Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARGARIDA BLASCO | ||
Descritores: | ESCUSA JUIZ NATURAL IMPARCIALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 11/12/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | ESCUSA/RECUSA | ||
Decisão: | DEFERIDO O PEDIDO DE ESCUSA. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - De harmonia com o disposto no n.º 1, do art. 43.º, do CPP, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”. II - Trata-se de regra que, constituindo excepção ao princípio do juiz natural, previsto no art. 32.º, n.º 9, da CRP, configura uma garantia fundamental do processo criminal, inserida, prevalentemente (em vista, maxime, da sua inserção sistemática), no âmbito da protecção dos direitos de defesa, para protecção da liberdade e do direito de defesa do arguido, garantindo o julgamento por um tribunal (um juiz) predeterminado e não ad hoc criado ou arvorado competente. III - O juiz natural só deve ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz pré-definido como competente (de modo aleatório) deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção. O que vale por dizer que, em relação a qualquer processo, o juiz deve sempre ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados. IV - Nos termos do n.º 4, do art. 43.º, do CPP, embora o juiz não possa declarar-se voluntariamente suspeito, pode, porém, pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem aquelas condições. Esta disposição prevê um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida, a imparcialidade do juiz. A escusa constitui, deste modo, um dos instrumentos reactivos, uma das vias para atacar a suspeição. V - Existe suspeição quando, face às circunstâncias do caso concreto, for de supor que há um motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, se este vier a intervir no processo. A escusa será assim um dos modos processuais, uma das cautelas legais, que rodeiam o desempenho do cargo de juiz, destinadas a garantir a imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. VI - A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo – art. 10.º, da DUDH, art. 14.º, n.º1, do PIDCP e art. 6., n.º 1, da CEDH. Na perspectiva das partes, as garantias de imparcialidade referem-se à independência do juiz e à sua neutralidade perante o objecto da causa. Ainda que a independência dos juízes seja, antes do mais, um dever ético-social, uma responsabilidade que tem a dimensão ou a densidade da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz, não pode esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que promova e facilite aquela independência vocacional, por isso que é necessário, além do mais, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. VII - Por último, como a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, o fundamento da suspeição deverá ser avaliado segundo dois parâmetros: um de natureza subjectiva, outro de ordem objectiva. VIII - O primeiro indagará se o juiz manifestou, ou tem motivo para ter, algum interesse pessoal no processo, ficando assim inevitavelmente afectada a sua imparcialidade enquanto julgador. IX - O segundo averiguará se, do ponto de vista de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, a confiança na imparcialidade e isenção do juiz estaria seriamente lesada. X - Mas, se está em causa uma tarefa essencial no desempenho do Estado igualmente se procura defender a posição do Juiz, assegurando um instrumento processual que possibilite o seu afastamento quando, objectivamente, existir uma razão que minimamente possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade. XI - É evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto. Na verdade, do que falamos é do risco da perda de objectividade, do afastamento isento que é indiciado pelo facto objectivo. Aqui, importa salientar que é do conhecimento normal de um cidadão médio que tais atributos do exercício da jurisdição estão tanto mais afastados quanto maior for a proximidade do julgador em relação a factos do litígio que lhe é proposto julgar, nomeadamente quando tal proximidade fruto de um conhecimento extraprocessual. XII - No que respeita à vertente subjectiva, não se descortina um quadro que possa inculcar ou favorecer uma possível quebra de imparcialidade por parte da peticionante. À semelhança de casos similares, este Supremo Tribunal tem entendido que “sendo o presente processo suscitado por um pedido de escusa do próprio magistrado, estamos perante uma atitude que só pode ser qualificada de escrupulosa”. Contudo, para efeito de apresentação do pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique. Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão-de pois resultar de objectiva justificação, avaliando as circunstâncias invocadas pelo requerente não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador. XIII - Do ponto de vista objectivo, perante a situação invocada como fundamento da escusa requerida, é de admitir que qualquer cidadão da comunidade onde se situa o julgador, a aqui requerente, possa contestar a sua imparcialidade, se nessa qualidade prosseguir nos autos, podendo pô-la em causa, possibilidade esta tanto mais previsível, porquanto a estrutura normativa das sociedades actuais que usualmente reclamam rigor e transparência, vêm cada vez mais exigindo exteriorização objectiva de demonstração de probidade funcional. Quanto à vertente objectiva e atentando ao peticionado, parece-nos existir