Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
835/23.6T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: OFENSA DO CASO JULGADO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE FACTO
OPONIBILIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
AÇÃO DE CONDENAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURADORA
DANO
EQUIPAMENTOS DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE DO REQUERENTE
INDEMNIZAÇÃO
SUB-ROGAÇÃO
DECISÃO CONDENATÓRIA
Data do Acordão: 04/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
A matéria de facto declarada provada em decisão condenatória transitada em julgado, proferida em ação cuja causa de pedir é constituída, grosso modo, por responsabilidade civil por evento danoso, na qual uma das RR foi absolvida de pedido subsidiário contra si formulado, por procedência do pedido principal deduzido contra outra R, não lhe tendo aí sido admitido recurso de apelação em que impugna a decisão em matéria de facto, pedindo a sua alteração, não pode ser considerada provada por força do instituto do caso julgado numa segunda ação proposta pela R condenada contra a R absolvida, relativa ao mesmo evento danoso, no âmbito do exercício de um invocado direito de regresso porque esta, apesar de ter participado na audiência de discussão e julgamento, não teve o ensejo de influir/participar na formação da decisão final, em aplicação do princípio do contraditório, consagrado no n.º 4, do art.º 20.º, da C. R. Portuguesa e, entre outros, no art.º 3.º, do C. P. Civil.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. RELATÓRIO.

Victoria – Seguros, S.A., propôs esta ação declarativa com processo comum contra Martinscargo – Transporte de Mercadorias, Lda., pedindo que a sua condenação a entregar-lhe a quantia de € 207 210,65, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de juros comerciais de 7%, desde a citação até integral pagamento, com fundamento, em síntese, que a sua segurada E..., S.A., lhe moveu a si e a Martinscargo – Transporte de Mercadorias, Lda., uma ação, que correu termos com o nº 822/21.9T8GMR, para obter indemnização pelos danos provocados pela R e segurados pela A.

Tendo sido condenada, a A pagou à E..., S.A. a quantia de € 207.210,65. Na sequência desse pagamento, nos termos do art.º 136.º, n.º 1, do Regime do Contrato de Seguro, a A ficou sub-rogada nos direitos da sua segurada contra o terceiro causador do acidente, no caso a R, pelo que pretende obter desta o valor que pagou.

Defende que os factos dados como assentes na ação n.º 822/21.9T8GMR devem considerar-se assentes nestes autos, pois a decisão transitou em julgado.

Citada, contestou a R, dizendo que não se lhe aplica o invocado efeito do caso julgado, pois foi absolvida do pedido subsidiário contra si deduzido na ação nº 822/21.9T8GMR, não tendo sido admitido o recurso que interpôs dessa decisão, impugnando a factualidade relativa à sua responsabilidade e aos danos ocorridos e deduzindo pedido de intervenção acessória provocada da sua seguradora Liberty Seguros, S.A.,

O pedido de intervenção assessória foi admitido, tendo a chamada apresentado articulado próprio, no qual concluiu como a R e acrescentou que a apólice contratada não incluía o veículo interveniente no sinistro.


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Realizada audiência prévia, foi proferido saneador-sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a R a pagar à A a quantia de € 201.090,65 (duzentos e um mil e noventa euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora supletivos comerciais desde a citação até efetivo e integral pagamento.

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Inconformada com essa decisão, a R interpôs recurso de apelação, que foi admitido e julgado improcedente por acórdão do Tribunal da Relação que confirmou o saneador-sentença.

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Novamente inconformada, a R interpôs recurso de revista excecional, formulando as seguintes conclusões:

I. No caso dos presentes autos verificam-se os requisitos de que depende a instauração do presente recurso de revista excecional, nos termos do art. 672.º, n.º 1, al. c) do CPC, porquanto a decisão que antecede, proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, está em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 12/07/2023, no âmbito do processo n.º 1736/20.5T8VCD-A.P1, da 2ª secção em que foi Relatora a Exmo. Senhora Juiz Desembargadora Alexandra Pelayo, proferido no domínio da mesma legislação – artigo 580.º do Código de Processo Civil – e sobre a mesma questão fundamental de direito – autoridade de caso julgado -, tudo conforme se alcança do citado Acórdão, que se junta por fotocópia, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

II. Apesar de ser idêntica a realidade processual – saber se o efeito positivo do caso julgado, denominado como autoridade do caso julgado, abrange ou não os fundamentos de facto da decisão –, a solução jurídica foi diversa, pois no acórdão fundamento entendeu-se que o caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os fundamentos de facto, por si mesmos, e no acórdão recorrido entendeu-se que a autoridade do caso julgado incide também sobre os fundamentos de facto de uma decisão, que assim podem valer noutro processo, nos mesmos termos. Em ambos, ficou decidido que não havia caso julgado na sua vertente negativa (de exceção), que não se verificava a tríplice identidade, nem dela depende a autoridade de caso julgado.

III. No entendimento da Recorrente, é a decisão do Tribunal da Relação do Porto que melhor se coaduna e aplica o disposto no art. 580.º do CPC, a respeito da vertente positiva da autoridade de caso julgado, na medida em que, entende que não pode ser admissível que a Primeira Instância se limite a transcrever a matéria de facto provada no âmbito de outro processo, sem proceder à análise critica e apreciação da prova.

