Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | FERNANDO BAPTISTA | ||
| Descritores: | RETIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA ERRO DE JULGAMENTO RECURSO LAPSO MANIFESTO OFENSA DO CASO JULGADO RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS NULIDADE DE DECISÃO OMISSÃO DE PRONÚNCIA ARGUIÇÃO DE NULIDADES EXTEMPORANEIDADE EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL INEFICÁCIA REVOGAÇÃO DA SENTENÇA | ||
| Data do Acordão: | 02/10/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
| Sumário : | I. Os erros materiais da decisão, a que se alude no artº 614º/1 do CPC, têm lugar quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever. II. Tal divergência deve ressaltar, de forma clara e ostensiva, do teor da própria decisão, só desta, do seu contexto ou estrutura, sendo possível aferir se ocorreu ou não esse erro. Ou seja, é o próprio texto da decisão que há-de permitir ver e perceber que a vontade declarada não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão. III. Há que não confundir o erro material da decisão com o erro de julgamento: naquele, o juiz escreveu coisa diversa da que queria escrever, não coincidindo o teor da sentença ou despacho com o que o juiz tinha em mente exarar (em suma, a vontade declarada diverge da vontade real); neste, o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. IV. O erro material da decisão é passível de rectificação, nos termos do artº 614º, nº 1, CPC; já no erro de julgamento não pode o juiz socorrer-se deste preceito para o rectificar. Só em vias de recurso tal é possível. V. Não decorrendo da decisão proferida a existência de um erro ou lapso evidente, ostensivo ou manifesto (ou seja, que resulte de forma clara da mera leitura da decisão ou dos termos que a precederam), não pode a mesma ser simplesmente rectificada, dado tal importar uma alteração substancial ao conteúdo da decisão. VI. O mesmo é dizer que tal modificação traduz manifesta alteração do julgado, que não é admissível. Pelo que, não se estando perante um erro material, aquela sentença, devidamente transitada em julgado, não pode ser ulteriormente alterada ou modificada, dada a formação do caso julgado (artº 613º, nº 1 CPC). VII. A omissão, numa sentença de verificação e graduação de créditos, de um crédito que fora reclamado nos autos, sem que a tal reclamação se tenha feito qualquer referência na sentença, não constitui “omissão ou lapso manifesto”, na acepção do número 1 do artigo 614º do CPC, VIII. Tendo omitido o tribunal, simplesmente, qualquer referência a esse outro crédito reclamado, teve lugar a omissão de pronúncia que consubstancia nulidade da sentença (ut artº 615º, nº 1, al. d) do CPC). IX. Transitada em julgado tal sentença sem da mesma ter sido interposto recurso, ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz de se pronunciar sobre aquela omissão do crédito reclamado, pelo que, ao pronunciar-se posteriormente, em nova decisão, sobre o mesmo crédito, foi proferida uma decisão violadora das normas processuais (ut artº 613º, nºs 1 e 3 do CPC), sendo, como tal, ineficaz. X. Pois a “sanção” adequada à decisão tomada com ofensa de caso julgado é, não a nulidade da sentença, mas a sua revogação. XI. Se sempre que há uma omissão de pronúncia na sentença, geradora de nulidade (nos termos da alínea d) do número 1 do artigo 615º do CPC), o juiz pudesse, a todo o tempo, “emendar a mão” por simples despacho, estaria aberta a porta para a total incerteza e insegurança jurídicas. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível I – RELATÓRIO A sociedade “Jorge Sousa & Hernâni Mano, Lda” instaurado contra AA a execução principal e penhorada a fracção autónoma, designada pela letra “AN”, correspondente a uma habitação, com uma varanda, um lugar e uma divisão na cave, tipologia T2, sita na Rua..., ..., ... extremo esquerdo frente e ... extremo traseiras, bloco centro, lugar de ..., freguesia de ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...23 e descrito na CRP ... sob o n.º ...76, veio a Caixa Crédito Agrícola Mútuo ... citada para reclamar créditos, atenta a hipoteca de que dispunha sobre o bem penhorado, reclamar o seu crédito no montante global em dívida de € 74.769,14, relativamente ao empréstimo n.º ...37, concedido no montante de € 100.000,00 (cem mil euros), bem como o valor global em dívida de € 18.758,58, respeitante ao empréstimo nº ...46, no montante de € 25.000,00, correspondente a um total de € 93.527,72, acrescido dos juros vincendos nos valores diários indicados até efectivo pagamento, mais requerendo o pagamentos das despesas extrajudiciais, incluídas as tidas com honorários do mandatário da reclamante, invocadas nos pontos 39.º a 42.º da petição da reclamação, nos termos expressamente previstos na escritura de hipoteca transcrita nos pontos 2.º e 20.º da reclamação, nos valores de € 1 318,20 e € 2 625,00, este acrescido de iva. .* Proferida decisão, em 02.12.2019 - cfr. ref.ª Citius ... – foi o crédito da reclamante Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, graduado em 2.º lugar, aí se fazendo menção apenas ao valor de € 74.769,14, nos seguintes termos: “…a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, veio reclamar o seguinte crédito da responsabilidade do executado: - A importância total de 74.728,70 €, sendo 74.127,29 € referentes ao capital em dívida; 127,77 € aos juros compensatórios; 12,40 € aos juros de mora sobre capital em atraso; 0,93 € aos juros de mora sobre juros em atraso; 446,90 € às comissões; e 18,41 € ao imposto de selo.