um motivo sério e grave de a intervenção da requerente poder suscitar sérias reservas sobre a sua imparcialidade, adequado a poder criar e gerar dúvidas acerca da imparcialidade do Tribunal de recurso. É patente uma dissensão entre a Requerente e a assistente nos autos de recurso penal, distribuídos à peticionante. XIV - Entendemos que o motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade da Requerente reside no circunstancialismo invocado quanto ao concreto relacionamento interpessoal com a ora assistente, no recurso penal agora distribuído àquela Magistrada. XV - Concatenando o que se vem de dizer e perante o circunstancialismo apresentado no pedido de escusa, consideramos que a intervenção da Requerente no recurso penal que lhe foi distribuído, pode razoavelmente correr o risco de ser considerada suspeita, podendo ser contestada a sua imparcialidade, suficiente a poder criar o risco de que a sua intervenção neste processo possa gerar dúvidas acerca da imparcialidade do Tribunal de recurso. XVI - Pelo que, no caso concreto, existe legítimo fundamento para a escusa requerida, pelo que se defere a mesma. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 2/14.0JFLSB.L2-A. S1 (Pedido de escusa)
Acordam, precedendo conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I.
II. 4. De harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 43.º, do CPP, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”. Trata-se de regra que, constituindo excepção ao princípio do juiz natural, previsto no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa (CRP), configura uma garantia fundamental do processo criminal, inserida, prevalentemente (em vista, maxime, da sua inserção sistemática), no âmbito da protecção dos direitos de defesa, para protecção da liberdade e do direito de defesa do arguido, garantindo o julgamento por um tribunal (um juiz) predeterminado e não ad hoc criado ou arvorado competente. O juiz natural só deve ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz pré-definido como competente (de modo aleatório) deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção. O que vale por dizer que, em relação a qualquer processo, o juiz deve sempre ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados. Nos termos do n.º 4, do artigo 43.º, do CPP, embora o juiz não possa declarar-se voluntariamente suspeito, pode, porém, pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem aquelas condições. Esta disposição prevê um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida, a imparcialidade do juiz. A escusa constitui, deste modo, um dos instrumentos reactivos, uma das vias para atacar a suspeição. Existe suspeição quando, face às circunstâncias do caso concreto, for de supor que há um motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, se este vier a intervir no processo. A escusa será assim um dos modos processuais, uma das cautelas legais, que rodeiam o desempenho do cargo de juiz, destinadas a garantir a imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. 5.A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo – artigo 10.º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), artigo 14. ° n. º1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e artigo 6. ° n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). Na perspectiva das partes, as garantias de imparcialidade referem-se à independência do juiz e à sua neutralidade perante o objecto da causa. Ainda que a independência dos juízes seja, antes do mais, um dever ético-social, uma responsabilidade que tem a dimensão ou a densidade da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz, não pode esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que promova e facilite aquela independência vocacional, por isso que é necessário, além do mais, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. 6. Como diz o Professor Jorge de Figueiredo Dias (em “Direito Processual Penal”, I, 1974, pág. 320), trata-se de “(…) um verdadeiro princípio geral de direito, actuante no domínio da política judiciária, que se esconde atrás de toda a matéria respeitante aos impedimentos e suspeições do juiz: o de que é tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os participantes processuais, reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional jurisdicidade”. E também neste sentido o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira (no “Curso de Processo Penal”, 1986, pp. 141/142): “Não importa que, na realidade, o juiz permaneça imparcial; interessa sobretudo considerar se, em relação com o processo, poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição que a lei indica”. Salientava Manzini (ut Figueiredo Dias, ob. cit., nota 33, pp. 315/316), com impressiva clareza, que “o judex suspectus deve, em vista de qualquer motivo sério, ser dispensado como juiz num processo em que, tendo em conta a força média de resistências às causas internas que possam influir danosamente sobre o julgamento, seja razoavelmente de presumir que possa estar sujeito a paixões ou preocupações contrárias à recta administração da justiça”. 7. O mesmo pensamento é expresso pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos: “a imparcialidade da jurisdição não é só a imparcialidade subjectiva. É também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada.... Afinal, trata-se da confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes.... Deve, pois, recusar-se qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente recear a existência de uma falta de imparcialidade... O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se como objectivamente justificadas” - Caso Hauschildt, cit. no acórdão, do Tribunal Constitucional, n.