, ao que acresce o facto de o menor continuar a ter a nacionalidade ucraniana, aplicando-se assim a lei ucraniana, donde, ao abrigo do disposto no artigo 136.º, n.º 3, do Código de Família da Ucrânia (CFU), a filiação paterna pode ser impugnada a todo o tempo até que a criança atinja a maioridade. 2. A contestação foi apresentada pelos dois réus DD e BB, sendo a contestação deste último réu apresentada pela curadora especial, a sua avó materna EE, entretanto nomeada. Por excepção, invocaram eles a prescrição do direito de impugnação ao abrigo do artigo 1842.º, n.º 1, al. a), do CC, não se aplicando ao caso a lei ucraniana por os réus residirem em Portugal há cerca de 15 anos, tendo sido atribuída a nacionalidade portuguesa ao autor e à ré, estando em curso a aquisição de nacionalidade portuguesa por parte do menor. No mais, impugnaram a alegação do autor sustentando que o mesmo desde a gravidez da ré sempre soube que o menor não era seu filho biológico. 2. Em 19.09.2018, foi proferido despacho saneador sentença que julgou procedente a excepção de caducidade e absolveu os réus do pedido. 3. Em 28.02.2019, na apreciação do recurso interposto pelo autor, foi a sentença revogada e ordenado o prosseguimento dos autos. Neste acórdão foi decidido que “a lei pessoal aplicável à constituição da filiação nos termos do artigo 56.º do CC, é também a lei que rege a impugnação da paternidade e o prazo para a sua interposição, sendo o momento relevante para a determinar, o do nascimento do filho e não o da propositura da acção em que se pretende extinguir a filiação constituída, por estarmos em presença de uma conexão fixa”. 4. Devolvidos os autos à 1.ª instância, foi recolhida informação sobre a lei ucraniana quanto à matéria da filiação e da impugnação de paternidade, foi realizada audiência de discussão e julgamento e, em 9.07.2021, foi proferida sentença que julgou procedente a excepção peremptória de caducidade do prazo para intentar a acção de impugnação e absolveu os Réus do pedido. 5. Inconformado, apelou o autor, pugnando pela revogação da sentença. 6. Em 28.04.2022, o Tribunal da Relação de Évora proferiu Acórdão em que se decidiu: “Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a sentença recorrida, declarando que BB não é filho biológico de AA, ordenando, consequentemente, que seja eliminado do assento de nascimento de BB (sendo que na Ucrânia a lei determina que seja lavrado um novo assento de nascimento) a menção de paternidade e a avoenga paterna. Comunique à Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa (assento de nascimento n.º ... do ano de 2017) onde foi lavrado o assento de nascimento do Réu BB (cfr. fls. 166 do processo em papel)”. 7. Não se conformando, vem a ré CC, por sua vez, recorrer deste Acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça. As conclusões enunciadas são as seguintes: “1. O presente recurso de revista vem interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 28.04.2022 que decidiu “Julgar procedente a apelação e, consequentemente revogam a sentença recorrida, declarando que BB não é filho biológico de AA, ordenando consequentemente, que seja eliminado do assento de nascimento de BB (sendo que na Ucrânia a lei determina que seja lavrado um assento de nascimento) a menção da paternidade e a avoenga paterna. Comunique à Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa (assento de nascimento n.º ... do ano de 2017) onde foi lavrado o assento de nascimento do Réu BB (cfr. fls. 166 do processo em papel); 2. Em sentido contrário, o Tribunal da Primeira Instância decidiu, a nosso ver, bem o seguinte: “Julgar procedente a excepção peremtória de caducidade do prazo para intentar a presente acção e, em consequência, absolvo os réus do pedido”; 3. O acórdão da Relação que revogou a sentença do Tribunal da Primeira Instância e, que pôs termo ao processo, como sucede no caso vertente, comporta recurso de revista nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 671.º n.º 1 do Código de Processo Civil (doravante CPC); 4. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, alínea a) do CPC entendemos que houve erro na determinação da aplicação da norma aplicável ao caso vertente; 5. Em nossa opinião não é aplicável a norma constante ao artigo 34.