Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | TAVARES DE PAIVA | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL TRIBUNAIS PORTUGUESES TRIBUNAL ECLESIÁSTICO ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA DIREITO CANÓNICO CONCORDATA PROCEDIMENTOS CAUTELARES ADMISSIBILIDADE DE RECURSO RECURSO DE REVISTA REQUISITOS INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA | ||
Data do Acordão: | 12/10/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO / JULGADA A INCOMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS PORTUGUESES PARA O CONHECIMENTO DO PEDIDO | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO CANÓNICO - SEPARAÇÃO DE PODERES ENTRE O ESTADO E A IGREJA - COMPETÊNCIA INTERNACIONAL | ||
Doutrina: | Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, I, pág. 106; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1963, pág. 92; João Soares da Silva, Responsabilidade Civil dos Administradores da Sociedade: Os Deveres Gerais e A corporate governance, ROA, Ano 57, Tomo II, 605/628; Menezes Cordeiro, Os Deveres Fundamentais dos Administradores Das Sociedades, ROA Ano 66, Tomo II, 443/448; Jorge Miranda, A Concordata e a Ordem Constitucional Portuguesa, A Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada; José António Silva Marques, “Associações e Organizações”, incluído na obra Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, p. 99-100; Rui Manuel Moura Ramos, A Concordata e o Direito Internacional Privado Português, RLJ n.º 3938, págs. 277 e segs.; | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 65.º, N.º 1, 383.º, 101.º, 105.º, N.º 1, E 494.º, AL. A); 684.º, N.º 3, 690.º, N.º 1 E 4, DO CPC; ARTS. 8.º E 41.º DA CRP. | ||
Legislação Estrangeira: | ART. 29.º, N.º 2 DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM; - CONCORDATAS CELEBRADAS ENTRE A SANTA SÉ E A REPÚBLICA PORTUGUESA, EM 7 DE MAIO DE 1940 E 18 DE MAIO DE 2004; - NORMAS GERAIS DA ASSOCIAÇÕES DE FIEIS; - ARTS. 305; 312.º; 318.º; 319.º E 325.º DO CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO | ||
Jurisprudência Nacional: | AC. STJ DE14.02.2013, REVISTA N.º 2542/07 .8TBOER.L1.S1 (ANA PAULA BOULAROT); AC. DE 26-04-2007, PROFERIDO NOS AUTOS DE REVISTA N.º 723/07 (JOÃO BERNARDO); ACS. N.º 118/85, 409/87 E 218/88, NO BMJ N.º 360, 501, 370, 175 E 380, 183; AC. STJ DE 17.02.2009 (LOPES DO REGO), REVISTA N.º 743/08 .0TBABT-A. E1.S1; AC. STJ DE 20-06-2006, REVISTA N.º 84/06 (REL. PAULO SÁ); AC. STJ DE 22/02/2011 (SILVA SALAZAR); | ||
Sumário : | 1. Em sede de providência cautelar não é admissível recurso para o STJ (387.º-A) a não ser que se verifiquem os casos do art. 678.º, n.º 2 do CPC. 2. Interposto recurso de revista excepcional em que se questiona, no fundamental, a (in)validade de um Decreto Bispal, emitido à luz do Direito Canónico, o objecto principal do recurso reside em determinar a incompetência material e internacional dos tribunais portugueses, pelo que a presente Revista tem como fundamento o disposto no n.º 2, al. a), do citado art. 678.º. 3. Aferindo-se a competência, enquanto pressuposto processual, pelos termos em que o autor/requerente estrutura o seu pedido e os respectivos fundamentos, ou seja a causa de pedir, há que confrontar esse pedido com as regras que definem a competência internacional dos tribunais portugueses. 4. Nos termos do art. 10.º da Concordata de 2004, “A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil”, as quais podem assumir a natureza de Associações Públicas ou Privadas de Fieis. 5. Estando em causa a (abstenção da) prática de actos de representação da segunda requerente – em violação de um Decreto Bispal de nomeação de uma comissão, à luz do Cân. 318 do Código de Direito Canónino – como sejam os de conferir mandatos, administrar bens, ou onerar bens de uma associação pública de fiéis, como é o caso da Pia União, a qual prossegue estatutariamente fins religiosos, como a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja e a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia, e em que se prova que os respectivos membros sempre observaram e cumpriram, na sua actividade, as normas do Direito Canónico, os tribunais judiciais portugueses não podem interferir na apreciação daqueles actos, quando praticados em conformidade com o Direito Canónico, sendo ,por isso, internacionalmente e em razão da matéria incompetentes (cfr.arts.65 nº1e 66 do CPC). | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório: Diocese Leiria-Fátima e Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus instauraram contra AA e BB o presente procedimento cautelar comum requerendo: a) Que estes se abstenham da prática de quaisquer actos em representação da 2.a requerente, nomeadamente conferir mandatos, administrar, onerar ou alienar quaisquer bens ou direitos da Pia União; b) Que os requeridos entreguem aos actuais representantes da Pia União relação de todos os bens móveis, de todas as contas bancárias, de todos os encargos e rendimentos prediais, de todos os contratos de arrendamento, comprovativo do depósito das quantias recebidas por força de escritura, Livro de Actas; e ainda c) Que sejam notificados o Centro Distrital de Santarém e rendeiros que identificam para não aceitarem a prática de quaisquer actos dos requeridos em representação da 2.a requerente. Afastada a prévia audição dos requeridos foi proferida decisão a determinar: a) Que os requeridos se abstenham da prática de quaisquer actos em representação da Pia União, nomeadamente conferir mandatos, administrar, onerar ou alienar quaisquer bens ou direitos da Pia União; b) Que os requeridos entreguem aos actuais representantes legais da Pia União (comissários nomeados pelo Sr. Bispo de Leiria-Fátima): relação de todos os bens móveis que constituem o recheio dos prédios urbanos e mistos da Pia União; relação de todas as contas bancárias de que a Pia União seja titular, sua forma de movimentação e movimentos respectivos; relação de todos os encargos e rendimentos prediais dos prédios da Pia União; relação e envio de todos os contratos de arrendamento urbano e rural e contacto dos rendeiros respectivos; comprovativo do depósito das quantias recebidas no valor de €145.000 por força da escritura pública outorgada em 02.09.2008, lavrada a fls. 72 do Livro 85 do Cartório Notarial de Fátima Ramada; O Livro de Actas (a existir) ou o envio de