º 52/92, no DR, I-A, de 14.3.92. Ver ainda, por mais significativo, Renée Koering-Joulin, “La notion européenne de tribunal indépendant et imparcial au sens de l’article 6.º, par. 1, de la Convention européenne de sauvegarde des droits de l’homme”, na “Revue de science criminelle e de droit pénal compare”, n.º 4, Out/Dez 1990, pp. 766 e segs. 8. Por último, como a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, o fundamento da suspeição deverá ser avaliado segundo dois parâmetros: um de natureza subjectiva, outro de ordem objectiva. O primeiro indagará se o juiz manifestou, ou tem motivo para ter, algum interesse pessoal no processo, ficando assim inevitavelmente afectada a sua imparcialidade enquanto julgador. O segundo averiguará se, do ponto de vista de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, a confiança na imparcialidade e isenção do juiz estaria seriamente lesada. Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, “[a] imparcialidade pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo, O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjectivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção. (...) O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade”[1]. Mas, se está em causa uma tarefa essencial no desempenho do Estado igualmente se procura defender a posição do Juiz, assegurando um instrumento processual que possibilite o seu afastamento quando, objectivamente, existir uma razão que minimamente possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade. É evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto. Na verdade, do que falamos é do risco da perda de objectividade, do afastamento isento que é indiciado pelo facto objectivo. Aqui, importa salientar que é do conhecimento normal de um cidadão médio que tais atributos do exercício da jurisdição estão tanto mais afastados quanto maior for a proximidade do julgador em relação a factos do litígio que lhe é proposto julgar, nomeadamente quando tal proximidade fruto de um conhecimento extraprocessual.
9. Dito isto, apreciemos o caso em apreço. A Magistrada requerente é Juíza ... no Tribunal da Relação ..., colocada na 0. ª Secção ..., tendo-lhe sido distribuído um recurso penal em que figura como Assistente, BB, proprietária de uma determinada fracção que arrendou, em determinado período de tempo, à ora peticionante, e com a qual manteve um litígio, que resultou na cessação do arrendamento, conforme decorre dos diversos documentos juntos aos presentes autos (cfr. fls. 8 a 33, 34 a 47) e que mais adiante analisaremos.
Vejamos.
10. No que respeita à vertente subjectiva, nos termos assinalados supra no ponto 8. deste acórdão, não se descortina um quadro que possa inculcar ou favorecer uma possível quebra de imparcialidade por parte da Senhora Juíza ... peticionante. À semelhança de casos similares, este Supremo Tribunal tem entendido que “sendo o presente processo suscitado por um pedido de escusa do próprio magistrado, estamos perante uma atitude que só pode ser qualificada de escrupulosa” [2]. Contudo, para efeito de apresentação do pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique. Na verdade, como refere GERMANO MARQUES DA SILVA (p. 199), “quando a imparcialidade da jurisdição possa ser posta em causa, em razão da ligação do juiz com o processo ou porque nele já teve intervenção noutra qualidade ou porque tem qualquer relação com os intervenientes, que façam legitimamente suspeitar da sua imparcialidade, há necessidade de o afastar do processo”. Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão-de pois resultar de objectiva justificação, avaliando as circunstâncias invocadas pelo requerente não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador. Do ponto de vista objectivo, perante a situação invocada como fundamento da escusa requerida, é de admitir que qualquer cidadão da comunidade onde se situa o julgador, a aqui requerente, possa contestar a sua imparcialidade, se nessa qualidade prosseguir nos autos, podendo pô-la em causa, possibilidade esta tanto mais previsível, porquanto a estrutura normativa das sociedades actuais que usualmente reclamam rigor e transparência, vêm cada vez mais exigindo exteriorização objectiva de demonstração de probidade funcional.
Como se lê em acórdão deste Supremo Tribunal, de 21.03.2013: “Na perspectiva objectiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulação de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si. Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro íntimo do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar, e com o reforço da legitimidade interna e externa do juiz nas sociedades democráticas de direito. A imparcialidade objectiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o "ser" e o "parecer". Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objectiva, ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam, em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja, mas também pareça ser. As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção. O pedido de recusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe, e só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade (...).”
