Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1472/22.8T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
DIREITO DE VOTO
MEDIDA DE ACOMPANHAMENTO
PODERES DO TRIBUNAL
INCAPACIDADE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
SENTENÇA
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 09/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
I - Nenhuma disposição legal existe que impeça o juiz de declarar, na sentença de acompanhamento, que o maior acompanhado não tem capacidade para exercer o direito de voto.
II - O elenco de direitos pessoais que podem ser restringidos por decisão judicial, previsto no n.º 2 do art. 147.º do CC, é exemplificativo.
III - A decisão judicial que inclui, entre as proibições de exercício de direitos pessoais, a proibição de votar, em rigor, não retira à acompanhada um direito que ela pudesse exercer, dado que, por incapacidade irreversível, ela já se encontrava naturalisticamente impossibilitada de exercer esse direito. Tal decisão cumpre uma função de certeza e segurança quanto à concreta impossibilidade de exercício desse direito.
Decisão Texto Integral:

Processo n.1472/22.8T8STR.E1.S1


Recorrente: Ministério Público, em representação de AA


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. O Ministério Público propôs ação de acompanhamento de maior em benefício de AA, nascida em ........1930, alegando que a Requerida apresentava antecedentes de demência vascular e hipertensão arterial, encontrando-se totalmente dependente, sem discurso lógico, desorientada, sem capacidade para andar, assinar ou tomar quaisquer decisões e que, em consequência desse estado de saúde, não conseguia gerir sozinha a sua pessoa e bens. E requereu que fosse decretada a medida de acompanhamento de representação geral, com substituição legal na prática de todos os atos de disposição patrimonial e consentimento para a prática de atos médicos, bem como a restrição dos direitos de testar, casar, perfilhar ou adotar. Para exercer as funções de Acompanhante indicou BB, filha da Requerida e como vogais do Conselho de Família CC e DD, também filhos da Beneficiária.


2. Foi nomeada defensora oficiosa à Requerida; foi determinada a realização de perícia, cujo relatório se encontra junto aos autos; e procedeu-se à audição pessoal e direta da beneficiária.


Decorridos os demais trâmites pertinentes, a primeira instância considerou a ação procedente, proferindo sentença com o seguinte dispositivo:


«a) Determinar o acompanhamento de AA;


b) Designar como acompanhante da Beneficiária BB, a quem competirá:


- A representação geral da Beneficiária AA, incluindo a administração total dos seus bens;


- Diligenciar para que a Beneficiária compareça às consultas médicas e hospitalares que sejam agendadas, tome a medicação prescrita e adequada à sua patologia e satisfaça as suas necessidades alimentares, de autocuidado, de vestuário e de higiene pessoal.


c) Determinar a proibição do exercício dos direitos pessoais de casar, de constituir situações de união de facto, de procriar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar, de aceitar ou rejeitar liberalidades e de votar pela EE;


d) Determinar a proibição de celebração de negócios da vida corrente pela EE;


e) Determinar que as medidas de acompanhamento decretadas se tornaram convenientes a partir de 03/10/2019;


f) Nomear CC, como primeira vogal e DD, como segundo vogal do Conselho de Família;


g) Consignar que inexiste, em nome da Beneficiária, registo de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde;


h) Determinar a revisão da presente decisão no prazo de 5 (cinco) anos, contados do trânsito em julgado da sentença.»


3. Discordando dessa decisão na parte em que estabeleceu a proibição do exercício do direito de votar [na alínea c) do dispositivo da sentença], o Ministério Público interpôs recurso de apelação. Todavia, o TRE, por acórdão de 16.03.2023, confirmou a decisão da primeira instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente divergente.


4. O Ministério Público junto do TRE, não se conformando com o referido acórdão, interpôs o presente recurso, que qualificou como revista excecional, com base nas alíneas a) e b) do n.1 do art.672º do CPC. Nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:


«Fundamentos da recorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Évora:


1.ª- O presente recurso é admissível e deve ser admitido como recurso de revista excecional nos termos do disposto nos artigos 671.º, n.º 1 e n.º 3, 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.


2.ª- Tendo o A e ora recorrente (Ministério Público) legitimidade, interesse em agir e estando em tempo, não se conforma com o acórdão recorrido, que deliberou manter a sentença de 1.ª instância e que, quanto aos direitos pessoais da beneficiária do acompanhamento decretado, decidiu proibir, entre outros, o direito de votar pela beneficiária AA (dupla conforme).


3.ª- O processo de acompanhamento de maiores é um processo especial, e não um processo de jurisdição voluntária, pelo que deve entender-se que a decisão recorrida não está incluída no quadro normativo que, com adaptações, respeita aos processos de jurisdição voluntária, pois a remissão que no artigo 891.º do Código de Processo Civil para ela se faz limita-se aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes, não incluindo, por isso, o elenco de direitos pessoais e a respetiva limitação que estejam especificamente previstos na lei e/ou que a sentença venha a proibir quanto ao seu exercício pelo beneficiário; não havendo assim obstáculo à recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça (cf. artigo 988.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).


4.ª- A questão decidida pelas instâncias – proibição do direito de votar – respeita à capacidade eleitoral do beneficiário do acompanhamento, capacidade essa que tem normativos específicos e que devem e deviam ter sido respeitados pela decisão deste Tribunal da Relação de Évora, designadamente os que resultaram das alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto, que alterou a Lei Eleitoral do Presidente da República (artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de maio), a Lei Eleitoral para a Assembleia da República (artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio), o regime de Eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais (artigo 3.º, alínea b), da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto) e o regime jurídico do referendo local (artigo 36.º, alínea b) da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto), diplomas que determinam, coincidentemente, que “apenas não podem votar os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos”, tendo sido revogada a norma que impedia o exercício de voto das pessoas declaradas interditas.


5.ª- Acresce que o direito de sufrágio não está incluído na enumeração, ainda que exemplificativa, dos direitos pessoais cujo exercício podem ser limitados ou proibidos, segundo o artigo 147.º, n.º 1 e 2 do Código Civil, pois mais do que um direito pessoal, é um direito político e um dever cívico universal, conferido a todos os cidadãos maiores de 18 anos (cf. Artigos 48.º e 49.º da Constituição da República Portuguesa), e que é objeto de regulação legal específica, nos termos dos diplomas e normas atrás citados, pelo que está excluído do âmbito da decisão judicial “em contrário” (n.º 1 e n.º 2, do artigo 147.º, do Código Civil) e, portanto, a coberto de lei própria que não proíbe, mas apenas limita, o direito de sufrágio dos cidadão acompanhados ou não acompanhados que apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, estando por isso subtraído ao poder jurisdicional dizer o que quer que seja sobre esse direito, por haver lei que dispõe sobre o modo e âmbito da capacidade de voto.


6.ª- Porque se consideram violadas normas de direito substantivo e critérios normativos atinentes à sua interpretação e aplicação, não há restrição ou condicionamento à apresentação da presente revista (cf. artigo 988.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).


7.ª- No que respeita aos requisitos da revista excecional, o sentido da decisão recorrida quanto à questão fundamental de Direito admite revista excecional, nos termos legais acima citados, pois a decisão sob recurso, além de ter desatendido a lei estrita a que estava vinculada, ofende e atinge radicalmente direitos políticos fundamentais de qualquer cidadão com diversidade funcional, pelo que decide e contende com questões de evidente interesse e relevância social e importa, de forma clara e necessária, para uma melhor aplicação do Direito, dada a sua relevância jurídica, segundo as alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 672.º. do Código de Processo Civil, como veremos de seguida.