IV. Ainda e sem prescindir, in casu, está, outrossim, em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, nomeadamente, a questão de saber se os fundamentos de facto de uma decisão podem valer no âmbito de outro processo, por força da autoridade do caso julgado, ainda que, naquele primeiro processo, a Ré tenha sido absolvida do pedido contra si formulado e, nessa sequência, tenha sido negada a possibilidade de interpor recurso, nomeadamente, quanto à matéria de facto ali fixada e à decisão de direito proferida.

V. A aludida questão jurídica, suscitada no presente recurso, apresenta um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação aos interesses das partes envolvidas, nomeadamente, tendo em vista a segurança e certeza jurídica para os cidadãos que recorram à justiça.

VI. A jurisprudência não é unânime quanto à possibilidade do caso julgado formado por uma decisão abranger também os fundamentos de facto da mesma, conforme se alcança dos acórdãos referenciados no corpo da presentes alegações e para onde se remete, por economia processual, muito menos, quando essa transposição de factos é feita sem o exame crítico a que alude o artigo 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, como sucedeu nos presentes autos.

VII. Nessa sequencia, justifica-se, pois, a intervenção deste colendo Supremo Tribunal para saber se, por força da autoridade do caso julgado, a matéria de facto considerada assente no âmbito de outro processo, pode ser transposta, sem mais, para um processo posterior, ainda que, naquele primeiro processo, a Ré tenha sido absolvida do pedido contra si formulado.

Termos em que deverá o presente recurso de revista excecional ser admitido, julgado procedente e, consequentemente, revogada a sentença recorrida, tal como é de JUSTIÇA.


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A A contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade do recurso e subsidariamente, pela sua improcedência.

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Recebido o recurso de revista e enviado o processo à formação prevista no n.º 3, do art.º 672.º, do C. P. Civil, foi proferido acórdão que admitiu a revista excecional.

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2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.

O acórdão recorrido, tendo aditado os factos sob os números 24 a 29 por se tratar de atos praticados no processo nº 822/21.9T8GMR, que consultou por via eletrónica, julgou provados os seguintes factos:

1. A A, no âmbito da sua atividade, celebrou com a sociedade “E..., S.A.”, NIPC .......34, um contrato de seguro de transporte terreste de mercadorias titulado pela Apólice nº ......59.

2. Este seguro foi celebrado para dar cobertura aos riscos decorrentes da transferência de equipamentos (máquinas) da sua unidade industrial sita no Lugar ..., para a nova unidade industrial sita no Lugar de ..., freguesia de ..., ambas no concelho de ....

3. No dia 25.01.2019, pelas 20 h, a E..., S.A. procedeu ao transporte, entre as duas unidades industriais, de uma máquina designada por “Titech Flakesorter 1000 Subassy”.

4. Para o efeito, acordou com a empresa “Transportes V..., Lda” que esta, contra o pagamento de um preço, efetuaria esse transporte, o que efetivamente fez.

5. A E..., S.A. acordou com a ora R, contra o pagamento de um preço, que esta empresa efetuasse o serviço de remoção do referido equipamento com vista ao seu transporte para o camião que iria efetuar o transporte.

6. Para efetuar esse serviço, a R providenciou um camião grua e um manobrador.

7. A R, no âmbito do acordo celebrado com a E..., S.A., retirou a máquina em causa do local onde se encontrava e colocou-a no solo.

8. Efetuado o transporte até à nova unidade industrial da E..., S.A., a máquina aguardou ainda uns dias para ser novamente montada.

9. PoRm, ao iniciar a sua atividade, os funcionários da E..., S.A. que a operavam, notaram que a mesma não estava a funcionar corretamente.

10. A E..., S.A. solicitou o apoio do fabricante da máquina, que constatou que o equipamento estava “empenado” e que tinha sofrido uma vibração que fez com que o sistema de leitura ótica no seu interior tivesse sido danificado.

11. No dia e hora supra referidos, o manobrador da R, ao efetuar as operações necessárias para levantar a máquina da sua estrutura metálica, verificou que esta estava a oferecer resistência do lado da saída do material e, como tal, forçou o seu desencaixe.

12. Com o referido desencaixe, a máquina deu um solavanco, o que provocou um embate entre os cadeados (correntes) e a caixa dos scanners que a compõem, o que resultou no estrago que o fabricante constatou.

13. Feito o diagnóstico do estrago, a E..., S.A. recebeu um orçamento para a reparação da máquina que se fixou no valor de € 178.000,52 (cento e setenta e oito euros e cinquenta e dois cêntimos), montante que teria de despender para proceder à reparação.

14. A máquina apresenta sensibilidade ao nível dos scanners de leitura ótica.

15. Na operação de remoção realizada pela R foi usada uma grua PM 65026 SP PT.

16. Na operação de remoção da máquina em causa foram utilizadas correntes.

17. O processo de remoção da referida máquina foi acompanhado por funcionários da E..., S.A..

18. Os colaboradores da E..., S.A. prepararam a máquina para a sua movimentação pela grua, desaparafusando-a da sua estrutura metálica.

