Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P2697
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SORETO DE BARROS
Descritores: SEQUESTRO
ROUBO
RAPTO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ20041117026973
Data do Acordão: 11/17/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Resultando da matéria factual apurada que:
- o arguido (então, já com 40 anos de idade), empreiteiro da construção civil, sabendo que a ora
assistente seria rica (conhecimento que lhe adviera da confiança depositada em seu anterior desempenho profissional), engendrou, perante as dificuldades financeiras da sua empresa, ‘raptar’ o filho da assistente, de 6 anos de idade, exigindo, em troca, €50.0000;
- de gorro na cabeça e sob a ameaça de uma pistola de um punhal, esperou pela assistente, obrigoua a entrar em sua própria casa e, de novo sob ameaça das armas, forçou-a, bem como a mais três mulheres que aí se encontravam, a entrarem numa casa de banho, dizendo-lhes para não saírem dali, não sem antes se ter apropriado do telemóvel da assistente e de algum dinheiro, e de ter arrancado os fios do telefone fixo;
- e, sempre sob ameaça das armas, agarrou no filho da assistente e levou-o, contra vontade, para o Porto, de onde, ao longo de horas, encetou o processo de resgate, actuação esta planeada e preparada com a antecedência de dias; não se descortina nesta conduta do arguido qualquer circunstância (extraordinária ou excepcional) que diminua, por forma acentuada, a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, em termos de preencher o circunstancialismo definido pelo art. 72.º do CP para a atenuação especial da pena: sobreleva, pelo contrário, na consideração global da conduta delituosa, uma obstinada decisão de conseguir avultada quantia em dinheiro por meios flagrantemente ilícitos, decalcada dos filmes de violência, alheia aos valores sociais e às consequências para as vítimas (pessoas que, aliás, conhecia, sendo uma delas criança com 6 anos de idade e, por isso, particularmente vulnerável).
II - E, tendo em consideração que:
- a ilicitude dos vários crimes praticados pelo arguido é elevada, atentos os bens jurídicos protegidos e por ele violados (a maioria de natureza pessoal), sendo de considerar ainda a idade do menor raptado e assim mantido pelo arguido durante um longo período de tempo;
- a culpa é intensa: o arguido agiu sempre no âmbito do dolo directo, querendo os factos e as suas consequências, que conhecia e pretendia deliberadamente;
- o modo de execução dos crimes demonstra preparação e determinação, traduzida em todo o estudo prévio e preparação que levou a cabo, com o fim único de raptar o menor e obter o resgate pretendido;
- as consequências do crime são sempre consideráveis, quer para o equilíbrio emocional e mental das vítimas (nomeadamente do menor), quer para o seu património;
- são ainda repreensíveis os sentimentos manifestados e os fins procurados pelo arguido, que quis obter proventos patrimoniais através de actos condenáveis e censuráveis, pouco frequentes
(felizmente) ainda na nossa sociedade;
- o arguido confessou os factos de forma espontânea (sendo certo que foi surpreendido em flagrante), demonstrando arrependimento, não tem antecedentes criminais, e está familiar e profissionalmente inserido; as penas aplicadas, de 7 meses de prisão por cada um dos 4 crimes de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1, do CP, de 3 anos de prisão pelo crime de roubo p. e p. pelo art. 210.º, n.º 2, al. b), do CP, e de 3 anos e 2 meses de prisão pelo crime de rapto p. e p. pelo art. 160.º, n.º 1, al. c), do CP, e a respectiva pena conjunta, fixada em 4 anos e 6 meses de prisão, mostram-se adequadas, não se satisfazendo, desde logo, as necessidades de prevenção, com a aplicação de qualquer pena inferior às cominadas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA, identificado nos autos, recorre do acórdão de 15.04.04, do Tribunal da Comarca de Oliveira de Azeméis (proc. n.º 479/03), que, em síntese, o condenou por
- 4 crimes de sequestro, previstos no Art. 158º, nº 1, do Código Penal, nas penas de 7 meses de prisão, por cada um desses crimes.
- 1 crime de roubo, previsto no Art. 210º, nº 2, alínea b), do Código Pe­nal, na pena de 3 anos de prisão.
- 1 crime de rapto, previsto no Art. 160º, nº 1, alínea c), do Código Pe­nal, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão.
