Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
234/18.1IDAVR.P1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
PERDA DE VANTAGENS
PESSOA COLETIVA
PESSOA SINGULAR
RESPONSABILIDADE
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 07/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: VERIFICADA A OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário :
I. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, assegurando, assim, a uniformização da jurisprudência e, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei.

II. Os antecedentes históricos deste recurso parece, segundo a doutrina mais abalizada (Mário Júlio Almeida Costa e Alberto dos Reis), encontrarem-se nas façanhas medievais e, mais modernamente, nos Assentos da Casa da Suplicação.

III. O Decreto n.º 12 353, de 22/09/1926, criou um recurso destinado à uniformização da jurisprudência, com um regime análogo ao recurso para o tribunal pleno, que viria a ser consagrado nos C.P.C. de 1939 e 1961.

IV. Integrados no mesmo Capítulo, encontram-se 3 espécies deste recurso, cada um com as suas especificidades: recurso de fixação de jurisprudência próprio sensu (arts. 437.º a 445.º), recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (art. 446.º) e recursos interpostos no interesse da unidade do direito (art. 447.º).

V. Focando-nos na primeira modalidade, que é a que agora interessa ao caso, são requisitos formais de admissibilidade deste tipo de recurso: a legitimidade e o interesse em agir do recorrente; a interposição do mesmo, no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar; a invocação, no recurso, do acórdão fundamento, com junção de cópia deste ou do lugar da sua publicação; o trânsito em julgado dos dois acórdãos; e justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência. Por seu turno, são requisitos substanciais de admissibilidade: existência de julgamentos da mesma questão de direito entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do STJ e outro da Relação – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento; os acórdãos em causa assentem em soluções opostas, de forma expressa e a partir de situações de facto idênticas; e serem ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, quando durante o intervalo da sua prolação não tiver ocorrido alteração legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão controvertida.

VI. Saliente-se ainda que a jurisprudência dominante do Supremo vai no sentido de que a expressão soluções opostas diz respeito às decisões e não aos fundamentos.

VII. Ora, na situação sub judice, analisados os dois acórdãos em confronto, dúvidas não existem que se debruçam sobre a mesma questão jurídica – condenação de todos os agentes do facto ilícito típico na perda de vantagens, prevista no art. 111.º, do Cód. Penal -, no quadro da mesma questão de facto, e decidiram de forma antagónica.

VIII. Por outro lado, os dois mencionados acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação, porquanto não houve qualquer alteração legislativa.

IX. Nestes termos, acorda-se em julgar observados todos os requisitos formais e substanciais, incluindo a oposição de julgados entre os dois referenciados acórdãos (recorrido e fundamento), devendo, por conseguinte, o recurso prosseguir (art. 441.º n.º 1, 2.ª parte, do C.P.P.).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público, junto do Tribunal da Relação do Porto, veio interpor o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º e ss., do C.P.P., do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17/05/2023, e transitado em julgado em 01/06/2023, concluindo a respetiva Motivação nos seguintes termos, que passamos a transcrever:

1. No acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 17/05/2023, no processo nº 234/18.1IDAVR.P1, relatado por José Mota Ribeiro, estava em causa recurso interposto pelo Ministério Publico relativamente à não condenação, na primeira instância de agentes do facto ilícito típico na perda de vantagens art. 111º do CP em que eram co-autores em crime de crime de fraude fiscal.

2. No acórdão fundamento, também do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 19.04.2023, no Processo n.º 2460/20.4T8VFR.P1, da 4ª secção, relatado por João Cardoso estava igualmente em causa recurso interposto pelo Ministério Publico relativamente à não condenação, na primeira instância de agentes do facto ilícito típico, na perda de vantagens art. 111º do CP em que era co-autor em crime de fraude fiscal.

3. Apesar da coincidência e similitude das situações concretas em causa, relativamente à aplicação da mesma norma penal, foram tomadas decisões opostas.

4. Dos acórdãos recorrido e fundamento não é admissível recurso ordinário, tendo ambos já transitado em julgado.

5. Ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação.

6. Requer-se, assim, que se reconheça a existência de oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento

7. Propondo-se que a questão controvertida seja decidida de acordo com o decidido no acórdão fundamento.

8. Determinando-se a revogação do acórdão recorrido, nessa parte, e ordenando-se a sua substituição por outro em conformidade com o que vier a ser decidido.

Nos termos expostos, deve o presente recurso ser julgado procedente e fixar-se jurisprudência no sentido do acórdão fundamento, mais se revogando a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra, conforme a jurisprudência a fixar.

2. Por despacho do Senhor Desembargador relator, de 19/06/2023, foi tal recurso admitido.

3. Não foi apresentada qualquer Resposta ao recurso.

4. Neste Supremo Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 27/09/2023, douto parecer, no sentido de se verificarem todos os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário interposto, devendo, em consequência, o mesmo prosseguir, nos termos previstos nos arts. 440.º e 441.º n.º 1, 2.ª parte, do C.P.P.