º do Código Civil da Ucrânia, mas antes a norma constante no artigo 6.º do Código da Família da Ucrânia (doravante CFU); 6. Enquanto o artigo 34.º do Código Civil da Ucrânia prevê que a maioridade é atingida aos dezoito anos de idade, o CFU, no seu artigo 6.º, n.º 2 determina que, até aos catorze anos a criança é considerada menor o que significa, a contrario que a criança ao completar os catorze anos atinge a maioridade; 7. A norma constante do artigo 6.º do CFU, determina que a maioridade é atingida quando a criança completar catorze anos e, sendo esta a lei que regula, entre outras, a matéria respeitante à impugnação da paternidade, deve aplicar-se esta esta norma ao caso vertente; 8. Conforme resulta dos artigos 122.º, n.º 1, do CFU “Uma criança concebida e ou nascida dentro do matrimónio é filiada ao casal”; 9. Por seu turno, prevê o artigo 136.º do CFU: “1. A pessoa que tenha sido registada como pai da criança em conformidade com os artigos 122º, 124º, 126º e 127º do presente código, tem o direito de contestar a sua afiliação paternal, movendo uma acção judicial para retirar o seu nome como pai da criança do registo de nascimento. 2. Se a ausência de relação de sangue entre a pessoa registada como sendo o pai e a criança for provada, o Tribunal tomar decisão de retirar o nome da pessoa com o pai da criança, a partir do registo nascimento da criança. 3. A afiliação paterna pode ser impugnada, mas após o nascimento da criança e a menos que a criança tenha atingido a maioridade. 4. No caso de morte criança, não é permitida a contestação de afiliação paternal. 5. A afiliação paternal não pode ser contestada pela pessoa registada como pai da criança se, após o seu registo como pai da criança ele estava plenamente consciente que não era o pai, bem como a pessoa que deu o seu consentimento para a utilização de técnicas de procriação artificial em relação à sua esposa. 6. O estatuto limitações não se aplica à alegação do homem para retirar o seu nome do registo nascimento como pai da criança.” 10. Da conjugação dos mencionados preceitos legais – artigo 122.º, n.º 1 e 136.º do CFU resulta que o marido da mãe pode impugnar a paternidade até que a criança atinja a maioridade; 11. Salvo melhor opinião, caso a maioridade fosse atingida aos dezoito anos, o legislador não teria previsto uma norma especial no CFU sobre esta matéria, conforme resulta dos números 1 e 2 do artigo 6.º do CFU, no sentido da criança, ao completar os catorze anos de idade, atinge a maioridade; 12. Deve, portanto, salvo melhor entendimento, entender-se que, as normas legais constantes do CFU são especiais em relação às normas gerais constantes do Código Civil da Ucrânia e, por conseguinte, aquelas são aplicáveis ao caso vertente. 13. À data do nascimento do Réu, BB, o Recorrido e a ora Recorrente eram casados entre si, tendo o menor sido registado como filho do Recorrente; 14. Na data em que foi proposta a presente ação, em 20.09.2016, o Réu BB tinha 16 anos de idade, ou seja, já havia caducado o prazo legal para o ora Recorrido impugnar a paternidade, visto que o Réu BB já havia completado há muito os 14 anos de idade; 15. Logo, andou bem a nosso ver, o douto Tribunal a quo, ao decidir julgar procedente a excepção peremptória de caducidade do direito invocado pelo Autor, absolvendo os réus do pedido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 576.º, n.º 3 do Código de Processo Civil”. No seu entender, em suma: “é aplicável a norma prevista no artigo 6.º do CFU, interpretada no sentido em que a criança que completa os catorze anos de idade atinge a maioridade e, da conjugação desta norma, com as constantes do artigo 122.º e 136.º todas do CFU conclui-se que, na data em que foi proposta a presente ação (20.09.2016), o prazo legal para impugnação da paternidade já havido sido ultrapassado, em virtude do Réu BB ter, nessa data, dezasseis anos de idade, decidindo-se assim pela procedência da exceção perentória de caducidade do prazo para intentar a presente ação e absolvendo-se os Réus do pedido”. 