todas as actas da Pia União e correspondência trocada com a Autoridade Eclesiástica, Bispo de Leiria-Fátima. c) Que se notifique o Centro Distrital de Santarém bem como os rendeiros CC, Instituto de Apoio à Criança e Centro de Apoio Temporário ao Repatriado, nas respectivas moradas, de que não deverá aceitar a prática de quaisquer actos dos requeridos em representação da Pia União. Citados, vieram os requeridos opor-se, pedindo que a providência seja revogada. Sustentaram, em síntese, verificar-se: a) Litispendência entre os presentes autos e uma providência que corre termos no Tribunal Judicial de Ourém; b) Incompetência territorial na medida em que a acção definitiva é da competência do Tribunal de Ourém; c) Ilegitimidade da Diocese, na medida em que a Pia União é uma associação privada de fieis; d) Falta de poderes de representação da Pia União; e) Devem intervir na acção quatro associadas da Pia União, que identificam; f) Pugnam, a final pela improcedência da acção; Requereram, a final, como se de reconvenção se tratasse, e em sede de providência cautelar, a condenação da Diocese a indemnizar a Pia União e a Fundação pelos danos decorrentes da presente providência. A segunda requente apresentou articulado de resposta, que foi desentranhado por inadmissibilidade legal (fls. 1007). Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento e, a final, foi julgada improcedente a oposição (e obviamente, também, desconsiderado o pedido de condenação das requerentes). Os requeridos não se conformaram com a decisão e recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de fls. 1734 a 1774, julgou improcedente a apelação, mantendo na íntegra a decisão objecto de recurso. Inconformados, os requeridos – entendendo-se por recorrentes apenas estes e não a Fundação do Divino Coração de Jesus, que não consta como parte no presente procedimento cautelar – interpuseram revista excepcional, nos termos do art. 721.º-A do CPC. Submetida a apreciação a revista excepcional à Formação, a que alude o art. 721.º-A, n.º 3, do CPC, pelo acórdão de fls. 2357 a 2365 foi concluído que não era caso de análise de admissibilidade da revista excepcional, se a revista normal fosse de admitir e nessa conformidade determinou a remessa dos autos à distribuição como revista normal. Convoladas as alegações da revista excepcional como alegações de revista normal, encontram-se formuladas as seguintes conclusões: A) A Pia União foi criada por iniciativa das suas associadas, que quiseram livremente associar-se e que requereram a erecção ao Bispo de Leiria-Fátima, que aprovou os Estatutos «à experiência», B) Consequentemente, à luz dos cân. 116.1, in fine e 299.1 e 2 do CDC, trata-se duma associação privada de fiéis; C) Como tal, atenta a localização sistemática do cân. 318 – Cap. II do Título V “Das associações públicas de fiéis” – e a inexistência de norma semelhante no Cap. III “Das associações privadas de fiéis” não tem o Bispo de Leiria-Fátima poderes para designar «comissários» em substituição da Superiora, nem para praticar qualquer acto de administração dos bens da Pia União; D) Bens livremente administrados pela associação, nos termos do cân. 325.1, sendo bens privados, que não se regem pelo CDC (cân. 1257.2); E) Sendo nulos os actos do Bispo de Leiria-Fátima, quer os de designação de «comissários», quer o de intervenção nos presentes autos, como requerente; F) Carecendo a Diocese de legitimidade para intervir nestes autos e o «comissário» de poderes de representação da Pia união; G) Cabendo exclusivamente à sua Superiora a prática de quaisquer actos de representação da Pia União, sendo válidos aqueles que praticou no exercício das suas funções, H) Pelo que, nada justificaria o decretamento da providência, não havendo qualquer direito a acautelar por aqueles que se arrogam titulares desse poder; I) Mostrando-se o douto Acórdão recorrido eivado de contradições entre os pressupostos e a decisão, nomeadamente quanto à apreciação dos factos relacionados com as Capelas, a vida religiosa e a casa da Povoação e, sobretudo, a sustentar a tese da natureza pública da associação, dando como provado que esta tem ou teve assistente espiritual; J) Sendo o assistente espiritual uma figura exclusiva das associações privadas de fiéis (art. 61º das Normas e C. 324.2 CDC), porquanto as associações públicas têm um capelão ou assistente eclesiástico (art. 41.º das Normas e C. 317.1 do CDC); K) O processo sub judicio tem identidade substancial de partes e pedidos relativamente ao P.º 2047/08.0TBPDL-1, no qual foi proferido Acórdão, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que reconhece a natureza privada da Pia União e que esta é representada pela sua Superiora, que administra livremente os respectivos bens; L) Pelo que, ao decidir de modo diverso, o douto Acórdão ora impugnado violou o caso julgado formado nos referidos autos, sendo por isso, nulo, nos termos do art. 668º do CPC, M) Devendo, consequentemente, ser revogado; N) O douto Acórdão recorrido, ao fundamentar a decisão em douto Acórdão do STJ, que transcreve parcialmente, que distingue as matérias submetidas à jurisdição civil e canónica face ao art. 11º da Concordata de 2004, decidindo exclusivamente com base na Concordata de 1940, é nula por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos da al. c) do nº 1 do art. 668º do CPC; O) De acordo com o art. 11º da Concordata de 2004, aprovada para ratificação pela RAR nº 74/2004, de 16 de Novembro, relativamente às pessoas jurídicas canónicas, é competente a autoridade eclesiástica, quando esteja em causa a violação do direito canónico, e os tribunais civis, quando esteja em causa a violação do direito interno português; P) No caso dos autos estão em causa actos relativos a bens temporais duma associação de fiéis constituída canonicamente, expressamente excluídos da aplicação do Código de Direito Canónico pelo parágrafo 2º do Cânone 1257º; Q) Pelo que, tratando-se de averiguar, a título incidental, qual a natureza – pública ou privada – da Pia União no sentido de se aferir a aplicabilidade do referido preceito, são os Tribunais Civis competentes por força do art. 96.º, n.º 1, do CPC; R) Competência que, reportando-se os actos impugnados (essencialmente) a bens imóveis e à constituição de pessoa colectiva com sede em Portugal (a Fundação do Divino Coração de Jesus) é exclusiva dos tribunais portugueses, nos termos das al. a) e c) do art. 65.