Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1118/18.9T8VRL.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PERDA DE CHANCE
NEXO DE CAUSALIDADE
ADVOGADO
PRESSUPOSTOS
JUÍZO DE PROBABILIDADE
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA TABELADA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Nos casos de dano por perda de chance processual, é adequado, para apurar a existência e a medida do dano, recorrer à operação do “julgamento dentro do julgamento”, que consiste em avaliar se existiria uma probabilidade consistente e séria de, em determinada acção, a pretensão do autor ter sido acolhida no caso de o mandatário forense não ter incumprido.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrida: MAPFRE Seguros Gerais, S.A.

1. AA instaurou a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra BB e MAPFRE Seguros Gerais, S.A., pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros), ou outra a fixar pelo Tribunal, de acordo como seu prudente arbítrio e recurso a critérios de equidade, valor esse acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal civil em vigor, a contar da citação dos Réus para os presentes autos.

Alegou para tanto, em resumida síntese, que intentou uma acção para exigir o pagamento de € 100.000,00 a uma empresa com quem contratara, tendo obtido vencimento em primeira instância e tendo esta decisão sido revogada pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

Após a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães contactou o réu, uma vez que era outro o advogado que o patrocinava na acção, para obter opinião sobre a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ao que o réu respondeu afirmativamente, passando a patrocinar o autor na acção, com a incumbência de interpor esse recurso, o que não fez no prazo legal, deixando de atender as tentativas de contacto feitas pelo autor.

Em Setembro de 2016, o autor teve conhecimento de que o réu não havia intentado o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e de que o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães havia transitado em 13 de Maio de 2016.

A probabilidade de o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça obter procedência era grande, uma vez que a questão se centrava na interpretação de uma cláusula negocial, sendo a posição de primeira instância a que melhor se ajustava ao contratado pelas partes.

O réu aceitou o patrocínio da causa em que o autor era demandante e disse estar a preparar o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça conforme instrução do autor, o que não fez, razão pela qual o autor perdeu a oportunidade de vir a receber a quantia de € 100.000,00, cuja possibilidade de êxito estima em 100%.

2. A ré contestou por excepção e por impugnação.

Alegou a excepção peremptória de falta de cobertura temporal da apólice, tendo alegado que o seguro vigorou entre 1 de Janeiro de 2014 e as 0:00 de 1 de Janeiro de 2018 e que o sinistro foi pela primeira vez comunicado à Ré com a sua citação nos presentes autos a qual ocorreu em 04 de Junho de 2018.

Mais alega que, ainda que concretamente existisse uma actuação ilícita imputável ao Réu advogado no âmbito do referido alegado patrocínio assumido perante o Autor, a sua responsabilização civil dependeria sempre do apuramento dos danos e da relação de causalidade entre estes danos e a conduta negligente. Sendo assim, a obrigação alegadamente assumida pelo Réu era uma obrigação de meios e não de resultados.

De todo o modo – continua –, a alteração da decisão de facto pelo Tribunal da Relação de Guimarães foi determinante para o sentido da decisão e não podia ser revertida pelo Supremo Tribunal de Justiça o que determina que as hipóteses de sucesso do recurso fossem nulas.

Concluiu pela procedência das excepções e improcedência da acção.

3. O réu contestou excepcionando a sua ilegitimidade e impugnando a existência de um contrato de mandato entre si e o autor ou que lhe tivesse sido cometida a apresentação do mencionado recurso.

Pediu a condenação do autor como litigante de má-fé.

4. O autor respondeu por escrito às contestações, a convite do tribunal, concluindo como inicialmente.

5. Cumprido o demais legal, houve audiência de julgamento após a qual foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, condenando os réus a pagar ao autor € 50.000,00 e juros de mora.

6. O autor interpôs recurso dessa sentença, o qual não foi admitido por intempestividade, tendo sido revogada a decisão de primeira instância por esta Relação e admitido o recurso de apelação.

7. Também o réu interpôs recurso de apelação.

8. O Acórdão, proferido a final, tinha o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, acordam em julgar improcedentes as impugnações da decisão de facto, improcedente o recurso do Autor e procedente o recurso do Réu, revogando a decisão recorrida e absolvendo os Réus do pedido”.

9. Vem agora o autor AA interpor recurso de revista, concluindo as suas alegações assim:

PRIMEIRA CONCLUSÃO

O fundamento específico de recorribilidade do acórdão sob recurso reside, por um lado, em ele ter entendido, como, muito embora erradamente, na visão do recorrente, entendeu, ser indispensável, no caso em análise, o “julgamento dentro do julgamento”.

SEGUNDA CONCLUSÃO

E, por outro lado, ele ter violado, como violou, diversas disposições legais, designadamente os artigos 3.º, 662.º-2-a) e b) e 665.º, os três do CPC.

TERCEIRA CONCLUSÃO

Devendo, pois, tal acórdão, e por ele ter incorrido, como incorreu, nos atrás referidos erros de julgamento, traduzidos, nomeadamente, em ter decidido, como decidiu, ser indispensável o “julgamento dentro do julgamento”, e na violação dos artigos 3.º, 662.º-2-a) e b) e 665.º, os três do CPC, ser anulado, com todas as consequências legais dessa anulação advenientes, o que se peticiona a V. Exas.”.

10. A ré MAPFRE Seguros Gerais, S.A, apresentou contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:

1. Não se conformando com o douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual veio, com irrepreensível clareza e coesão, reapreciar as questões fácticas e jurídicas suscitadas nos presentes autos, decidindo pela absolvição dos Réus, julgando procedente o recurso de apelação por estes interposto, insurge-se o A., ora Recorrente, lançando mão do presente recurso de revista, apresentando, para o efeito, argumentação que, salvo melhor opinião, sempre terá que improceder.

2. Na verdade, sempre se dirá que, salvo melhor e douta opinião em contrário, não poderá ser admitido o presente recurso de revista apresentado nos autos pelo Autor.