Funda-se a reclamante em hipoteca que garante o pagamento do crédito mencionado (decorrente de contrato de mútuo celebrado entre as partes), devidamente registada e constituída sobre o imóvel penhorado na execução”. * Vindo posteriormente, o “CONDOMÍNIO DO PRÉDIO SITO NO ... - …” veio reclamar o seu crédito no montante global de 3.279,06 €, acrescido dos juros de mora vincendos, à taxa de 4%/ano, contados desde a data de entrada da reclamação, sobre a quantia de 2.595,54 €, até integral pagamento, foi proferida decisão - cfr. ref.ª Citius ... – que, mantendo a graduação da CCAMN, graduou, em 5.º lugar, o crédito exequendo e o reclamado pelo referido Condomínio. * Por requerimento de 30.04.2021 com a ref.ª Citius ..., veio a reclamante Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL invocar ter ocorrido um lapso na sentença proferida em 2 de Dezembro de 2019, por na mesma o tribunal ter tido em conta apenas o crédito apurado no ponto 15.º da petição da reclamação, não considerando, pois, também o crédito apurado no ponto 32.º do mesmo articulado. Referiu, ainda, que a sentença proferida não se pronunciou também sobre as despesas extrajudiciais, incluídas as com honorários do mandatário da reclamante, invocadas nos pontos 39.º a 42.º da petição da reclamação e bem assim que a obrigação de pagamento dessas despesas consta expressamente da escritura de hipoteca transcrita nos pontos 2.º e 20.º da reclamação, ou seja, os valores de € 1 318,20 e € 2 625,00, este acrescido de iva. Assim, requereu a correcção da sentença proferida por forma a incluir também o crédito apurado no ponto 32.º da reclamação e as despesas judiciais e extrajudiciais indicadas à agente de execução no requerimento de 15.02.2021. * Em 26.05.2021 (ref citius ...), o tribunal “a quo” proferiu decisão a determinar que a sentença proferida em 16.12.2020 fosse rectificada, por forma a dela passar a constar a menção à graduação dos créditos reclamados pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, nos termos e pelos seguintes fundamentos: “Veio a credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, requerer, nos autos principais, a rectificação da sentença de verificação e graduação de créditos proferida neste apenso alegando ue o Tribunal, por lapso, naquela teve apenas em consideração um dos créditos que reclamou, sendo certo que reclamou dois créditos. Opuseram-se a tal pretensão a credora CONDOMÍNIO DO PRÉDIO SITO NO ... – SECTOR 3 e o Ministério Público (em Representação da Fazenda Nacional), alegando para tanto que a sentença em causa já transitou em julgado. Decidindo. Antes de mais, é mais do que evidente que, por lapso manifesto do signatário do presente despacho, só foi tomado em consideração na sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 2.12.2019 um dos dois créditos que a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL reclamou nos autos. Com efeito, a credora reclamou um primeiro crédito no montante global de 74.769,14 €, assente em contrato de mútuo celebrado com o executado em 3 de Agosto de 2007, e um segundo no montante global de 18.758,58 €, também ele assente em contrato de mútuo celebrado com o executado na mesma data. Estão juntas com a reclamação de créditos as duas escrituras públicas que titulam os contratos em apreço. Ambos são créditos hipotecários, estando as respectivas hipotecas, constituídas sobre o prédio penhorado nos autos, devidamente registadas a favor da credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL. Dispõe o artigo 614.º do CPC o seguinte: “1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. 2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação. 2 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo”. Cremos que no caso concreto se pode afirmar que a sentença padece de uma inexactidão que se deve a uma omissão – ou a um lapso manifesto do signatário – porquanto não se teve em consideração o segundo crédito que a credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL reclamou no articulado competente. É verdade que nenhuma das partes recorreu da sentença, mas nesse caso a rectificação da mesma não deixa de poder ser efectuada, inclusivamente a todo o tempo, como decorre do n.º 3 da norma supra supra citada. Assim sendo, rectifica-se a dita sentença nos seguintes termos: Para além do crédito já reconhecido e graduado reclamado pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, reclamou esta também o seguinte crédito da responsabilidade do executado: - A importância total de 18.748,44 €, sendo 18.531,75 € referentes ao capital em dívida; 30,69 € aos juros compensatórios; 3,09 € aos juros de mora sobre capital em atraso; 0,23 € aos juros de mora sobre juros em atraso; 174,35 € às comissões; e 8,33 € ao imposto de selo. Funda-se a reclamante em hipoteca que garante o pagamento do crédito mencionado (decorrente de contrato de mútuo celebrado entre as partes), devidamente registada e constituída sobre o imóvel penhorado na execução. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 789.º, do Código de Processo Civil, não foi deduzida qualquer impugnação. Os créditos reclamados pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL gozam da garantia hipotecária, isto é, de preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade no registo (artigos 686.º, n.º 1, 687.º, 693.º, n.ºs 1 e 2, 703.º e 712.º, todos do Código Civil), sendo certo que nos termos do citado artigo 693.º, n.