19. O funcionário da R, manobrador da grua, tinha completado com aproveitamento curso de formação profissional de manobradores de máquinas em obras.

20. Por sentença de 22 de dezembro de 2021 foi a A condenada a pagar à E..., S.A. a referida quantia de € 177.650,52 acrescida de juros desde a citação até integral pagamento, tendo, em consequência da procedência deste pedido principal, sido a R absolvida do pedido subsidiário contra si formulado.

21. No 12 de Janeiro de 2023 a A pagou, através de transferência bancária, à E..., S.A. a quantia total de € 204.762,65 (onde se incluía o montante de € 3.672,00 de custas de parte).

22. A A pagou ainda à R, através de transferência realizada no dia 18.01.2023, a quantia de € 2.448,00 referente a custas de parte.

23. A R, à data dos factos, havia transferido a responsabilidade civil emergente de eventuais danos provocados no exercício da sua atividade para a Liberty Seguros, S.A., através do contrato de seguro titulado pela apólice nº .76/......85/001, nos termos das condições particulares e gerais que se encontram junto aos autos.

24.Na ação que correu termos sob o nº 822/21.9T8GMR foram partes E..., S.A., na qualidade de A, e Victoria – Seguros, S.A. e Martinscargo, Transporte de Mercadorias, Lda., ambas na qualidade de Rs.

25. Nessa ação foi formulado:

a) a título principal, pedido de condenação de Victoria – Seguros, S.A. a indemnizar a A no pagamento da quantia de € 177 650,52 para reparação dos danos patrimoniais, acrescida de juros desde a citação;

b) a título subsidiário, pedido de condenação de Martinscargo, Transporte de Mercadorias, Lda. a indemnizar a A no pagamento da quantia de € 178 000,00 para reparação dos danos patrimoniais, acrescida de juros desde a citação;

26. Na ação nº 822/21.9T8GMR, a A E..., S.A. alegou que contratou a R Martinscargo, Transporte de Mercadorias, Lda. para efetuar a carga de equipamento que ia ser transportado, a qual, na execução deste serviço, provocou danos a esse equipamento, cuja reparação custa a quantia de € 178 000,00.

Pretende ser indemnizada dos danos sofridos, a título principal, pela R Victoria – Seguros, S.A., com quem celebrou um contrato de seguro de transporte terrestre de mercadorias, ou, a título subsidiário, pela R Martinscargo, Transporte de Mercadorias, Lda., a qual foi a causadora dos danos no equipamento.

27. A R Martinscargo – Transporte de Mercadorias, Lda. interpôs recurso da sentença referida em 20, proferida no âmbito do processo nº 822/21.9T8GMR.

28. Em 23.5.2022, foi proferida decisão singular no processo nº 822/21.9T8GMR (cujo teor integral se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais) no sentido de que “não pode ser admitido o recurso da Martins Cargo – Transporte de Mercadorias, Ldª, dado que foi absolvida do pedido contra si formulado e a invocação da eventual existência de caso julgado numa hipotética futura ação de regresso, não integra a previsão do nº 2 do art. 631º do CPC”.

29. A R Martinscargo – Transporte de Mercadorias, Lda. apresentou reclamação para a conferência da referida decisão singular e, em 22.9.2022, foi proferido acórdão no processo nº 822/21.9T8GMR (cujo teor integral se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais), o qual decidiu “considerar que a reclamante carece de legitimidade para recorrer da sentença proferida pela 1ª instância e, assim, desatender a reclamação apresentada”.


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B) O DIREITO APLICÁVEL.

O conhecimento deste Supremo Tribunal, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto da revista, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2, 639.º 1 e 2, do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso), observando, em especial, o estabelecido nos art.ºs 682.º a 684.º, do C. P. Civil.

Atentas as conclusões da revista, acima descritas, e o acórdão da Formação que a admitiu como revista excecional a questão submetida ao conhecimento deste Supremo Tribunal pela Recorrente consiste, tão só, em saber se a matéria de facto declarada provada no processo n.º 822/21.9T8GMR se encontra provada nos presentes autos, por força da autoridade do caso julgado, sendo que naquele primeiro processo a R foi absolvida do pedido e por isso lhe não foi admitido recurso de apelação da decisão em matéria de facto.

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Conhecendo.

Relativamente ao processo n.º 822/21.9T8GMR, foi junta a estes autos cópia da sentença final proferida nessa ação e do acórdão da Relação proferido em sede de recurso, que confirmou aquela sentença e por despacho do relator foi facultada a consulta eletrónica desse processo.

Essa ação foi interposta pela sociedade E..., S.A., contra as sociedades Victoria – Seguros, S.A. (1.ª R), e Martinscargo, Transporte de Mercadorias, Lda.(2.ª R), pedindo, a título principal, a condenação da Victoria – Seguros, S.A., a indemnizar a A no pagamento da quantia de € 177 650,52 para reparação dos danos patrimoniais, acrescida de juros desde a citação e, a título subsidiário, a condenação de Martinscargo, Transporte de Mercadorias, Lda., a indemnizar a A no pagamento da quantia de € 178 000,00 para reparação dos danos patrimoniais, acrescida de juros desde a citação.