3. A argumentação preconizada pelo Recorrente nas suas alegações de recurso, revela uma clara intenção de obter uma terceira apreciação da prova e julgamento dos factos (cf. artigo 674.º, n.º 3, do CPC), de tal forma que os mesmos encaixem nas suas pretensões, o que, para além de não ser legalmente admissível, jamais poderia lograr provimento.

4. A questão suscitada pelo Recorrente não é subsumível a qualquer um dos casos previstos no artigo 674.º, não sendo igualmente enquadrável nas nulidades para as quais o referido artigo remete, previstas nos artigos 615.º e 666.º, ambos do CPC. Motivo pelo qual, forçoso será concluir que o douto Tribunal não poderá, salvo melhor opinião, sindicar o modo como a Relação decidiu sobre a matéria de facto, ancorada em meios de prova, sujeitos à livre apreciação.

5. No que diz respeito à alegada responsabilidade civil do R. Advogado e relativamente à perda de chance, cumpre referir que vem o Recorrente peticionar que seja o acórdão recorrido anulado, por ter o mesmo «(…) incorrido, como incorreu, nos atrás referidos erros de julgamento, traduzidos, nomeadamente, em ter decidido, como decidiu, ser indispensável o “julgamento dentro do julgamento”, e na violação dos 4 artigos 3.º, 662.º-2-a) e b) e 665.º, os três do CPC»., sem, contudo, fazer prova dos factos constitutivos do direito invocado, tal como exigia o artigo 342.º, n.º 1, do CC.

6. De facto, contrariamente ao entendimento preconizado na primeira instância, é dada como assente pelo acórdão recorrido a imprescindibilidade de realização de um “julgamento dentro do julgamento”, “tanto quanto à verificação da existência do dano, como, posteriormente, à sua quantificação”.

7. No seguimento de toda a prova produzida (e não produzida) nos autos, e bem assim de todas as anteriores decisões já proferidas pelas instâncias, sempre será de concluir – uma vez mais – pela manifesta improcedência da sua pretensão indemnizatória deduzida nos autos pelo A., e ora Recorrente.

8. Com efeito, e não obstante elenco dos factos provados respeitantes à aludida conduta processual das partes no âmbito da acção subjacente, forçoso será, ainda assim, concluir pela falência do pressuposto da obrigação de indemnizar, ao nível do dano por “perda de chance”.

9. No caso de responsabilidade civil de advogado, a ser admitida a ressarcibilidade do dano de perda de chance, os pressupostos de responsabilidade civil consubstanciam-se no ónus de alegação e prova da seriedade da pretensão do “lesado” (nexo de causalidade), bem como a alegação e prova da probabilidade de procedência dessa pretensão (dano).

10. De facto, não bastará que um advogado, por falta de zelo, não tenha praticado um determinado ato, para que, sem mais, nasça na esfera jurídica do seu cliente o direito à indemnização por perda de chance, sem se exigir qualquer outro requisito. Tal entendimento, de uma forma que se têm por inadmissível, afastaria os requisitos da responsabilidade civil, mormente, a necessidade de existência de danos e o nexo de causalidade entre a atuação e os danos.

11. Sobre esta matéria, pronunciou-se a veneranda Relação do Porto em Acórdão proferido em 10 de setembro de 2012 (disponível em www.dgsi.pt) nos seguintes termos: «A particularidade que ocorre na situação de “perda de chance” numa ação judicial, consiste em saber como determinar a certeza do dano e respetivo montante quando o advogado descuida o processo e a falta é contrária aos interesses do seu cliente, sendo certo que quem demanda ou é demandado tem à sua frente um resultado incerto. (…) Não consta dos factos adquiridos que a A. tenha sofrido qualquer prejuízo resultante da perda de uma probabilidade (maior ou menor) de obter a concessão de financiamento ou subsídio estatal ou qualquer outra vantagem patrimonial. Só seria possível responsabilizar o 3.º R. pela perda de uma vantagem patrimonial, que a A. deixou de obter, se tivesse sido alegado e provado pela mandante que seria certa ou haveria a possibilidade da receção da vantagem e respetivo montante e que esta não ocorreu em consequência da atuação do mandatário.

12. Veja-se, ainda, a este respeito, que não é qualquer chance que tem a virtualidade de ser indemnizável, conforme fez notar o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2022 publicado em 26.01.20227: «(…) a "chance", para poder ser indemnizável, seja "consistente e séria" e que a sua concretização se apresente com um grau de probabilidade suficiente e não com carácter meramente hipotético. Significa isto que a toda a chance ou oportunidade perdida (a todo o ato lesivo e a todo processo perdido) não se segue, como que automaticamente e sem mais, uma indemnização por dano da perda de chance: a verificação do ilícito não contém já em si o dano a indemnizar. (…) E o apuramento daquela chance séria, real e consistente terá que ser feito com recurso a um juízo de prognose póstuma que reconstitua, na medida do possível, neste processo o normal desenrolar e a decisão a proferir naqueloutro processo, ou seja o …"julgamento dentro do julgamento" – a realizar no processo onde é pedida a indemnização pelo dano de perda de chance (…)».

13. Ora, nos presentes autos não resultou provada, não tendo sido, sequer, alegada, a procedência da ação deduzida e decidida pelo Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito processo n.º 1622/12.2TBVRL. Isto porque, o A., ora Recorrente, não trouxe aos presentes autos qualquer indício da factualidade e/ou dos argumentos e meios de prova que, no seu entendimento, eram passíveis de reverter aquela douta decisão.

14. De acordo com tudo quanto supra se expôs, não se encontrando preenchidos, por nem terem sido sequer demonstrados ou alegados, os pressupostos cumulativos inerentes à responsabilidade civil do R. Advogado, não impenderá sobre a Companhia de Seguros qualquer obrigação decorrente da pretensa transferência de responsabilidade operada através da celebração do suprarreferido contrato de seguro e, consequentemente, não impenderá sobre esta Interveniente Seguradora qualquer obrigação indemnizatória perante o Autor.