E, fazendo o respectivo cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
1.1 O recorrente termina a motivação com as seguintes conclusões (que se transcrevem) :
"A Na determinação da medida da pena concretamente aplicada, o Ilustre Tribunal «a quo", não observou todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depõem a favor do recorrente,
Nomeadamente,
B. Os fins que motivaram o crime, passava por grave crise económi­ca.
C. A sua conduta anterior (não tem antecedentes criminais) e posterior ao crime (arrependimento profundo pelos actos praticados).
D. As condições pessoais do agente, o arguido é detentor de uma si­tuação familiar estável e equilibrada
E. Os sentimentos manifestados no cometimento do crime, tratou sempre bem a criança.
F. A sua capacidade para ter e manter uma atitude e conduta lícita, Violando desta forma, as normas previstas no art.°71° do Código Penal.
G. O Tribunal a quo ao não tomar em consideração, na determinação da medida da pena concretamente aplicável, o facto do arguido ter demonstrado arrependimento sincero, nomeadamente a repa­ração até onde era possível dos danos causados, violou o estatu­ído no art.°72.°, n.°2, alínea d). e no art.°73.°,, ambos do Código Penal.
H. Devendo ser aplicada ao arguido a atenuação especial de pena, prevista no art.º 73.° do Código Penal, reduzindo assim, os limi­tes das penas.
I. Consequentemente, ser aplicada uma pena de prisão ao arguido não superior a três anos.
J. Devendo, nos termos do art.º 50.° do Código Penal, a execução da pena ser suspensa, na medida em que atenta a personalidade do arguido, ás condições da sua vida, a sua conduta anterior e pos­terior ao crime e as circunstâncias deste e que a simples censura da prisão, aliás já vivida, enquanto preso preventivo, realizou de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Termos em que, dando provimento ao presente recurso, será feita inteira e sã Justiça . "
1.2 Respondeu o Ministério Público a defender o decidido, fechando com as seguintes conclusões:
"1- Não colhe a pretensão do recorrente quanto à dosimetria da pena aplicada, quer porque se mostra elevada a gravidade dos ilícitos, quer face à existência de necessidades de prevenção geral, pois as expectativas da comunidade ficam goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o vigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, respeitando o limite da culpa.
2- Com efeito, apesar de não terem ocorrido consequências visivelmente graves da prática dos crimes, deve-se salientar que os ilícitos em causa repercutem-se essencialmente, conforme é referido no Acórdão recorrido, ao nível do equilíbrio emocional e mental das vítimas, sendo que essa repercussão terá sido sentida não só pelo menor, mas também pelos familiares que acompanharam a situação até que o mesmo foi libertado.
3- Acresce que também é de relevar o modus operandi do arguido, pois este demonstra, ao contrário do que é por si alegado, que se tratou de um acto previamente reflectido com o fim de obter o resgate pretendido, independentemente das consequências que daí adviessem.
4-Deste modo, entendemos que a pena única aplicada ao arguido, atenta a moldura abstracta de pena de prisão prevista para cada um dos crimes, conjugada com os demais factores valorativos supra referidos para a sua determinação, aliados às exigências de prevenção geral, se mostra adequada e proporcionada à situação concreta. "
1.3 O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, com efeito suspensivo . (fls. 449)
2. Realizada a audiência, cumpre decidir .
2.1 A matéria de facto dada como assente pelo Tribunal de Oliveira de Azeméis é a seguinte :
O arguido, é empreiteiro da construção civil tendo, durante o ano de 2001, feito obras na casa da assistente BB, sita na rua Eça … n° .., 3° …, em Oliveira de Azeméis.
Nessa altura, apercebeu-se que a assistente seria rica, pois tinha uma fábrica de calçado.
Como a sua empresa ... Construções passava por grandes dificuldades económicas, logo se lembrou de se apoderar do filho da assistente, com cerca de 6 anos de idade e só o devolver, depois de a mesma lhe entregar 50.000 euros.
Em execução deste plano, no dia 7 Novembro de 2003 comprou um gorro numa loja na rua de Santa Catarina, no Porto.
No dia 10 Novembro 2003, armou-se com uma pistola de ar comprimido, vestiu uma gabar­dina, disfarçou a cara com o referido gorro e dirigiu-se para Oliveira de Azeméis, no automóvel de matrícula …, até às imediações da casa da assistente.