Nesse processo n.º 822/21.9T8GMR, por sentença de 22-12-2021, foi a aqui A Victoria – Seguros, S.A., condenada a pagar à sociedade E..., S.A. a referida quantia de € 177 650,52 acrescida de juros desde a citação até integral pagamento, tendo, em consequência da procedência desse pedido principal, sido a aqui R Martinscargo, Transporte de Mercadorias, Lda., absolvida do pedido subsidiário contra si formulado.

Interposto recurso de tal decisão pela aqui A, o Tribunal da Relação de Guimarães confirmou integralmente a sentença por acórdão proferido em 30-11-2022.

Resultaram provados os seguintes factos nesta ação n.º 822/21.9T8GMR:

1) A A celebrou com a R o acordo de seguro de transporte terrestre de mercadorias titulado pela apólice n° ......59.

2) Nas condições particulares da apólice referida em 1) consta o seguinte:

"Âmbito de cobertura

Viagens terrestres onde se encontravam os equipamentos e toda a mercadoria a transferir, até ao local da nova fábrica/armazém -Transportes V..., Lda e Transportes M...

(...)

Coberturas

Cláusula de Transportes Terrestres e Aéreos

Danos à carga em. consequência de operações de carga e descarga - Desde que efetuadas por equipamentos adequados e com acompanhamento do segurado."

3) Ficou estabelecida uma franquia a cargo da segurada no valor de €350,00.

4) No dia 25.01.2019, pelas 20 horas, a A procedeu ao transporte, entre as unidades industriais supra identificadas em 1), de uma máquina designada de Titech Flakesorter 1000 Subassy.

5) Para o efeito, acordou com a empresa Transportes V..., Lda, que esta, contra o pagamento de um preço, efetuaria esse transporte, e que efetivamente fez.

6) A A acordou igualmente com a 2ª R, contra o pagamento de um preço, que esta empresa efetuasse o serviço de remoção do equipamento com vista ao seu transporte para o camião que ia efetuar o transporte.

7] Para efetuar esse serviço, a 2ª R providenciou um camião grua e um. manobrador.

8) A 2.ª R, no âmbito do acordo referido em 7), retirou a máquina identificada em 5) do local onde se encontrava e colocou-a no solo.

9) Efetuado o transporte, a máquina aguardou ainda uns dias para ser novamente montada.

10) PoRm, ao iniciar a sua atividade, os funcionários da A que a operavam, notaram que a mesma não estava a funcionar corretamente.

11) A A solicitou o apoio técnico do fabricante da máquina, que constatou que o equipamento estava "empenado" e que tinha sofrido uma vibração que fez com que o sistema de leitura ótica no seu interior tivesse sido danificado.

12) No dia e hora supra referidos, o manobrador da 2.ª R, ao efetuar as operações necessárias para levantar a máquina da sua estrutura metálica, verificou que esta estava a oferecer resistência do lado de saída do material e, como tal, forçou o seu desencaixe.

13) Com o referido desencaixe, a máquina deu um solavanco, o que provocou um embate entre os cadeados (correntes) e a caixa dos scanners que a compõem, o que resultou no estrago que o fabricante constatou.

14) Feito um diagnóstico do estrago, a A recebeu um orçamento para a reparação do equipamento, que se fixou no valor de €178.000,52 (cento e setenta e oito euros e cinquenta e dois cêntimos), montante que a A terá que despender para proceder à reparação.

15) Na operação referida em. 13), foi usada uma grua de modelo PM 65026 SP PT, com o n.º de série GA....22.

16) O processo mencionado em 13) foi acompanhado por funcionários da A.

17) O funcionário da 2ª R, manobrador da grua, tinha completado com aproveitamento curso de formação profissional de manobradores de máquinas em. obras.

18) Participado o sinistro à 1.ª R, esta declinou a sua responsabilidade nos termos da carta cuja cópia consta de 16/verso.

19) Quando celebrou o acordo de seguro mencionado em 1), a A indicou como entidades que efetuariam o transporte a Transportes V..., Lda, e ainda a Transportes M....

20) Fê-lo convicta de que o referido acordo de seguro cobriria igualmente o serviço de carga e descarga, quer este fosse efetuado pelos seus próprios meios, ou mediante a contratação de uma terceira entidade para o efeito.

21) No procedimento enunciado em 13), foram utilizadas correntes.

22) A máquina apresenta sensibilidade ao nível dos scanners de leitura ótica.

23) Os colaboradores da A prepararam, a máquina para a sua movimentação pela grua, desaparafusando-a da sua estrutura metálica.

Na fundamentação de direito da sentença proferida no processo n.º 822/21.9T8GMR, foi afirmado que “a presente ação é de responsabilidade contratual, tendo com causa de pedir a celebração dum contrato de seguro (…)”.