8. Em 3.06.2022 proferiu a Exma. Desembargadora Relatora o seguinte despacho: “I. Informação solicitada pela Conservatória dos Registos Centrais: Informe que foi interposto recurso de revista do acórdão proferido em 28-04-2022, pelo que a informação solicitada será prestada assim que haja decisão transitada em julgado. Notifique-se este despacho às partes. II. Revista interposta pela Ré: Admite-se a revista interposta do acórdão proferido em 28-04-2022, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (artigos 985.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, 675.º e 676.º, n.º 1, do CPC). Remetem-se os autos ao STJ”. * Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questões a decidir, in casu, é a de saber se deve julgar-se procedente a excepção peremptória de caducidade do prazo para intentar a acção de impugnação.
* II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido: 1. O réu BB nasceu a .../.../2000 na ..., .Ucrânia. 2. O réu BB está registado desde 21 de Janeiro de 2000 como filho de AA e de CC, casados um com o outro à data do registo. 3. O autor FF e a ré CC contraíram entre si casamento na data de 21 de Setembro de 1996, na Ucrânia. 4. Na data de 15 de Janeiro de 2010 foi decretado o divórcio entre autor e ré. 5. Sucede que na constância do casamento, a ré CC manteve uma relação de cariz sexual com outro homem que não o autor. 6. Em consequência dessas relações sexuais, veio a nascer o réu BB, as quais ocorreram nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o nascimento do referido BB. 7. A presente acção deu entrada em juízo na data de 20.09.2016. E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido: a) O autor sempre soube, desde o período de gravidez da ré, que o menor não era seu filho biológico. b) O autor tem uma incapacidade natural para a concepção de filhos biológicos. O DIREITO A propósito da questão acima enunciada, pode ler-se, com relevância, no Acórdão recorrido: “Está estabelecido com trânsito em julgado por força do acórdão desta Relação proferido em 28-02-2019 (cfr. artigos 619.º a 621.º do CPC) que, atenta a norma de conflitos prevista no artigo 56.º do Código Civil, à presente ação de impugnação de paternidade e ao prazo para a sua instauração, é aplicável a lei ucraniana. O artigo 136.º do Código de Família da Ucrânia1 prescreve do seguinte modo: «Artigo 6.º - A criança 1. Uma pessoa tem o estatuto jurídico de criança até atingir a maioridade. 2. A criança é considerada menor até aos catorze anos. 3. Uma criança entre as idades de quatorze e dezoito anos é considerada menor.» Embora o Código de Família tenha sofrido alterações várias, pelo menos, até 02-02- 2020, não se detetaram alterações na redação do preceito 6.º. Como estamos a lidar com traduções da língua ucraniana, por vezes, para inglês e depois para português, podem existir alterações pontuais em algumas palavras conforme a versão que se consulta. É o que sucede com o termo «menor» constante do n.º 2 do referido artigo 6.º, pois numa versão a que acedemos através do site https://cis-legislation.com/document.fwx?rgn=8677 é substituído por «juvenil» («2. A criança antes de completar catorze anos por ele é considerada juvenil»), enquanto no n.º 3 do mesmo preceito a palavra «menor» encontra-se traduzida também para a palavra portuguesa «menor». A sentença recorrida transcreveu uma tradução do artigo 6.º mas apenas em relação aos n.ºs 1 e 2 do preceito, omitindo o n.º 3 do mesmo, onde consta de forma clara que uma criança ucraniana até aos 18 anos é considerada menor, independentemente de entre os 14 e os 18 anos ser tida como uma pessoa juvenil. Diferenciação que tem reflexos em certos aspetos do seu estatuto jurídico. Por exemplo, o artigo 243.º, n.º 2, do mesmo Código de Família estabelece no âmbito da tutela: «1. Sobre os órfãos e os filhos privados de cuidados parentais, é estabelecida a tutela e a guarda. 2. A tutela é instituída sobre o menor de catorze anos e a guarda sobre o menor de catorze a dezoito anos.» Também entre nós a palavra «criança» e «jovem» veio substituir a palavra «menor» em matéria de legislação sobre infância e juventude, correspondendo a uma alteração de paradigma nesta área do direito, onde se passou a eleger o «interesse da criança» como leitmotiv de todo o edifício legislativo, anteriormente muito centrado, sobretudo na área das responsabilidades parentais, no chamado «poder paternal». De qualquer modo, se dúvidas houvesse em relação à idade em que é atingida a maioridade na ..., tal como em Portugal o faz o Código Civil (cfr. artigo 122.