8.ª- No âmbito da ação especial epigrafada, em que figura como Autor o Ministério Público e Requerida AA, o Ministério Público requereu medida de acompanhamento que veio a ser decretada pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Local de ... – Juiz ..., e que no respetivo dispositivo julgou procedente a ação e decidiu, além do mais, proibir o exercício de direitos pessoais, entre eles o de votar, tendo o Ministério Público apelado dessa parte da sentença, que, nesta Relação, mereceu acórdão que manteve a decisão de 1.ª instância e negou provimento ao recurso, concluindo que as alterações às leis eleitorais consequentes à revogação do instituto da interdição não obstam a que a sentença de acompanhamento determine o impedimento do exercício do direito de voto.


Fundamentação do recurso: A questão fundamental de direito a apreciar. Razões:


(i) A relevância jurídica da apreciação da questão para uma melhor aplicação do Direito (artigo 672.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).


9.ª- A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (aprovada pela Resolução da AR, n.º 56/2009, publicada no DR, 1.ª série, n.º 146, de 30- 7-2009) estabelece no seu artigo 29.º a garantia de as pessoas com deficiência participarem na vida pública e política em condições de igualdade com as demais pessoas, designadamente que “… podem efetiva e plenamente participar na vida política e pública, em condições de igualdade com os demais, de forma direta ou através de representantes livremente escolhidos, incluindo o direito e oportunidade para as pessoas com deficiência votarem e serem eleitas”.


10.ª- Ora, do Estado também fazem parte os tribunais, pelo que sobre eles também recai a obrigação de conferirem, na prática, a garantia que a Convenção consagra, ou seja, que não incluam ou proíbam o direito de voto no “pacote” da limitação dos direitos pessoais consubstanciado numa medida de representação geral, já que tal limitação, a ter que existir, não lhes compete, nos termos da lei, nem é permitida pela Convenção e, primacialmente, pela Constituição da República Portuguesa.


11.ª- De facto, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, no artigo 29.º, ao contrário de outros normativos nela contidos, não contempla ou admite qualquer exclusão ou restrição ao direito de sufrágio a exercer pelas pessoas discapacitadas, impondo aos Estados a garantia do seu respeito, a que também se encontra vinculado o Estado Português, por ser signatário da Convenção.


12.ª- Deste modo, em decorrência das obrigações que resultam da Convenção, devem o Estado e os tribunais garantir, de facto, a oportunidade de gozo e exercício do direito de voto e de outros direitos e liberdades políticas (como a liberdade de opinião, de expressão, de informação, da comunicação social, de reunião e de associação), em condições de plena igualdade de oportunidades e com respeito pelo princípio da não discriminação, nos termos do artigo 3.º, alíneas b) e e), da Convenção, sob pena de se incorrer em discriminação com base na deficiência, resultado que é proibido pela mesma Convenção, nos termos dos seus artigos 2.º e 5.º.


13.ª- Ora, tanto do artigo 8.º, como do artigo 16.º da Constituição da República Portuguesa resulta que as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna e que os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional.


14.ª- Essa é uma razão jurídica bastante para considerar que, estando os tribunais sujeitos à constituição e às leis, incluindo, portanto, as que constam da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e, resultando do respetivo artigo 29.º que nenhuma restrição pode ser imposta aos direitos de participação política e pública das pessoas com discapacidades, aí se incluindo o direito de sufrágio, estão os tribunais nacionais vinculados a respeitar tais normativos, que atribuem direitos e definem o âmbito do seu exercício, não podendo, à luz da Convenção e da Constituição da República Portuguesa, serem restringidos ou limitados tais direitos, em abstrato ou em concreto, seja por lei, seja por decisão judicial.


15.ª- De facto, em matéria de direitos fundamentais, o artigo 16.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa consagra um princípio de abertura aos direitos emanados de fonte internacional, pois os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional.


16.ª- Assim, na apreciação da questão em apreço, sobre o direito de sufrágio das pessoas discapacitadas, física ou mentalmente, os tribunais e as instâncias que apreciaram o caso deveriam ter tido em atenção e respeito, não apenas aos direitos diretamente protegidos pela Constituição, fossem eles o direito de participação e sufrágio consagrado nos artigos 48.º e 49.º, fossem os constantes do artigo 71.º da Constituição da República Portuguesa, mas também os que são reconhecidos pelo direito internacional, designadamente, os direitos que estão consagrados na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.


17.ª- Tal atenção e respeito dever-se-ia ter traduzido na observância do disposto nos artigos 29.º, 3.º, 4.º, 5.º e 12.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência enquanto critérios interpretativos, de integração e de aplicação normativas em relação quer ao artigo 147.º, n.º 1 e 2 do Código Civil, quer à Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto, que alterou a Lei Eleitoral do Presidente da República (artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de maio), a Lei Eleitoral para a Assembleia da República (artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio), o regime de Eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais (artigo 3.º, alínea b), da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto) e o regime jurídico do referendo local (artigo 36.º, alínea b) da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto), diplomas que determinam que “apenas não podem votar os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos”.


18.ª- Trata-se, assim, de uma questão com efetiva relevância jurídica, que deve ser apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça por se tratar de questão que tem que ver com o respeito pelos direitos fundamentais constantes em instrumento internacional vinculativo, que importa para assegurar a unidade do sistema jurídico, com a coerência e consistência que lhe deve ser inerente, que tem autonomia em relação aos interesses das partes e que envolve interpretação e aplicação de legislação relativamente nova, pois o regime do maior acompanhado foi introduzido pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, entrou em vigor em 10-2-2019, sendo ainda pouco significativa a jurisprudência dos tribunais superiores sobre a questão, importando assegurar a melhor orientação sobre a interpretação e aplicação dos normativos a que se fez referência e que necessita de ser apreciada “para uma melhor aplicação do direito”.


Fundamentação do recurso:


A questão fundamental de Direito a apreciar. Razões: (ii) Particular relevância social dos interesses envolvidos. (artigo 672.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil).


19.ª- A decisão sob recurso reafirma, lamentavelmente – salvo o devido respeito – os estereótipos que têm assombrado a emancipação possível e desejável das pessoas/cidadãos com diversidade funcional, tenham-lhe ou não sido aplicadas medidas de acompanhamento de maiores.


20.ª- Entre esses estereótipos estão as considerações subjacentes à limitação geral de capacidade de exercício de direitos das pessoas com diversidade funcional, por se assumir, apriorística e erroneamente, que não são capazes de tomar decisões ou de participar nos assuntos públicos e políticos.


21.ª- A segregação dos discapacitados (existem cerca de 1 milhão de pessoas com algum tipo de deficiência em Portugal, segundo os censos de 2021, sendo nesse universo que se incluem as pessoas com discapacidades mentais), ao ser-lhes negado o direito de sufrágio, agrava a despolitização dessa condição e acentua a sua invisibilidade social, como se a minoria que representa apenas merecesse bons sentimentos, narrativas vagas, como “igualdade”, acessibilidade”, “inclusão”, ou a caridade social e jurídica própria da condição de quem está à margem da sociedade, assim estigmatizados pelos que se consideram mais válidos ou normais.