º 2, do Código Civil, a garantia decorrente da hipoteca apenas abrange os juros relativos a três anos, não obstante convenção em contrário (e note-se que na reclamação de créditos só são admitidos os créditos que gozem de garantia real). Pelo exposto, graduo os créditos da seguinte forma: 1.º - O crédito reclamado pelo Ministério Público a título de IMI; 2.º - Os créditos reclamados pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL; 3.º - O crédito reclamado pelo Ministério Público a título de IRS; 4.º - O crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social, I.P. 5.º - O crédito exequendo. Notifique. * Na sentença proferida em 16.12.2020 apenas será rectificada a menção à graduação dos créditos reclamados pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL (que passará do singular para o plural), nos termos seguintes: “2.º - Os créditos reclamados pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL”. Corrija no local próprio. Notifique”. ** Não se conformando com a decisão proferida, veio o credor Reclamante CONDOMÍNIO DO PRÉDIO SITO NO ... – …”, interpor recurso de apelação, juntando, para o efeito, as suas Alegações e conclusões. Por Acórdão da Relação ..., foi decidido “julgar o recurso procedente, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida.”. ** Inconformada, veio a reclamante Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, interpor recurso de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes CONCLUSÕES 1.ª - O acórdão recorrido revogou a decisão de 1.ª instância, conhecendo do mérito da causa, com o valor de € 93.527,72, constituindo ainda uma decisão desfavorável à recorrente em montante superior a metade da alçada do Tribunal da Relação pelo que a revista apresentada é admissível - vd. n.º 1, art.º 629.º e n.ºs 1 e 3, art.º 671.º CPC 2.ª - O acórdão recorrido contradiz acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça e pela Relação, no domínio da mesma legislação e incidentes sobre a mesma questão fundamental de direito, sendo a apreciação desta necessária a uma melhor aplicação do direito, estando ainda em causa interesses de particular relevância social, pelo que sempre seria admissível a revista excecional. - vd. Ac. STJ de 13.07.2021, proc. n.º 380/19.4T8OLH-D.E1.S1 - vd. Ac. TR Porto de 18.05.2020, proc. n.º 3338/18.7T8PNF.P1 - vd. Ac. STJ de 23.04.2020, proc. n.º 588/11.0TBCBR-B.P1.S1 - cfr. docs. n.ºs 1 a 3 juntos - vd. n.º 1, art.º 672.º CPC 3.ª - O acórdão recorrido interpretou e aplicou incorretamente as disposições normativas constantes dos n.ºs 1 e 3, art.º 614.º; al. d), n.º 1, art.º 615.º e art.ºs 619.º e ss. do CPC 4.ª - O caso julgado configura uma exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, visando a imodificabilidade da decisão transitada em julgado e a não repetição do juízo alcançado - vd. n.º 2, art.º 576.º e al. i), art.º 577.º CPC - vd. Ac. STJ de 03.02.2005, proc. n.º 04B4009 - vd. n.º 1, art.º 580.º e n.ºs 2 a 4, art.º 581.º CPC 5.ª - Transitada em julgado uma decisão, a mesma adquire força obrigatória dentro e fora do processo, fazendo valer a sua força e autoridade na exequibilidade da decisão e impedindo que a mesma causa seja apreciada de novo por qualquer tribunal- vd. art.º 619.º e ss. CPC - cfr. Ac. TR Coimbra de 21.06.2011, CJ, 2011, 3.º - 49 6.ª - Os limites do caso julgado são delineados pelos elementos identificadores da situação jurídica - sujeitos, objeto e título constitutivo - vd. art.º 621.º CPC 7.ª - A força de caso julgado incide sobre a decisão enquanto conclusão dos fundamentos do caso concreto, pelo que, abrange as questões expressamente constantes da parte dispositiva da decisão, mas também os fundamentos que constituem antecedente lógico e necessário dessa parte dispositiva - cfr. Ac. STJ de 14.03.2006, proc. n.º 05B3582 8.ª - A decisão implícita encontra-se subentendida na decisão explícita, pelo que, a força de caso julgado estende os seus efeitos aos fundamentos da decisão implícita - cfr. Ac. STJ de 12.09.2007, proc. n.º 07S923 9.ª - O erro material verifica-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, ou seja, quando o teor da decisão não coincide com aquilo que o julgador tinha em mente exarar - vd. Ac. TR de Évora de 22.10.2015, proc. n.º 1692/12.3TBABT-L.E1 10.ª - Para se poder aplicar o disposto no artigo 614.º do CPC, é necessário que do conteúdo da decisão ou dos termos que a precederam, se depreenda que se escreveu coisa diferente do que se queria escrever 11.ª - A recorrente reclamou o seu crédito, no total de € 93.527,72, correspondendo € 74.769,14 ao empréstimo n.º ...37 e € 18.758,58 ao empréstimo n.º ...46 12.ª - O tribunal “a quo”, em 02.12.2020, reconheceu apenas à recorrente o valor de € 74.728,70, desconsiderando, por mero lapso, o valor referente ao empréstimo n.º ...46, o que veio a ser expressamente reconhecido pelo mesmo, no despacho de 26 de maio de 2021 13.ª - A reclamação de créditos da recorrente foi instruída pelas duas escrituras públicas que sustentam os contratos de empréstimo em causa, bem como por todos s documentos demonstrativos do valor reclamado, nomeadamente, folhas de cálculo e registos de hipoteca 14.ª - Nem a reclamação de créditos da recorrente, nem qualquer um desses documentos foi impugnado por quem quer que fosse, pelo que, a decisão em causa teve também em consideração os fundamentos que constituem antecedente lógico e necessário da parte dispositiva da mesma 15.ª - Os fundamentos da decisão em crise são os contratos de empréstimo que titulam o crédito da recorrente, no valor global de € 93.527,72, a factualidade alegada por esta e todas as ocorrências processuais verificadas no caso concreto 16.