Cerca das 10h30m, na entrada do prédio onde habitava, foi a assistente surpreendida pelo arguido, que empunhava o revólver de ar comprimido e o punhal, de luvas, gorro, mochila e gabardina.
Nesse momento obrigou a assistente, sob a ameaça daquelas armas, a dirigir-se para sua casa, sita no 3º andar desse prédio, em cujo interior se encontravam CC, DD e EE, além do FF.
Sempre sob a ameaça daquelas armas, obrigou todas elas a entrarem para a casa de ba­nho, não sem antes fazer seus 237,5 euros e um telemóvel AEG, com o n° …, de que a assis­tente era dona, e que contra a sua vontade e sempre sob a ameaça daquelas armas lhe tirou, arran­cando ainda o fio do telefone fixo da casa e dizendo-lhes para não saírem dali.
De seguida, agarrou o menor FF, nascido no dia …de Julho de …, filho da assistente e residente na mesma morada.
Sob ameaça daquelas armas, levou o referido FF consigo para o Porto, contra sua von­tade e de sua mãe, titular do poder paternal em relação ao FF.
Cerca de meia hora depois, utilizando o telemóvel da assistente, ligou para o telemóvel de EE, avó do FF e mãe da BB, com o n° …, exigindo 50.000 euros para devolver o FF.
Desde então, manteve consigo o FF, até cerca das 18h30m, sempre contra a sua von­tade e à força.
Nesse momento, na Igreja Velha de …, no Porto, foi o FF resgatado pela Polícia Judiciária, quando o arguido se aprestava para ir buscar o que pensava ser o resgate, aí momentos an­tes depositado pela mãe do FF, conforme instruções que o arguido lhe ia dando, através de conver­sas mantidas entre aqueles dois telemóveis.
O arguido agiu sempre voluntária e conscientemente, ciente da ilicitude da sua conduta, com o propósito de fazer seus, por meio da força, aqueles objectos, apesar de os saber alheios, de pri­var aquelas pessoas da sua liberdade, sendo uma delas para obrigar à entrega de avultada quantia em dinheiro.
O arguido confessou genericamente os factos e mostra-se sinceramente arrependido.
Não tem antecedentes criminais e é considerado trabalhador e cumpridor.
Casado, tem dois filhos, com 18 e 11 anos de idade, estando o mais novo a seu cargo.
Aufere a quantia média mensal de 800 euros e a mulher aufere o salário mínimo.
Factos não provados:
Cerca das 10h30m, no passeio defronte do prédio onde habitava, foi a assistente sur­preen­dida pelo arguido. "
2.2 Perante esta factualidade, o Tribunal considerou o arguido autor material dos seguintes crimes e impôs-lhe as seguintes penas :
- 4 crimes de sequestro, previstos no Art. 158º, nº 1, do Código Penal, nas penas de 7 meses de prisão, por cada um desses crimes.
- 1 crime de roubo, previsto no Art. 210º, nº 2, alínea b), do Código Pe­nal, na pena de 3 anos de prisão.
- 1 crime de rapto, previsto no Art. 160º, nº 1, alínea c), do Código Pe­nal, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão.
E, procedendo ao respectivo cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2.3 Como resulta das conclusões do recurso - e 'o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação' (Ac. STJ de 13.03.91, proc. 41694/3.ª) - o recorrente não questiona a matéria de facto dada como assente pelo Tribunal de Oliveira de Azeméis, nem a subsunção aí operada .
O seu inconformismo radica, tão só, na medida da pena encontrada para sancionar a sua conduta delituosa (defendendo que a pena devia ser especialmente atenuada e a respectiva execução suspensa) . E a delimitação do recurso, nestes termos, é permitida pelo art.º 403.º, do Código de Processo Penal .
3. Assim, é necessário ter presente o raciocínio elaborado pelo tribunal, sobre este ponto :
(...)