15. Por mera cautela de patrocínio, cabe ainda referir que, a apólice de seguro n.º ............58, à semelhança dos diversos e sucessivos contratos de seguro de Responsabilidade Civil Profissional celebrados entre Seguradoras congéneres e a Ordem dos Advogados, caracteriza-se pela sua natureza de apólice “claims made”, correspondendo a data do sinistro à data da primeira reclamação.

16. Ora, o contrato de seguro em apreço, vigorou entre as 0:00 horas do 01 de Janeiro de 2014 e as 0:00 de 1 de Janeiro de 2018. E, tal como resultou da matéria dada como provada [cf. ponto o) do elenco de factos provados], o sinistro foi pela primeira vez comunicado à Ré com a sua citação nos presentes autos a qual ocorreu em 4 de Junho de 2018.

17. Assim, atendendo à matéria de facto julgada provada nos autos, designadamente nos pontos K, L, M, N e O, resulta, pois, evidente que, o contrato de seguro firmado pela ora Recorrida e a Ordem dos Advogado teve início a 1 de Janeiro de 2014 e terminou a 31 de Dezembro de 2017, correspondendo aquele período ao período de cobertura temporal da apólice de seguro n.º ............58.

18. Sendo certo que, uma vez vencida ou rescindida e não renovada a presente apólice, como foi o caso, conforme decorre, aliás, do ponto L da matéria de facto provada, não se encontra a ora Recorrida obrigada a assumir qualquer sinistro cuja reclamação tenha ocorrido após término do contrato de seguro – cfr. cláusula 7.ª das condições especiais.

19. Especialmente quando o risco seguro foi, entretanto, assumido pela seguradora congénere, com quem a Ordem dos Advogados contratou para as anuidades de 2018 e seguintes.

20. De modo que, a data da reclamação determina qual a apólice temporalmente competente para garantir o risco inerente à responsabilidade civil de advogado e, exonera, por isso, as demais.

21. Não se admitindo esta delimitação temporal (que é, aliás, permitida por lei), seria negar a própria natureza das apólices de reclamação, sendo que, em última instância, não sendo atendida a data da reclamação como a circunstância necessária para determinar a apólice competente, estaríamos a negar a natureza claims made das apólices em questão.

22. Na verdade, não tomando como critério a data da reclamação, as apólices de natureza claims made passariam a funcionar, na prática, como as apólices de ocorrência, violando, assim, o estatuído no artigo 139.º, n.º 2 da Lei do Contrato de Seguro.

23. Assim, e em face da factualidade julgada provada nos presentes autos – em concreto os artigos M, L, K e O - sempre deverá a Recorrida Mapfre ser absolvida de todos os pedidos contra si formulados, atenta a falta de aplicabilidade temporal da apólice contratada junto da Ordem dos Advogados, sob pena de violação do clausulado da apólice e do disposto nos artigos 39.º, 40.º, 42.º, 139.º, n.º 2 e 147.º, n.ºs 1 e 2 da Lei do Contrato de Seguro, o que, desde logo e à cautela de patrocínio, se alega e requer para os devidos e legais efeitos.

24. Por tudo quanto se encontra exposto, e ressalvando o devido respeito por melhor e douta opinião de V. Exas., deverão improceder todas as conclusões do ora Recorrente, não merecendo o douto Acórdão recorrido qualquer censura, devendo ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se, na íntegra, a douta decisão recorrida, só assim se fazendo VERDADEIRA JUSTIÇA!”.

11. Foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa o seguinte despacho:

Recurso interposto pelo vencido, tempestivamente, do acórdão desta Relação que não confirmou a sentença de primeira instância. Não foi expressamente invocada a nulidade do acórdão, como a recorrida reconhece nas suas contra-alegações. Não cremos que nos pertença decidir a inadmissibilidade do recurso por alegadamente incidir sobre matéria de facto, de resto afigurando-se-nos que o resultado, em tal caso, será a improcedência. Admite-se assim o recurso.

Notifique e oportunamente subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça”.

*

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir, in casu, é a de saber se o Tribunal recorrido procedeu bem ao decidir o caso com recurso ao critério do “julgamento dentro do julgamento”.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

A. Do acórdão proferido em 7/04/2016 pelo Tribunal da Relação de Guimarães transitado em julgado em 13/05/2016, proferido no âmbito do processo n.º 1622/12.2TBVRL que correu termos no Juízo Central Cível de..., Juiz 2, em que era A. AA e R. N..., S.A., cfr. Certidão judicial junta como doc. 1 com a petição inicial, consta que:

AA intentou a presente ação declarativa com a forma de processo comum ordinária contra NR..., S.A.", anteriormente designada por "N..., S.A.", pedindo que se condene esta a pagar-lhe euros 100.000,00.

Alegou, em síntese que, no âmbito da negociação de determinados imóveis entre si e a Ré, para aproveitamento e implementação de recurso eólicos, cedeu a esta diversos estudos de vento e estudo de impacto ambiental.

No decorrer das negociações, propôs à Ré o valor de euros 120.000,00 para venda de tais estudos, ao que a mesma, a 03-08-2008, apresentou a proposta de pagar euros 100.000,00 pelos estudos em seu poder e, no dia seguinte, expressou à Ré que aceitava a proposta após o que remeteu os aludidos estudos à Ré, que passou a ter acesso ao respectivo conteúdo e procedeu à sua utilização.

A Ré não procedeu ao pagamento da quantia de euros 100.000.00.

A Ré apresentou a contestação onde, além de impugnar factualidade alegada pelo Autor, concluiu pela procedência da excepção de prescrição e pela procedência da excepção de locupletamento do Autor.