ª - Aquilo que o julgador pretendia decidir tendo em consideração todos os elementos do processo era o reconhecimento da globalidade do crédito da recorrente, sendo, pois, essa a vontade real do decisor - vd. Ac. TR ... de 22.10.2015, proc. n.º 1692/12.... 17.ª - De todos os elementos processuais se extrai a real intenção do julgador em reconhecer a totalidade do crédito reclamado pela recorrente, pelo que, a retificação da decisão de 02 de dezembro de 2020 não se afigura como violadora da figura de caso julgado 18.ª-Anãoadmissãodessaretificaçãopoderá, isso sim, configurar uma efetiva violação da figura do caso julgado, pois que, nesse caso, efetivar-se-á a desconsideração absoluta de todos os fundamentos lógicos e necessários que sustentam a decisão em causa 19.ª - Ou seja, assistir-se-á à violação da decisão implícita que constitui a base fundamentada da respetiva parte dispositiva 20.ª - In casu, estamos perante uma inexatidão na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, visto que, a sua real vontade se fundou nos elementos constantes do processo, expressamente previstos na decisão de 02.12.2020 e no despacho de 26.05.2021 - vd. Ac. TR Porto de 18.05.2020, proc. n.º 3338/18.7T8PNF.P1 21.ª - Perante um tal erro, e no caso de nenhuma das partes dele recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo - vd. n.º 3, art.º 614.º CPC 22.ª - A existência do erro involuntário do julgador deve resultar não só da factualidade alegada, mas também do pedido formulado e da fundamentação expressa do tribunal na sentença proferida - vd. Ac. TR ... de 16.06.2016, proc. n.º 404/14.... 23.ª - No caso concreto, resulta da factualidade avançada, do pedido formulado pela recorrente e do reconhecimento expresso do tribunal “a quo” a existência de um mero lapso na prolação da decisão em crise 24.ª - Se é verdade que proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, o mesmo não se poderá afirmar em relação à retificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença 25.ª - Perante um lapso manifesto do julgador, alicerçado em todos os elementos do processo e expressamente reconhecido por aquele, a sentença proferida podia ser corrigida, a todo o tempo, por simples despacho - vd. n.ºs 1 e 3, art.º 614.º CPC 26.ª - Constitui um poder-dever do tribunal corrigir, por iniciativa sua, os erros e lapsos manifestos em que incorra, pois que, o fim último de todo e qualquer processo judicial é a busca pela verdade material e a boa decisão do litígio - vd. Ac. STJ de 23.04.2020, proc. n.º 588/11.0TBCBR-B.P1.S1 27.ª - Foi o próprio tribunal “a quo” a considerar que a decisão de 02.12.2020 precedia de “lapso manifesto”, pelo que, no estrito cumprimento da lei, determinou a retificação da sentença 02.12.2020 . . A recorrente instrui a presente revista com cópia dos 3 (três) acórdãos em contradição com o acórdão recorrido, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito - cfr. todos os 3 (três) documentos juntos EM CONFORMIDADE COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE ESTE SUPERIOR TRIBUNAL: - admitir a presente revista - caso assim não entenda, admitir a revista excecional - no mais, decidir conforme alegado nas conclusões da presente revista e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que confirme a decisão de 1.ª instância de 26 de maio de 2021 ASSIM DECIDINDO ESTE ALTO TRIBUNAL FARÁ JUSTIÇA ** Contra-alegou o recorrido CONDOMÍNIO DO PRÉDIO SITO NO ... – …, pugnando pela improcedência do recurso. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. ** II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Nada obsta à admissibilidade da revista. Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC). O acórdão recorrido conheceu do mérito da causa, pondo termo ao processo (nº 1 do artº 671º do CPC), sendo que revogou a decisão de 1.ª instância. E a manter-se o acórdão recorrido, a recorrente verá não lhe ser reconhecida a importância de € 18.748,44, o que significa que o acórdão recorrido constitui uma decisão desfavorável à recorrente em montante superior a metade da alçada do Tribunal da Relação (ut n.º 1 do art.º 629.º CPC). É, portanto, admissível o recurso de revista (normal) interposto. ** Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir consistem em saber:
** III – FUNDAMENTAÇÃO III. 1. FACTOS PROVADOS A matéria de facto provada e relevante para o presente recurso é a elencada no relatório supra e que aqui se reproduz. ** III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO Analisemos, então, as questões suscitadas na revista.
O Ac recorrido e a Recorrente sustentam posições diferentes. Adiantando solução, cremos que a razão está do lado do acórdão da Relação. Vejamos. Como dito, embora a Recorrente Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL tenha reclamado dois créditos - um no montante global em dívida de € 74.769,14, relativamente ao empréstimo n.º ...37, e outro no valor global de € 18.758,58, respeitante ao empréstimo n.º ...46, no total de € 93.527,72, acrescido dos juros vincendos nos valores diários indicados até efectivo pagamento, bem como o pagamentos das despesas extrajudiciais, com honorários do mandatário da reclamante, nos valores de € 1 318,20 e € 2 625,00, te acrescido de iva – , na sentença de verificação e graduação dos créditos (de 02.12.2019), e no que tange a créditos da recorrente/reclamante, apenas foi proferida decisão a graduar o crédito no valor de € 74.769,14, não se tendo, portanto, tal sentença, pronunciado sobre o crédito no valor global de € 18.758,58, respeitante ao empréstimo n.