"Da medida da pena:
Nos termos do disposto no Art. 71º do Código Penal, importa agora determi­nar a medida concreta da pena, avaliando os comportamentos de­lituo­sos dentro do respectivo en­quadra­mento jurí­dico-penal, procuran­do dar a res­posta punitiva adequada à medida da culpa, sob uma pers­pectiva ético-retri­butiva, e fa­zendo ainda apelo aos princípios de prevenção geral e especial; de acordo com o Art. 40º, nº 1, do Código Penal a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegra­ção do agente na sociedade; e estipula o nº 2 que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa. Por sua vez, o nº 1 do Art. 71º estatui que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção; e o seu nº 2 manda aten­der àquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime em causa, depuserem a favor ou contra o agente, indicando algumas dessas circunstâncias nas várias alíneas:
A ilicitude dos vários crimes praticados pelo arguido é elevada, atentos os bens jurídicos protegidos e por ele violados (a maioria de natureza pessoal), sendo de considerar ainda a idade do menor raptado e assim mantido pelo arguido durante um longo período de tempo.
A culpa é intensa: o arguido agiu sempre no âmbito do dolo directo, querendo os factos e as suas consequências, que conhecia e pretendia deliberadamente.
O modo de execução dos crimes demonstra preparação e determinação, traduzida em todo o estudo prévio e preparação que levou a cabo, com o fim único de raptar o menor e obter o res­gate pretendido.
As consequências do crime são sempre consideráveis, quer para o equilíbrio emocional e mental das vítimas (nomeadamente do menor), quer para o seu património.
São ainda repreensíveis os sentimentos manifestados e os fins procurados pelo arguido, que quis obter proventos patrimoniais através de actos condenáveis e censuráveis, pouco frequentes (felizmente) ainda na nossa sociedade.
Por outro lado, o arguido confessou os factos de forma espontânea, demonstrando arre­pendimento e não tem antecedentes criminais.
Valora-se também a sua personalidade e a actual situação social, familiar e profissional.
Assim sendo, considerando todo este circunstancialismo, ao arguido caberá, obrigatoria­mente, pena privativa de liberdade; as penas parcelares a aplicar elevar-se-ão acima dos mínimos le­gais e a pena única, reflexo da medida da sua culpa, repre­sentará essa operação.
Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Colectivo em:
1. Absolver o arguido da prática de 1 crime de subtracção de menor, previsto no Art. 249º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
2. Condenar o arguido, AA:
2.1. Pela prática de 4 crimes de sequestro, previstos no Art. 158º, nº 1, do Código Penal, nas penas de 7 meses de prisão, por cada um desses crimes.
2.2. Pela prática de 1 crime de roubo, previsto no Art. 210º, nº 2, alínea b), do Código Pe­nal, na pena de 3 anos de prisão.
2.3. Pela prática de 1 crime de rapto, previsto no Art. 160º, nº 1, alínea c), do Código Pe­nal, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão.
3. Fazendo o respectivo cúmulo jurídico, fica o arguido condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão. "
3.1 Como ficou dito, o recorrente entende que, na determinação da pena, o tribunal não observou todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depõem a seu favor, nomeadamente, que passava por grave crise económica e que agiu em desespero ; que não tem antecedentes criminais; que confessou e manifestou arrependimento profundo, com reparação, até onde era possível, dos danos causados ; que é detentor de uma situação familiar estável e equilibrada e que tratou sempre bem a criança (raptada) .
E pede, a final, a atenuação especial da pena .
3.2 Ora, 'o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena .
Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: (...) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe for possível, dos danos causados .' (art.º 72.º, n.ºs 1 e 2, al. c), do Código Penal)
Numa aproximação doutrinária ao instituto da atenuação especial da pena, diz o Professor Figueiredo Dias: " Ao legislador compete, desde logo, estatuir as molduras penais cabidas a cada tipo de factos que descreve na parte especial do Código Penal e em legislação extravagante, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um daqueles tipos de factos pode presumivelmente assumir. Mas porque o sistema não poderia funcionar de forma justa e eficaz se não fosse dotado, a este propósito, de válvulas de segurança, o legislador prevê ainda aquelas circunstâncias que, em casos especiais, podem agravar ou atenuar os limites máximo e (ou) mínimo das molduras penais, cabidas como regra a um certo tipo de factos (circunstâncias modificativas) . (...)
Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo 'normal' de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa . São estas as hipóteses de atenuação especial da pena . (...)
A diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a nossa jurisprudência - e a doutrina que a segue - quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar ; para a generalidade os casos, para os casos 'normais', lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimo próprios .' (As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 192, 302, 306)
3.3 Naquele assinalado sentido jurisprudencial, podem ver-se, a título de exemplo e em momentos diferentes, os Acs. do STJ de 10.02.94, 26.01.00, 05.04.01, 15.10.03 :
I - A lei permite atenuar especialmente a pena em casos expressamente nele previstos ou quando existem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
II - Uma constante indispensável para a atenuação especial da pena, reside no facto de se exigir que a verificação da circunstância tenha por efeito diminuir por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
III - O arrependimento só tem relevância para efeitos de atenuação especial da pena quando acompanhado de actos demonstrativos do mesmo. (proc. 334/93)
I- A atenuação especial da pena só pode ter lugar naqueles casos extraordinários ou excepcionais em que é de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta escolhida pelo legislador para o tipo respectivo. (proc. 278/99)
I- A atenuação especial da pena, verdadeira válvula de segurança do sistema, apenas pode ter lugar em casos verdadeiramente extraordinários ou excepcionais, pois para a generalidade dos casos funcionam as molduras penais normais com os seus limites mínimos e máximos . (proc. 348/01)
I- A mera circunstância de se ter considerado provado que o arguido se mostra arrependido, sem uma concretização factual que revele repúdio sincero da anterior conduta delituosa, não é especialmente relevante. (proc. 2405/03)
3.4 Posto isto, resta apurar se a 'consideração global' da conduta do arguido, à luz do que ficou dito, integrará 'circunstâncias que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena' .
3.5 Ora, a primeira nota a registar é a de que o recorrente, apesar de o invocar, não indica ou identifica qualquer sinal de 'reparação dos danos causados', nem, por outro lado, tal se vislumbra, na matéria provada .
Do mesmo modo, não aparece caracterizada a circunstância, alegada pelo recorrente, de ter agido 'em desespero' . O que resulta é que a empresa do arguido 'passava por grandes dificuldades económicas', e - do ponto que, agora, interessa - que o arguido 'é casado, tem dois filhos, com 18 e 11 anos de idade, estando o mais novo a seu cargo . Aufere a quantia média mensal de 800 euros e a mulher aufere o salário mínimo' .
E, no que respeita ao relevo a atribuir à 'confissão', há que ter presente que o arguido foi surpreendido em flagrante ...
Quanto às demais circunstâncias invocadas, todas elas vêm expressamente referidas no segmento da sentença em que se explicita o processo de determinação das penas, tendo sido valoradas a favor do arguido : (...) "Por outro lado, o arguido confessou os factos de forma espontânea, demonstrando arre­pendimento e não tem antecedentes criminais. Valora-se também a sua personalidade e a actual situação social, familiar e profissional." Tais afirmações têm por referência, obviamente, a matéria de facto que, sobre tais pontos, havia sido tida como assente ('O arguido confessou genericamente os factos e mostra-se sinceramente arrependido. Não tem antecedentes criminais e é considerado trabalhador e cumpridor. Casado, tem dois filhos, com 18 e 11 anos de idade, estando o mais novo a seu cargo. Aufere a quantia média mensal de 800 euros e a mulher aufere o salário mínimo').
E poderiam tais circunstâncias, no quadro global da conduta do arguido, ser valoradas de outro modo e conduzir a uma condenação de menor intensidade, por via de atenuação especial ?
3.6 O recorrente não põe em causa o juízo, extraído pelo Tribunal de Oliveira de Azeméis, de que a ilicitude dos vários crimes é elevada, que a culpa é intensa (uma vez que agiu sempre com dolo directo), que o modo de execução dos crimes demonstra preparação e determinação (traduzida em estudo prévio da situação e preparação minuciosa da acção), que as consequências do crime são 'consideráveis' para o equilíbrio emocional das vítimas, e que os sentimentos manifestados e os fins procurados são repreensíveis (obtenção de avultada quantia, por resgate) .
E, na verdade, tais conclusões têm suporte seguro na matéria de facto tida como assente, e que, aqui, se tem como reproduzida .