º), o artigo 34.º do Código Civil Ucraniano, sob a epígrafe «Capacidade civil plena» prescreve: «1. A pessoa singular que tenha completado dezoito anos (idade adulta) tem plena capacidade civil». A plena capacidade civil da pessoa física significa que a pessoa «tem consciência do significado dos seus actos e pode geri-los», significando que tem «capacidade de adquirir direitos civis e exercê-los de forma independente, bem como a capacidade de criar obrigações civis para si, exercê-los de forma independente e ser responsável em caso de incumprimento» (cfr. artigo 30.º do Código Civil Ucraniano). Até aos 14 anos e entre os 14 e os 18 anos, a capacidade civil encontra-se incompleta, podendo exercê-la apenas em relação a atos jurídicos previstos na lei (cfr. artigos 31.º, 32.º, 33.º e 35.º do Código Civil Ucraniano). Decorrendo, assim, que na Ucrânia até aos 18 anos não se atinge o estatuto jurídico de maioridade e, consequentemente, a plena capacidade civil, o argumento expresso na sentença recorrida baseado no facto do Réu BB já ter mais de 14 anos à data da instauração da presente ação de impugnação de paternidade (já tinha 16 anos) não procede. Decorre do artigo 122.º, n.º 1, do Código Civil da Ucrânia que o filho concebido ou nascido no decurso do matrimónio é tido como filho do casal. A sua filiação é determinada com base na certidão de casamento do casal e no boletim de nascimento, emitido pela instituição de saúde onde o bebé nasceu. Por sua vez, o artigo do mesmo Código de Família da Ucrânia dispõe: «1. Se uma criança é nascida de um cônjuge, a esposa é registrada como mãe e o marido como pai da criança. Tal como na lei portuguesa (cfr. artigo 1826.º, n.º 1, do Código Civil), estes preceitos acolhem a regra do pater is est quem nuptiae demonstrant e contém, em si mesma, uma verdadeira presunção legal para o estabelecimento da paternidade, de natureza iuris tantum, que se baseia num juízo de probabilidade e não de certeza, que consente a correção do erro, com a consequente possibilidade de se fazer prova do contrário do facto presumido, ou seja, a de ilidir a presunção que a criança nascida durante o matrimónio do casal é biologicamente filho do marido da mãe. Nesse pressuposto, e no que ora releva, estatui o artigo 136.º do Código de Família da Ucrânia, sob a epígrafe «Contestação de paternidade por pessoa registrada como pai da criança». «1. A pessoa que estiver registada como pai da criança de acordo com os artigos 122.º, 124.º, 126.º e 127.º deste Código tem o direito de contestar a sua paternidade, intentando uma ação para excluir o seu registo como pai da certidão de nascimento da criança. 2. Se se provar a inexistência de parentesco consanguíneo entre a pessoa inscrita como pai e o filho, o tribunal decidirá excluir do registro de nascimento a informação sobre a pessoa como pai do menor. 3. A contestação da paternidade só é possível após o nascimento da criança e até à idade adulta. 4. É impossível contestar a paternidade em caso de morte do filho. 5. A pessoa registada como pai da criança não pode contestar a paternidade se no momento do registo sabia que não era o pai da criança ou uma pessoa que consentiu o uso de tecnologias de reprodução assistida nos termos do artigo 123.º § 1 deste Código. 6. A prescrição não se aplica ao pedido do marido para excluir o seu registo como pai do acto de nascimento do filho.» Tendo o Autor instaurado a presente ação de impugnação de paternidade antes do jovem BB ter atingido a maioridade, não se verifica a exceção de caducidade do direito de instauração da ação. Sendo que, no caso, também não se aplica o n.º 6 do artigo 136.º supra citado porque a ação foi instaurada já após o divórcio do Autor e da Ré. Resulta do mesmo artigo 136.