Na mesma fundamentação, foi apreciado o regime jurídico do contrato de seguro e em especial o conteúdo do contrato celebrado entre a A dessa ação E..., S.A. e a Seguradora Victoria – Seguros, S.A., de modo a determinar qual o risco coberto por esse contrato, recorrendo-se para o efeito às regras legais de interpretação dos negócios jurídicos e às normas que disciplinam o conteúdo do contrato de seguro, concluindo-se que as partes incluíram no respetivo objeto o risco decorrente das operações de carga e de descarga que “se situa a montante e a jusante do próprio recebimento, transporte e entrega da mercadoria”, o que era permitido no âmbito da liberdade contratual das partes. Mais se concluiu que “as operações de carga envolvem os atos materiais de deslocação da mercadoria a transporte desde o seu local original até ser acondicionada no meio de transporte pelo qual será levado ao seu destino”. E que “os danos foram provocados na máquina durante o processo de içamento da mesma desde o local que ocupava no parque industrial que a A estava a desmantelar, sendo que a razão da deslocação teve a ver, não com a mudança da situação espacial do equipamento dentro das instalações, mas com a finalidade de a carregar no veículo que a iria transportar para um novo destino.”

Não se tendo apurado que a sociedade E..., S.A. tenha concorrido para a verificação dos danos, pois não se provou que os equipamentos utilizados na movimentação da máquina (correntes metálicas) não fossem as mais adequadas, e estando o sinistro coberto pelo âmbito material do contrato de seguro celebrado entre as partes, concluiu-se que a R seguradora estava obrigada ao pagamento do montante necessário à reparação dos danos, descontado do valor da franquia, na quantia fixada no dispositivo da sentença.


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Nos presentes autos, a A Victoria – Seguros, SA, pede a condenação da R a pagar-lhe a quantia de € 207.210,65, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de juros comerciais de 7%, desde a citação até integral pagamento, fundamentando o seu pedido no n.º 1 do artigo 136.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, segundo o qual a seguradora que tiver pago a indemnização fica sub-rogada, na medida do montante pago, nos direitos do segurado contra o terceiro responsável pelo sinistro e alegando para o efeito que a responsável pelo sinistro foi a aqui R, com quem a segurada da A, a sociedade E..., S.A., celebrou contrato pelo qual a R se obrigava, contra o pagamento de um preço, a efetuar o serviço de remoção de um equipamento industrial (máquina designada por “Titech Flakesorter 1000 Subassy”) da unidade onde a mesma se encontrava localizada, para um camião que iria efetuar o transporte para outra unidade industrial.

De acordo com a A seguradora, o manobrador da R, ao efetuar as operações necessárias para levantar a máquina da sua estrutura metálica, verificou que esta estava a oferecer resistência do lado da saída do material e, como tal, forçou o seu desencaixe, provocando um solavanco na máquina, o que, por sua vez, provocou um embate entre os cadeados (correntes) e a caixa dos scanners que a compõem, o que fez com que o sistema de leitura ótica no interior da máquina tivesse sido danificado.

No acórdão recorrido, confirmando a decisão proferida pela 1.ª instância, a Relação decidiu que “tendo já sido apreciada e decidida a dinâmica do sinistro e os danos existentes na ação nº 822/21.9T8GMR, em que foram intervenientes a segurada E..., S.A., nos direitos da qual a Victoria – Seguros, S.A. se encontra legalmente sub-rogada, e a R Martinscargo, Transporte de Mercadorias, Lda., enquanto terceira responsável pelo sinistro, esta questão prejudicial não pode ser novamente discutida numa outra ação, sob pena de violação da autoridade do caso julgado. De outro modo, estariam irremediavelmente comprometidas as razões de certeza, segurança jurídica e prestígio dos tribunais que justificam a existência do caso julgado, na sua vertente positiva, de autoridade de caso julgado.”

Acrescentou que “a autoridade do caso julgado não se limita à decisão, antes abrangendo a matéria de natureza prejudicial que foi apreciada e decidida na ação nº 822/21.9T8GMR, pelo que abarca a factualidade relativa à dinâmica do acidente e danos sofridos.” Pois “não se compreenderia que na presente ação em que as partes intervêm na mesma qualidade jurídica, sendo a aqui A por via de sub-rogação legal da sua segurada, se pudesse decidir que o sinistro ocorreu de maneira diferente daquela que foi considerada como provada na ação nº 822/21.9T8GMR.”

E concluiu que “a decisão proferida na ação nº 822/21.9T8GMR.G1 tem autoridade de caso julgado relativamente aos presentes autos, o que impõe que a factualidade relativa à dinâmica do sinistro e danos causados que aí foi considerada como provada se tenha que dar como provada, nos mesmos termos, nos presentes autos.”.


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Pretende a recorrente, invocando uma decisão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 12/07/2023, que o caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os fundamentos de facto, por si mesmos, ao contrário do que se entendeu erradamente no acórdão recorrido de que a autoridade do caso julgado incide também sobre os fundamentos de facto de uma decisão, que assim podem valer noutro processo, nos mesmos termos.