Em traços largos: o arguido (então, já com 40 anos de idade), empreiteiro da construção civil, sabendo que a ora assistente seria rica (conhecimento que lhe adviera da confiança depositada em seu anterior desempenho profissional), engendrou, perante as dificuldades financeiras da sua empresa, 'raptar' o filho da assistente, de seis anos de idade, exigindo, em troca, 50.000 euros . E, de gorro na cabeça e sob ameaça de uma pistola e um punhal, esperou pela assistente, obrigou-a a dirigir-se e a entrar em sua própria casa e, de novo sob ameaça das armas, forçou-a, bem como a mais três mulheres que aí se encontravam, a entrarem numa casa de banho, dizendo-lhes para não saírem dali, não sem antes se ter apropriado do telemóvel da assistente e de algum dinheiro, e de ter arrancado os fios do telefone fixo . E, sempre sob ameaça das armas, agarrou no filho da assistente e levou-o, contra vontade, para o Porto, de onde, ao longo de horas, encetou o processo de resgate ...
Acresce que esta actuação foi planeada e preparada com antecedência de dias .
3.7 É patente que se não pode descortinar, nesta conduta, qualquer circunstância (extraordinária ou excepcional) que diminua, por forma acentuada, a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena . O que sobreleva na consideração global da conduta delituosa é uma obstinada decisão de conseguir avultada quantia em dinheiro por meios flagrantemente ilícitos, decalcada dos filmes de violência, alheia aos valores sociais e às consequências para as vítimas (pessoas que, aliás, conhecia, sendo, uma delas, criança com seis anos de idade e, por isso, particularmente vulnerável) .
Em suma: não se verifica o circunstancialismo definido pelo art.º 72.º, do Código Penal e improcede, por isso, a pretendida atenuação especial da pena .
E, adiante-se desde já, qualquer pena inferior à que foi determinada pelo Tribunal de Oliveira de Azeméis não satisfaria, desde logo, as necessidades de prevenção .
3.8 'A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade' (art.º 40.º, n.º 1., do C. P.) .
Ora, 'só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida'. (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, §§55)
No caso,
- o arguido é responsável pela prática de quatro (4) crimes de sequestro, com a moldura legal de prisão até três anos ou com pena de multa, que o Tribunal sancionou com pena de sete (7) meses de prisão, por cada crime ;
- um crime de roubo, punível com pena de prisão de 3 a 15 anos, (art.º 210.º, n.2., al. b), do Código Penal), sancionado com pena de três anos de prisão ;
- um crime de rapto, punível com pena de 2 a 8 anos de prisão, que o Tribunal sancionou com a pena de três anos e dois meses de prisão .
E a pena conjunta foi fixada em quatro (4) anos e seis (6) meses de prisão .
Resulta, pois, que a medida de cada uma das penas aplicadas se situa sempre muito abaixo do ponto médio da moldura penal abstracta . E essa opção - aceitável, em sede de recurso - só foi possível fazendo uso benevolente do valor atenuativo das circunstâncias acima enunciadas . E se é admissível entender que as exigências de prevenção especial estão, no caso, atenuadas face ao arrependimento manifestado e à inserção familiar e profissional, já o mesmo se não poderá dizer quanto às exigências de prevenção geral, que são prementes, dado o enquadramento da conduta delituosa. Isto, sem embargo de se deixar sublinhado, como na sentença, que o arguido agiu com culpa intensa (... 'o arguido agiu sempre no âmbito do dolo directo, querendo os factos e as suas consequências, que conhecia e pretendia deliberadamente ') .
Por outras palavras: a pena aplicada não ultrapassa, manifestamente, a medida da culpa (n.º 2., art.º 40.º, do C.P.) .
7.8 A pena única fixada pelo Tribunal - que considerou, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, respeitando os critérios do art.º 77.º, do Código Penal - é a medida estritamente necessária ao 'reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação das normas' e mostra-se adequada a induzir a reintegração social do arguido, não ultrapassando a medida da sua culpa .
Não merece, por isso, censura .
7.9 E, tendo-se considerado justa a pena de quatro anos e seis meses de prisão, mostra-se deslocado encarar a hipótese de suspensão da respectiva execução (art.º 50.º, do C. P.) .
8. Nos termos antes expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso do arguido AA .
Taxa de justiça : dez (10) UCs.
Lisboa, 17 de Novembro de 2004

Soreto de Barros (relator)
Armindo Monteiro
Sousa Fonte
Rua Dias