º ...46, nem sobre os valores de € 1 318,20 e € 2 625,00, pelas despesas extrajudiciais e honorários do mandatário. Sobre tal decisão não foi interposto recurso (no prazo que ali se prevê para o efeito), nem foi pedida qualquer reforma da sentença. Assim, portanto, a sentença transitou em julgado. O que se pergunta, então, é se aquela omissão do julgador (ao omitir na sentença a graduação daquele crédito da recorrente no valor global de € 18.758,58, a ele não tendo, na mesma, feito a mais leve referência), pode entender-se como uma “omissão ou lapso manifesto”, na acepção do número 1 do artigo 614º do CPC, passível de rectificação. Reza este art. 614.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil: “1. Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz”. Ou seja, admite a lei sejam corrigidos erros materiais da decisão, situação que ocorre quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever. Impõe-se, então, perguntar: quando pode afirmar-se a ocorrência dessa divergência entre a vontade declarada e a vontade real do julgador? Este, afinal, o cerne do presente recurso. Ora, cremos que tal divergência só pode dar-se como verificada caso a mesma ressalte da própria decisão, no contexto ou estrutura da mesma. Note-se que os erros materiais da decisão nada têm a ver com erros de julgamento. Isso mesmo já ensinava ALBERTO DOS REIS, em anotação ao artigo 667.º do C.P.C. de 1939[1]: «Importa distinguir cuidadosamente, o erro material do erro de julgamento. O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa da que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever «absolvo» e por lapso, inconsideração, distracção, escreveu precisamente o contrário: condeno. O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz logo se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667.° para emendar o erro.». Assim, o erro material da decisão, passível de rectificação, nos termos do artº 614º, nº 1, CPC, é aquele que ressalta de forma clara e ostensiva do teor da própria decisão. Só do contexto desta é possível aferir se ocorreu ou não esse erro. Portanto, não emergindo – como, in casu, não emerge – do próprio texto da sentença (de 02.12.2019) um indício, sequer, de ocorrência de qualquer divergência entre a vontade do juiz e o que ali efectivamente se plasmou, não pode falar-se em erro material (passível de rectificação). Como se disse no Ac. do STJ de 16.12.2021, relatado pelo aqui relator[2], as regras da interpretação dos negócios jurídicos (ut arts. 236º ss CC) são aplicáveis à interpretação das sentenças enquanto actos jurídicos, aplicando-se-lhes o disposto no artº 295º do CC. E ali observámos, também, citando MENEZES CORDEIRO, que a letra da sentença é elemento essencial na interpretação a fazer[3] - referindo igualmente este Autor que uma sentença judicial (precisamente por via do estatuído naquele artº 295º) deve ser interpretada à luz do artº 236º”[4]do Cód. Civil. Assim, sendo, como efectivamente são, as decisões judiciais actos formais, amplamente regulamentados pela lei de processo, tem de se lhes aplicar a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238º do CC e que, valendo para a interpretação dos actos normativos – art. 9º, nº 2, – tem, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer também para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial)[5]. No entanto, como também tem sido observado, não se tratando de um verdadeiro negócio jurídico, a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, antes exprimindo “uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei”, no caso concreto, correspondendo ao “resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito a essa situação[6]. Daqui que, como bem diz o Ac. recorrido, “não decorrendo da decisão proferida a existência de um erro ou lapso evidente, ostensivo ou manifesto, ou seja, que resulte de forma clara da mera leitura da decisão ou dos termos que a precederam, não poderia a mesma ser simplesmente rectificada por importar uma alteração substancial ao conteúdo da decisão, deixando até, mesmo por via dessa rectificação, de fora outras questões não apreciadas e decididas. Na verdade, o conteúdo do despacho impugnado consubstancia, assim, uma efectiva alteração de fundo da sentença proferida, aumentando o valor graduado, de único para plural, embora deixando, mesmo assim, por decidir a restante questão sobre os valores das despesas extrajudiciais e com honorários. O mesmo é dizer que tal modificação traduz manifesta alteração do julgado, que não é admissível. Daí que se conclua que, não se estando perante um erro material, aquela sentença, devidamente transitada em julgado, não podia ser ulteriormente alterada ou modificada, dada a formação do caso julgado. Tal importa, assim, a declaração de nulidade da decisão proferida.”. Nas doutas alegações recursórias, a recorrente parece estar a inverter as coisas, desde logo procurando convencer que (conclusão 15ª) os fundamentos da decisão em crise são os contratos de empréstimo que titulam o crédito da recorrente, no valor global de € 93.527,72, a factualidade alegada por esta e todas as ocorrências processuais verificadas no caso concreto. Mas não é bem assim. O que está em causa é a sentença de 02.12.2019, que graduou o crédito da reclamante Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL. E nela apenas se faz menção ao valor de € 74.769,14, nos seguintes termos: “…a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, veio reclamar o seguinte crédito da responsabilidade do executado: - A importância total de 74.728,70 €, sendo 74.127,29 € referentes ao capital em dívida; 127,77 € aos juros compensatórios; 12,40 € aos juros de mora sobre capital em atraso; 0,93 € aos juros de mora sobre juros em atraso; 446,90 € às comissões; e 18,41 € ao imposto de selo.”