22.ª- Ora, os princípios fundacionais do sufrágio eleitoral, enquanto pilar fundamental das democracias constitucionais ocidentais, assentam nas ideias de que a cada pessoa corresponde um voto, que o sufrágio é universal e que a construção da vontade geral se faz através do voto. Essa é também a medida da capacidade política das pessoas com diversidade funcional de qualquer natureza.


23.ª- Os problemas das pessoas com algum tipo de deficiência mental (e o espetro da doença psíquica é vasto) são problemas públicos, que reclamam políticas públicas, para as quais a participação da população interessada é desejável, necessária e imprescindível, segundo a expressão anglo-saxónica “nothing about us without us”. Essa é também a legitimidade acrescida das políticas públicas de inclusão das pessoas com deficiência.


24.ª- É, pois, do interesse geral, e do interesse de qualquer democracia constitucional de tipo ocidental, a construção progressiva de um eleitorado que tenha voz e participe na definição das políticas públicas inclusivas das pessoas com deficiência, inspirando vitalidade e transformação à própria democracia. Neste quadro, como aceitar as resistências à universalização do sufrágio? Como justificar às pessoas com deficiência e às famílias destas que devem continuar vítimas de discriminação política e social?


25.ª- A ilusão de que o sufrágio é o produto de determinadas competências foi durante tempo demais a razão para negar o voto às mulheres ou aos negros, aos iletrados ou aos pobres.


26.ª- Se isso passou a ser intolerável, por não assentar em qualquer verdade empírica, também já é tempo de não aceitar a suspeita de que as pessoas com diversidade funcional, com anomalia psíquica, que beneficiem ou não de um regime de acompanhamento, não têm, em abstrato, competência, capacidade ou sinceridade para votar; e várias já foram as democracias europeias que eliminaram as conceções capacitárias do direito de sufrágio.


27.ª- Porém, apesar das alterações efetuadas às leis eleitoras acima citadas, Portugal ainda não cumpre devidamente com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, apesar de a ter assinado e ratificado.


28.ª- Apesar dessas imparidades, a Convenção estabelece no seu artigo 3.º, e noutros, o princípio de que as pessoas com deficiência são parte da sociedade como seus membros plenos e iguais, têm direito a viver em comunidade e em participar nela, designadamente como agentes ou atores da construção e materialização de políticas e ações que visem a sua condição e promoção efetiva dos seus direitos, designadamente participando na vida pública e política através do voto (artigo 29.º da Convenção).


29.ª- Em termos de estatuto jurídico, a capacidade eleitoral é igual, por decorrência do princípio da não discriminação consagrado na Convenção, quer se trate de uma pessoa que beneficia de uma medida de acompanhamento, quer não beneficie dela.


30.ª- Daí que seja relativamente pouco relevante o que dizem as leis eleitorais citadas, na alteração efetuada pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto, ao fazerem menção de que “apenas não podem votar os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos”, a não ser para se concluir que estabelecem condições que a Convenção não admite.


31.ª- Por outro lado, à luz da Convenção, a interpretação do artigo 147.º do Código Civil deve ser muito limitada quanto às possibilidades de restrição de capacidade de gozo e de exercício (onde se inclui a capacidade eleitoral), pois a restrição de liberdades políticas é daqueles casos que fazem saltar de imediato o “sensor” constitucional de qualquer jurista, por contenderem com direitos fundamentais, designadamente por levantarem a legítima suspeita de desrespeito do princípio da não discriminação, que impõe a qualquer limitação de direitos fundamentais o devido fundamento, proporcionalidade e sujeição a critérios autónomos que não podem (nunca podem) ser causalmente dependentes da condição da deficiência, i.e., nunca poderão deixar de ser neutros.


32.ª- Vale isto por dizer que uma restrição ao direito fundamental de sufrágio teria que se basear numa justificação cujos pressupostos teriam que estar na lei, quer estejamos a falar do artigo 147.º do Código Civil, quer das leis eleitorais citadas


33.ª- Porém, tais pressupostos não constam da lei, logo, as restrições a que deu cobertura a decisão recorrida, ao fazer uma leitura incorreta dos artigos 147.º do Código Civil e dos artigos das leis eleitorais em causa, estão em clara violação dos artigos 13.º e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e da Convenção, pois a existir qualquer restrição ela só poderia ser quanto à falta de capacidade para compreender e ter vontade em exercer o direito de voto em consciência, o que vale por dizer que se teria que demonstrar que a pessoa tinha a sua vontade viciada no momento do ato eleitoral e, a ser relevante, só no dia do ato e perante uma notória e grave limitação às faculdades mentais pode ser aferida, nos termos das leis eleitorais em causa.


34.ª- Poder-se-á dizer que as leis eleitorais em causa, ao ditarem que “apenas não podem votar os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos”, sendo de duvidosa aceitação à luz da Convenção e da Constituição da República Portuguesa, como veremos, são uma das soluções possíveis que, ainda assim, comporta riscos, mas que existe como bem-intencionada válvula de escape para evitar perturbações ao funcionamento do ato eleitoral que pode ser confrontado com a contingência de nele se apresentarem pessoas com evidente descompensação.


35.ª- Tal solução o que não pode consentir - à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção -, é que seja vista, interpretada e convocada na adjudicação jurídica com uma função de efeito preventivo de avaliação prévia da capacidade, já que isso corresponderia à efetiva supressão do direito de sufrágio, i.e., a uma incontestável discriminação em razão da deficiência, pelo que é também evidente, a nosso juízo, a importância social dos interesses envolvidos na questão em apreço.


A violação de lei e o erro do julgamento de Direito:


36.ª- Em face do princípio constitucional da máxima eficácia dos direitos fundamentais e da proporcionalidade, em sentido amplo, da restrição de direitos fundamentais, a restrição do exercício de direitos pessoais deve ser excecional, incluindo a interpretação e aplicação do disposto no artigo 147.º do Código Civil.


37.ª- Por outro lado, o princípio constitucional da universalidade do sufrágio, conjugado com os imperativos internacionais da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, exclui a possibilidade de incapacidades eleitorais gerais (cf. artigos 49.º, n.º 2 e 18.º, nºs. 2 e 3, ambos da Constituição), pelo que tudo converge na conclusão de que a decisão que aplica medidas de acompanhamento não pode restringir, em abstrato, o exercício do direito de voto, como não pode restringir outros direitos de participação política, como a liberdade de opinião, de expressão, de informação, da comunicação social, de reunião ou de associação.


38.ª- Não o pode fazer, desde logo, porque existe um quadro jurídico próprio (as leis eleitorais citadas na conclusão 4.ª) que regula a capacidade eleitoral e o modo e âmbito do exercício do direito de sufrágio, em conformidade com essas leis eleitorais.


39.ª- Tal significa que a capacidade eleitoral é para aferir nas condições e termos que os citados normativos preveem e não pela – e na – decisão judicial que aplica medidas de acompanhamento, a qual não pode, nem deve dizer o que quer que seja sobre essa capacidade eleitoral dos beneficiários, (como nada pode ou deve dizer sobre o exercício dos demais direito de participação política) pois outra é “a disposição legal” – cf. artigo 147.º, n.º 1, do Código Civil – e outra é a competência e o modo para aferir dessa capacidade para o exercício do direito de sufrágio, não estando consentida qualquer restrição abstrata desse direito, mas antes uma aferição casuística e concreta por ocasião do exercício do mesmo direito, que não foi atribuída aos tribunais.