º A do CPC; S) Uma interpretação que vede aos Tribunais do Estado a averiguação da natureza jurídica da Pia União e a regularidade da sua representação para a prática de actos relativos a bens imóveis e à constituição de pessoa colectiva de direito português e com sede em Portugal viola frontalmente S1) Os princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático, consignados no art. 2.º da Constituição, S2) concretizado na violação do princípio da liberdade de associação, nas vertentes de liberdade de auto-governo, liberdade administração e disposição dos seus bens pelas associações privadas, consignado no art. 46.º, n.º 1 e 2 da Constituição e S3) a garantia da tutela jurisdicional efectiva, consagrada no art. 20.º da Constituição, consubstanciando uma denegação do acesso a um tribunal independente, S4) porquanto a autoridade eclesiástica é parte, não podendo ser independente, nos autos impugnados. T) Pelo que, violando o douto Acórdão recorrido as disposições processuais e constitucionais acima referenciadas, deverá ser revogado por douto Acórdão que reconheça serem competentes para o julgamento dos autos os Tribunais do Estado, Devendo ser fixada jurisprudência no sentido de que i) Os tribunais judiciais são competentes para apreciar e decidir sobre a validade de actos emitidos por autoridades eclesiásticas a ao abrigo do direito canónico, nomeadamente quando estes respeitem a bens imóveis sitos em Portugal, sendo nesse caso exclusiva a competência dos Tribunais Portugueses, por força do art. 65.º-A do CPC e que, ii) Uma associação de fiéis, constituída por iniciativa das suas associadas, na vigência do Código de Direito Canónico de 1917, por decreto bispal que aprova os respectivos estatutos, a pedido, é, nos termos do Código de Direito Canónico de 1983, uma associação privada de fiéis, representada em juízo e fora dele por quem os Estatutos determinarem, in casu pela sua Superiora, e administrando livremente os seus bens, de acordo com a lei do Estado, nos termos do C. 1257.2. Os recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso. Colhidos os vistos, cumpre alegar e decidir. II – Fundamentação: Os factos provados são os seguintes: 1- A Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus é uma pessoa jurídica canónico-concordatária, erecta canonicamente por Decreto de 02.03.1959 do Bispo de Leiria Dom DD. 2- A comunicação de participação de erecção foi feita ao Governador Civil de Santarém e registada na respectiva Secretaria sob o n° 181 em 06.03.1959. 3- Nos termos dos Estatutos da Pia União, cuja cópia se mostra junta a fls. 22 e ss e cujo teor se dá aqui por reproduzido, "Escravas do Divino Coração de Jesus" é o nome de família das Senhoras que, por sua livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos pobres, em todas as obras de Caridade (...). De acordo com os mesmos Estatutos, a Pia União é uma comunidade religiosa cujo fim é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e Normas da Igreja; em segundo lugar, a evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das Obras da Misericórdia. 4- As “Escravas”que faziam parte desta comunidade, chamavam-se e eram chamadas e subscreviam-se e subscrevem-se como Irmãs e tinham e têm todas elas nomes religiosos. 5- A Irmãs que faziam parte da Pia União tinham e têm Capela nas suas casas, para o exercício do culto religioso, da oração, penitência e celebração eucarística, bem como e essencialmente mantinham nessas capelas o Santíssimo Sacramento. 6- Tendo sido essa actividade religiosa proclamada e depois vivenciada pelas Irmãs ao longo dos tempos, sempre na submissão e prossecução dos fins da Igreja. 7- Mas, para além disso, também releva a vivência das Irmãs que integravam e integram a Associação, bem como o modo como sempre se consideraram e relacionaram com a Autoridade Eclesiástica no reconhecimento da autoridade e direcção do Bispo de Leiria-Fátima e no cumprimento das normas de Direito Canónico aplicáveis às Associações Públicas de Fieis, tendo ao longo da vida cumprido na íntegra todos os trâmites canónicos previstos para as Associações Públicas de Fieis, com vista à regularidade da eleição dos seus membros representativos, com excepção da última eleição. 8- Dom DD, então Bispo titular da Diocese de Leiria- Fátima, nomeou em sua substituição para a primeira eleição da Madre Superiora da 2a requerente o Administrador do Santuário de Fátima, Reverendo Monsenhor EE. 9- Foi dessa forma que a primeira Superiora eleita, a 2. requerida, com o nome religioso, Irmã M...M... de Jesus, procedeu nessa eleição, bem como a Superiora eleita subsequentemente ao longo da sua vida, encarregando-se o assistente espiritual nomeado de proceder à comunicação ao Prelado da Eleição realizada, com o envio da acta para confirmação por parte do Bispo de Leiria-Fátima, procedendo ao juramento devido em acto próprio e subsequente confirmação Bispal. 10- Sendo, de resto, essa confirmação Bispal a única forma pela qual a 2a requerida pode manter-se como Madre Superiora em 10 mandados consecutivos face à limitação estatutária de dois mandatos. 11- Pelo menos desde 1991 a 2.a requerida exerceu as funções de Superiora e representante da Pia União. 12- A sua última eleição que foi confirmada pelo Bispo de Leiria-Fátima ocorreu em 11 de Junho de 2005, para um mandato de 3 anos. 13- A Pia União, no âmbito da sua actividade apostólica, apoiou um outro Instituto Religioso denominado Seminário Pio XII, com sede em Ponta Delgada, estando este sujeito à autoridade da Diocese de Angra e Ilhas dos Açores. 14- E no âmbito do apoio mútuo e prossecução do seu apostolado, os membros daquele instituto, mais concretamente os Srs. Padres FF e GG, exerceram, desde a primeira eleição da Madre Superiora, as funções de assistente espiritual, por nomeação do Sr. Bispo de Leiria, até à morte de ambos. 15- A 2a requerida, na qualidade de representante da Pia União e no exercício dessas funções, requereu em 1991 junto do Ordinário do Lugar - Bispo de Leiria-Fátima – a emissão de documento que reconhecesse que a Pia União era uma instituição religiosa de utilidade pública, com vista à obtenção de isenção fiscal. 16- Em Junho e Julho de 2005 faleceram os sobreditos Padres FF e GG, não restando mais nenhum irmão vivo da congregação do Seminário Pio XII como o qual as irmãs colaboravam no seu apostolado. 