Observado o contraditório, nada foi acrescentado.

5. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, assegurando, assim, a uniformização da jurisprudência e, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei1.

Os antecedentes deste recurso parece, segundo Germano Marques da Silva2, citando os Professores Mário Júlio de Almeida Costa e Alberto dos Reis, encontrarem-se nas façanhas medievais e, mais modernamente, nos Assentos da Casa da Suplicação.

O Decreto n.º 12 353, de 22/09/1926, criou um recurso destinado à uniformização da jurisprudência, com um regime análogo ao recurso para o tribunal pleno, que viria a ser consagrado nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1961.

Integrados no mesmo Capítulo, encontram-se três espécies deste recurso, cada uma com as suas especificidades: recurso de fixação de jurisprudência próprio sensu (arts. 437.º a 445.º), recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (art. 446.º) e recursos interpostos no interesse da unidade do direito (art. 447.º).

Iremos, por razões óbvias, apenas nos focar no primeiro.

Ora, de acordo com a doutrina3 e jurisprudência4 dominantes, constituem requisitos formais de admissibilidade deste recurso para o Supremo Tribunal de Justiça:

a. a legitimidade e interesse em agir do recorrente;

b. a interposição do mesmo no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

c. a invocação, no recurso, do acórdão fundamento, com junção de cópia deste ou do lugar da sua publicação;

d. o trânsito em julgado dos dois acórdãos; e

e. justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

Por seu turno, são requisitos substanciais de admissibilidade:

a. existência de julgamentos da mesma questão de direito entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do STJ e outro da Relação – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento;

b. os acórdãos em causa assentem em soluções opostas, de forma expressa e a partir de situações de facto idênticas; e

c. serem ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, quando durante o intervalo da sua prolação não tiver ocorrido alteração legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão controvertida.

Saliente-se ainda que a jurisprudência do Supremo vai no sentido de que a expressão soluções opostas diz respeito às decisões e não aos fundamentos.

2. Ora, da análise das peças processuais constantes dos autos, resulta que o acórdão recorrido transitou em julgado em 01/06/2023 e o recurso extraordinário foi interposto em 14/06/2023, sendo, por conseguinte, tempestivo, nos termos do art. 438.º, n.º 1, do CPP.

Foi também interposto por quem tem legitimidade – o Ministério Público (art. 437.º n.º 5, do C.P.P.)5 -, mostrando-se igualmente cumpridos os restantes requisitos formais previstos no art. 438.º n.º 2, do mesmo diploma legal.

No que concerne aos requisitos substanciais, como se pode comprovar pelas certidões que foram juntas, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17/05/20236 - o acórdão recorrido -, na parte que ora releva, foi negado provimento ao recurso do Ministério Público, que pretendia que fosse revogada a decisão da primeira instância e que, para além da arguida pessoa coletiva, fosse também determinada a perda de vantagens relativamente aos demais arguidos, pessoas singulares, pois todos obtiverem vantagens patrimoniais com a prática do crime de fraude fiscal por que foram condenados.

Por seu turno, por acórdão do mesmo tribunal superior, de 19/04/20237 – o acórdão fundamento -, no Proc. n.º n.º 2460/20.4T8VFR.P1, foi decidido conceder total provimento ao recurso do Ministério Público e, em consequência, revogada a sentença recorrida, no segmento decisório que absolveu o arguido do pedido de perda de vantagens, condenando-o a pagar ao Estado a quantia de € 99 820,05, correspondente ao valor da vantagem por si adquirida, como coautor material do crime de fraude fiscal qualificada, a favor de outrem, no caso uma sociedade (art. 111.º n.º 2, do Cód. Penal, na redação vigente à data da prática dos factos).

Ora, como muito bem observa o Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu proficiente parecer, são, na verdade, similares as situações de facto em questão.

Com efeito, nestes autos, diversos arguidos, pessoas singulares, condenados pela prática, em coautoria material, na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7.º, 103.º, n.º 1, alínea c), e 104.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05/06), de que foi beneficiária pessoa coletiva entretanto extinta, foram absolvidos do pedido de perda de vantagens do crime deduzido pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 111.º, n.º 2, do Cód. Penal, na redação vigente à data da prática dos factos, o que levou à interposição de recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação do Porto.

Por sua vez, no Proc. n.º 2460/20.4T8VFR.P1, um arguido, pessoa singular, condenado pela prática, em coautoria material, na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7.º, 103.º, n.º 1, e 104.º, n.º 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, de que foi beneficiária pessoa coletiva entretanto extinta, foi igualmente absolvido do pedido de perda de vantagens do crime deduzido pelo Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 111.º, n.º 2, do Código Penal, na mesma redação, tendo sido, em reação a tal decisão, também interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto.