40.ª- Deste modo, o que está em causa, na decorrência do quadro normativo citado, é uma avaliação da capacidade de facto para a participação de um cidadão para um concreto ato eleitoral, pois a eventual falta de capacidade para exercer o direito de sufrágio é um critério de facto que não depende de qualquer medida judicial. Ou seja, a alteração operada nas leis eleitorais significa agora que não há norma legal que habilite o Tribunal a restringir a capacidade eleitoral ativa, nem essa norma se pode encontrar no artigo 147.º do Código Civil, ainda que essas leis eleitorais continuem a ter imparidades com a Convenção e o respetivo artigo 29.º, como vimos.


41.ª- A conclusão a ser tirada do exposto é simples: de acordo com a Convenção, todas as pessoas com deficiência, sem exceção, devem ter o direito de voto, e ninguém deve ser privado desse direito com base em qualquer deficiência intelectual, percebida ou real.


42.ª- Essa é também a interpretação da Convenção realizada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, “o qual reconheceu o pleno direito de todas as pessoas, independentemente da discapacidade em causa (incluindo a mental e a intelectual) e de decisão judicial ou outro qualquer tipo de decisão [Recomendação sobre a participação das pessoas com deficiência na vida política e pública, CM/Rec (2011)14, de 16 de novembro de 2011]”. Deste modo, uma disposição que permite aos tribunais privar as pessoas com discapacidades do seu direito de voto é uma violação do artigo 29.º da Convenção.


43.ª- Em sintonia com a posição do Comité de Ministros do Conselho da Europa, corrigindo a sua inicial posição, está também a Comissão de Veneza, que sustenta que “O sufrágio universal é um princípio fundamental do Património Eleitoral Europeu. Pessoas com deficiência não podem ser discriminados a este respeito, em conformidade com o artigo 29 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”. Trata–se, pois, de assegurar a garantia plena e efetiva da igualdade de oportunidades, designadamente sem obstáculos de qualquer natureza ao direito de sufrágio e ao gozo e exercício dos demais direitos de participação política.


44.ª- Importa, assim, concluir – por dedução do quadro legal convocado –, que a limitação da capacidade eleitoral ativa não deve depender de qualquer decisão de acompanhamento decretada judicialmente, devendo ser verificada caso a caso, através de junta médica (cf. artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 319-A/76, artigo 2.º da Lei n.º 14/79, artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 1/2001 e artigo 36.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, todos na redação que lhes foi dada pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17.08).


45.ª- Vale por dizer que o acórdão recorrido errou na aplicação e interpretação do direito aplicável, ao ter decidido manter a proibição de votar da beneficiária das medidas de acompanhamento, em violação do quadro jurídico aplicável e acabado de referir, pois as alterações às leis eleitorais consequentes à revogação do instituto da interdição obstam evidentemente a que a sentença de acompanhamento determine o impedimento do exercício do direito de voto.


Da inconstitucionalidade material do artigo 147.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Civil, na interpretação dada pelo acórdão recorrido, por violação do princípio da igualdade e da não discriminação


46.ª- Tal interpretação decisória do disposto no artigo 147.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil e da Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto, que alterou a Lei Eleitoral do Presidente da República (artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de maio), a Lei Eleitoral para a Assembleia da República (artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio), o regime de Eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais (artigo 3.º, alínea b), da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto) e o regime jurídico do referendo local (artigo 36.º, alínea b) da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto), é, além do mais, inconstitucional, por desatender e violar o disposto nos artigos 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que se trata de uma restrição de direitos, liberdades e garantias, pois uma lei restritiva de direitos, como a que é consubstanciada no artigo 147.º do Código Civil, terá que cumprir o exigido pelo artigo 18.º, n.º 2 da Lei Fundamental, não obstante a remissão do artigo 49.º, n.º 2.


47.ª- Dispõe a Constituição da República Portuguesa no seu artigo 1.º que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”.


48.ª- A vontade popular é o conjunto da diversidade de opiniões e opções do eleitorado como um todo, sem escrutínio de quem seja o eleitorado competente para expressar essa vontade. É essa dimensão coletiva que dá sentido à existência do povo enquanto titular da soberania de um Estado, pelo que um sistema eleitoral e legal (leis eleitorais citadas e artigo 147.º do Código Civil) que priva de direitos eleitorais uma categoria de pessoas apenas por serem portadoras de deficiência, seja ela física ou mental, não assegura a devida expressão da vontade popular como um todo e ofende a Constituição da República Portuguesa.


49.ª- Seguindo–se a posição do Comissário do Conselho da Europa para os Direitos Humanos expressa no caso CAAMAÑO VALLE v. SPAIN do TEDH (ver parágrafo 47, com tradução livre e adaptada), “quando uma grande categoria de pessoas com deficiência intelectual e deficiências psicossociais é excluída do processo eleitoral, não só ficam privados de qualquer possibilidade de influenciar o processo político e da oportunidade de moldar as políticas e medidas que afetaram diretamente suas vidas, mas a sociedade como um todo fica privada de uma legislatura que reflita toda a sua diversidade. Portanto, tais medidas (de proibição ou limitação do voto) certamente interferem na livre expressão da opinião do povo e perpetuam estigmas antigos contra pessoas com deficiência intelectual e psicossocial. O voto sempre foi um importante símbolo de empoderamento e inclusão e pode afetar a motivação das pessoas com deficiência para participar da vida pública e contribuir para as sociedades em que vivam.”.


50.ª- Não pode deixar de se concluir que a decisão recorrida encerra uma interpretação inconstitucional, na compaginação com os artigos 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa, perante o direito reconhecido expressamente no artigo 29.º, alínea a), da Convenção, que se deve ligar aos artigos 5.º e 12.º da Convenção, atento o princípio da não discriminação, pois a possibilidade de restrição, quando em confronto com a proibição de discriminação em razão da deficiência, determina que os critérios sejam neutros, ou seja, que o fundamento não seja a mera condição resultante de patologia do foro mental e tem que estar expressamente previsto, num tipo fechado, quais as situações que justificam tal declaração de incapacidade.


51.ª- Na verdade, o artigo 8.º, n.º 1 e n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, estipula uma cláusula de receção do direito internacional e convencional, que assim assume relevância e força constitucional, por via da cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.


52.ª- Ora, a interpretação e aplicação do artigo 147.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil, em conjugação com as leis eleitorais referidas, efetuada pelo acórdão recorrido, define um regime e disciplina jurídica à limitação dos direitos pessoais e políticos do beneficiário de acompanhamento que diferencia pessoas e situações que merecem tratamento igual e que tem apenas por base a deficiência/anomalia psíquica do beneficiário, ofendendo o princípio da igualdade, conforme interpretação conforme que vem sendo efetuada pelo Tribunal Constitucional (cf. Acórdãos nºs 412/02, 180/99, 353/98, 188/90, 187/90, 180/90, 232/03, 129/13, 294/14, 266/15 ou 437/06).