17- A Pia União é actualmente composta por quatro irmãs em idade avançada, todas com mais de 80 anos, que vivem em comunidade na cidade da Horta. 18- Depois dos falecimentos mencionados, a 2a requerida, munida de uma credencial do anterior Bispo de Leiria-Fátima, intentou acção judicial no Tribunal de Coimbra contra o referido Instituto com sede nos Açores em que pedia a declaração de usucapião a favor da Pia União de um prédio urbano registado em nome daquele Instituto. 19- Outorgou ainda duas escrituras de justificação judicial em que nas qualidades em que se arrogou, intitulava a sua então representada e ora 2arequerente, proprietária de património sito nos Açores e que era pertença daquele outro Instituto Religioso. 20- Conferiu ao seu sobrinho, 2 o Requerido, procuração e, no uso da mesma, mudou fechaduras de um anexo propriedade daquele Instituto nos Açores, vedou-lhe acessos, colocou ferros em janelas, em prédios e com blocos, de molde a não permitir acessos e também alterou contratos de água e luz nessas propriedades. 21- A 2a requerida outorgou escritura de doação de um imóvel pertença da Pia União a favor do seu sobrinho, Dr. AA, bem como de todo o seu recheio. 22- Formalizou escritura de constituição de uma fundação civil, cujos membros da Direcção são o mencionado sobrinho, ora primeiro requerido, bem como o mandatário judicial dos requeridos, Dr. HH, em que houve uma transferência de quase todo o património da Pia União, cujo valor tributário atribuído na escritura ascende a € 260.000. 23- Os requeridos preparavam-se para proceder à venda de património da Fundação. 24- A Diocese e o seu Bispo titular, confrontados com os factos supra, emitiram em 15.07.2008 um Decreto que nomeou uma comissão para administrar a Pia União, mandatando-os também para a prática de actos no sentido de proteger os bens eclesiásticos da Pia União. 25- O Bispo de Leiria-Fátima, findo o mandato, da mesma, convocou a 2a requerida para uma reunião onde lhe deu conhecimento do Decreto e dos novos representantes da requerente, autorizando-a apenas a dirigir os aspectos religiosos e apostólicos e de cuidado das Irmãs. 26- Neste contexto, os actuais representantes da requerente Pia União diligenciaram pela propositura junto do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada de uma providência cautelar, que tomou o n.° 2047/08.0 TBPDL, com vista a impedir a alienação de património daquela. 27- Não obstante, e mesmo após a emissão do Decreto, a 1.ª requerida voltou a alienar património da requerente em favor de uma sociedade que foi constituída em Agosto de 2008, sendo que aquele não fazia parte dos prédios acautelados na providência, fazendo-o em escritura outorgada durante o mês de Setembro de 2008, já se auto-intitulando representante da Pia União que denominou Associação Privada de Fieis, tendo os seus poderes sido verificados apenas com base numa acta eleitoral de n.° 17. 28- XXVIII Em todos os negócios jurídicos que formalizou até então, a requerida fez-se sempre acompanhar de credencial com poderes específicos para os actos, sendo que os pedidos de emissão das mesmas eram sempre acompanhados de justificação, em clara afirmação de obediência e dependência legal da Diocese e no reconhecimento da natureza pública daquele Instituto religioso. 29- O acto eleitoral do qual resultou a eleição da Irmã M... como Madre Superiora em 25 de Maio de 2008 não foi presidido por assistente espiritual e o resultado não foi submetido a confirmação e não foi confirmado pelo Bispo de Leiria Fátima. 30- Em l9 de Outubro de 2005, no Cartório Notarial de Ourém, a 2.a requerida, nas qualidades que se arrogou de Superiora Geral da Pia União, outorgou procuração notarial a favor do seu sobrinho AA, em que lhe conferiu poderes para a constituição de uma Fundação de natureza social, com fins meramente civis, bem como poderes para administrar e alienar bens. 31- No uso dessa procuração, AA, então em representação da Pia União, outorgou em 22 de Junho de 2006 no Cartório Notarial de II uma escritura pública em que instituiu uma fundação de solidariedade social que denominou Fundação do Divino Coração de Jesus, à qual afectou a quase totalidade do património da Pia União. 32- A Fundação não tem existência canónica e a Direcção Geral da Segurança Social não reconheceu a mencionada Fundação. 33- Em 16.07.2008 a entidade instituidora Pia União formalizou junto da entidade competente pedido de extinção do reconhecimento com base em deserção. 34- As requerentes tomaram conhecimento que os requeridos encontravam-se a diligenciar a promoção e venda de bens afectos à Fundação. 35- Por instrumento de revogação outorgado notarialmente aos 23 de Julho de 2008, no Cartório Notarial da Povoação, foi revogada a procuração conferida em 19.10.2005 ao 1.º requerido AA, tendo nessa mesma data sido feita notificação da revogação. 36- No exercício do mandato conferido pela Diocese através do Bispo titular, o comissário adjunto nomeado para representar a Pia União enviou à Irmã M...M... de Jesus, ora 2a requerida, carta a solicitar, nomeadamente, a entrega das chaves de todos os imóveis que tem em sua posse, a indicação de todos os rendeiros e rendimentos, livro de actas e prestação de conta do último ano do exercício. 37- A Irmã, ao invés de responder ao signatário, por troca de correspondência havia entre o Vigário Geral da Diocese de Leiria- Fátima, Padre JJ, reitera a sua posição de autonomia estrutural e funcional em relação ao Bispo de Leiria- Fátima, bem como as qualidades que arroga ao seu sobrinho como procurador da Pia União, pretendendo assim ser ela a representante legal da Pia União. 38- Ambos os requeridos continuam a arrogar-se perante terceiros como representante legal e procurador da Pia União, bem como a praticar actos de alienação de património da mesma. 39- Os requeridos continuam a receber as rendas dos imóveis pertença da Pia União, apesar de instados para não o fazerem, bem como as rendas de um imóvel sito em Coimbra pertença do Seminário Pio XII com registo a favor deste. 40- Num outro imóvel em Ponta Delgada, também daquele Seminário mas de que os requeridos têm as chaves, têm sido vistas a entrar e a sair com a chave do imóvel pessoas que são utentes do Centro de Apoio Temporário ao Repatriado, em manifesta demonstração de ocupação iminente daquele imóvel. 