Este tribunal superior decidiu no acórdão de 17/05/2023, proferido neste processo - o acórdão recorrido -, sobre o pedido de perda de vantagens do crime deduzido pelo Ministério Público que (…) nada resultando dos autos que permita concluir que os arguidos tivessem obtido para si qualquer vantagem patrimonial, não é logicamente possível relativamente a eles declarar-se a perda de algo que não obtiveram, ainda que através da condenação no pagamento do respetivo valor, porquanto os mesmos não a auferiram ou dela foram beneficiários, e só sendo beneficiários se poderia dizer que, com a declaração da perda, estaríamos a realizar o escopo que com a mesma se visa alcançar: o de neutralizar, na esfera jurídico-patrimonial do respetivo agente, o benefício patrimonial ilicitamente obtido com a prática do crime, confirmando, como tal, a decisão recorrida.

Já no processo n.º 2460/20.4T8VFR.P1, foi proferido acórdão, de 19/04/2023, já transitado em julgado, pelo mesmo Tribunal da Relação - o acórdão fundamento -, sobre a mesma questão, pedido de perda de vantagens do crime8 deduzido pelo Ministério Público, entendendo-se aqui que (…) a perda ocorre aquando da verificação de um facto ilícito típico e do qual resultou a existência de uma vantagem económica para o agente ou outrem. Exige-se apenas um concreto facto ilícito típico e a existência de vantagens com ele obtidas, e do nexo de causalidade entre ambos, independentemente da esfera patrimonial, para a qual resultou a vantagem, pertencer ao arguido ou a um terceiro.

Verificados tais requisitos, “a perda da vantagem (ou o pagamento do valor equivalente) deve ser declarada contra aquele agente que, não obtendo para si a vantagem, possibilita e determina, com a prática do ilícito-típico, a sua obtenção por outrem”, mesmo quando esse terceiro é a sociedade da qual é gerente, o que levou, na procedência do recurso, à alteração, nesse segmento, da decisão recorrida.

Constata-se, nestes termos, que a situação de facto é idêntica em ambos os arestos, que estes foram proferidos no domínio da mesma legislação, sendo, porém, expressa e diametralmente oposta a decisão proferida em cada um deles.

Nesta conformidade, dúvidas não existem que, para além dos requisitos formais, se verifica também o requisito da oposição de julgados, pelo que deve o recurso extraordinário interposto prosseguir (art. 441.º n.º 1, 2.ª parte, do C.P.P.)

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar observados todos os requisitos formais e substanciais, incluindo a oposição de julgados entre os dois referenciados acórdãos (recorrido e fundamento) e, consequentemente, determina-se o prosseguimento do presente recurso (art. 441.º n.º 1, 2.ª parte, do C.P.P.)

Sem tributação.

Lisboa, 3 de julho de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Ana Barata Brito (Adjunta)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

_______

1. Vide Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Verbo, 1994, pg. 353., e ac.do STJ de 16/3/2022, relator o Senhor Conselheiro Nuno Gonçalves, in www.dgsi.pt.

2. Curso de Processo Penal cit., pg. 355.

3. Por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição atualizada, Universidade Católica Portuguesa, anotação aos arts. 437.º e 438.º, e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, Rei dos Livros, pg. 169 e ss.

4. Cfr., entre outos, os acórdãos do STJ de 2/5/2024, Proc. n.º 10/21.4PJAMD.L1.S1-A, 11/4/2024, Proc. n.º 210/20.4GCLRA.C1-A.S1, 24/3/2022, Proc. n.º 458/21.4TXPRT-A.P1-A.S1, 2/5/2024, 16/3/2022, Proc. n.º 5784/18.7T9LSB.L1-A-A.S1, 10/3/2022, Proc. n.º 218/20.0GCACB-A.C1.S1, e 2/12/2021, Proc. n.º 344/19.8JABRG-C.S1, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Ana Barata Brito, Jorge Gonçalves, Orlando Gonçalves, Nuno Gonçalves, M. Carmo Silva Dias e Adelaide Magalhães Sequeira, todos disponíveis no indicado sítio.

5. Sendo até, nestas circunstâncias, obrigatório o recurso para o Ministério Público.

6. Cujo relator é o Senhor Desembargador Francisco Mota Ribeiro Tem voto de vencido da Senhora Desembargadora Maria dos Prazeres Silva, conforme se pose verificar em www.dgsi.pt.

7. Sendo relator o Senhor Desembargador João Pedro Pereira Cardoso e encontrando-se também publicado no mesmo sítio.

8. Sobre o instituto Perda de vantagens, veja-se, com interesse, José Nuno Ramos Duarte, in A Perda de Instrumentos, Produtos e Vantagens do Crime no Código Penal Português, Almedina, 2023, pg. 105 e ss. e o AFJ n.º 5/2024, de 11/4, pub. no D.R., S. I, de 9/5/2024.