No entendimento da recorrente, é a decisão do Tribunal da Relação do Porto que melhor se coaduna e aplica o disposto no art.º 580.º do C. P. Civil, a respeito da vertente positiva da autoridade de caso julgado, na medida em que entende que não pode ser admissível que a 1.ª instância se limite a transcrever a matéria de facto provada no âmbito de outro processo, sem proceder à análise crítica e apreciação da prova.


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Como salienta o acórdão proferido pela Formação, que admitiu o presente recurso de revista excecional, tem sido entendimento dominante da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que o âmbito objetivo do caso julgado se estende à apreciação das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão, ou seja, os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado e, por isso, não valem por si mesmos quando desligados da respetiva decisão, valendo apenas enquanto fundamentos da decisão da ação em que foram adquiridos e em conjunto com essa mesma decisão – Cfr., entre outros, por mais recentes, os Acórdãos do STJ de 28-01-2025 (Revista n.º 2216/20.4T8CSC.L1.S1 – 1.ª Secção, ainda não publicado), de 29-10-2024 (Revista n.º 2985/20.1T8FNC.L1.S1, 1.ª Secção), de 19-09-2024 (Revista n.º 3042/21.9T8PRT.S2 - 2.ª Secção), de 30-04-2024 (Revista n.º 5765/03.5TVLSB-A.L2.S1 - 6.ª Secção), de 11-01-2024 (Revista n.º 888/20.9T8PVZ.P1.S1 - 7.ª Secção) e de 11-07-2023 (Revista n.º 2816/20.2T8BRG.G2.S2 - 1.ª Secção), estes últimos publicados em https://juris.stj.pt/.

Como consta na fundamentação do primeiro acórdão citado: “o caso julgado abrange todas as questões apreciadas que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença. Realmente, como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado, não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão. Ou noutra formulação: os pressupostos da decisão são cobertos pelo caso julgado enquanto pressupostos da decisão, ficando fora do caso julgado tudo o que esteja contido na sentença, mas que não seja essencial ao iter iudicandi”.

Neste sentido refere Miguel Teixeira de Sousa1 que “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.”.

No caso sub judice, o entendimento sufragado no acórdão recorrido não encontra sustentação no conteúdo da decisão proferida no processo n.º 822/21.9T8GMR.G1.

Nessa ação n.º 822/21.9T8GMR.G1, a aí R Martinscargo – Transporte de Mercadorias, Lda. contestou a ação, admitindo que a A lhe solicitou a prestação de serviços de aluguer de um camião grua com motorista, ao que a mesma acedeu (art.º 19.º da contestação apresentada nesses autos, consultada via Citius), mas impugnou que tenha sido o motorista da R Martinscargo a executar tarefas de desmontagem da máquina ou qualquer outro serviço de preparação desta para a sua movimentação, mormente a colocação de correntes, limitando-se a operar os comandos da grua (art.º 30.º da contestação). Alegou a referida R, ao invés, que foram os colaboradores da sociedade E..., S.A. que subiram para o local onde se encontrava a máquina a transportar, onde a prepararam para a movimentação pela grua, designadamente desaparafusando-a da estrutura metálica, tendo colocado umas correntes à volta da máquina, que uniram à extremidade da grua (art.º 24.º da contestação). Mais alegou que foram esses colaboradores da E..., S.A. que solicitaram ao motorista da grua as correntes (art.º 25.º), por entenderem serem as mesmas o elemento idóneo para a operação de movimentação da máquina pela grua, uma vez que, ao contrário das cintas, que são estáticas, as correntes permitem a regulação em altura (art.º 26.º). Alegou ainda que foram os mesmos colaboradores daquela sociedade que ligaram as correntes à grua e deram indicação ao motorista da R Martinscargo, que se encontrava junto da grua a operar os comandos, para manusear a grua e movimentar a máquina daquele local superior para o solo, o que este fez (art.º 27.º).

A mesma R impugnou ainda nesse articulado que a máquina objecto de movimentação pela grua que alugou à sociedade E..., S.A. tenha “oferecido resistência” ou tenha dado “ um solavanco”, em consequência de alguma operação da própria grua (art.º 33.º), porque “do ponto de vista técnico, a grua é um equipamento que não permite ter qualquer sensibilidade, ou seja, quando a grua começa a movimentar um determinado objeto, se, por algum motivo, não conseguir efetuar a operação de manuseamento, a própria grua tem um sensor que, por razões de segurança, emite um disparo e bloqueia automaticamente, não permitindo nem a continuação da operação, nem qualquer “esforço” do objeto, enquanto não for resolvido o impedimento que causou o bloqueio” (art.º 34), sendo que na situação concreta não ocorreu qualquer situação que tivesse despoletado o bloqueio da grua (art.º 35.º).

Acrescentou também que a máquina permaneceu no local onde a grua a colocou durante cerca de uma semana, período após o qual foram os funcionários da A que, com recurso a empilhadores, carregaram a máquina para a colocar na entrada da fábrica, para posteriormente a colocarem dentro do camião de transporte, procedimento esse a que a R Martinscargo foi alheia e no qual não teve qualquer intervenção (art.ºs 36.º e 37.º).