º que compete ao impugnante ilidir a presunção acima referida, só não lhe sendo permitida essa ilisão, sendo a criança viva, se no momento do registo sabia que não era o pai da criança ou se consentiu no uso de tecnologias de reprodução assistida. No caso, o Autor ilidiu a presunção de paternidade porque provou que, por força da relação sexual que a Autora manteve com outro homem durante o casamento com o Autor, nasceu BB (cfr. factos provados sob os n.ºs 5 e 6), ou seja, o Autor provou a inexistência de parentesco consanguíneo entre ele e a criança, dando, assim, cumprimento ao disposto no artigo 136.º, n.º 2, do Código Civil Ucraniano. Encontram-se, desde modo, verificados os pressupostos para o tribunal excluir do registo de nascimento a informação sobre a pessoa que dele consta como pai do menor, o ora Autor (n.º 2 do citado artigo 136.º). Por outro lado, não ficou provado que o Autor no momento do registo sabia que não era o pai da criança (cfr. 1.º facto não provado), pois se tal soubesse ficaria excluída a possibilidade de eliminar a referência à paternidade (n.º 5 do citado artigo 136.º). Nestes termos, há que dar cumprimento ao artigo 134.º do Código de Família da Ucrânia, que dispõe sob a epígrafe «Alteração da certidão de nascimento em caso de reconhecimento de paternidade, maternidade 1. A pedido das pessoas referidas no artigo 126.º do presente Código ou de decisão judicial, a conservatória do registo civil procede à alteração adequada da certidão de nascimento lavrada pela conservatória do registo civil ucraniano e emite uma nova certidão de nascimento.» Em face do exposto, impõe-se a revogação da sentença recorrida, julgando-se, consequentemente, procedente a ação”. * Sendo crucial para solucionar o caso dos autos que se proceda à interpretação das normas jurídicas relevantes, verifica-se que aquilo que aquilo que é preciso fazer não é a tarefa típica, uma vez que, como ficou decidido com força de caso julgado, a lei aplicável é a ucraniana e, assim, antes de interpretar, há que traduzir aquelas normas. Está em causa o prazo para a propositura da acção de impugnação de paternidade e um aparente conflito entre o artigo 6.º do Código da Família da Ucrânia e o artigo 34.º do Código Civil ucraniano. Mas veja-se, primeiro, muito sucintamente, em que condições é que é possível propor uma acção de impugnação de paternidade no quadro da lei ucraniana. A regra é a de que a pessoa que figura no registo como pai de uma criança pode impugnar a sua paternidade provando que inexiste uma relação de sangue entre ele e a criança. A acção pode ser proposta desde o momento em que a criança nasce até ao momento em que ela atinge a sua maioridade, mas não quando tenha ocorrido a morte da criança ou quando o impugnante soubesse, no momento do registo, que não era o pai da criança ou tenha consentido no uso de tecnologias de reprodução assistida. As regras estão dispostas no artigo 136.º do Código da Família da Ucrânia, com a epigrafe “Impugnação da paternidade pela pessoa registada como pai da criança”, dispõe[1]: “1. A pessoa que esteja registada pelo pai da criança nos termos dos artigos 122.º, 124.º, 126.º e 127.º do presente código tem o direito de impugnar a sua paternidade, apresentando um pedido de exclusão do registo do seu progenitor do registo do nascimento da criança. 2. Provada a inexistência de uma relação de sangue entre a pessoa registada pelo progenitor e a criança, o tribunal decide excluir do registo de nascimento da criança a informação sobre a pessoa como seu pai. 3. A impugnação da paternidade só é possível após o nascimento da criança e até esta atingir a maioridade. 4. A impugnação da paternidade não é possível em caso de morte da criança. 5. Uma pessoa registada pelo pai da criança não tem o direito de impugnar a paternidade se, no momento do seu registo como pai da criança, soubesse que não era o seu pai ou se consentiu no uso de tecnologias de reprodução assistida em conformidade com o n.º 1 do artigo 123.º do presente código. {Número cinco do artigo 136.º, alterado pela Lei n.º 524-V de 22.12.2006} 6. A prescrição não se aplica ao pedido do marido de excluir o registo como pai do registo do nascimento da criança”. Compulsando os factos provados, verifica-se que, como afirmou o Tribunal recorrido, o autor conseguiu demonstrar que a ré CC manteve uma relação de cariz sexual com outro homem que não o autor e que, em consequência dessas relações sexuais, veio a nascer o réu BB (cfr. factos provados 5 e 6), Significa isto que pode dar-se por provada a inexistência de uma relação de sangue com a criança, conforme exigido o artigo 136.