Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
776/19.1T8OAZ-H.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 06/25/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

O apelante que sustenta esse recurso na invocação de que uma Diretiva Europeia foi mal transposta na ordem nacional, sem que tivesse suscitado essa questão na primeira instância, apresenta uma questão nova (sobre a qual a primeira instância não se pôde pronunciar) que legitima o tribunal da Relação a não conhecer do objeto do recurso.

Decisão Texto Integral:




Processo n.º 776/19.1T8OAZ-H.P1.S1


Recorrente: AA


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. AA e BB foram declarados insolventes nos presentes autos, nos quais requereram a exoneração do passivo restante, tendo esse pedido sido liminarmente admitido por despacho de 10.09.2019.


O período de cessão terminou em 10.09.2022, por força do artigo 10º, n.º 3 da Lei n.º 9/2022.


Apresentado pela administradora da insolvência relatório anual respeitante ao terceiro e último ano do período da cessão (com elaboração do parecer final nos termos e para os efeitos do art.º 244º, n.º 1 do CIRE), foram os interessados convidados a pronunciar-se sobre a concessão, ou não, da exoneração do passivo restantes aos devedores.


Pronunciaram-se os devedores insolventes, concluindo dever ser-lhes concedida a exoneração, nos termos do art. 244º, nº 1 do CIRE, alegando terem cumprido as obrigações impostas pelo art.º 239.º do CIRE e não existir qualquer situação que obstasse à concessão da exoneração. Nada alegaram sobre os débitos que deveriam ser excluídos da exoneração, nos termos das alíneas do n.º 2 do art.º 245º do CIRE, particularmente os créditos reclamados e reconhecidos à Segurança Social e à Autoridade Tributária.


Em 11.11.2022, foi proferida decisão que concedeu aos devedores insolventes a exoneração do passivo restante, declarando extintos todos os créditos sobre a insolvência subsistentes após o encerramento do processo de insolvência, sem exceção dos não reclamados e verificados, não abrangendo a exoneração os créditos previstos no art.º 245.º, nº 2 do CIRE.


2. Contra tal decisão apelaram os devedores insolventes, pedindo a sua revogação e substituição por outra que, quanto aos créditos tributários e da segurança social, apenas excluísse da exoneração do passivo restante aqueles que tivessem a natureza garantida.


3. Na segunda instância considerou-se que o objeto do recurso respeitaria a questão nova [saber se a exclusão dos créditos tributários e da Segurança Social dos efeitos da exoneração estabelecida na alínea d) do nº 2 do art.º 245º do CIRE abstrai da natureza subordinada, comum, privilegiada ou garantida dos mesmos; ou se tal exclusão deve ser circunscrita a tais créditos quando os mesmos tenham natureza garantida], não suscitada no tribunal recorrido e, por isso, insuscetível de ser alegada em recurso.


Por isso, foi ordenada a notificação das partes para que se pronunciassem, nos termos do art.º 655º, n.º 1 do CPC.


Os apelantes responderam, defendendo a admissibilidade do recurso.


O Ministério Público emitiu parecer no sentido de não ser conhecido o recurso, por nele se suscitar questão antes não tratada nem levada a discussão e tratamento no tribunal recorrido.


4. Foi proferida decisão singular de não conhecimento do objeto do recurso.


Inconformados com tal decisão, os apelantes requereram a intervenção da Conferência, tendo o TRP, por acórdão de 20.02.2024, confirmado a decisão reclamada.


5. Inconformado com essa decisão, o insolvente AA interpôs recurso de revista.


Nas suas alegações, o recorrente apresentou as seguintes conclusões:


«1ª Por decisão de 11.11.2022, o Tribunal de 1ª Instância proferiu o despacho final de exoneração (art. 244º do CIRE), tendo decidido: (i) conceder ao devedor a exoneração do passivo restante, (ii) declarar extintos todos os créditos sobre a insolvência e (iii) declarar que a exoneração não abrange os créditos previstos no art. 245º n.º 2 do CIRE.


2º - A decisão assim proferida pelo Tribunal de 1ª Instância versou expressamente sobre o âmbito e a extensão dos efeitos a atribuir à exoneração do passivo restante (“não abrangendo a exoneração os créditos previstos no art. 245º n.º 2 do CIRE”) e foi proferida tendo em conta a lei que o Tribunal julgou aplicável aos autos. Esta decisão constitui o objecto do recurso de apelação interposto pelo Recorrente.