. Ora, sendo isto, e apenas isto, que costa na sentença – na sua fundamentação –, é claro que só neles se pode suportar, ou a eles se pode reportar, o respectivo segmento dispositivo. Pelo que, ao invés do que pretende a recorrente (concl. 17ª), a decisão de rectificação daquela decisão é violadora da figura de caso julgado. A vontade real plasmada nessa sentença, atento tudo o que dela consta, foi reconhecer o crédito ali graduado, em conformidade com a respectiva reclamação, tal como consta da fundamentação ali vertida. Não podia ter a real vontade de reconhecer um crédito que ali se não enunciou como tendo sido reclamado! Admitir a pretendida ratificação seria uma efectiva violação da figura do caso julgado, considerando que este apenas abrange os fundamentos lógicos e necessários que sustentam a decisão da sentença, que nela se encontram plasmados. Assim, portanto, não se pode falar aqui em inexatidão na expressão (plasmada na sentença) da vontade do julgador, por lapso notório, visto que a sua real vontade se fundou nos elementos constantes do processo, sim, mas expressamente previstos na sentença de 02.12.2019, a que transitou em julgado - que não, portanto, na decisão de 26.05.2021 (a nova decisão…rectificativa daquela outra). A recorrente chama à colação alguns arestos. Creio, porém, que não abonam a posição que defende. Desde logo, deve anotar-se que o Ac. STJ de 23.04.2020 (proc. n.º 588/11.0TBCBR-B.P1.S1), que a recorrente cita, nada tem a ver com o que nestes autos se discute[7]. O mesmo se diga do Ac. do STJ de 17.7.2021 (proc. 380-19.4T8OLH-D.E1.S1), referindo a recorrente que este aresto está em contradição expressa com a decisão recorrida. Mas mal, porém: ao invés, cremos que este aresto até abona a posição que aqui sufragamos. Basta atentar no seu sumário: “(…) I - Existe erro material quando o juiz escreve coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou do despacho não coincide com o que juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real”. Ora, como vimos dizendo, não resulta, de todo, do teor da sentença o que quer que seja em apoio da pretensão do recorrente, pois que ali apenas e só se faz referência a um crédito da recorrente, crédito esse que foi, de facto, devida e correctamente reconhecido e graduado na sentença. Isto é, do teor da sentença nada ressalta a indiciar que a vontade real do julgador fosse reconhecer e graduar qualquer crédito para além dos que são referidos no respectivo relatório! O mesmo se diga do Ac. da Rel do Porto de 18.05.2020, que a recorrente também chama à colação[8] e que igualmente não servirá de apoio à pretensão recursória. Com efeito, não questionamos o que ali se diz, por em sintonia com o que vimos explanando: que para haver erro material, tem de se verificar inexactidão na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, sendo que para tal ocorrer, “a divergência entre a vontade real e a declarada não deve suscitar fundadas dúvidas antes ser patente”. Mas , oviamente, como vimos, atento o teor da mesma decisão. Só que, reitera-se que in casu se mantêm de pé todas as dúvidas de que tal divergência pudesse ter ocorrido, dada a total omissão da sentença de 02.12.2019 sobre o crédito nela omitido. O que legitima afirmar, com toda a segurança, que o juiz disse ali precisamente o que pretendia dizer, atentos os fundamentos e factos provados lá carreados, os elementos do processo nessa decisão apontados. Não duvidamos que “do teor da decisão de 26 de Maio de 2021” seja patente que a vontade real do julgador, nesta decisão plasmada, é a de reconhecer ambos os créditos reclamados pela recorrente. Mas não estamos a falar da decisão de 26.05.2021 (a rectificativa), mas, sim, da sentença de 02.12.2019 (que aquela pretendeu rectificar). E nesta, a vontade real do julgador é a que dela consta, atento todo o seu teor, nada ali se escrevendo acerca de qualquer outro crédito que não os que ali foram, efectivamente, graduados. Pelo que nesta primeira sentença (a tal em que o recorrente insiste ver uma vontade real do julgador no sentido de admitir o tal crédito que…dela não consta) não se vislumbra qualquer erro material passível de rectificação, nos pretendidos termos. Percebe-se a preocupação do recorrente quando observa que todos os intervenientes processuais foram devidamente notificados da reclamação de créditos por si apresentada, bem assim que nenhuma impugnação a tal reclamação foi apresentada, daí rematando que “bem se pode dizer que … todos esses intervenientes processuais se conformaram com o valor total do crédito reclamado pela recorrente”. Bom, até poderá dizer-se que assim foi. Mas daí até poder concluir-se (como faz a recorrente) que a “vontade real do julgador” - plasmada na sentença de 02.12.2019 - “era, precisamente, e conforme reconhecido pelo mesmo, a de considerar a globalidade do crédito reclamado pela recorrente, no total de € 93.527,72”, vai um salto significativo. É que, não só não é verdade que o julgador tenha, naquela sentença - pois foi esta a rectificada na segunda decisão da primeira instância -, considerado a “globalidade do crédito reclamado pela recorrente”, como, ao invés (percute-se), dessa mesma sentença nada, mesmo nada (nem uma palavra), é dito relativamente ao crédito ali não reconhecido e graduado. ** A posição que ora sustentamos – de que é o próprio contexto da sentença que vai fornecer a demonstração necessária do erro material, é sufragada em arestos vários do STJ. Assim, inter alios: Ac. STJ de 26.11.2015[9]: “não pode ser qualificada como rectificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorrecção material se não detectava da leitura do respectivo texto”.