Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
180/23.7GABBR-A.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: DECISÃO SINGULAR
Data da Decisão Sumária: 03/08/2025
Votação: - -
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Decisão: ATRIBUIR, NOS TERMOS DO ART. 21.º N.º 2 TAMBÉM DO CPP, A COMPETÊNCIA TERRITORIAL PARA A APRECIAÇÃO DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO E SE ADMITIDA A REALIZAÇÃO DA MESMA, AO JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ ... .
Sumário :
I. A recusa de restituição é “uma das mais frequentes – e também mais concludentes – manifestações externas da apropriação” ilegítima de coisa alheia que tenha entrado na posse ou detenção do agente por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou de qualquer outra maneira independente da sua vontade.

II. Na determinação da competência territorial o tribunal tem de cingir-se aos termos da acusação.

III. Competente para a instrução de crime de localização desconhecida é o juízo de instrução criminal com jurisdição na área onde primeiro tiver havido notícia do crime.

IV. A notícia do crime adquire-se com a abertura do inquérito nos serviços do Ministério Público.

Decisão Texto Integral:
Conflito negativo de competência territorial


DECISÃO:


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a) relatório:

Dos elementos que instruem este procedimento incidental (que inclui cópia do processo principal), extrai-se, com relevância para a decisão a proferir aqui, que: ---

1. Mediante denúncia apresentada por AA, foi aberto, em 7.09.2023, nos serviços do Ministério Público de Caldas da Rainha o inquérito com o NUIPC 180/23.7GABBR.

2. Encerrado o inquérito, O Ministério Público deduziu acusação contra a arguida BB imputando-lhe os factos na mesma narrados e, com isso, a prática de um crime de apropriação ilegítima p. e p. pelo art.º 209.º n.º 1, do Cód. Penal.

3. Tendo sido requerida instrução pela arguida, o processo foi remetido ao Juízo de Instrução Criminal de Leiria – com distribuição ao Juiz ....

4. No requerimento de abertura da instrução, a arguida deduziu a incompetência territorial daquele tribunal, pugnando por que fosse deferida ao Juízo de instrução criminal de Loures.

5. O Exmo. Juiz no Juízo de instrução criminal de Leiria -juiz ..., por despacho de 31.10.2024, afirmando que “a quantia foi enviada para a conta da arguida em Odivelas, local onde o facto se consumou uma vez que no espaço de domínio da arguida” , invocando o disposto no art.º 19º do CPP, declarou a incompetência territorial daquele tribunal para a fase preliminar de instrução.

6. Competência relativa que atribuiu ao Juízo de instrução criminal de Loures, ordenando que o processo se lhe remetesse.

7. Recebidos aí os autos com distribuição ao Juiz ..., a Exma. Juíza, por despacho de 14.11.2024, verificando que a acusação não contém “qualquer elemento que permita concluir qual o local onde o crime de apropriação ilegítima, p e p pelo art. 209°, n° 1 do Código Penal, pelo qual a arguida vem acusada, se consumou, ou seja, em que local se verificou a recusa por parte da arguida, em devolver à ofendida a quantia em causa”, invocando o disposto no art. 21º n.º 1, do CPP, declarou a incompetência territorial desse o tribunal para a realizar a requerida instrução.

8. Competência relativa que atribuiu ao Juízo de instrução criminal de Leiria, por ter sido na sua circunscrição que foi adquirida a notícia do crime.

9. E, deparando-se com o conflito negativo de competência territorial assim surgido no processo, suscitou a resolução ao Exmo. Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.

10. Que, por despacho de 9.12.2024, se declarou hierarquicamente incompetente, remetendo o processo ao Supremo Tribunal de Justiça.

b) parecer do Ministério Público:

Na vista a que alude o art.º 36.º n.º 1 do CPP, o Digno Procurador-Geral Adjunto, em douto parecer, expende que “percorrida a acusação deduzida nos autos, a mesma não comporta qualquer elemento que permita concluir onde ocorreu a consumação do crime imputado à arguida” e que “é com base no seu conteúdo que esta questão tem de ser apreciada”, conclui que, no caso, o critério determinativo da competência é o estabelecido no art.º 21.º n.º 2 do CPP, pronunciando-se no sentido de o conflito se resolver “com a atribuição da competência para a instrução a ter lugar no processo n.º 180/23.7GABBR, ao Juízo de Instrução Criminal de Leiria, Juiz ..., por ser o territorialmente competente para o efeito”.

a. c) a arguida, notificada nos termos do art.º 36.º do CPP, nada veio dizer ou acrescentar ao que já alegou no RAI.

  d) o conflito:

Conforme estabelece a lei, a incompetência territorial pode ser deduzida pelos sujeitos processuais, podendo o tribunal pode conhecer oficiosamente da sua própria competência e, na fase preliminar de instrução, pode declarar-se incompetente em razão do território, até ao início do debate instrutório – art. 32º n.º 2 al:º a) do CPP.