41- Todos os bens da Pia União pertenciam ou às associadas, nomeadamente as fundadoras, ou lhes foram doados por familiares destas, ou pessoas amigas. Apreciando: Estamos no domínio dos procedimentos cautelares, no qual o recurso para o STJ se restringe aos casos em que o recurso ordinário é sempre admissível, independentemente do valor da causa e da sucumbência, taxativamente elencados nas alíneas do n.º 2 do art. 678.º do CPC, a saber: a) das decisões que violem as regras de competência internacional, ou em razão da matéria ou da hierarquia, ou que ofendam o caso julgado; b) das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre; c) das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo. Em face desta limitação do regime de recursos para o STJ, apenas são de admitir aqueles em que nas conclusões da alegação do(s) recorrente(s) – que delimitam o objecto do recurso – sejam suscitados algum(uns) daquele(s) fundamento(s) – (arts. 684.º, n.º 3, e 690.º, n.os 1 e 4, do CPC). Significa que, no caso em apreço, surge como questão preliminar a matéria da incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para conhecer da presente providência cautelar. I – Da (in)competência No campo dos procedimentos cautelares mantêm-se as regras de competência que vigoram para as acções ou execuções: a providência cautelar deve ser requerida junto dos tribunais que tenham competência material para julgar a acção principal – art. 383.º do CPC. A competência, enquanto pressuposto processual, afere-se pelos termos em que o autor estrutura o seu pedido e os respectivos fundamentos, ou seja a causa de pedir – Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, I, pág. 106. Definindo-se, como se disse, o objecto da acção pela “natureza da relação substancial pleiteada” – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1963, pág. 92 – tal como gizada pelo autor, as requerentes formularam nos presentes autos os seguintes pedidos: a. Que os requeridos se abstenham da prática de quaisquer actos em representação da 2.a requerente, nomeadamente conferir mandatos, administrar, onerar ou alienar quaisquer bens ou direitos da Pia União; b. Que os requeridos entreguem aos actuais representantes da Pia União relação de todos os bens móveis, de todas as contas bancárias, de todos os encargos e rendimentos prediais, de todos os contratos de arrendamento, comprovativo do depósito das quantias recebidas por força de escritura, Livro de Actas; e ainda que c. Sejam notificados o Centro Distrital de Santarém e rendeiros que identificam para não aceitarem a prática de quaisquer actos dos requeridos em representação da 2.a requerente. Para tanto, alegam, a segunda requerente é uma associação de fiéis de natureza pública (pessoa jurídico-concordatária) que prosseguiu, e prossegue, fins religiosos, cumprindo as regras canónicas aplicáveis às associações públicas de fiéis. A segunda requerida foi eleita como Superiora da segunda requerente e, invocando tal qualidade, auxiliada pelo primeiro requerido, seu sobrinho, vem procedendo à dissipação de património eclesiástico (designadamente através de uma “Fundação” que não tem personalidade jurídico-canónica). Em face de tal dissipação, o Bispo titular da 1.ª requerente emitiu o Decreto de 15/07/2008, em que nomeia uma comissão para administrar a Pia União, Decreto este que vem sendo violado pelos requeridos, procedendo o primeiro com poderes que a segunda lhe conferiu por procuração, mas que não detinha, já que não lhe cabe a administração da 2.ª requerente, em decorrência daquele Decreto. Peticionando os requerentes, no caso em apreço, que os requeridos se abstenham da prática de quaisquer actos em representação da segunda requerente, nomeadamente conferir mandatos, administrar, onerar ou alienar quaisquer bens ou direitos da Pia União; que os requeridos entreguem aos actuais representantes da Pia União relação de todos os bens móveis, de todas as contas bancárias, de todos os encargos e rendimentos prediais, de todos os contratos de arrendamento, comprovativo do depósito das quantias recebidas por força de escritura, Livro de Actas; e, ainda, que sejam notificados o Centro Distrital de Santarém e rendeiros que identificam para não aceitarem a prática de quaisquer actos dos requeridos em representação da segunda requerente, actos estes que dizem respeito, fundamentalmente à administração desta, a que comummente se designa de «corporate governance» (ou « conjunto de princípios válidos para uma gestão de empresa responsável, para o seu controlo e para a sua transparência ,aí sendo abrangidas as regras jurídicas societárias(…), deveres acessórios de base jurídica, normas de gestão do tipo económico e postulados morais e de bom senso que interfiram na concretização de conceitos indeterminados, cfr. João Soares da Silva, Responsabilidade Civil dos Administradores da Sociedade : Os Deveres Gerais e A corporate governance in ROA , Ano 57,TomoII 605/628 , Menezes Cordeiro, Os Deveres Fundamentais dos Administradores Das Sociedades in ROA ,Ano66,TomoII,443/448») neste sentido cfr. também Ac. deste Supremo de14.02.2013Relatora :Cons. Ana Paula Boularot na Revista nº2542/07 .8TBOER.L1.S1 acessível via www.itij.pt) e quando está em causa, como aqui acontece, o governo desta da Pia União, à luz das regras canónicas aplicáveis às associações públicas de fiéis – pela eventual violação do Decreto de 15/07/2008, emitido ao abrigo daquelas regras, que nomeou uma Comissão para administrar a Pia União, acto este posto em causa pelos próprios requeridos na oposição que deduziram – tudo indicia que estamos aqui no domínio da violação das regras de direito canónico, como mais adiante procuraremos demonstrar. No que importa à competência internacional dos tribunais portugueses a mesma encontra-se, em primeira linha, definida «pelo que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais», dependendo, no mais, da verificação das circunstâncias elencadas no art. 65.º, n.º 1, do CPC. Relativamente à separação de poderes entre, de um lado, as Igrejas e outras comunidades religiosas, e, do outro, o Estado, uns e outros são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto, tal como definido no art. 41.