53.ª- Sendo uma interpretação e aplicação de normas que se afigura inconstitucional, aquela que foi efetuada pelo Tribunal da Relação de Évora do disposto no artigo 147.º do Código Civil, em conjugação com a Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto, que alterou a Lei Eleitoral do Presidente da República (artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de maio), a Lei Eleitoral para a Assembleia da República (artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio), o regime de Eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais (artigo 3.º, alínea b), da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto) e o regime jurídico do referendo local (artigo 36.º, alínea b) da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto), devem tais normas, na interpretação e aplicação efetuada e aqui recorrida, serem julgadas materialmente inconstitucionais, por violação dos artigos 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade essa que incumbe ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar, julgar e decidir, revogando em conformidade a decisão recorrida e dando–se procedência ao recurso apresentado pelo Ministério Público (artigos 204.º e 280.º da Constituição da República Portuguesa).


Normas jurídicas violadas e sentido com que deveriam ter sido interpretadas e aplicadas:


54.ª- A decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, designadamente, o disposto nos artigos 147.º, n.º 1 e 2, do Código Civil, os artigos 13.º, n.º 1 e n.º 2, 18.º, n.º 2, 48.º, 49.º e 71.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e os artigos 29.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 12.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (aprovada pela Resolução da AR, n.º 56/2009, publicada no DR, 1.ª série, n.º 146, de 30-7-2009), cuja força interpretativa e de integração, no que respeita à salvaguarda do seu respeito e vinculatividade, é decorrência do disposto nos artigos 8.º e 16.º da Constituição da República Portuguesa, também violados, além de ter violado a Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto, que alterou a Lei Eleitoral do Presidente da República (artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de maio), a Lei Eleitoral para a Assembleia da República (artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio), o regime de Eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais(artigo 3.º, alínea b),da Lei Orgânica n.º 1/2001,de 14 de agosto) e o regime jurídico do referendo local (artigo 36.º, alínea b) da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, diplomas que determinam, coincidentemente, que “apenas não podem votar os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos”.


55.ª- Normas que, constituindo o quadro jurídico pertinente à resolução da questão fundamental de Direito em apreciação, deveriam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de que não cabe à decisão judicial que decreta o acompanhamento - aplicando ao beneficiário a medida de acompanhamento de representação geral -, proibir o direito de sufrágio, em abstrato, e tendo por causa ou justificação a condição, não neutra, da deficiência, pois tal constitui uma violação do princípio da igualdade e da não discriminação em razão da deficiência; resultado que é proibido pela Constituição da República Portuguesa e pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.


PEDIDO


Pelo exposto, conforme o Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, requerendo-se que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça:


a) Admita e julgue o presente recurso de revista excecional, por estarem preenchidos os requisitos para o efeito, nos termos dos artigos 671.º, n.º 1 e n.º 3, 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.


b) Aprecie a questão da inconstitucionalidade invocada, nos termos da Constituição da República Portuguesa e da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Lei.


c) Revogue a decisão recorrida, por violação das normas jurídicas acima referidas, resolvendo a questão fundamental de Direito em apreciação no sentido aqui preconizado, pois trata-se de questão cuja resolução, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito, além de envolver interesses de particular relevância social.


d) Na sequência, seja o recurso do Ministério Público julgado procedente.»


5. Distribuídos os autos no STJ, por não ser admissível a revista normal (nos termos do art.761º, n.3 do CPC), foram os autos enviados à Formação a que alude o n.3 do art.672º para aferição dos pressupostos da revista excecional, tendo o recurso sido admitido, por esta via, nos termos do art.672º, n.1, alínea a) e b) do CPC.


*


II. ANÁLISE E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS:


1. Admissibilidade e objeto do recurso


Como supra referido, o recurso foi admitido como revista excecional, com base no art.672º, n.1, alínea a) e b) do CPC.


O objeto do presente recurso corresponde, em síntese, à questão de saber se a decisão recorrida podia ter incluído entre as proibições de exercício de direitos pessoais da maior acompanhada – AA – também o direito de voto.


2. Factos provados.


As instâncias consideram provada a seguinte factualidade:


«1. A Requerida AA nasceu em ... de ... de 1930, contando atualmente com 92 anos de idade.


2. É viúva e tem cinco filhos, BB, DD, CC, FF e GG.


3. Apresenta antecedentes de demência vascular e hipertensão arterial.


4. Atualmente padece de síndrome demencial, em fase avançada.


5. O quadro clínico da beneficiária, descrito em 4., é irreversível.


6. Mercê da sua patologia, a Requerida encontra-se acamada, dependendo do auxílio permanente e total de terceiros para a generalidade das atividades da vida, designadamente para se mobilizar, para tomar as refeições, para se vestir, para tomar medicação e para se higienizar.


7. Não se encontra orientada no tempo e no espaço nem reconhece os seus familiares.


8. Não é capaz de estabelecer comunicação verbal significante nem um discurso lógico, apenas proferindo as palavras “amor” e “filha”.


9. Não consegue ler ou escrever, assinar o próprio nome ou realizar cálculos mentais.


10. Em virtude ao agravamento do seu estado clínico passou a residir no Centro de Repouso e Lazer ..., sito na Rua ..., tendo a sua admissão tido lugar no dia 03/10/2019.


11. Em momento anterior ao referido em 10. e após ter ficado viúva, a Requerida residiu com a sua filha BB, na habitação desta; situação que se manteve durante mais de 10 anos.


12. É acompanhada por médico especialista em Medicina Interna, no Hospital de ....


13. Toma medicação regularmente, a qual é avaliada por um médico com uma periodicidade semanal.


14. Frequenta sessões de fisioterapia, com o fito de melhorar a sua mobilidade.


15. Aufere de rendimentos que ascendem a cerca de 500,00€ mensais, os quais correspondem à pensão de viuvez e à pensão de reforma por si recebidas.


16. Os montantes referidos em 15. são transferidos para uma conta bancária titulada pela Requerida e pela sua filha BB, a qual é movimentada pela última.


17. As despesas atinentes aos serviços prestados pelo Centro de Repouso e Lazer ... em que a Requerida se encontra inserida, à medicação que lhe é ministrada e às sessões de fisioterapia que frequenta ascendem a cerca de 1.500,00€ mensais.


18. O pagamento das despesas da Requerida é efetuado e garantido por BB.


19. A Requerida é visitada com uma periodicidade quinzenal pelas filhas BB e CC.


20. Os demais filhos da Requerida identificados em 2. não residem em ..., tendo conhecimento do estado de saúde da mãe através do envio de fotografias e vídeos e do estabelecimento de contactos com BB e CC.


21. A Requerida não outorgou testamento vital ou procuração para cuidados de saúde.


22. BB, indicada como acompanhante, não apresenta antecedentes criminais.»


3. O direito aplicável


3.1. O objeto do presente recurso respeita à questão de saber se a decisão recorrida podia ter incluído o direito de votar entre as proibições de exercício de direitos pessoais da maior acompanhada, AA.


O acórdão recorrido confirmou a decisão da primeira instância, a qual havia determinado


a proibição do exercício dos seguintes direitos pessoais da acompanhada: de casar, de constituir situações de união de facto, de procriar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar, de aceitar ou rejeitar liberalidades e de votar.


Entende o recorrente que o tribunal não podia ter decidido sobre a capacidade eleitoral da beneficiária do acompanhamento, porque, além de tal hipótese não se encontrar prevista no art.147.º do CC, trata-se de uma matéria que tem legislação específica, da qual se deveria concluir que esse direito não poderá ser restringido por sentença. Afirma que está subtraído ao poder judicial pronunciar-se sobre o direito de voto do maior acompanhado, por existir legislação específica sobre a capacidade para votar.