3º - No recurso de apelação interposto (do despacho final de exoneração proferido pela 1ª Instância), o Recorrente defendeu: (i) a aplicação ao caso dos autos do disposto no Artigo 23.º - Derrogações - da DIRETIVA (UE) 2019/1023 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 20 de junho de 2019, e que (ii) por aplicação do citado Artigo 23.º da DIRETIVA se impõe proferir decisão que, no que respeita aos créditos tributários e da segurança social, apenas exclua da exoneração do passivo restante os créditos que tenham a natureza garantida.


4º - Constitui objecto do recurso de apelação interposto o erro de julgamento da decisão recorrida no que respeita à lei aplicável e à interpretação a extrair dessa lei quanto à extensão dos efeitos da exoneração do passivo restante, decisão relativamente à qual se peticionou a reponderação pelo Tribunal ad quem.


5º - Não ocorre qualquer circunstância impeditiva do conhecimento do objecto recurso, em virtude de não estar em causa uma questão nova, mas apenas a sindicância da decisão expressamente proferida que versou sobre a lei aplicável aos autos e a interpretação a extrair dessa lei.


6ª A questão de saber quais os efeitos da exoneração do passivo restante e da lei aplicável a essa matéria NÃO É uma questão que tenha de ser suscitada pelo Devedor ao longo do processo. Ao Devedor cabe requerer a exoneração do passivo restante e cumprir as obrigações previstas no art. 239º do CIRE. Ao Tribunal cabe, a final, proferir o despacho final de exoneração (art. 244º do CIRE) aplicando a lei de acordo com a unidade do sistema.


7º - O Tribunal não aplicou como se impunha, a Directiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, não tendo concatenado o regime da Directiva com a legislação nacional, donde decorre que o objecto do recurso não respeita a uma questão nova, versando precisamente sobre o erro de julgamento da decisão proferida quanto à legislação aplicável.


8º - Nos termos do n.º 3 do art. 5º do Código de Processo Civil o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, pelo que a reponderação/reanálise/reapreciação das normas jurídicas aplicáveis não constitui qualquer questão nova ou questão que esteja fora das competências ex officio do Tribunal de recurso.


9º - Interposto recurso, é lícito ao tribunal ad quem conhecer oficiosamente da indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, sendo livre de identificar as normas que melhor se ajustem ao caso concreto para delas extrair os efeitos adequados.


10º - A regra segundo a qual o Tribunal de recurso não pode confrontar-se com questões novas comporta exceções, designadamente no que respeita ao poder de o tribunal apreciar ex officio questões que se prendem com a indagação, interpretação e aplicação das regras de direito


11ª A actividade de determinação do sentido e alcance da lei e de interpretação da lei aplicável, segundo o melhor Direito, unidade do sistema jurídico e das condições do tempo em que tal norma é aplicada, é sempre sindicável, sem que tal sindicância constitua qualquer questão nova.


12º - Não é exigível às partes que façam um juízo de prognose em relação ao sentido da decisão (no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito pelo Tribunal), pelo que não era exigível que o devedor “advertisse” o Tribunal de 1.ª Instância da necessidade de julgar aplicável, a par da legislação nacional, o quadro legal comunitário sobre a matéria e, em especial, a Directiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sob pena de comprometer o seu direito ao recurso.


13º - O entendimento segundo o qual é vedada às partes a invocação, no recurso, da questão que verse sobre a indagação, interpretação e aplicação das regras de direito sem que essa questão não tenha sido suscitada para apreciação e decisão no tribunal recorrido, viola o direito ao recurso e à tutela jurisdicional efectiva – art. 20º n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa – e configura uma negação do acesso à justiça que colide e afronta os princípios basilares de um Estado de Direito, em termos do respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, prescrito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.


14º - O entendimento segundo o qual a actividade de determinação da lei aplicável, do sentido e alcance da lei e da interpretação da lei, segundo o melhor Direito, unidade do sistema jurídico e das condições do tempo em que tal norma é aplicada, apenas é sindicável em sede de recurso se tiver sido suscitada perante o Tribunal a quo, viola o direito ao recurso e à tutela jurisdicional efectiva – art. 20º n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa - e configura uma negação do acesso à justiça que colide e afronta os princípios basilares de um Estado de Direito, em termos do respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, prescrito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.