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) segundo o qual «A Igrejas e outras comunidades Religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto». A respeito da separação de poderes entre a Igreja e o Estado, como se refere no acórdão deste Supremo de 26-04-2007, proferido nos autos de revista n.º 723/07 (Rel. João Bernardo), disponível in www.itij.pt «Está aqui uma emanação, em duas vertentes, da inviolabilidade de consciência, de religião e de culto: A primeira consiste na separação entre as igrejas e outras comunidades religiosas (princípio da não confessionalidade do Estado), por um lado, e o Estado por outro; A segunda, concatenada com a primeira, cifra-se na liberdade de organização e no exercício das funções e do culto que assistem àquelas (princípio de liberdade de organização e independência das igrejas e confissões religiosas). A propósito deste regime de liberdade e seus limites, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, anotação a este artigo) acentuam a “não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções de culto”, com ressalva, que aqui não nos interessa e Jorge Miranda vai mesmo mais longe, admitindo apenas os limites resultantes do artigo 29.º, n.º 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (A Concordata e a Ordem Constitucional Portuguesa, in A Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, ed. da Almedina, 79)». O art. 41.º da CRP não permite definir qual o âmbito de competência da Igreja e do Estado mas, como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho, “A separação entre o Estado e as igrejas e confissões religiosas não impede, em termos absolutos, a celebração de concordatas ou convenções entre um e outras, para regular as respectivas relações institucionais e concretizar alguma especificidade que possa haver lugar” (ob. e loc. cit.). E como tal, no desenvolvimento do princípio de liberdade de organização e independência das igrejas e confissões, a definição de competências veio a ser plasmada nas Concordatas celebradas entre a Santa Sé e a República Portuguesa, em 7 de Maio de 1940 e 18 de Maio de 2004 (doravante designadas de Concordata de 1940 e de Concordata de 2004, respectivamente). As Concordatas que Portugal assinou com a Santa Sé estão compreendidas no conceito de Convenção Internacional a que alude o art. 8.º da nossa Lei Fundamental e vigoram na ordem interna com primazia na escala hierárquica sobre o direito interno anterior e posterior – neste sentido o Acórdão de 26-04-2007 (já citado) e, conforme nele mencionados, os Acórdãos n.o 118/85, 409/87 e 218/88, no BMJ n.º 360, 501, 370, 175 e 380, 183, respectivamente. Como se adianta no mencionado acórdão de 26-04-2007, «De acordo com os artigos 3.º e 4.º da Concordata de 1940 a Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas de Direito Canónico e constituir dessa forma associações ou organizações que se administram livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica. (…) Se, porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para essas associações ou corporações». Por sua vez, a Concordata de 2004 também estabelece que «As pessoas jurídicas canónicas, reconhecidas nos termos do artigo 10.º, que, além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português». Ou seja, é o próprio regime concordatário, que, olhado em primazia, conduz à aplicação do direito interno português no que concerne à actividade assistencial das instituições. Não é este que prevalece relativamente àquele ou que se coloca a par dele, mas aquele que determina, em plano superior, a aplicação deste. Só que, no próprio artigo 4.º da Concordata de 1940 precisa-se que o regime instituído para o direito português para estas associações se tornará efectivo através do Ordinário competente. Cremos estar aqui uma estatuição relativa à incompetência dos tribunais civis para impor o próprio «regime instituído pelo direito português». Não quiseram os outorgantes o normal, ou seja, que fossem os tribunais civis portugueses a velarem pelo cumprimento do direito interno nacional. E, lembremo-nos sempre, estamos em plano hierarquicamente superior ao das normas de direito interno português.(...) Esta nossa construção complica-se, no entanto, com a entrada em vigor, em 18.12.2004, da Concordata actualmente vigente. Nela se continua, para além do regime de liberdade de organização em geral, o regime de livre constituição, modificação e extinção de pessoas jurídicas canónicas, com reconhecimento da personalidade jurídica por parte do Estado Português. Tendo-se também atentado nas pessoas jurídicas canónicas que, além dos fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade. Estatuiu-se, em consonância com o que vinha da anterior concordata, que desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza. Mas existe uma diferença. Desapareceu a referência do artigo 4.º da Concordata de 1940 quanto à imposição do direito português pelo Ordinário competente. Pelo contrário, ficou estatuído, no artigo 11.º, que, regendo-se as pessoas jurídicas canónicas pelo direito canónico e pelo direito português, cada um é aplicado pelas respectivas autoridades. Está em causa a violação do direito canónico: será chamada a intervir a autoridade da Igreja. Está em causa a violação do direito interno português: recorre-se aos tribunais civis». Neste sentido cfr. também o Ac deste Supremo de 17.02.2009 ( Rel. Cons. Lopes do Rego) proferido nos autos de Revista nº 743/08 .0TBABT-A. E1.S1 ,acessível via www.itij.pt o qual concluiu que « Face ao preceituado nos arts.10º,11º e 12º da Concordata de 2004,não se situa no âmbito da jurisdição dos tribunais portugueses a dirimição de litígios situados na vida interna de pessoas jurídicas canónicas , regidas pelo Direito Canónico, aplicado pelos órgãos e autoridades do foro canónico que exerçam uma função de vigilância e fiscalização sobre as mesmas.» Em síntese, no que importa à separação de poderes entre o Estado e as Igrejas Religiosas, perante a Concordata de 2004, o critério de distinção faz-se de acordo com esta destrinça: se está em causa a violação do direito canónico, será chamada a intervir a autoridade da Igreja; se está em causa a violação do direito interno português, recorre-se aos tribunais civis. No seguimento do critério apontado pelo citado acórdão, que acolhemos, no que respeita à separação de poderes entre o Estado e as Igrejas, em face do que supra se expôs, cumpre, antes de mais, aquilatar se tais regras decorrem da aplicação do direito canónico ou do direito interno português. As regras de administração das pessoas colectivas canónicas estão intimamente conexionadas com a sua natureza. Quanto à natureza da segunda requerente, importa ter em conta a factualidade que vem provada a tal propósito: Encontra-se assente que a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus é uma pessoa jurídica canónico-concordatária, erecta canonicamente por Decreto de 02-03-1959 do Bispo de Leiria Dom DD, cuja comunicação de participação de erecção foi feita ao Governador Civil de Santarém e registada na respectiva Secretaria sob o n.