Entende ainda o recorrente que haveria inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13.º e 18.º da CRP, no modo como a decisão recorrida interpretou e aplicou ao caso concreto os seguintes artigos: 147.º do CC; Lei Orgânica n.º 3/2018 (de 17 de agosto) que alterou a Lei Eleitoral do Presidente da República (artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de maio), a Lei Eleitoral para a Assembleia da República (artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio), o regime de Eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais (artigo 3.º, alínea b), da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto) e o regime jurídico do referendo local (artigo 36.º, alínea b) da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto).


3.2. Importa começar por esclarecer que, contrariamente ao que o recorrente parece entender (nomeadamente nas conclusões 19ª e seguintes das suas alegações), não cabe a este tribunal pronunciar-se em termos gerais e abstratos sobre a questão de saber se um tribunal judicial pode decidir sobre a capacidade eleitoral de todo e qualquer maior acompanhado.


Está em causa apenas o reexame do direito aplicado ao caso concreto, tendo por base a específica factualidade apurada nos presentes autos. É esta a questão normativa a apreciar. Não cabe a este tribunal construir uma tese de natureza dogmática sobre a questão de saber quem pode ou não exercer o direito de voto, como o recorrente parece pretender ao sustentar as suas alegações num argumentário generalista e abstrato sobre o direito ao sufrágio.


3.3. A acompanhada nasceu em 1930, e como consta da factualidade assente (nos respetivos pontos n.4 a n.9):


Atualmente padece de síndrome demencial, em fase avançada. Este quadro clínico é irreversível. Mercê da sua patologia, a Requerida encontra-se acamada, dependendo do auxílio permanente e total de terceiros para a generalidade das atividades da vida, designadamente para se mobilizar, para tomar as refeições, para se vestir, para tomar medicação e para se higienizar. Não se encontra orientada no tempo e no espaço nem reconhece os seus familiares. Não é capaz de estabelecer comunicação verbal significante nem um discurso lógico, apenas proferindo as palavras “amor” e “filha”. Não consegue ler ou escrever, assinar o próprio nome ou realizar cálculos mentais.


Neste quadro, facilmente se concluiu que, pela própria natureza das coisas, a acompanhada se encontra incapacitada para o exercício da generalidade dos seus direitos ou para o cumprimento de quaisquer deveres. Por isso o acompanhamento se tornou necessário e foi decretado (nos termos do art.138º e seguintes do CC).


No âmbito deste tipo de processo, deve a sentença elencar quais os direitos pessoais que o acompanhado não tem capacidade para exercer, pois a regra geral, prevista no n.1 do art.147º do CC, é a de que o acompanhado terá liberdade para exercer os seus direitos pessoais, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.


Para este efeito, estabelece o n.2 do art.147º do CC:


«São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar


O elenco de direitos pessoais que podem ser restringidos por decisão judicial é, assim, exemplificativo. Deste modo, não assiste razão ao recorrente quando afirma que o direito de voto não poderia ser restringido por não se encontrar previsto no n.2 do art.147º do CC.


Em rigor, não se pode afirmar que a decisão judicial tivesse retirado à acompanhada o direito de votar, porque ela já se encontrava naturalisticamente impossibilitada de exercer esse direito, devido ao seu estado de debilidade física e psicológica. O que, na realidade, resulta da decisão judicial em causa não é uma verdadeira proibição (no sentido de alguém ser impedido de fazer algo que de outro modo poderia fazer), mas sim uma explicitação objetiva de uma incapacidade naturalística decorrente de um estado de doença irreversível.


Acresce que a lei prevê expressamente a incapacidade para votar.


Determina o art.º 49º da Constituição da República Portuguesa:


«1. Têm direito de sufrágio todos os cidadãos maiores de dezoito anos, ressalvadas as incapacidades previstas na lei geral.


2. O exercício do direito de sufrágio é pessoal e constitui um dever cívico


O direito de voto é, assim, nos termos do seu fundamento constitucional, um direito suscetível de ser limitado, desde que baseado em incapacidades, a regular nos termos da lei geral. Porém, o preceito constitucional não particulariza tipologias de incapacidades que possam sustentar a limitação desse direito, nem identifica categorias de diplomas que possam regular a sua limitação.


Assim, se no âmbito do processo de maior acompanhado se comprova judicialmente a incapacidade do acompanhado para exercer o direito de voto, não pode deixar de se concluir que se trata de uma incapacidade identificada no âmbito de um instituto jurídico que a lei geral prevê e regula. Não se identifica, portanto, qualquer impedimento a que a sentença declare essa limitação, constituindo, assim, um instrumento de certeza e segurança sobre a incapacidade da pessoa acompanhada.


Em síntese, face ao disposto no n.2 do art.147º do CC e atenta a factualidade provada, não se pode concluir que a decisão recorrida tivesse feito errada aplicação da lei, não existindo, com base nessa disposição, fundamento para revogar a decisão recorrida.


Poderia até afirmar-se que, face à incapacidade da acompanhada, seria desnecessário a sentença ter-se referido à proibição de votar. Igual desnecessidade se poderia afirmar quanto à proibição de procriar (que também foi elencada na sentença), tendo em conta que a acompanhada nasceu em 1930.


De todo o modo, não é despiciendo o argumento invocado na decisão recorrida nos termos do qual o ato de votar não corresponde apenas a um direito, mas é também um dever cívico (como decorre do próprio texto constitucional). Deste modo, atenta a impossibilidade de exercer o direito, a proibição de votar terá como consequência a isenção do cumprimento desse dever.


Também não será despiciendo o interesse geral em que não sejam inscritos nos cadernos eleitorais pessoas que manifestamente não poderão assumir a qualidade de eleitores, tendo como resultado a abstenção de quem, na realidade, não tinha a liberdade para decidir abster-se de votar.


3.4. Por outro lado, entende o recorrente que, independentemente da concreta incapacidade da acompanhada, nunca uma sentença poderia determinar a proibição de votar, porque a restrição a esse direito só poderá acontecer nas hipóteses previstas em legislação específica.


Tal legislação é a correspondente aos seguintes diplomas, que regulam os diferentes tipos de atos eleitorais, no que respeita às normas sobre capacidade eleitoral: Lei Eleitoral do Presidente da República: Decreto-Lei n.º 319-A/76, (de 3 de maio), art. 3.º, n.º 2, alínea b); Lei Eleitoral para a Assembleia da República: Lei n.º 14/79 (de 16 de maio), art. 2.º, alínea b); regime de Eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais: da Lei Orgânica n.º 1/2001 (de 14 de agosto), art. 3.º, alínea b) e regime jurídico do referendo local: Lei Orgânica n.º 4/2000 (de 24 de agosto), o art. 36.º, alínea b), alterados pela Lei Orgânica n.º 3/2018 (de 17 de agosto).


As referidas normas passaram a ter redação idêntica, nos termos da qual apenas não podem votar: «os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos».


É certo que desses diplomas desapareceu, quanto às pessoas com incapacidade para votar, a referência aos «interditos por sentença com trânsito em julgado», o que é, naturalmente, uma consequência da necessidade de harmonizar tais diplomas com o Regime do Maior Acompanhado, a Lei n.49/2018, que eliminou o regime da interdição1.


Daí não se pode concluir, como o recorrente parece sustentar, que as pessoas que anteriormente eram considerados “interditos” tivessem passado a ser legalmente aptos para votar.