Termos em que, dando-se provimento ao recurso, deve revogar-se o Acórdão recorrido, decidindo-se que nada obsta ao conhecimento do objeto do recurso.»


6. Notificado para se pronunciar, nos termos do artigo 655.º do CPC, face à eventual não admissibilidade da revista, o recorrente respondeu, aprofundando as razões pelas quais entendia que o recurso devia ser admitido.


Cabe apreciar.


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


Numa análise perfunctória dos requisitos de admissibilidade da revista, dado estar em causa uma decisão proferida no incidente de exoneração do passivo restante, afigurou-se que seria aplicável o artigo 14.º do CIRE, cujos pressupostos não se encontrariam, nessa hipótese, preenchidos. Todavia, em resposta ao despacho previsto no artigo 655.º, o recorrente teve a oportunidade de clarificar a sua posição, permitindo ao tribunal uma melhor compreensão da sua pretensão recursiva.


Conclui-se, reponderando, que a revista é admissível, não sendo vedada pelo disposto no artigo 14.º do CIRE, porquanto o acórdão recorrido pôs termo ao processo sem se ter pronunciado sobre o seu objeto (art.º 671.º CPC). Não existiu, assim, uma dupla pronúncia (independentemente do seu sentido concordante ou discordante) sobre os direitos do insolvente em matéria de exoneração do passivo restante, o que, a ter acontecido, teria convocado a aplicação do art.º 14º do CIRE.


Em rigor, o acórdão recorrido não procedeu a uma reapreciação da decisão tomada em primeira instância. Antes pelo contrário, assumiu claramente a posição de não tomar conhecimento do objeto do recurso, por entender que a apelação foi sustentada na invocação de uma questão nova.


Admitir a revista no caso concreto não colide com a jurisprudência emergente do AUJ n.º 13/2023, porquanto este AUJ não se pronunciou (nem expressamente nem implicitamente) sobre o tipo de hipótese agora em causa, não sendo, portanto, extensível a hipóteses diversas daquelas que foram pressupostas pela sua fundamentação.


Ainda que se entenda que a admissibilidade da revista, no caso concreto, possa ser discutível, na hipótese de dúvida será mais prudente admitir a revista e conhecer do seu objeto (dado que o art.º 17º do CIRE convoca a aplicação supletiva do CPC).


O objeto da revista é o de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito (particularmente do direito processual) ao não admitir o recurso de apelação, por ter entendido que o recorrente sustentava esse recurso na invocação de uma questão nova que não havia sido suscitada e, por isso, apreciada na primeira instância.


3. Factualidade relevante


A factualidade que releva para a apreciação do objeto do presente recurso é a que consta do relatório supra exposto.


3. O direito aplicável


3.1. O insolvente interpôs recurso de apelação contra o despacho final de exoneração, por entender que apenas deviam ter sido excluídos da exoneração do passivo restante os créditos tributários e da segurança social (previstos no n.º 2 do art.º 245º do CIRE) que tivessem natureza garantida. Sustentou que tal interpretação decorria da aplicação do disposto no artigo 23.º (Derrogações) da DIRETIVA (UE) 2019/1023 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 20 de junho de 2019.


Alegou que não lhe seria exigível, em primeira instância, fazer um juízo de prognose sobre o modo como o tribunal interpretaria e aplicaria as regras de direito, não tendo de advertir o tribunal sobre a pertinência da aplicação do disposto naquela Diretiva, por tal ser uma tarefa da competência do tribunal, que deveria aplicar o Direito Europeu ex oficio.


3.2. O acórdão recorrido fundamentou-se, na essência, nos termos que se extratam:


«Na presente apelação os recorrentes colocam questão que não suscitaram anteriormente, em vista de ser discutida pelos interessados e apreciada e decida pelo tribunal a quo – apurar se a exclusão prevista na alínea d) do nº 2 do art. 245º do CPC vale tão simplesmente em atenção à entidade credora ou se, complementarmente, deve ser circunscrita aos créditos garantidos de tais entidades credoras; doutro modo, se dos efeitos da exoneração só devem excluir-se, no que à alínea d) do nº 2 do art. 245º do CIRE respeita, os créditos garantidos, ficando extintos os que não assumam essa natureza.