Alegou, em síntese, quanto às excepções em referência, que a venda do estudo invocada pelo Autor estava associada à venda de imóveis ao mesmo pertencentes para instalação de um parque cólico, respeitando os mesmos às condições de vento e ambientais dos terrenos cuja aquisição foi negociada, o mesmo é dizer que, se a venda de terrenos não se efectivasse, de nada serviriam a si os referidos estudos, em sintonia com a proposta de negociação referida no documento n.° 3 junto com a petição inicial:

i) cedência total dos imóveis em questão e respectivas benfeitorias pelo preço de euros 5.000,00 por hectare, a que acresceria o valor dos estudos, no montante de euros 100.000,00;

ii) cedência do conjunto da área ao longo de 12 km da faixa da cumeada e possibilidade de parceria no conjunto da área sobrante.

A proposta de venda dos estudos era acessória à de venda/cedência dos terrenos, sem a qua) não teriam utilidade, sendo que a aquisição dos terrenos não chegou a ocorrer.

Apesar de ter entregue os estudos, os mesmos foram-lhe devolvidos sem terem sido utilizado, a aquisição dos estudos não se concretizou pelo que não assiste ao Autor o direito a receber o respectivo preço.

Sem conceder, se o direito invocado pelo Autor existisse, o mesmo teria por fundamento a responsabilidade pré-contratual, regulada no artigo 227° do Código Civil (mostrando-se o mesmo prescrito, ao abrigo do artigo 498° do Código Civil, por decurso do prazo de três anos nele previsto.

Os estudos remetidos pelo autor em sede de negociação foram-lhe devolvidos sem que deles tivesse retirado alguma utilidade, pelo que o mesmo não pode peticionar a condenação no pagamento do respectivo preço sem incorrer em locupletamento ou enriquecimento sem causa.

A Ré, no articulado em referência, deduziu ainda incidente de intervenção principal provocada passiva das empresas que, com a própria, integraram o Agrupamento P......, que pretendia apresentar proposta ao concurso para injecção de potência na rede elétrica do serviço público no Concelho de ..., em vista da qual ocorreram as negociações invocadas na lide, que são "Pr..., S.A.", "I..., S.A." e "E..., S.A.".

O autor apresentou a réplica onde concluiu pela procedência da ação e improcedência das excepções invocadas pela Ré, além de pugnar pela improcedência do incidente de intervenção principal provocada acima referido.

Quanto ao mérito da acção, alegou, em síntese que a aquisição dos estudos é independente da aquisição dos terrenos, não convoca, para sustento da sua pretensão, a responsabilidade pré-contratual da Ré, pelo que não ocorre a excepção de prescrição invocada e não ocorre enriquecimento sem causa.

O incidente de intervenção principal provocada foi liminarmente indeferido.

O incidente de intervenção de terceiros foi deduzido novamente pela Ré, tendo sido indeferido.

Em sede de audiência preliminar, relegou-se a apreciação da excepção de prescrição para sentença e procedeu-se à selecção da matéria de facto pertinente para apreciação do litigio.

Realizou-se julgamento com observância do legal formalismo e, a final, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de euros 100.000.00.

Desta sentença apelou a Ré, que conclui a sua alegação da seguinte forma:

- entendeu o tribunal a quo que, dos emails trocados pelas partes, não resultava que a venda dos referidos estudos de vento se encontrasse sujeita (i) nem à condição do Agrupamento liderado pela Recorrente ser adjudicatário do concurso público para injecção de energia na rede pública, (ii) nem à condição da venda dos terrenos pelo que, constando dos mesmos todos os elementos necessários à perfeição do negócio, foi a Recorrente condenada a pagar ao Autor o valor acordado pelos estudos, independentemente de os ter pouco depois devolvido;

- o tribunal a quo errou na apreciação da prova, o que inquinou o sentido da decisão:

- a sentença recorrida fez errada apreciação da prova inquirida nos artigos 9.°, 10.°, 12.°, 17.° e 18.° da Base Instrutória ("BI");

- e quanto à matéria inquirida no quesito 10.° da BI, foi a mesma considerada não provada; porém, quer do depoimento da Testemunha CC (depoimento de 21.01.2014, aos 11 minutos e 30 segundos) quer do depoimento apresentado por escrito pela Testemunha DD (nos Requerimentos de 15.10.2014 e de 20.01.2015) resulta absolutamente claro que é prática usual no sector sujeitar o contrato de aquisição ou de arrendamento à condição de o lote em causa ser adjudicado à empresa adquirente;

- a própria sentença, na "fundamentação da resposta à matéria da base instrutória", na p.8. e novamente na p.11, não só se apoia naqueles depoimentos para considerar provada a matéria quesitada no artigo 10.°, como refere que não foram contrariados por qualquer outro meio de prova, mostrando-se evidenciada a matéria constante da resposta ao artigo 10., pelo que tal matéria deve considerar-se provada;

- a contradição verificada na sentença recorrida eiva-a ainda de nulidade, por ambiguidade na sua fundamentação, vício que, nos termos do artigo 615.°, n.°s 1, c) e 4 do Código de Processo Civil;

- quanto à matéria quesitada nos artigos 9.° e 12.° da BI, apesar de se ler na sentença recorrida que foi dada por "não provada", a testemunha DD depôs no sentido da sua verificação (Requerimentos apresentados a 15.10.2014 e de 20.01.2015) e, como referido na p. 10 da própria sentença recorrida, "evidenciou, de modo seguro e inequívoco a matéria constante das respostas aos artigos em referência, não se mostrando bastante para evidenciar a demais matéria quesitada", pelo que esta mesma sentença apreciou erradamente a prova produzida, já que devia ter considerado a matéria provada nos exatos termos quesitados;

- também esta contradição eiva a sentença recorrida de nulidade, por ambiguidade na sua fundamentação, vicio que, nos termos do artigo 615.°, n.°s 1, c) e 4 do Código de Processo Civil, é susceptível de ser arguido na presente sede;

- ainda quanto ao quesito 12.° da BI., que inquiria sobre se o Autor sabia, desde o início, que era condição essencial para o Agrupamento ser adjudicatário do concurso público para adquirir os terrenos, sendo a aquisição dos estudos meramente acessória à aquisição dos terrenos, o tribunal a quo errou quando considerou a matéria não provada, por entender que nada constava dos emails trocados entre as partes;