Quando nessas normas se faz a ressalva “ainda que não sujeitos a acompanhamento”, deve entender-se que o legislador remete, quanto aos acompanhados, para o que se estabelecer na sentença que determina o acompanhamento. Se assim não fosse, tal ressalva não teria qualquer sentido normativo útil.


Enquanto no anterior regime da interdição determinadas incapacidades eram consideradas como inerentes a esse estado, no vigente regime do maior acompanhado, como decorre da interpretação conjugada do n.1 e 2 do art.147º do CC, a pessoa acompanhada mantém, em regra, os seus direitos, e a concreta compressão judicial dos direitos pessoais depende da gravidade de cada caso concreto, que o tribunal avalia, segundo uma regra de proporcionalidade, com base em perícias, sujeitas ao princípio do contraditório e com audição do sujeito a quem a medida requerida respeita2.


A matéria das restrições judiciais dos direitos do acompanhado é, assim, uma matéria de natureza estritamente casuística. As razões para restringir determinados direitos são de variada ordem, consistindo, geralmente, na necessidade de proteger o próprio acompanhado, mas também na necessidade de evitar que terceiros possam ser prejudicados por determinados comportamentos.


Por outro lado, ao determinar que o acompanhado não pode exercer certo direito, nem sempre a sentença estará a proceder a uma verdadeira proibição ou restrição, no sentido de constituir um impedimento a que o acompanhado atue de determinada maneira.


Pode acontecer, como acontece no caso concreto, que a denominada “proibição” mais não seja do que a constatação ou explicitação de uma impossibilidade natural para o exercício de determinados direitos. Acresce que no caso concreto essa incapacidade é irreversível. Assim, não se encontrando a acompanhada internada em estabelecimento psiquiátrico, caso fosse levada a uma mesa de voto, acompanhada por alguém, só não seria admitida a votar se existisse uma declaração passada por uma junta de dois médicos atestando que não tinha capacidade para o ato eleitoral.


Ora, do teor dessas normas não se pode extrair a conclusão de que o poder judicial se encontre excluído de declarar (após prova pericial sujeita a contraditório) que uma pessoa acompanhada se encontra, por razões de doença irreversível, impossibilitada de exercer o direito de voto.


As normas em causa devem ser compreendidas na sua evolução histórica para se concluir que o seu propósito era o de evitar qualquer arbítrio de quem se encontrava incumbido de zelar pelo funcionamento das mesas de voto quando se apresentasse a votar uma pessoa com notória alteração das funções mentais.


Concluiu-se no acórdão recorrido que: «As alterações às leis eleitorais consequentes à revogação do instituto da interdição não obstam a que a sentença de acompanhamento determine o impedimento do exercício do direito de voto pelo acompanhado


Fundamentou-se essa decisão, essencialmente, nos seguintes termos:


«A expressão “ainda que não estejam interditos por sentença” não suscitava, de pretérito, dúvidas interpretativas, porquanto a interdição por sentença transitada constituía então causa de incapacidade eleitoral ativa, ou seja, o que a norma expressava então com clareza era a incapacidade eleitoral ativa dos interditos e, para além destes, dos notoriamente reconhecidos como dementes desde que internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos. Idêntica clareza não ocorre com a vigente expressão “ainda que não sujeitos a acompanhamento”, uma vez que a sentença de acompanhamento não constitui causa expressa (e automática) de incapacidade eleitoral ativa como ocorria com a sentença de interdição; não constitui nem, a nosso ver, poderia constituir, pois, regendo-se o regime do maior acompanhado por princípios da necessidade e da especificação (artº 145º, do CC) pode muito bem acontecer que a conformação ou âmbito do acompanhamento não justifique qualquer restrição ao exercício do direito de voto.


Por isto que não se poderá, sem mais, concluir que o beneficiário do acompanhamento não tenha capacidade eleitoral ativa, ou seja, que a expressão “ainda que não sujeitos a acompanhamento” tem o mesmo alcance da sua correspondente - “ainda que não estejam interditos por sentença” – nas previsões revogadas. Mas algum sentido há-de o intérprete encontrar-lhe, como prevê e impõe o artº 9º, nº3, do Código Civil, e a solução defendida pelo Recorrente, se bem vemos, nenhuma utilidade lhe atribui; ou seja, não podendo a sentença de acompanhamento, em caso algum, impedir o acompanhado de votar, a notória limitação ou alteração grave das funções mentais, acompanhada de internamento em estabelecimento psiquiátrico ou declarada por uma junta de dois médicos constituiria a única causa de incapacidade eleitoral ativa surgindo, de todo, irrelevante a sujeição, ou não, a acompanhamento e assim desprovida de qualquer alcance a expressão “ainda que não sujeitos a acompanhamento”.


A interpretação suposta pelo Recorrente suprime um segmento das normas eleitorais (incapacidades eleitorais ativas) que lhes resultaram das alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17/8, o que evidencia, estamos em crer, que não pode estar certa.


O sentido útil da expressão, em tais normas, tem, a nosso ver, o alcance oposto daquele que o Recorrente lhe atribui, ou seja, significa que não têm capacidade eleitoral ativa os maiores acompanhados nos casos em que a respetiva sentença assim o declare.»


E acrescentou-se:


«Acresce um elemento teleológico da interpretação, a nosso ver, não menos impressivo: faltaria justificação ou razão - não faria sentido - que a notória limitação ou alteração grave das funções mentais, acompanhada de internamento em estabelecimento psiquiátrico ou declarada por dois médicos, constituísse causa relevante de incapacidade eleitoral ativa e a sentença de acompanhamento proferida com observância do princípio do contraditório, depois da imprescindível audição do acompanhado e de produzidas as provas, mormente periciais por médicos da especialidade quando for o caso (artº 139º, nº1, do Código Civil e artºs 891º a 900º, do Código de Processo Civil) não houvesse de poder concluir por idêntica incapacidade eleitoral, ou seja, que a lei permitisse a incapacidade eleitoral ativa atestada sem formalidades (v.g. perceção da alteração grave das funções mentais e internamento em estabelecimento psiquiátrico) e não permitisse a estatuição de idêntica incapacidade no âmbito de um procedimento judicial, formal por natureza, cujo principal e único desiderato se circunscreve precisamente em assegurar o bem- estar do maior acompanhado, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres (artº 140º, nº1, do CC).»


No acórdão recorrido entende-se, assim, que não assiste razão ao recorrente para afirmar que as alterações às leis eleitorais, subsequentes à revogação do instituto da interdição, obstam a que a sentença de acompanhamento determine o impedimento do exercício do direito de voto. Entendimento correto, que aqui se subscreve.


3.5. O exercício do sufrágio é pessoal e presencial. A natureza pessoal do exercício deste direito impede a representação ou o mandato por terceiro3. Por isso as pessoas portadoras de limitações físicas que as impedem de preencher sozinhas o boletim de voto, devem ver essa limitação certificada pela entidade médica competente, quando a limitação não é ostensiva, para que possam ser acompanhadas no ato de votação4.


No caso dos presentes autos não se trata de uma impossibilidade física para exercer o sufrágio de modo direto. Trata-se de uma incapacidade cognitiva para tomar a decisão de votar, dado que a acompanhada se encontra privada da faculdade de entender e querer.