Em suma, a referida R, no processo n.º 822/21.9T8GMR.G1, além de impugnar a própria existência de algum dano na máquina, por o desconhecer em absoluto, alegou que, ainda que tal dano existisse, não foi provocado durante a operação de movimentação da máquina da estrutura superior para o nível do solo.

A posição assumida pela R Martinscargo no processo n.º 822/21.9T8GMR.G1 no que respeita à responsabilidade pela ocorrência de dano na máquina detida pela sociedade E..., S.A. e à própria caracterização desse dano é totalmente similar à posição assumida nos presentes autos, como decorre da simples leitura dos art.ºs 13.º e seguintes da contestação aqui apresentada pela mesma R.

No referido processo n.º 822/21.9T8GMR.G1, o Tribunal condenou a aqui A no pagamento de uma indemnização com base no contrato de seguro que a mesma celebrou com a sociedade E..., S.A., concluindo-se que o sinistro estava coberto pelo âmbito material do contrato, não se tendo apurado que a segurada tenha concorrido para a verificação dos danos, pelo que estava a aqui A obrigada ao pagamento do montante necessário à sua reparação, descontado do valor da franquia, na quantia fixada no dispositivo da sentença.

Em trecho algum da fundamentação de direito dessa sentença e do posterior acórdão da Relação que a confirmou, é feita qualquer alusão à responsabilidade da aqui R na produção do sinistro, pois tal matéria embora integrasse o objeto do litígio dessa ação, não chegou sequer a ser apreciado porque o pedido formulado contra a aqui R foi formulado a título subsidiário e não foi conhecido.

Tendo procedido integralmente o pedido principal, ficou prejudicada a apreciação da responsabilidade da aqui R na produção do sinistro.

Assim, apesar de terem sido declarados provados factos nessa ação n.º 822/21.9T8GMR.G1, relativos à conduta do colaborador da R na operação de remoção da máquina e relativos ao nexo causal entre essa conduta e a produção dos danos aqui em causa, tais factos não fundamentaram a decisão final, uma vez que respeitavam à responsabilidade civil da aqui R e o conhecimento de tal questão ficou prejudicada nos termos acima expostos.

Ou seja, os factos provados no processo n.º 822/21.9T8GMR.G1, relativos à responsabilidade da aqui R na produção dos danos sofridos pela sociedade E..., S.A., que as instâncias consideraram que se impõem na presente ação por força do instituto do caso julgado e que por isso integram o elenco de factos assentes, apesar da R os ter impugnado no seu articulado de defesa, não constituíram qualquer antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão proferida no processo n.º 822/21.9T8GMR.G1.

Como acima referimos, essa decisão final baseou-se no teor do contrato de seguro e na conclusão que o sinistro (independentemente de saber se foi a aqui R a provocá-lo ou não) estava incluído na respetiva cobertura, não havendo qualquer culpa do segurado na ocorrência dos danos.

Realce-se que da conclusão de que a segurada E..., S.A. não teve qualquer responsabilidade na produção dos danos por si sofridos não pode extrapolar-se que essa responsabilidade deve ser atribuída à aqui R ou a qualquer outra entidade.

É assim manifesto que no referido processo n.º 822/21.9T8GMR.G1 não se apreciou a responsabilidade civil da aqui R, pelo que a decisão nele proferida quanto à ação da R se não impõe nesses autos por força do instituto do caso julgado.

Tal só poderia acontecer se a aqui R tivesse efetivamente sido condenada naquela ação com base na sua responsabilidade pela ocorrência do sinistro e na produção dos danos que a aqui A ressarciu à sua segurada, o que manifestamente não sucedeu.

Os factos pertinentes em causa, relativos à eventual prática de atos ilícitos e culposos por um colaborador da R, bem como ao nexo causal entre esses atos e os danos provocados, por não terem constituído fundamento da decisão final proferida no processo n.º 822/21.9T8GMR.G1, não podem valer por si mesmos, ou seja, não são abrangidos pelo trânsito em julgado daquela decisão final, pois não integram o silogismo judiciário que conduziu àquela decisão, não foram factos essenciais ao “iter iudicandi”, utilizando a mesma expressão do acórdão do STJ de 28-01-2025 acima citado.

No recurso de apelação interposto pela R Martinscargo, Lda., no processo n.º 822/21.9T8GMR.G1, foi impugnada a decisão sobre a matéria de facto, quanto aos factos provados indicados sob os nºs 10, 11,12, 13, 14, 21, 22 e 23 da sentença de 1.ª instância, entendendo a R que os mesmos deviam ser declarados como não provados.

Estava em causa a seguinte factualidade:

10) Porém, ao iniciar a sua atividade, os funcionários da A que a operavam, notaram que a mesma não estava a funcionar corretamente.

11) A A solicitou o apoio técnico do fabricante da máquina, que constatou que o equipamento estava “empenado” e que tinha sofrido uma vibração que fez com que o sistema de leitura ótica no seu interior tivesse sido danificado, e

12) No dia e hora supra referidos, o manobrador da 2.ª R, ao efetuar as operações necessárias para levantar a máquina da sua estrutura metálica, verificou que esta estava a oferecer resistência do lado de saída do material e, como tal, forçou o seu desencaixe.