Questão que não respeita a matéria de oficioso conhecimento (que possa considerar-se como matéria que sempre seria objecto implícito do recurso), antes concerne, exclusivamente, à mera interpretação do preceito em causa em matéria que não trata de interesses ou direitos indisponíveis dos interessados (mormente dos devedores apelantes) – ainda que tal actividade de determinação do sentido e alcance da norma convocasse, segundo o melhor Direito, a apreciação da sua conformidade com o direito da União ou mesmo a sua interpretação em conformidade com o direito da União [ponderando o princípio da lealdade comunitária e o princípio do primado do direito comunitário, dos quais resulta para todos os órgãos dos Estados-Membros, incluindo os órgãos jurisdicionais, a obrigação de não criar direito nacional (interno) contrário ao direito comunitário e, ainda, de não interpretar o direito nacional (interno) em desconformidade


com o sentido e alcance do direito comunitário, princípios em que radicam o princípio da interpretação e aplicação uniformes do direito comunitário e a exigência de interpretação conforme às exigências do direito comunitário], certo é que se trata de apreciar se dos efeitos da decretada exoneração do passivo restante ficam (ou não) excluídos todos os débitos dos devedores apelantes à Autoridade Tributária e à Segurança Social ou antes (essa a pretensão recursória formulada inovadoramente pelos apelantes) se não se extinguem os créditos de tais entidades que não tenham natureza garantida.


Trata-se de questão nova que, conformando todo o objecto da apelação, não pode ser suscitada perante este tribunal de recurso, verificando-se, assim, circunstância impeditiva do conhecimento do recurso.


Não se objecte que os devedores não tiveram antes a possibilidade de suscitar a questão e, bem assim, que não tinham como antever a interpretação que o tribunal a quo viria a adoptar sobre a norma do art. 245º do CIRE – na verdade, os devedores apelantes foram expressamente notificados, decorrido o período da cessão (e quando no respectivo apenso os créditos reclamados pela Segurança Social e pela Autoridade Tributária haviam já sido reconhecidos), para se pronunciarem sobre concessão, ou não, da exoneração do passivo (e assim também sobre os efeitos da exoneração, sendo concedida), nada referindo ou suscitando a propósito dos créditos que tinham de saber estarem reconhecidos à Segurança Social e à Autoridade Tributária; depois, não interessa que os apelantes devessem ou não prever qual seria a interpretação do tribunal a quo a propósito da alínea d) do nº 2 do art. 245º do CIRE, pois o que está em causa é saber se a questão lhe foi suscitada para apreciação e decisão (se lhe foi colocada a questão de saber se a exclusão que dos créditos tributários e da segurança social dos efeitos da exoneração é estabelecida na alínea d) do nº 2 do art. 245º do CIRE abstrai da natureza dos mesmos, mormente comum, privilegiada ou garantida, ou antes se tal exclusão deve ser circunscrita a tais créditos quando os mesmos tenham natureza garantida). Não suscitaram os devedores insolventes tal questão perante o tribunal recorrido, sendo certo que este não a debateu (conheceu) nem verdadeiramente a decidiu, pois que na falta de discussão sobre a matéria se limitou a determinar, tabelarmente, que a exoneração não abrange a “exoneração os créditos previstos no art. 245º, nº 2 do CIRE.”


Precise-se – não está em causa ter sido ou não suscitada, academicamente, a questão (se a exclusão que dos créditos tributários e da segurança social dos efeitos da exoneração é estabelecida na alínea d) do nº 2 do art. 245º do CIRE abstrai da natureza dos mesmos, mormente comum, privilegiada ou garantida, ou antes se tal exclusão deve ser circunscrita a tais créditos quando os mesmos tenham natureza garantida); o que releva (e está em causa) é que o tribunal recorrido não foi chamado ou instado a excluir dos efeitos da exoneração os créditos reclamados e reconhecidos no apenso, sem natureza garantida, à Autoridade Tributária e à Segurança Social


3.3. A pretensão normativa que o recorrente formulou no recurso de apelação, e que pretende ver reconhecida, não se reconduz a uma simples questão de interpretação de determinada disposição legal, particularmente do n.º 2 do artigo 245.º do CIRE, nem a uma questão de diferente qualificação jurídica de um determinado quadro factual.