Se tal situação não estiver declarada na sentença que determina o acompanhamento, será possível conjeturar a hipótese de a acompanhada ser levada por terceiros a uma mesa de voto (eventualmente munida de uma declaração médica que ateste a incapacidade física para preencher o boletim de voto). Se nesse momento não forem notórias as graves alterações das suas funções mentais, e não se encontrando internada em estabelecimento psiquiátrico, não será de excluir a hipótese de ser admitida a votar, ou melhor, de ser admitida a votar a pessoa que com ela se deslocasse à cabine de voto, já que a acompanhada não tem capacidade para emitir qualquer vontade.


Tal hipótese constituiria a subversão total da essência do caráter pessoal do direito de voto, pois a pessoa que levasse a acompanhada à cabine de voto e preenchesse o respetivo boletim não estaria apenas a prestar um auxílio mecânico, mas sim a exercer um direito do qual não era titular.


A “proibição” do exercício do direito de voto, elencada na sentença, pode, assim, ser vista como estabelecida ainda no interesse da acompanhada, evitando que ela possa ser fisicamente instrumentalizada por terceiros que se poderiam “apropriar” do direito de voto que ela naturalisticamente nunca poderia exercer.


*


3.6. Alega o recorrente que a interpretação que o acórdão recorrido fez das supra referidas normas reguladoras dos diferentes tipos de atos eleitorais, bem como a interpretação do art.147º do CC seria inconstitucional por violar o disposto nos artigos 13.º e 18.º da CRP, dado que existiria uma restrição de direitos, liberdades e garantias, sem verificação do disposto no art. 18.º, n.º 2.


É manifesto que ao recorrente não assiste razão, pois nenhuma violação ou compressão desproporcionada de direitos fundamentais se identifica no modo como tais normas foram interpretadas. A decisão que excluiu o exercício do direito de voto da requerida não assentou em qualquer fator discriminatório, nem tratou o igual de forma desigual. Essa decisão traduz uma explicitação normativa de um facto naturalístico, comprovado em juízo, correspondente à impossibilidade de a requerida entender e querer o sentido das suas decisões. Assim, se é inequívoco que a acompanhada nunca poderia entender o significado do ato de votar, nenhuma exclusão ou compressão real do seu direito existe. Consequentemente, também não existe qualquer tratamento desigual quando comparado com as pessoas que gozam dessa capacidade.


A decisão em causa não proibiu o direito de sufrágio em abstrato, nem se baseou em critérios de generalização (como a “deficiência mental”), como o recorrente parece entender, mas apenas nas particularidades do caso concreto objetivamente contraditadas.


O princípio da igualdade exprime-se em tratar o igual de modo igual e o diferente de modo objetivamente diferente, na medida das suas diferenças5, pelo que no caso concreto nenhum tratamento desigual ou desproporcionado se identifica.


3.7. Afirma ainda o recorrente que a decisão recorrida teria violado o art. 29º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (aprovada pela Resolução da AR, n.º 56/2009, publicada no DR, 1.ª série, n.º 146, de 30.07.2009).


Alega o recorrente que “de acordo com a Convenção, todas as pessoas com deficiência, sem exceção, devem ter o direito de voto, e ninguém deve ser privado desse direito com base em qualquer deficiência intelectual.”


E acrescenta: “a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, no artigo 29.º, ao contrário de outros normativos nela contidos, não contempla ou admite qualquer exclusão ou restrição ao direito de sufrágio a exercer pelas pessoas discapacitadas, impondo aos Estados a garantia do seu respeito, a que também se encontra vinculado o Estado Português, por ser signatário da Convenção.”


Dispõe o artigo 29.º (Participação na vida política e pública)


«Os Estados partes garantem às pessoas com deficiência os direitos políticos e a oportunidade de os gozarem, em condições de igualdade com as demais pessoas, e comprometem-se a:


a) Assegurar que as pessoas com deficiências podem efectiva e plenamente participar na vida política e pública, em condições de igualdade com os demais, de forma directa ou através de representantes livremente escolhidos, incluindo o direito e oportunidade para as pessoas com deficiência votarem e serem eleitas, inter alia: (…)»


Ora, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, desta norma não se pode concluir que ela não admite qualquer restrição ao direito de sufrágio a exercer pelas pessoas com incapacidade. O que a norma determina é o respeito pelo princípio da igualdade, já supra analisado.


Por outro lado, tal disposição não pode ser compreendida isoladamente, como se de uma ilha normativa se tratasse, sendo desgarrada do seu contexto axiológico.


~


Determina o n.4 do art.12º da Convenção:


«Os Estados Partes asseguram que todas as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos. Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam-se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais medidas afectam os direitos e interesses da pessoa.»


Em tais regras, que também se encontram espelhadas no vigente regime do maior acompanhado6, acha-se claramente prevista a intervenção do órgão judicial no controlo das medidas respeitantes ao exercício dos direitos das pessoas incapazes.


Em síntese, nenhuma razão assiste ao recorrente para invocar a violação do art.29º daquela Convenção.


Ao afirmar que a decisão recorrida proibiu o direito de sufrágio em abstrato, tendo como justificação a deficiência da acompanhada, o recorrente labora num equívoco, porque a sentença não privou a acompanhada de uma faculdade que ela tivesse. Pela própria natureza das coisas, a acompanhada não poderia votar, por se encontrar naturalisticamente impossibilitada, e de modo irreversível, de exercer o direito de voto


*


Em resumo, a decisão recorrida não merece censura, pois não fez errada aplicação da lei, nem padece de inconstitucionalidade.


DECISÃO: Pelo exposto, acorda-se em negar o recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.


Sem custas (artº 4º, nº2, al. h) do Regulamento das Custas Judiciais).


Lisboa, 13.09.2023


Maria Olinda Garcia (Relatora)


António Barateiro Martins


Luís Espírito Santo


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1. Nas suas anteriores versões estas normas declaravam como incapazes para votar:

«- os interditos por sentença com trânsito em julgado;

- os notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos↩︎

2. Sobre o tema, veja-se: GERALDO ROCHA RIBEIRO, “O conteúdo da relação de cuidado: os poderes-deveres do acompanhante, sua eficácia e validade”, in Revista Julgar on line, n.40, 2020, página 73 e seguintes; MAFALDA MIRANDA BARBOSA, “Fundamentos, conteúdo e consequências do acompanhamento de maiores”; CEJ, e-book: O novo regime jurídico do maior acompanhado, 2019, página 63 e seguintes.↩︎

3. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I (anotação ao artigo 49º), página 722.↩︎

4. Como se esclarece na página eletrónica da Comissão Nacional de Eleições, podem votar acompanhadas as pessoas que tenham deficiência física que as impede de sozinhas desenharem a cruz que assinala o sentido do seu voto. E acrescenta-se, nessa fonte: «Se a mesa não reconhecer a deficiência pode exigir que seja apresentado atestado comprovativo da impossibilidade de praticar os atos de votação emitido pela autoridade de saúde da área do município, mantendo-se os centros de saúde abertos no dia da eleição, para este efeito.». Vd. www.cne.pt↩︎

5. Veja-se neste sentido, por exemplo, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, página 166.↩︎

6. Vd. GERALDO ROCHA RIBEIRO, “O instituto do maior acompanhado à luz da Convenção de Nova Iorque e dos direitos fundamentais”, Revista Julgar Online, maio de 2020, pág. 1 a 68.↩︎