[10] Ac. do STJ de 22/11/2018[11]: escreveu-se ali que “…é preciso que, ao ler o texto logo se veja que há erro e logo se entenda o que o interessado queria dizer.”[12]. Posição que foi igualmente afirmada no recente aresto deste Supremo Tribunal, de 13.07.2021 (curiosamente, também citado pela recorrente)[13], assim sumariado: “I- Existe erro material quando o juiz escreve coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou do despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. II - Erro material este que tem de emergir do próprio texto da decisão, ou seja, é o próprio texto da decisão que há-de permitir ver e perceber que a vontade declarada não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão. III - Não é o que acontece quando, havendo incidente de qualificação da insolvência pendente, o juiz escreve/considera que não pende qualquer incidente de qualificação e, em consequência, na decisão de encerramento dos arts. 232º e 233º do CIRE, declara o caráter fortuito da insolvência (por aplicação do artº 233º/6 do CIRE). IV - Em tal hipótese, estamos perante o “manifesto lapso” previsto no artº 616º/2/b) do CPC, que, cabendo recurso da decisão em que o “manifesto lapso” foi cometido, só por via de recurso pode ser reparado. V - Porém, estando já pendente o incidente de qualificação de insolvência (…), estava esgotado o poder jurisdicional do juiz de se pronunciar sobre o caráter fortuito da insolvência, nos termos do artº 233º/6 do CIRE, pelo que, ao fazê-lo, proferiu uma decisão que viola as normas processuais (o artº 613º/3 do CPC) e que é, por isso, ineficaz.”. Mutatis mutandi, é o que se passa no presente caso. Escreveu-se neste aresto: “O erro material tem que emergir do próprio texto da decisão e não também do confronto entre a decisão e todos os elementos constantes do processo, uma vez que, em substância, o que está em causa, repete-se, é perceber-se, sem margem para dúvidas, do texto da decisão, que o que nela se escreveu/decidiu (a vontade declarada) não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão. Ora – é o ponto – a partir do texto da decisão supra transcrita (e cuja decisão de correção deu lugar à apelação e à presente revista) não se pode afirmar que a vontade real do juiz, no dia 26/09/2019” – no nosso caso, ... no dia 02.12.2019 – “, não correspondesse ao que escreveu/decidiu. O que sucede – que é coisa diferente – é que o juiz não analisou bem o processo e por isso não se deu conta dum elemento factual que, tomado em conta, implicava necessariamente decisão diversa da proferida; porém, o que decidiu/declarou corresponde totalmente à sua vontade real (no dia em que proferiu a decisão).”. Assim, portanto, a não verificação e graduação de um crédito reclamado, sem que o respetivo credor – a recorrente – tenha recorrido da sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 02/12/2019, não constitui “omissão ou lapso manifesto”, na acepção do número 1 do artigo 614º do CPC. Com efeito, a sentença de verificação e graduação de créditos de 02.12.2019 não contem qualquer inexatidão que se possa dizer ser devida a omissão ou lapso manifesto quanto aos créditos reclamados pela recorrida “CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO ..., CRL” nos artigos 32º, 6º (alínea g)), 9º, 24º (alínea g)), 27º e 39º a 42º da reclamação de créditos submetida por esta a 28/06/2019. Tão somente, naquela sentença de verificação e graduação de créditos, o tribunal omitiu qualquer referência a esse outro crédito reclamado pela recorrida. E não fazendo essa referência, teve lugar a omissão de pronúncia que consubstancia nulidade da sentença (ut artº 615º, nº 1, al. d) do CPC). Ora, ocorrendo essa situação, de nulidade da sentença por omissão de apreciação de questão que deveria ter sido apreciada, temos uma nulidade que somente pode ser invocada em sede de recurso, quando a decisão o admita (como era o presente caso, cfr. n.º 4 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil). Não tendo havido lugar ao recurso da sentença, para suprimento dessa nulidade, a mesma transitou em julgado. Assim, temos, portanto, claro que na decisão recorrida, de 26.05.2021, o que teve lugar foi, não a correcção da sentença de 02.12.2019, com base em inexactidão devida a omissão ou lapso manifesto (artº 614º/1 CPC), mas, sim, a sua correcção com fundamento na omissão de pronúncia que ali ocorreu relativamente ao aludido crédito da reclamante e que naquela sentença de 26.05.2021 veio a ser considerado. Omissão de pronúncia que, como dito, é geradora de nulidade da sentença, apenas podendo ser atacada por via do recurso, que não teve lugar, assim se deixando transitar o decidido em 02.12.2019 e cuja eficácia se mantém. Donde assistir razão ao acórdão da Relação quando refere que “Não está em causa, portanto, um qualquer erro material que seja susceptível de rectificação, porquanto não emerge da sentença que tenha existido qualquer divergência entre aquilo que o juiz escreveu e aquilo que pretendia escrever. Antes se verifica uma nulidade da sentença (por não ter sido apreciado os restantes créditos reclamados pela Apelada), que apenas podia ser reparado por via da interposição de recurso e não por via de mera rectificação da sentença. Aliás, mesmo a rectificação efectuada não contempla qualquer decisão quanto à requerida reclamação quanto às despesas extrajudiciais e honorários do mandatário. Ambas as posições entre um polo e outro colocam a questão entre os fins prosseguidos pelo direito: justiça do caso concreto, por um lado, e a segurança e certeza do direito, por outro. De qualquer das formas, importa atentar, por outro lado, o princípio processual da auto-responsabilidade das partes – aflorado entre outros no art. 5.