- ao invés, no email remetido pelo Autor à Ré e junto como documento n.° 3 à petição inicial, pode ler-se que foi o Autor que propôs, com a venda dos terrenos para a implantação de um parque eólico, que fossem também vendidos estudos de vento que tinha na sua posse, de tal forma que, ao preço da venda dos terrenos, acresceria o custo dos estudos de vento, o que prova que a venda dos estudos era inequivocamente acessória e se encontrava dependente da venda dos terrenos;

- nesse email pode ainda colher-se as declarações do Autor de como tem vindo a fazer grandes esforços financeiros para rentabilizar os seus terrenos, nomeadamente ao nível da energia eólica, com estudos de vento, pelo que erra a sentença recorrida quando não considera o Autor uma pessoa familiarizada com o negócio das energias renováveis e, logo, conhecedor do facto (básico) de só se poder instalar um parque eólico depois de se ser adjudicatário no concurso público para injecção de energia na rede pública;

- se a aquisição dos terrenos se destinava à implantação de um parque eólico, como vai referido no email do próprio Autor, junto como Documento n.° 3 à petição inicial e se o Autor demonstrou ter conhecimentos no sector das energias, então não pode ser dado como não provado que o Autor soubesse, desde o início da negociação, que era condição essencial para a venda dos terrenos que o Agrupamento fosse adjudicatário do concurso público (o que foi igualmente confirmado pelo depoimento da testemunha DD nos requerimentos de 15.10.2014 e de 20.01.2015);

- a sentença recorrida devia ter considerado provada a matéria inquirida no artigo 12.° da BI., nos exactos termos da sua redação, com base nos elementos de prova supra indicados e, logo, considerado provado que a venda dos estudos de vento, proposta pelo Autor, era meramente acessória e acrescia à venda dos terrenos;

- quanto à matéria inquirida nos artigos 17.° e 18.° da BI., voltou a laborar em erro a sentença recorrida ao ter considerado provado apenas que os estudos de vento diziam respeito aos terrenos do Autor, pois não só foi feita prova que os estudos de vento diziam unicamente respeito aos terrenos do Autor, como também foi feita prova que não teriam qualquer interesse para a Recorrente, se não adquirisse os terrenos (documento n.° 2 junto à petição inicial com os Requerimentos do Autor de 11.06.2013 e 04.07.2013, depoimento da Testemunha DD, nos Requerimentos de 15.10.2014 e de 20.01.2015 e da testemunha CC, no registo de 21.01.2014, aos 14m e 10 seg. e 16 m e 03 s);

- pelo exposto, deveria a sentença recorrida ter considerado provada a matéria inquirida nos artigos 9.9, 10.°, 12.°, 17.° e 18.° da BI;

- considerada provada a matéria inquirida naqueles quesitos, a única decisão possível teria sido a de considerar a acção improcedente, por não provada, com absolvição da Ré do pedido porquanto, frustrando-se a venda dos terrenos do Autor, frustrou-se igualmente a venda dos estudos de vento a que diziam unicamente respeito e que a Recorrente nunca pretendeu adquirir sem tais terrenos, razão pela qual devolveu os estudos pouco depois de lhe terem sido entregues.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, sendo alterados os concretos pontos da matéria de facto supra indicados e substituída a decisão por outra, que considere improcedente a acção e absolva a Recorrente do pedido.

O Autor apresentou contra alegações em que defende a improcedência do recurso.

Cumpre-nos agora decidir.

Sendo certo que o objecto do recurso se encontra delimitado pelas conclusões da alegação - artigos 635°, n.° 4 e 640° do Código de Processo Civil – das formuladas pela Apelante resulta que as questões submetidas à nossa apreciação consiste em verificar se, em face da prova produzida, diversa deveria ter sido a decisão da I° instância sobre a matéria de facto e, no caso de procedência dessa impugnação, apurar as consequências de direito daí decorrentes.

De acordo com o disposto no artigo 662°, n.° 1 do Código de Processo Civil, "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa".

Por seu turno, o artigo 640° do mesmo diploma estabelece: 1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Cremos que a Apelante dá cumprimento aos ónus que acabámos de descrever pelo que nada obsta à apreciação do recurso nessa parte.

São os seguintes os factos em questão com referência à base instrutória:

9° A Ré transmitiu desde o início ao Autor que estava interessada em adquirir os terrenos desde que o contrato estivesse sujeito à condição do Lote I lhe ser adjudicado? Não provado.

10° É prática usual no sector sujeitar o contrato de aquisição ou arrendamento à condição do Lote em causa ser adjudicado à empresa adquirente? Não provado.

12° O Autor sempre soube que aquela condição era essencial para o Agrupamento adquirir os terrenos, sendo a aquisição dos estudos meramente acessória à aquisição dos terrenos? Não provado.

17º No que concerne aos estudos de vento e impacte ambiental relativos aos terrenos propriedade do Autor, uma vez que as negociações se frustraram, não havia interesse em adquiri-los? Não provado.

18º Os estudos em causa diziam unicamente respeito àqueles terrenos do Autor, pelo que não tinham qualquer utilidade para a Ré se não acompanhassem a aquisição dos terrenos? Provado que os estudos referidos na alínea A) da matéria assente e na resposta ao artigo 3° diziam respeito aos imóveis que a Ré propôs adquirir ao autor a 23 de Maio de 2008.

Devemos, antes do mais, reconhecer que a decisão da l° instância sobre a matéria de facto, designadamente em relação aos factos cuja decisão vem impugnada, enferma de obscuridade e mesmo contradição entre essa decisão e os fundamentos da mesma; porém, tais deficiências não consubstanciam qualquer das nulidades de sentença previstas no artigo 615° do Código de Processo Civil, como defende a Apelante, mas determina que este tribunal delas conheça, ainda que oficiosamente só dando, no entanto, azo à anulação da decisão no caso de não constarem do processo todos os elementos que, nos termos do n.° 1 do artigo 662°, permita a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto - n.° 2, c) do mesmo artigo. Não é este o caso deste processo, pelo que a supressão de tais deficiências há-de resultar da reapreciação dessa decisão por este tribunal com base nos elementos de prova constantes do processo.