13) Com o referido desencaixe, a máquina deu um solavanco, o que provocou um embate entre os cadeados (correntes) e a caixa dos scanners que a compõem, o que resultou no estrago que o fabricante constatou.

14) Feito um diagnóstico do estrago, a A recebeu um orçamento para a reparação do equipamento, que se fixou no valor de € 178.000,52 (cento e setenta e oito euros e cinquenta e dois cêntimos), montante que a A terá que despender para proceder à reparação.

21) No procedimento enunciado em 13), foram utilizadas correntes.

22) A máquina apresenta sensibilidade ao nível dos scanners de leitura ótica.

23) Os colaboradores da A prepararam a máquina para a sua movimentação pela grua, desaparafusando-a da sua estrutura metálica.

O recurso de apelação foi recebido em 1.ª instância, mas não foi admitido pela Relação com fundamento em que a R Martinscargo carecia de legitimidade para recorrer por ter sido absolvida do pedido contra si formulado e a invocação da eventual existência de caso julgado numa hipotética futura ação de regresso, não integrava a previsão do n.º 2 do art.º 631.º do C. P. Civil.

É, assim, manifesto que no processo n.º 822/21, a aqui R Martinscargo não pôde exercer cabalmente o seu direito de defesa ao lhe ter sido coarctado o direito de impugnar os pontos da matéria de facto provada em 1.ª instância acima referidos, referentes à invocada responsabilidade dessa R pela ocorrência dos danos sofridos pela sociedade E..., S.A..

Não podemos, pois, deixar de concluir que a decisão proferida na ação n.º 822/21 só se impunha nos presentes autos, por força do instituto do caso julgado, se a Recorrente tivesse tido possibilidade de exercer o seu direito de defesa no âmbito do processo n.º 822/21, máxime, a faculdade de recorrer da decisão sobre a matéria de facto na parte que lhe era desfavorável, o que não aconteceu.

Como consta na fundamentação do acórdão do STJ de 12-12-2023 (Revista n.º 141/21.0YHLSB-A.L1.S1), acima citado, “a vinculação a uma decisão transitada em julgado exige, todavia, que os titulares de relações juridicamente afectáveis tenham tido a oportunidade de nela influir: é este o fundamento do princípio do contraditório, princípio fundamental do processo (cfr. artigo 3.º do Código de Processo Civil e n.º 4 do artigo 20.º da Constituição). É o princípio do contraditório que justifica a oponibilidade relativa do caso julgado, não se encontrando fundamento material para distinguir, quanto a este ponto, a oponibilidade do caso julgado enquanto releva numa ação subsequente a título apenas prejudicial ou como causa impeditiva da repetição de acções. Embora não seja uma interpretação isenta de divergências, entende-se que o princípio do contraditório exige que a oponibilidade da força e autoridade do caso julgado pressuponha, portanto, a identidade de sujeitos.”.

Ora, no caso sub judice a Recorrente, apesar de ter participado na audiência de discussão e julgamento, não teve o ensejo de influir/participar na formação da decisão final proferida no processo n.º 822/21 uma vez que foi absolvida do pedido subsidiário, cujo conhecimento ficou prejudicado com o seguinte fundamento “..procedendo a ação contra a 1.ª Ré, resulta prejudicada a apreciação da causa no que se reporta à 2.ª Ré, contra quem o pedido foi formulado a título subsidiário”.

Não obstante essa absolvição, porventura antecipando a presente ação, a R/recorrente interpôs recurso de apelação da sentença, impugnando a decisão em matéria de facto relativamente aos factos nela declarados provados sob os n.ºs 10, 11, 12, 13, 14, 21, 22 e 23, pedindo que a mesma fosse alterada e esses factos declarados não provados, o qual não foi admitido, como acima consta.

Nestas circunstâncias processuais, esses factos, grosso modo, relativos a eventual responsabilidade da R/recorrente pelo evento danoso, não podem ser considerados provados nestes autos por força do instituto do caso julgado formado com a decisão proferida no processo n.º 822/21.

E assim sendo, a causa não se encontrava em condições de ser decidida no despacho saneador, como previsto na al. b), do n.º 1, do art.º 595.º, do C. P. Civil, antes devendo prosseguir para apuramento da factualidade pertinente e decisão de direito.

Procede, pois, a questão única da revista, devendo revogar-se o acórdão recorrido e com ele o despacho saneador-sentença que confirmou e ordenar-se o prosseguimento dos autos para apuramento da matéria de facto pertinente e aplicação do direito.


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3. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido, com ele o despacho saneador-sentença que confirmou e ordenando-se o prosseguimento dos autos para apuramento da matéria de facto pertinente e aplicação do direito.,

Custas pela Recorrida, por lhes ter dado causa, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2, do art.º 527.º, do C. P. Civil

Lisboa, 03-04-2025

Orlando Santos Nascimento (relator)

Fernando Baptista de Oliveira

Catarina Serra

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1. (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., 1997, págs. 578 e 579).