º, n.º 2, do Código da Família Ucraniano. Não há dúvidas, por um lado, de que não se verifica a hipótese prevista no n.º 6 do artigo 136.º do Código da Família Ucraniano porque a presente acção deu entrada em juízo em 20.09.2016 (cfr. facto provado 7) e o divórcio entre o autor e a ré foi decretado em 15.01.2010 (cfr. facto provado 4). Não se provou, por outro lado, que o autor sabia, no momento do registo, que não era o pai da criança [cfr. facto não provado a)] e nada se apurou quanto ao eventual consentimento do autor no uso de tecnologias de reprodução assistida. Assim, a acção não pode ser rejeitada com nenhum destes grupos de fundamentos. Resta, assim, verificar o preenchimento do requisito temporal acima referido, ou seja, saber se, quando a acção foi proposta, o jovem BB tinha ou não atingido a maioridade. É aqui que adquirem, por fim, relevância as duas normas acima referidas – o artigo 6.º do Código da Família da Ucrânia e o artigo 34.º do Código Civil ucraniano. O artigo 6.º do Código da Família da Ucrânia, com a epígrafe “Criança”, tem o seguinte teor: “1. Uma pessoa tem o estatuto jurídico de criança até atingir a maioridade. 2. A criança com idade até aos catorze anos é considerada menor. Uma criança com idade entre os quatorze e os dezoito anos é considerada menor de idade”. A norma não é fácil de interpretar, dado que o estatuto jurídico das crianças de cada um dos grupos de faixas etárias mencionado na norma se define por referência a termos cuja tradução não é fácil e, sobretudo, termos que, tanto em inglês como em português, parecem ter o mesmo significado ou um significado equivalente. No texto de que se partiu para a tradução da norma para português (versão oficial do ... ucraniano) usa-se o termo “minor” para as crianças até aos catorze anos e o termo “underage” para as crianças entre os catorze e os dezoito anos. Para comprovar o grau de dificuldade na tradução e na determinação do sentido das duas expressões, veja-se que, noutros textos em inglês que se encontraram, usa-se, respectivamente, as expressões “pupil child” e “minor child” ou ainda as expressões “minor” e “juvenile”. Por sua vez, o artigo 34.º, n.º 1, do Código Civil ucraniano, com a epígrafe “Capacidade jurídica civil plena”, tem o seguinte teor: “A pessoa singular que tenha completado dezoito anos (maioridade) tem plena capacidade civil”. Esta é, sem dúvida, uma norma mais assertiva, dispondo, claramente, que a maioridade é atingida aos dezoito anos. A proximidade com o disposto no artigo 122.º do CC português é flagrante, que diz a mesma coisa, embora pela negativa: “[é] menor quem não tiver ainda completado dezoito anos”. Mas, para delimitar o alcance da norma, é preciso ler as normas da disciplina em que ela se integra – Capítulo 4 do Código Civil ucraniano, reservado às disposições gerais sobre as pessoas singulares. Na norma do artigo 25.º do Código Civil ucraniano consagra-se a regra de que as pessoas são susceptíveis de ter direitos e obrigações, ou seja, têm capacidade jurídica. A fórmula é semelhante à do artigo 67.º do CC português (susceptibilidade de ser sujeito de relações jurídicas), podendo e devendo entender-se que o que está, em qualquer caso, em causa é a capacidade jurídica ou capacidade de gozo de direitos. Outra coisa, ou coisa distinta, é a capacidade de exercício de direitos ou capacidade de agir, definida no artigo 30.º do Código Civil ucraniano como a idoneidade ou a aptidão para agir pessoal e autonomamente, exercendo direitos ou assumindo obrigações. Mais uma vez, há homologia com as noções homónimas utilizadas no ordenamento jurídico português[2]. Importa reter que, tal como no Direito português (cfr. artigos 122.º, 123.º e 130.º do CC português), só aos dezoito anos se alcança a plena capacidade de exercício de direitos / a plena capacidade de agir. A idade de catorze anos é, contudo, uma referência para certos efeitos. No artigo 31.