A solução defendida pelo recorrente pressupõe uma construção normativa complexa, que vai para além de um regular exercício de interpretação ou de qualificação jurídica. Para apreciar a pretensão formulada pelo recorrente, o tribunal recorrido teria de se pronunciar sobre a questão de saber se a Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho (de 20 de junho de 2019) foi ou não mal transposta, bem como sobre o seu efeito na ordem jurídica interna (o que poderia suscitar a questão do recurso ao reenvio prejudicial).


Bem se compreende, assim, a natureza inovatória da matéria questionada pelo recorrente, como se entendeu no acórdão recorrido.


Efetivamente, se essa questão tivesse sido suscitada perante o tribunal de primeira instância, teria esse tribunal tido a possibilidade de sobre ela se pronunciar, podendo, eventualmente, vir a ser desnecessário o recurso de apelação.


Embora o procedimento de exoneração do passivo restante apresente especificidades na sua tramitação processual, aos insolventes (tal como aos demais interessados) foi conferida a oportunidade para se pronunciarem (como consta dos autos) antes da decisão final que lhes concedeu a requerida exoneração.


Nessa altura já se encontrava em vigor a Lei n.º 9/2022 (de 11 de janeiro), que transpôs a referida Diretiva, pelo que o recorrente teve a oportunidade processual de suscitar a discussão da sua tese sobre o alcance da exoneração do passivo restante.


Deve ter-se presente que ao transpor a referida Diretiva para o direito interno, através da Lei n.º 9/2022, o legislador nacional optou por não alterar o teor do n.º 2 do art.º 245º do CIRE. Assim, a interpretação plausível do julgador é a de que o legislador soube expressar a sua vontade de forma adequada (art.º 9.º do CC).


Defendendo o recorrente a aplicação de um quadro legal que (na sua tese) conduziria a uma vantagem de natureza económica (a exoneração dos créditos fiscais e da Segurança Social), não estará em causa matéria de direitos indisponíveis, cujo conhecimento devesse ser oficioso, mas sim interesses de natureza patrimonial, a serem invocados pelos sujeitos a quem aproveitam. Não tendo o recorrente suscitado a questão na primeira instância (quando teve oportunidade processual para o fazer), não poderá usar o recurso de apelação para chamar o tribunal, pela primeira vez, a pronunciar-se sobre a matéria, porque não é essa a função do tribunal de recurso.


Como afirmam Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre: «(…) o recurso de apelação é um recurso de reponderação e não um recurso de reexame, tendo sido adotado entre nós um modelo de apelação restrita que não admite, em regra, a apreciação de questões novas.»1


No mesmo sentido, afirma Abrantes Geraldes: «Na fase de recurso, as partes e o Tribunal Superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objecto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do Tribunal Superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior, sem prejuízo da possibilidade de se suscitarem ou de serem apreciadas questões de conhecimento oficioso, como a inconstitucionalidade de normas, a nulidade dos contratos, o abuso de direito ou a caducidade em matéria de direitos indisponíveis, relativamente às quais existam nos autos elementos de facto suficientes2


Conclui-se, portanto, que o acórdão recorrido sustenta o entendimento correto quanto à natureza inovatória da matéria sobre a qual foi chamado a pronunciar-se, pois tal temática foi-lhe apresentada pelo recorrente ex novo e não enquanto matéria a reapreciar.


*


3.4. Afirma ainda o recorrente que «o entendimento segundo o qual é vedada às partes a invocação, no recurso, da questão que verse sobre a indagação, interpretação e aplicação das regras de direito sem que essa questão tenha sido suscitada para apreciação e decisão no tribunal recorrido viola o direito ao recurso e à tutela jurisdicional efectiva – art. 20º n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa – e configura uma negação do acesso à justiça que colide e afronta os princípios basilares de um Estado de Direito, em termos do respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, prescrito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.»