Passámos em revista todos os elementos de prova juntos ao processo, em especial a correspondência trocada entre os contraentes tendo em vista o acerto do negócio projectado de compra e venda dos terrenos, lemos o depoimento prestado por escrito pela testemunha DD que representou a Ré nas negociações e que, por isso, estava em situação priveligiada para conhecer os factos em apreço e procedemos à audição da gravação dos depoimentos prestados em audiência e entendemos que os factos cujo julgamento vem impugnado resulta com clareza dos depoimentos daquela testemunha e bem assim do da testemunha CC que, na altura, exercia funções numa das empresas que integravam o agrupamento liderado pela Ré, que não foram contrariados por qualquer outro meio de prova, não obstando a esta conclusão a circunstância de quer o condicionamento do negócio estar condicionado pela adjudicação ao agrupamento do Lote I, quer a natureza acessória da da aquisição dos estudos de vento e impacte ambiental relativa aos terrenos adquirendos não constarem da correspondência trocada entre as partes.

É, para além do conteúdo daqueles depoimentos, o senso comum que impõe tal conclusão: com efeito, para que quereria o agrupamento os terrenos se esse lote lhe não fosse adjudicado, assim inviabilizando a projectada instalação do parque eólico, sabendo-se que, na proposta enviada ao Autor foram rejeitados os terrenos que não se destinavam àquele fim, designadamente a área relativa ao chamado "santuário de aves" ou seja, a charada área protegida" - ver folhas 24; e qual a utilidade dos referidos estudos se a instalação do parque se encontrava inviabilizado.

A conjugação daqueles elementos de prova com a experiência comum impõe, assim, que se considerem aqueles factos como provados.

Como assim, são os seguintes os factos provados:

1. no âmbito da negociação de determinados imóveis entre o Autor e a Ré para aproveitamento e implementação de recursos eólicos, o Autor cedeu à Ré diversos estudos de vento e estudo de impacte ambiental;(A);

2. no dia seguinte, 4 de Junho de 2008, o Autor expressa à Ré que aceita a proposta; (B);

3. a Ré devolveu os estudos que lhe tinham sido entregues pelo Autor, por carta datada de 7 de Agosto de 2008; (C);

4. no dia 23 de Maio de 2008, o Autor remeteu, por correio eletrónico, à Ré documento escrito que consta de folhas 18 a 22, cujos termos aqui se dão por reproduzidos, atenta a respectiva extensão, no qual, por referência aos imóveis e estudos referidos em 1 e 3, aquele propôs a esta, uma das duas possibilidades de negociação:

"1. cedência total, por venda, do conjunto dos espaços em questão e respectivas benfeitorias, pelo preço de euros 5.000 (cinco mil euros) por hectare.

Este preço é acrescido dos custos de estudos de ventos, durante os 4 anos já referidos, bem como do Estudo de Impacte Ambiental (EIA), no total de euros 125 mil;

2. cedência do conjunto da área ao longo dos cerca de 12 km da faixa de cumeada e possibilidade de parceria no conjunto da área sobrante.",(1° e 19°);

5. no dia 03 de Junho de 2002 a Ré, em resposta ao referido na resposta aos artigos l° e 19º, remeteu ao Autor, por correio eletrónico, a seguinte mensagem, que se alcança a folhas 23 e 24:

"Senhor AA,

Conforme o combinado, tomo a liberdade de lhe apresentar uma contraproposta em relação à proposta que teve a amabilidade de me formular.

1 - começo por referir que a área de que necessitamos é, aproximadamente, de 110.000 m2, sendo que cerca de 50.000 m2 seria a área necessária para a implantação dos aerogeradores e os restantes -aproximadamente 65.000 m2 – a chamada área de ocupação, designadamente para acessos e distância a observar entre os aerogeradores;

2 - por outro lado, prescindimos da área relativa ao chamado "Santuário das Aves ", ou seja, a chamada "área protegida”

3 - assim, estaríamos dispostos a adquirir aquela área (110. 000 m2) pelo valor global de 1,5 milhões de euros (um milhão e meio de euros);

4 - por outro lado, estamos disponíveis para pagar o valor de euros 100 mil euros pelos estudos em seu poder, designadamente estudos de ventos e de carácter ambiental.

Nesta conformidade, fico a aguardar as suas notícias, por forma a que, tão rápido quanto possível, possamos tomar decisões; . "(2° e 20°);

6. após o dia 04-06-2008, em data não apurada do mesmo mês ou do mês seguinte (Julho de 2008) a pedido da Ré, o Autor entregou a esta os estudos referidos em 1, a que ambos se reportam nas comunicações referidas em 4 e S, supra; (3°);

7. em resposta ao referido em 5, no dia 04 de Junho de 2008, o Autor remeteu à Ré, por correio eletrónico, a mensagem cujo teor se alcança a folhas 28, com o seguinte teor, além do mais:

Serve a presente para informar V. Exa. de que aceito a contra proposta enviada ontem.