º do Código Civil ucraniano regula-se a capacidade de agir – parcial – da pessoa até aos catorze anos, reconhecendo-lhe o direito de praticar pequenas transacções relacionadas com as necessidades pessoais ou da família. No artigo 32.º do Código Civil ucraniano regula-se a capacidade de agir – incompleta – da pessoa entre os catorze e os dezoito anos, reconhecendo-se, para lá do direito previsto na norma antecessora, e entre outros direitos o direito de dispor autonomamente dos seus rendimentos, o direito de dispor autonomamente dos direitos de autor que adquira, o direito de ser membro de pessoas jurídicas desde que não proibido pela lei ou pelos estatutos da pessoa colectiva em causa, o direito de celebrar autonomamente contratos de depósito bancários e de dispor de fazer depósitos em tais contas. Por último, o artigo 33.º do Código Civil regula-se a responsabilidade civil do menor, determinando-se, aí sem quaisquer discriminações de idade, que ele é responsável pela violação dos contratos por si autonomamente celebrados, nos termos da lei[3] [4]. Devidamente ponderadas todas as normas relevantes da lei civil, propende-se para entender que o artigo 34.º, n.º 1, do Código Civil ucraniano não pode deixar de dizer exactamente aquilo que diz, ou seja, que a maioridade é atingida aos dezoito anos, e que esta regra vale para todos os efeitos gerais, salvo quando a lei disponha diversamente, como acontece nos artigos 31.º e 32.º em que a lei faz certas “concessões” no plano da capacidade de agir dos menores de dezoito anos. Chegados aqui, compreende-se que discriminação entre as duas faixas etárias (até aos catorze e entre os catorze e os dezoito anos), tal como efectuada no artigo 6.º do Código da Família da Ucrânia, tem interesse para efeitos especiais, não contendendo ou não pondo em nenhuma circunstância em causa aquela regra da maioridade. O legislador refere-se expressamente ao patamar dos catorze no artigo 6.º do Código da Família da Ucrânia porque se prevêem neste Código situações em que a idade de catorze anos adquire relevância jurídica especial. Por outras palavras: o legislador redigiu a norma do artigo 6.º a pensar, justamente, nas situações, em que, a partir dos catorze anos, o menor é, para certos efeitos, não obstante ainda menor, um menor diferente dos menores com idade inferior. De facto, a idade de catorze anos é uma idade marcante para o exercício de certos direitos regulados no Código da Família da Ucrânia. Reconhece-se, por exemplo, à criança, a partir dos catorze anos, o poder de se dirigir directamente ao tribunal para pedir protecção para os direitos da família (cfr. artigo 18.º), o poder de alterar o seu nome (cfr. artigo 149.º), o poder de se dirigir directamente ao tribunal para pedir protecção para os seus direitos (cfr. artigo 152.º), o poder de se dirigir directamente ao tribunal para pedir protecção para os direitos dos seus filhos (cfr. artigo 156.º), o poder de decidir com que com vive no caso de separação dos pais (cfr. artigo 160.º), o poder de propor uma acção para a cessação das responsabilidades parentais (cfr. artigo 165), o poder de participar no acordo de cessação de alimentos (cfr. artigo 190.º), o poder de ser informado de que foi adoptada (cfr. artigo 226.º), etc. Em conclusão, numa interpretação sistemática do artigo 6.º, n.º 2, do Código da Família da Ucrânia, isto é, à luz das normas que compõem o regime da família que é objecto daquele código (cfr. artigo 1.º do Código da Família da Ucrânia) bem como de todo sistema jurídico (incluída, por excelência, a lei civil), entende-se que ele não põe em causa a regra da maioridade consagrada no artigo 34.º, n.º 1, do Código da Família da Ucrânia. Dito de outro modo: a maioridade é atingida aos dezoito anos, sem prejuízo de se conferir à criança com idade igual ou superior a catorze anos um estatuto jurídico especial nos casos expressamente previstos na lei. * Depois deste excurso, é chegada a altura de decidir. A recorrente CC entende que o Tribunal recorrido errou na determinação da aplicação da norma aplicável ao caso, mais precisamente que não é aplicável a norma constante ao artigo 34.º do Código Civil ucraniano mas sim a norma constante no artigo 6.