No caso, a declaração de incompetência foi deduzida pela arguida e conhecida e tempestivamente declarada pelos tribunais em conflito.

Porque os tribunais em conflito, - embora sejam de 1ª instância -, pertencem a circunscrição de diferente Relação – um à de Coimbra, o outro à de Lisboa -, é ao Presidente da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça que, nos termos do art.º 11º n.º 6, al.ª a) do CPP, compete resolver o vertente conflito negativo de competência territorial.

Os tribunais em dissídio invocam diferentes normas adjetivas para amparar a declaração da respetiva incompetência em razão do território: o de Leiria o art.º 19º, o de Loures convoca o art.º 21º n.º 1, ambos do CPP.

a. e) apreciação:

A arguida está acusada neste processo de ter cometido um crime consumado de apropriação ilegítima de numerário que foi transferido para conta bancária de que é/era à data titular única, aberta na Caixa Geral de Depósitos.

Crime que, nos termos da acusação, consumou-se quando a arguida não devolveu aquelas quantias, “antes as integrando no seu património e usando-as como se suas fossem, ciente de assim estar a prejudicar a pessoa que as havia transferido”.

A recusa de restituição é “uma das mais frequentes – e também mais concludentes – manifestações externas da apropriação” ilegítima de coisa alheia que tenha entrado na posse ou detenção do agente por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou de qualquer outra maneira independente da sua vontade.

Da acusação – e o tribunal somente a este haverá de cingir-se - não consta a localidade da agência bancária onde a conta da arguida está aberta. Assim como não consta nem a data nem o sítio onde a arguida fez suas aquelas importâncias monetárias ou onde se encontrava quando, instada, recusou devolvê-las.

Omissão que, cingindo-nos ao libelo acusatório, não permite determinar a circunscrição territorial onde o imputado crime de branqueamento se consumou.

Assim, não resta senão concluir que, dos termos da acusação resulta ser desconhecida a exata localização da consumação do referido crime.

O legislador, prevendo situações como esta, estabeleceu critérios para os crimes que apresentam localização duvidosa ou desconhecida. No primeiro caso, atribuindo competência em razão do território a qualquer desses tribunais, todavia confere preferência ao da área onde primeiramente tiver havido notícia do crime. No segundo caso – crime de localização desconhecida -, atribui a competência ao tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime.

Critério supletivo que está consagrado para diversas situações, como sucede com as normas dos art.ºs 20º n.º 3, 21º n.º 2, 22º n.º 1, 28º al.ª c) e 264º n.º 2, todos do CPP, precisamente para contornar as dificuldades práticas que possam advir da aplicação dos critérios fundados na regra do locus delitci comissi (art.º 19º do CPP) essencialmente destinados a fixar a competência territorial do tribunal para o julgamento de apenas um crime quer a consumação seja instantânea ou ocorra por atos sucessivos ou ainda por atos que se prolongam no tempo.

No caso, dos elementos com que vem instruído o vertente conflito – que inclui cópia do processo principal - apura-se que o processo se iniciou no DIAP de Caldas da Rainha. Foi, pois, aí que primeiramente se noticiaram os factos constitutivos do crime pelo qual a arguida está acusada nos autos. Tendo, portanto, sido na área do Juízo de instrução criminal de Leiria que primeiramente se adquiriu notícia do crime, com a instauração do inquérito (não com a denúncia como é referido por um dos juízes em dissídio, mesmo que, no caso, o resultado fosse o mesmo) nos serviços do Ministério Público.

Destarte, conclui-se que territorialmente competente para tramitar o processo na fase preliminar de instrução requerida pela arguida nos presentes autos é, nos termos do art.º 21º n.º 2 do CPP, o Juízo de instrução criminal de Leiria por ter sido na respetiva circunscrição que o Ministério Público primeiramente adquiriu notícia do crime que na acusação se imputa à arguida.

a. f) decisão:

Assim, de conformidade com o exposto decido, nos termos do art. 36º n.º 1 do CPP, resolver o conflito negativo surgido nos autos, atribuindo, nos termos do art. 21.º n.º 2 também do CPP, a competência territorial para a apreciação do requerimento de abertura da instrução e se admitida a realização da mesma, ao Juízo de instrução criminal de Leiria – Juiz ....


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Comunique-se e notifique-se como determina o art.º 36º n.º 3 do CPP.

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Lx. 8.03.2025

O Presidente da 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça

Nuno Gonçalves