Hoje mesmo já recusei outras propostas, pelo que estou na disposição de V. Exa. para qualquer informação adicional ... "

8. o Autor entregou os estudos à Ré nos termos referidos em 6 para cumprimento da proposta efectuada pela Ré que o mesmo declarou aceitar conforme referido em 7; (4°);

9. a Ré não pagou ao autor a quantia de euros 100 000,00 referida em 5; (4°);

10. a Ré era líder do agrupamento P......, constituído para apresentar proposta ao concurso para injeção de potência na rede elétrica do serviço público e ponto de recepção associado para energia elétrica produzida na central eólica, lotes 1 e 2; (5°);

11. para apresentação de candidatura do agrupamento referido em 10 ao concurso aí mencionado em relação ao lote 1, a Ré entendia ser necessário assegurar que o mesmo agrupamento tinha a disponibilidade sobre os terrenos onde destinava instalar o parque eólico respectivo; (6°);

12. era entendimento da Ré que os terrenos onde o agrupamento referido em 10 destinava instalar o parque eólico mencionado em 11 deveriam situar-se no Concelho de ... e ter vento suficiente para gerar energia eólica; (7°);

13. a Ré e outro membro do agrupamento referido em 10 contactaram o Autor para acordarem com o mesmo o arrendamento ou a aquisição de terrenos deste para o agrupamento mencionado apresentar candidatura ao concurso mencionado no mesmo ponto em relação ao lote 1; (8°);

14. a Ré transmitiu desde o inicio ao Autor que estava interessada em adquirir os terrenos desde que o contrato estivesse sujeito à condição de o Lote I lhe ser adjudicado;

15. se o lote 1 não fosse adjudicado ao agrupamento, o parque eólico não podia ser pelo mesmo nele instalado; (11°);

16. o Autor sempre soube que aquela condição era essencial para Agrupamento adquirir os terrenos, sendo a aquisição dos estudos meramente acessória à aquisição dos terrenos:

17. a Autor sabia que a aquisição dos terrenos se destinava à instalação de um parque eólico; (13°);

18. no que concerne aos estudos de vento e impacte ambiental relativos aos terrenos propriedade do Autor, uma vez que as negociações se frustraram, não havia interesse em adquiri-los;

19. os estudos em causa diziam unicamente respeito àqueles terrenos do Autor, pelo que não tinham qualquer utilidade para a Ré se não acompanhassem a aquisição dos terrenos.

Na aplicação do direito aos factos, Autor e Ré acordaram na aquisição por esta de uns terrenos pertencentes àquele, mediante proposta da Ré que viria a ser aceite pelo Autor, numa área de 110. 000 m2, pelo valor global de 1,5 milhões de euros, declarando-se a Ré disponível para pagar o valor de euros 100 mil euros pelos estudos em seu poder, designadamente estudos de ventos e de carácter ambiental.

A aquisição tinha em vista o aproveitamento e implementação de recursos eólicos pelo agrupamento P...... de que a Ré fazia parte mediante a instalação de um parque eólico, o que era do conhecimento do Autor e, assim, a celebração docontrato ficou sujeito à condição de o Lote I lhe ser adjudicado, sem que o parque eólico não podia ser pelo mesmo nele instalado, sendo que o Autor sempre soube que aquela condição era essencial para o Agrupamento adquirir os terrenos.

Subordinaram, deste modo, os contraentes a produção dos efeitos do negócio acordado a um acontecimento futuro e incerto, qual fosse a adjudicação ao agrupamento do referido Lote I.

O Lote I não foi adjudicado ao agrupamento, mas não é daí que decorre a questão que se nos coloca.

Como se referiu, na proposta que apresentou ao Autor, a Ré disponibilizou-se para pagar o valor de euros 100 mil euros pelos estudos em seu poder, designadamente estudos de ventos e de caráter ambiental; na sequência da aceitação da proposta da Ré, o Autor entregou-lhe os estudos, mas a Ré não lhe pagou a quantia acordada de euros 100 000,00.

Do que se trata é de saber se a aquisição pela Ré daqueles estudos integra um negócio autónomo em relação ao da aquisição dos terrenos ou não passava de uma cláusula acessória do mesmo de modo que os efeitos do respectivo acordo também se encontrava sujeito à dita condição, para o que importará interpretar o acordo havido, determinar o sentido das declarações negociais, tendo em vista os termos, o sentido e o fim visado, isto é, teremos de "determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com tais declarações" - Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, página 44 - tarefa que decorre no plano dos factos.

Para o efeito, haverá que lançar mão da chamada teoria da impressão do destinatário razoável consagrada no artigo 236° e seguintes do Código Civil: em princípio, "A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele." - artigo 236°, n.°1.

Porém, "Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida." - n.° 2 do mesmo artigo -sendo que, em caso de dúvida, ... prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio nas prestações," artigo 137° do Código Civil.

No caso deste processo, está provado que o Autor sempre soube que a dita condição era essencial para o agrupamento adquirir os terrenos, sendo a aquisição dos estudos meramente acessória em relação a essa aquisição, ou seja, está provado que o Autor conhecia a vontade real da Ré, no sentido de que se não tratava de um negócio autónomo mas tão só de uma cláusula acessória do negócio de aquisição dos terrenos, pelo que é com esse sentido que a declaração terá de ser emitido.

E uma vez que se não verificou a condição a que foi subordinada a produção dos efeitos jurídicos do negócio, não tem a Ré que pagar ao Autor a quantia acordada.

Termos em que se acorda em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e absolver a Ré, NR..., S.A." do pedido.

Custas pelo Autor.

B. O primeiro R. é advogado.

C. Desde o início da acção referida em A), o Autor foi representado pelo Dr. EE, Advogado, portador da cédula profissional número ....9L, com domicílio profissional em ....

D. Decidida a causa no Tribunal da Relação, o Autor procurou o primeiro réu, no sentido de obter a sua opinião sobre a possibilidade de recurso.

E. O Autor, após conferenciar com o primeiro Réu, e de acordo com a opinião jurídica deste, decidiu recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.

F. O Autor deu indicações ao 1.º Réu para recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.

G. O que ocorreu no mês de Abril de 2016.

H. O Réu não recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, nem deu qualquer conhecimento desse facto ao Autor.

I. Em Setembro de 2016, o A. teve conhecimento que o primeiro Réu não tinha recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça.

J. Com a conduta omissiva do Réu, o Autor perdeu a chance de ver apreciado o objecto do recurso, que poderia ter o mesmo resultado já obtido no Tribunal de 1.ª Instância.