º do Código da Família da Ucrânia (cfr. conclusões 4 e 5). Todavia, em face do que fica dito, não é possível dar-lhe razão. É verdade que, como diz a recorrente (cfr, conclusão 7) é no Código da Família da Ucrânia que é regulada a matéria da impugnação da paternidade. Mas, por isso mesmo, é significativo que nada se diga nesse preciso ponto quanto à idade de catorze anos. Ao contrário do que discorre a recorrente (cfr. conclusões 11 e 12), se o legislador quisesse que a idade de catorze anos fosse relevante e, consequentemente, afastar, para o efeito do artigo 136.º, n.º 3, do Código da Família da Ucrânia, a regra geral disposta no artigo 34.º, n.º 1, do Código Civil ucraniano, teria de o ter dito, à imagem do que ocorre nas situações especiais, referidas atrás, em que se confere à criança de catorze anos um estatuto jurídico diferenciado ou que não se reconhece às crianças de idade inferior. Teria de ter dito – e seria simples fazê-lo, tal como fez naquelas outras situações que a impugnação da paternidade só era possível até a criança atingir os catorze anos. Ora, como se viu atrás, no artigo 136.º, n.º 3, do Código da Família da Ucrânia fala-se, genericamente ou sem mais, em “maioridade” (“a impugnação da paternidade só é possível (…) até esta atingir a maioridade). O que quer dizer que há uma remissão implícita para a regra geral, ou seja, para a norma da lei civil que define ou delimita a maioridade. O raciocínio é lógico: não havendo disposição especial, é a regra geral que se aplica. Convocar-se-ia aqui, a propósito, o lugar paralelo do artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do CC português, na parte em que este determina, não obstante para o efeito de delimitar o prazo do direito de acção do filho, que este só pode impugnar a paternidade até dez anos depois de haver atingido a maioridade: não há dúvidas de que a maioridade é a idade de dezoito anos, conforme estabelecido nos artigos 122.º e 123.º do CC português[5]. Pode ainda acrescentar-se que as disposições especiais em que a lei ucraniana confere à criança de catorze anos um estatuto jurídico diferenciado relativamente às crianças de idade inferior representam, fundamentalmente, desvios ou excepções à incapacidade de agir ou à capacidade de agir incompleta destes sujeitos enquanto o artigo 136.º, n.º 3, do Código da Família da Ucrânia trata matéria de diferente natureza: dirige-se a delimitar até que idade o sujeito pode ver impugnada a sua paternidade por quem figure como seu pai no registo. Tudo visto, pode concluir-se que, tendo o autor proposto a acção em 20.09.2016 (cfr. facto provado 7), a acção foi proposta quando ainda estava em curso o prazo legal para a sua propositura. Tendo nascido em .../.../2000 (cfr. facto provado 1) BB tinha na altura 16 anos de idade, portanto mais de catorze anos mas ainda não os dezoito anos exigíveis para a maioridade tal como é entendida nos termos gerais e aquela que se refere o artigo 136.º, n.º 3, do Código da Família da Ucrânia. Não procede, em suma, a excepção de caducidade da acção, cumprindo confirmar a decisão recorrida em toda a sua extensão. * III. DECISÃO Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido. * Custas pela recorrente. * Lisboa, 29 de Setembro de 2022 Catarina Serra (Relatora) Rijo Ferreira Cura Mariano ______ [1] A legislação ucraniana foi acedida no site oficial do Parlamento ucraniano (disponível, para o Código Civil ucraniano, em https://zakon.rada.gov.ua/laws/show/435-15#Text e, para o Código da Família da Ucrânia, em https://zakon.rada.gov.ua/laws/show/2947-14/page#Text). A tradução da língua ucraniana para a língua portuguesa foi feita com o recurso às versões em língua inglesa, disponíveis, entre outros, na base de dados Commonwealth of Independent States (CIS) Legislation (no caso do Código Civil ucraniano, em https://cis-legislation.com/document.fwx?rgn=8896 e, no caso do Código da Família da Ucrânia, em https://cis-legislation.com/document.fwx?rgn=8677). No caso do Código da Família da Ucrânia teve-se em especial atenção a tradução oficial para inglês disponível também no site oficial do Parlamento ucraniano (https://zakon.rada.gov.ua/laws/show/en/2947-14#Text). |