É manifesto que a decisão recorrida não aplicou qualquer norma inconstitucional nem interpretou qualquer norma em termos contrários à Constituição, nomeadamente ao seu artigo 20.º. A alegação que sustenta a invocação de inconstitucionalidade é algo simplificadora e redutora da realidade processual, pois (como já se referiu) não está em causa uma simples questão de indagação e interpretação da lei aplicável, mas sim a afirmação da função própria de um tribunal de recurso, que é a de proferir uma segunda decisão sobre o que já foi decidido pelo tribunal inferior. Facilmente se compreende que se as partes pudessem livremente optar por colocarem determinados problemas, pela primeira vez, apenas no tribunal da relação este perderia a sua essência enquanto tribunal de recurso.


*


DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e confirma-se o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente (sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar).


Lisboa, 25.06.2024


Maria Olinda Garcia (Relatora)


Ricardo Costa (com voto de vencido)


Luís Espírito Santo


___________





Processo n.º 776/19.1T8OAZ-H.P1.S1


Revista – 6.ª Secção; Tribunal recorrido – Relação do Porto, ... Secção


DECLARAÇÃO DE VOTO


Votei vencido.


Seria de julgar o não conhecimento do objecto do recurso por aplicação do regime do art. 14º, 1, do CIRE, que não foi seguido nem respeitado pelo Recorrente como única via para ascender ao terceiro grau em face de decisão proferida no incidente de exoneração do passivo restante (art. 244º do CIRE).


Sendo este incidente processado endogenamente no processo de insolvência (arts. 235º-248º-A, CIRE), as decisões que nele sejam tomadas, uma vez reapreciadas pela Relação, para serem susceptíveis de revista terão que (i) observar os pressupostos gerais de recorribilidade, (ii) ingressar nos fundamentos elencados no art. 671º, 1 e 2, do CPC, para a revista enquanto espécie, e (iii) preencher os requisitos de oposição jurisprudencial determinados pelo art. 14º, 1, do CIRE.


No caso, o acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, coloca «termo ao processo», para o efeito de aplicação do art. 671º, 1, do CPC.


Depois, o art. 14º, 1, do CIRE, aplicando-se a decisões “finais” (formal ou materialmente) nos termos do art. 671º, 1, do CPC (etapa prévia do juízo de admissibilidade legal do recurso de revista: cfr., por ex., o Ac. do STJ de 10/12/2019, processo n.º 2386/17), não distingue entre decisões das quais cabe ou não revista, nomeadamente quanto à motivação da decisão tomada em 2.ª instância e causa do resultado decisório. O art. 14º, 1, quando restringe a revista (como atípica), apenas e tão-só refere os «acórdãos proferidos por tribunal da relação». Logo, somente o preenchimento do art. 14º, 1, através do cumprimento dos ónus de alegação e demonstração que implica, permite (e permitiria no caso) o conhecimento do objecto da revista interposta.


Por fim, o conhecimento da revista nos presentes autos, salvo melhor opinião, não observa o AUJ n.º 13/2023 (processo n.º 3125/11, de 17/10/2023, publicado in DR, 1.ª Série, de 21/11/2023, págs. 11 e ss), que ditou o (já adoptado pela 6.ª Secção) seguinte critério normativo de interpretação e aplicação:


“A regra prevista no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado[s] e aos embargos à sentença de declaração de insolvência.”


Com a seguinte fundamentação:


“Houve claramente uma intenção do legislador em restringir o recurso para o STJ tão só ao processo de insolvência e ao apenso de embargos à declaração de insolvência (…). Interpretar de uma forma mais abrangente o n.º 1 do art. 14.º do CIRE seria postergar por completo quer a literalidade da norma, quer os trabalhos que presidiram à publicação do CIRE. (…) O princípio da celeridade processual que o legislador imprimiu ao processo de insolvência mostra-se plenamente assegurado com a interpretação que propugnamos, pois é relativamente à declaração da insolvência que urge garantir uma mais rápida estabilização da decisão judicial. E, relativamente à limitação do direito ao recurso das partes[,] é esta interpretação que melhor se coaduna com a urgência do processo de insolvência.”


STJ/Lisboa, 25 de Junho de 2024


O 1.º Adjunto


Ricardo Costa


________________________________________

1. Código de Processo Civil Anotado, Volume 3ª, 3ª edição, página 116.↩︎

2. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª edição, páginas 28 e 29.↩︎