11. Quanto à vertente objectiva e atentando ao peticionado, parece-nos existir um motivo sério e grave de a intervenção da Senhora Juíza ... requerente poder suscitar sérias reservas sobre a sua imparcialidade, traduzido no concreto circunstancialismo fáctico que se vem de expor. Como diz a Sra. Juíza ... Requerente, no seu requerimento a fls. 10, (…) vem juntar 6 documentos comprovativos do litígio que existiu com a sua senhoria e que pode fundamentar a sua dispensa de intervir nos autos em que formulou escusa (…), ou seja, como vem dizer na sua petição inicial, alegando o disposto no artigo 43.º, n.ºs 1 e 4 do CPP, que pode ocorrer o risco de a sua intervenção no processo possa ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a poder criar e gerar dúvidas acerca da imparcialidade do Tribunal de recurso. Aliás, compulsados os documentos juntos aos autos (cfr. fls. 8 a 33, 34 a 47), decorre que o litígio com a assistente e alegado pela Sra. Juíza ... Requerente, se traduz “[n]um contencioso pré existente”, e assenta “(…) [n] da ofensa dos meus direitos ao crédito e ao bom nome (da ora peticionante), ofensa essa que deu já origem a uma condenação dos senhorios (entre os quais, a assistente) ao pagamento de uma quantia por eles devida e ainda não liquidada (…). Mais se refere nesses documentos, que a Requerente em determinado momento pediu a intervenção (…) de um amigo para a entrega da casa e das chaves, para evitar qualquer contacto com os senhorios atento o contencioso pré-existente (…). É, pois, patente uma dissensão entre a Requerente e a assistente nos autos de recurso penal, distribuídos à Senhora ….
Conforme se tira do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 08.01.2015, proferido no processo n.º 6099/13.2TDPRT.P1-A. S1 - 5.ª Secção: “A independência dos juízes constitui "a mais irrenunciável característica do «julgar» e, portanto, da função judicial" {Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1974, p. 303), só assim se realizando o princípio da separação dos poderes. “Sendo, por conseguinte, os tribunais no seu conjunto — e cada um dos juízes de per si — órgãos de soberania (...) e pertencendo só a eles a função judicial (...), tem por força de concluir-se que a independência material (objectiva) dos tribunais — reforçada pela independência pessoal (subjectiva) dos juízes que os formam — é condição irrenunciável de toda verdadeira jurisprudência" [idem, p. 303-4). Se, por um lado, a característica da independência dos juízes assegura que estejam livres de pressões exteriores, por outro lado, "isto não basta para que fique do mesmo passo preservada a objectividade de um julgamento: é ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a «imparcialidade» dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar. (...) [E] o que aqui interessa — convém acentuar — não é tanto o facto de, a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados" [ibidem, p. 315). Na verdade, a lei, ao estabelecer as situações em que o juiz pode pedir a escusa, está a realizar a tarefa de velar "por que, em qualquer tribunal (...) reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional juridicidade. Pertence, pois, a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não - uma vez mais o acentuamos - enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu" (Ibidem, p. 320)” (negrito nosso).
Ora, transpondo para o caso presente, entendemos que o motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade da Sra. Juíza ... Requerente reside no circunstancialismo invocado quanto ao concreto relacionamento interpessoal com a ora assistente, no recurso penal agora distribuído àquela Magistrada. Concatenando o que se vem de dizer e perante o circunstancialismo apresentado no pedido de escusa, consideramos que a intervenção da Requerente no recurso penal que lhe foi distribuído, pode razoavelmente correr o risco de ser considerada suspeita, podendo ser contestada a sua imparcialidade, suficiente a poder criar o risco de que a sua intervenção neste processo possa gerar dúvidas acerca da imparcialidade do Tribunal de recurso. 11. Destarte, no caso concreto, existe legítimo fundamento para a escusa requerida, pelo que se defere a mesma.
III. 12. Por tudo o exposto, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça: Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP, e assinado eletronicamente pelos signatários subscritores. 12 de Novembro de 2020
Margarida Blasco- Relatora Helena Moniz- Adjunta Francisco Caetano - Adjunto _______________________________________________________
[1] Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, pp. 128-130.
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