° 181, em 06/03/1959. A expressão “canonicamente erectos”, utilizada no texto concordatário é equivalente a “com personalidade jurídica” e também se entende que das normas concordatárias referidas decorre que o Estado Português parte do princípio de que as associações e fundações cuja existência lhe é participada pelo Bispo ou pelo seu representante já se constituíram e têm personalidade jurídica no âmbito civil (cf. estudo de José António Silva Marques, “Associações e Organizações”, incluído na obra Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, p. 99-100) – Ac. STJ de 20-06-2006, Revista n.º 84/06 (Rel. Paulo Sá), com sumário disponível no site deste Supremo Tribunal. Com efeito, o Estado Português reconhece a personalidade jurídica das pessoas jurídicas canónicas que, pelo regime do seu conhecimento, devem ser consideradas pessoas jurídicas de estatuto estranho à ordem nacional, já que, diferentemente do que resulta do art. 33.º do Código Civil, a sua personalidade jurídica face à ordem jurídica portuguesa resulta, não dos preceitos gerais da nossa lei, mas da regular constituição à face de um outro ordenamento (o canónico) e da respectiva notificação ou registo ao Estado Português – Rui Manuel Moura Ramos, A Concordata e o Direito Internacional Privado Português, RLJ n.º 3938, págs. 277 e segs. No caso vertente, de acordo com o art. 2.º dos respectivos Estatutos, «o fim desta Pia União é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja; em segundo lugar, a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia». Na prossecução de tais fins apurou-se sumariamente que: (i) Foi essa actividade religiosa proclamada e depois vivenciada pelas Irmãs ao longo dos tempos, sempre na submissão e prossecução dos fins da Igreja, cuja vivência das Irmãs que integravam e integram a Associação, bem como o modo como sempre se consideraram e relacionaram com a Autoridade Eclesiástica no reconhecimento da autoridade e direcção do Bispo de Leiria-Fátima e no cumprimento das normas de Direito Canónico aplicáveis às Associações Públicas de Fieis, (ii) Ao longo da vida foram cumpridos na íntegra todos os trâmites canónicos previstos para as Associações Públicas de Fieis, com vista à regularidade da eleição dos seus membros representativos, com excepção da última eleição, (iii) Dom DD, então Bispo titular da Diocese de Leiria- Fátima, nomeou em sua substituição para a primeira eleição da Madre Superiora da segunda requerente o Administrador do Santuário de Fátima, Reverendo Monsenhor EE (iv) Foi dessa forma que a primeira Superiora eleita, a segunda requerida, com o nome religioso, Irmã M...M...de Jesus, procedeu nessa eleição, bem como a Superiora eleita subsequentemente ao longo da sua vida, encarregando-se o assistente espiritual nomeado de proceder à comunicação ao Prelado da Eleição realizada, com o envio da acta para confirmação por parte do Bispo de Leiria-Fátima, procedendo ao juramento devido em acto próprio e subsequente confirmação Bispal, (v) Sendo, de resto, essa confirmação Bispal a única forma pela qual a segunda requerida pode manter-se como Madre Superiora em 10 mandados consecutivos face à limitação estatutária de dois mandatos; (vi) Pelo menos desde 1991 a segunda requerida exerceu as funções de Superiora e representante da Pia União e a sua última eleição que foi confirmada pelo Bispo de Leiria-Fátima ocorreu em 11 de Junho de 2005, para um mandato de 3 anos; (vii) A Diocese e o seu Bispo titular, confrontados com a alienação do património da requerente pelos requeridos, emitiram em 15/07/2008 um Decreto que nomeou uma comissão para administrar a Pia União, mandatando-os também para a prática de actos no sentido de proteger os bens eclesiásticos da Pia União e o Bispo de Leiria-Fátima, findo o mandato, da mesma, convocou a 2.a requerida para uma reunião onde lhe deu conhecimento do Decreto e dos novos representantes da requerente, autorizando-a apenas a dirigir os aspectos religiosos e apostólicos e de cuidado das Irmãs. No que concerne à natureza jurídica, à data da erecção da segunda requerente, o Código de Direito Canónico (de 1959) não distinguia entre associação de natureza pública ou associação de natureza privada, destrinça que só entrou em vigor com o Código de Direito Canónico de 1983. Estando em causa factos praticados na vigência do Código de Direito Canónico de 1983, atenta a data do Decreto Bispal, que nomeia uma comissão para gerir a segunda requerente (15/07/2008), cumprirá aquilatar quais as regras de administração aplicáveis à requerente: se as de direito privado português, se as de direito canónico. As regras atinentes à administração das pessoas jurídico-canónicas concordatárias estão previstas no art. 7.º das Normas Gerais da Associações de Fieis e nos Cânones 298 a 326 do aludido Código. O citado art. 7º das Normas Gerais da Associação de Fiéis estatui: 1º- Todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente ( cfr. cc.305§1 e 323§1) conforme a sua natureza . A autoridade eclesiástica competente é. - A Santa Sé: para todas associações; -O Ordinário do lugar : para as associações diocesanas e também, para as outras ,na medida em que actuem na Diocese( cfr. cân. 305§2)- 2º- À mesma autoridade compete, para exercer a vigilância ,o dever e o direito de visitar as associações de fiéis, segundo as normas do Direito e dos estatutos( cfr.cân.305 §1). 