º, do Cód. Proc. Civil -, que impunha à recorrida” - aqui recorrente - “, perante a sentença de 1ª instância proferida, arguir atempadamente a sua nulidade e impugná-la, sendo o caso, o que não fez.”[14]. E não menos pertinente nos parece a seguinte observação do recorrido: “Perante uma omissão de pronúncia da sentença de verificação e graduação de créditos, que só desaproveitou à recorrente, o que esperava esta? Será que esperava que os restantes sujeitos processuais recorressem por si?” E continua: “Por outro lado, como conseguiria a recorrente, sendo uma prestigiada instituição de crédito, sob a forma de cooperativa, prestar com rigor as suas demonstrações financeiras se em todos os processos executivos em que intervém, ou até mesmo em processos de insolvência, pudesse, no caso de se verificar uma omissão de pronúncia de uma sentença de verificação e graduação de créditos, estar sempre em aberto a retificação de sentenças com fundamento em “omissão ou lapso manifesto” que interferissem com os seus créditos reclamados? Se sempre que há uma omissão de pronúncia na sentença, geradora de nulidade, nos termos da alínea d) do número 1 do artigo 615º do CPC, o juiz pudesse, a todo o tempo, “emendar a mão” por simples despacho, estaria aberta a porta para a total incerteza e insegurança jurídicas.”. Em suma: do próprio contexto da sentença (de 02.12.2019), da sua leitura, não decorre a ocorrência de qualquer lapso manifesto (situação diferente seria se no seu relatório viesse feita menção ao segundo crédito e, apesar disso, a sentença só tivesse graduado (como graduou) o primeiro, caso em que (aqui, sim) se poderia considerar existir o apontado lapso manifesto – então a corrigir fora das regras da nulidade). 1. O despacho recorrido, ao rectificar, nos termos do número 3 do artigo 614º do CPC, a sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 02/12/2019, transitada em julgado, ofendeu o caso julgado? Entende-se que sim. E tendo ocorrido essa ofensa do julgado anterior (da sentença de 02.12.2019), a posterior decisão que ofendeu esse julgado não pode deixar de ser revogada – é que a “sanção” adequada à decisão tomada com ofensa de caso julgado é, não a nulidade da sentença, mas a sua revogação[15]. Tal como se decidiu no acórdão recorrido. Com efeito, como reza o art. 613.º, n,º 1, do Cód. Proc. Civil, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa – daqui, como é sabido, resultando dois efeitos: um negativo – a insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar; um positivo – traduzido na vinculação do tribunal à decisão por ele proferida. Como já há muito ensinava ALBERTO DOS REIS[16], “Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão. Claro que, em julgamentos futuros, o magistrado pode sustentar e adoptar doutrina jurídica diferente da que tenha estabelecido. Mas no mesmo processo, a decisão que proferir vincula-o”[17]. Pelo que o “juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível. Ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível”[18]. Com efeito, prolatada a sentença, a mesma torna-se imodificável. A referida cessação do poder jurisdicional do juiz, ínsita no art. 613.º, n,º 1, do Cód. Proc. Civil, tem, naturalmente que ser entendida com o devido cuidado, apenas querendo significar que o juiz, proferida a sentença/despacho, deixa de poder alterar o que decidiu e os respectivos fundamentos. O que significa, a contrario, que, respeitando o que decidiu e os seus fundamentos, o juiz mantem o exercício do poder jurisdicional para a resolução de questões marginais, acessórias ou secundárias que a sentença/despacho suscitar, como é o caso da rectificação dos supra aludidos erros materiais (aqui se abrangendo a omissão sobre o nome das partes ou sobre custas e os “erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”, ut cit. art. 614.º/1 do CPC), bem assim é o caso, não cabendo recurso ordinário da decisão, do suprimento das nulidades (cfr. art. 615.º/4 do CPC) e da reforma das decisões em que tenha havido um dos “manifestos lapsos” referidos no art. 616.º/2 do CPC. Daqui que a supra apontada decisão da primeira instância, ao rectificar, com apelo aos termos do número 3 do artigo 614º do CPC, a sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 02/12/2019, ofendeu o caso julgado que nesta se formou. Assim claudicam as conclusões das alegações de recurso. ** IV. DECISÃO Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação. Custas da revista a cargo da Recorrente. Lisboa, 10-02-2022 Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator) Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º adjunto) Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto) _______ [1] Cód Proc. Civil Anotado, 1981, vol. 5º, pág. 130. |