3ºConstitui objecto desta vigilância: a)Manter a integridade da fé e dos costumes ( cfr.cân.305 §1); b) Não permitir que se introduzem abuso na disciplina eclesiástica , nomeadamente na observação dos estatutos ; c) Procurar que se evite a dispersão de forças e que o exercício do apostolado se ordene para o bem comum ( cfr. cân.323§2); d) Vigiar no sentido que os bens temporais se empreguem para os fins da associação. ( cfr. cân. 325§1 4º- Todas as associações de fiéis estão sujeitas ao governo da competente autoridade ,segundo as prescrições do Direito e destas normas( cf.cân.305§ 1). As associações públicas são, de acordo com o Código de Direito Canónico, as erectas pela autoridade eclesiástica (Santa Sé, Conferência Episcopal ou Bispo, conforme o respectivo âmbito da acção), tanto as constituídas por iniciativa dos fieis como pela autoridade eclesiástica, e os respectivos moderadores, conforme os seus estatutos necessariamente católicos, devem, além de ser confirmados após eleição, prestar anualmente contas (Cân. 319, § 2). E é no seu estrito âmbito, do capítulo II – atinente às associações Públicas de Fiéis –, que o Código, no n.º 3 do parágrafo 1.º do cânone 318 dispõe que «em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a autoridade eclesiástica referida no cân. 312 (Bispo) pode designar um comissário que em seu nome dirija temporariamente a associação» (ressalva nossa). Por outro lado, no que toca às associações privadas, segundo o cân. 321 «os fiéis dirigem e governam segundo as prescrições dos estatutos». A associação privada de fiéis, nos termos do cânone 325, § 1.°, «administra livremente os bens que possui, de acordo com as prescrições dos estatutos, salvo o direito da autoridade eclesiástica de vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação». Enquanto as públicas, legitimamente erectas, administram os bens que possuem, em conformidade com os estatutos e sob a direcção superior da autoridade eclesiástica referida no cân. 312, §1, à qual todos os anos devem prestar contas da administração (cân. 319, §1), as privadas «administram, livremente os bens que possuem, de acordo com a prescrição dos estatutos, intervindo a autoridade eclesiástica apenas nos termos do cân. 305.º, § 1». Ou seja, nas associações privadas de fieis a intervenção da autoridade eclesiástica visa apenas “velar que esses bens sejam utilizados para os fins da associação, nomeadamente velar para que se observe a integridade da fé e dos costumes e cuidar que não se introduzam abusos na disciplina eclesiástica”. Confrontando isto com o pedido, temos que, de acordo com o art. 2.º dos respectivos Estatutos, «o fim desta Pia União é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja; em segundo lugar, a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia». Significa, atento os fins estatutários e o Decreto da sua erecção (02-03-1959) a segunda requerente, às luz dos aludidos cânones, constitui, in casu, uma associação pública de fiéis que se propõe ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja e promover o culto público, como se prescreve no cânone 301, § 1, o que atesta sua a natureza público-eclesiástica. Acresce que, no caso dos autos, vem provado que as Escravas da Pia União sempre desenvolveram a actividade religiosa por si proclamada e vivenciada ao longo dos tempos, na submissão e prossecução dos fins da Igreja, cuja vivência, que integravam e integram, bem como o modo como sempre se consideraram e relacionaram com a Autoridade Eclesiástica no reconhecimento da autoridade e direcção do Bispo de Leiria-Fátima e sempre no cumprimento das normas de Direito Canónico aplicáveis às Associações Públicas de Fieis. Mais, ao longo da vida foram cumpridos na íntegra todos os trâmites canónicos previstos para as Associações Públicas de Fieis, com vista à regularidade da eleição dos seus membros representativos, com excepção da última eleição. Factualidade esta substancialmente diferente da referenciada no acórdão de 22/02/2011 (Relator Silva Salazar, acessível através da www.itiji.pt) e no qual se formulava um pedido de reivindicação de bens patrimoniais da Associação. Ora, estando em causa (causa de pedir) neste procedimento cautelar a nomeação da comissão em substituição da requerida, feita de Decreto Bispal de 15-07-2008, bem como a prática de actos ligados ao governo da Pião União, dúvidas parecem não existir quanto à tutela desses actos pertencer à autoridade eclesiástica. Aliás, as instâncias também concluíram que se tratava de uma associação pública de fiéis, ainda que, e não obstante terem reconhecido da sua incompetência para a apreciação da validade do aludido Decreto, daí não hajam retirado todas as consequências, nomeadamente ao nível da incompetência internacional, e em razão da matéria, dos tribunais portugueses para conhecimento do objecto da providência cautelar. E, consequentemente, as regras pelas quais se devem reger tais actos devem ir buscar-se ao Código de Direito Canónico. Em conclusão, estando em causa a (abstenção da) prática de actos de representação da segunda requerente como seja conferir mandatos, administrar bens, onerar bens de uma associação publica de fiéis, como aqui acontece com a Pia União, a qual prossegue estatutariamente fins religiosos, como a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja e a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia, e em que se prova que os respectivos membros sempre observaram e cumpriram, na sua actividade, as normas do Direito Canónico, os tribunais judiciais portugueses não podem interferir na apreciação daqueles actos, quando praticados em conformidade com o Direito Canónico, como é o caso, por exemplo, da validade intrínseca do Decreto Bispal, de 15/072008, que nomeou uma comissão para administrar a Pia União. Chegados aqui é de concluir pela incompetência absoluta – internacional e em razão da matéria – dos tribunais judiciais portugueses para conhecer do presente procedimento cautelar, nos termos do art. 65.º, n.º 1, do CPC. Incompetência que, enquanto excepção dilatória de conhecimento oficioso, veda o conhecimento da excepção de caso julgado, por prejudicada, o que importa a absolvição dos requeridos da instância – arts. 101.º, 105.º, n.º 1, e 494.º, al. a), todos do CPC. III-Decisão: Nesta conformidade, acordam os Juízes deste Supremo em revogar o acórdão recorrido e, declarando-se a incompetência – internacional e em razão da matéria – dos tribunais judiciais portugueses para o conhecimento do pedido formulado pelas requerentes, absolvem os requeridos da instância. Custas pelas requerentes. Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Dezembro de 2013 Tavares de Paiva (Relator) Ana Paula Boularot Azevedo Ramos |