K. Por apólice de seguro n.º ............58, datada de 1/01/2014, cfr. doc. 1 junto com a contestação da R. Mapfre, a Ordem dos Advogados transferiu a responsabilidade civil dos advogados com inscrição na Ordem dos Advogados que exerçam a actividade em prática individual ou societária, por dolo, erro, omissão ou negligência profissional, com capital seguro de € 150 000,00 até 1/01/2018.

L. No artigo 2.º, n.º 1 das Condições Especiais de Responsabilidade Civil Profissional consta que:

Mediante o pagamento do prémio, e sujeito aos termos e condições da apólice, a presente apólice tem por objectivo garantir ao segurado a cobertura da sua responsabilidade económica emergente de qualquer reclamação de Responsabilidade Civil de acordo com a legislação vigente, que seja formulada pelo segurado, durante o período do seguro, pelos prejuízos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados a terceiros, por dolo, erro, omissão ou negligência, cometido pelo segurado ou por pessoal pelo qual ele deva, legalmente responder no desempenho da atividade profissional ou no exercício de funções nos Órgãos da Ordem dos Advogados

M. Do artigo 7.º Condições Especiais de Responsabilidade Civil Profissional consta que:

ÂMBITO TEMPORAL

O segurador assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, coberta pela presente apólice, e mesmo ainda, que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice, e sem qualquer limitação temporal da retroactividade.

Pelo contrário, uma vez rescindida ou vencida e não renovada a presente apólice, o segurador não será obrigado a assumir qualquer sinistro cuja reclamação seja apresentada após a data da rescisão ou término do contrato, sem prejuízo sempre de norma ou princípio mais favoráveis da legislação portuguesa reguladora do contrato de seguro e da actividade seguradora.

Para os fins supra indicados, entende-se por reclamação a primeira das seguintes comunicações:

a) Notificação oficial por parte do sinistrado, do tomador do seguro ou do segurado, ao segurador, da intenção de reclamar ou de interposição de qualquer acção perante os tribunais;

b) Notificação oficial do tomador do seguro ou do segurado, ao segurador, de uma reclamação administrativa ou investigação oficial, com origem ou fundamento, em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, que haja produzido um dano indemnizável à luz da apólice;

c) Por outra via, entende-se por reclamação qualquer facto ou circunstância concreta, conhecida “prima facie” pelo tomador do seguro ou segurado, da qual resulte notificação oficial ao segurador, que possa razoavelmente determinar ulterior formulação de um pedido de ressarcimento ou accionar as coberturas da apólice.

(…)”.

N. Do Ponto 9. das Condições Particulares do Seguro de Responsabilidade Civil consta que:

FRANQUIA:

Estabelece-se uma franquia de 5.000,00 Euro por sinistro, não oponível a terceiros lesados”.

O. O sinistro foi pela primeira vez comunicado à Ré com a sua citação nos presentes autos, a qual ocorreu em 04 de Junho de 2018.

O DIREITO

Da admissibilidade e do objecto do presente recurso

Deve dizer-se, desde já, que as conclusões do recorrente não são abundantes nem em número nem em desenvolvimento de forma quanto aos fundamentos que justificam a interposição do recurso.

Compreende-se, naturalmente, que a decisão recorrida não satisfaz as expectativas do recorrente, mas não é claro a que “erros de julgamento” o recorrente se refere (se estão em causa, em rigor, verdadeiros “erros de julgamento”).

Recorrendo às alegações, compreende-se melhor que o recorrente não se conforma com o facto de a Relação ter decidido ser aplicável o critério do “julgamento dentro do julgamento” (cfr. alegações 3, 4 e 5) e, tendo decidido ser aplicável o critério do “julgamento dentro do julgamento”, ter decidido ela própria e, designadamente, não ter remetido os autos à 1.ª instância, o que importaria violação do artigo 662.º n.º 2, als. a) e b), do CPC, e sem notificar as partes, o que importaria violação dos artigos 3.º e 665.º do CPC (cfr. alegações 6 e 7).

Aparentemente, existem, em suma, no entender do recorrente, duas questões: uma relacionada com a aplicação do critério do “julgamento dentro do julgamento” e outra relacionada com a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, que envolve, em primeira linha, a violação do artigo 662.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC.

Ora, sobre esta última questão vem a propósito recordar o que se dispõe – categoricamente – no n.º 4 do artigo 662.º do CPC:

Das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.

Sobre os limites à recorribilidade de revista impostos nesta norma observa Abrantes Geraldes:

Todavia, esta delimitação não é totalmente rígida. Com efeito, é admissível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjectivo conexas com a apreciação da decisão sobre a matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento de deveres previstos no art. 662.º

Ao Supremo Tribunal de Justiça é ainda legítimo sindicar a decisão da matéria de facto nas circunstâncias referidas no art. 674.º, n.º 3, e apreciar criticamente a suficiência ou a insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do art. 682.º, n.º 3.

Deste modo:

a) Se forem desconsiderados factos que se mostrem necessários para constituir base suficiente para a decisão de direito, o Supremo pode determinar a baixa do processo para o efeito, nos termos do artigo 682.º, n.º 3.

b) O Supremo pode intervir quando, na circunscrição dos factos provados ou não provados, as instâncias tenham desatendido disposição expressa da lei que exija certo tipo de prova (maxime documento legalmente necessário para a prova de certo facto) ou tenham desconsiderado disposição igualmente expressa que defina a força de determinado meio de prova (art. 674.º, n.º 3), como ocorre com documentos autênticos, com a confissão ou com o acordo das partes estabelecido no processo e que seja relevante.

c) O Supremo reiteradamente vem assumindo o entendimento de que, embora não possa censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos pelo art. 662.º, n.ºs 1 e 2, já pode verificar se a Relação, ao usar tais poderes, agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer. Por isso, quando, no âmbito da revista em que tal questão seja suscitada, se constate o incumprimento dos deveres legais nessa área, o processo deve ser remetido à Relação, a fim de lhes ser dado cumprimento1.

As observações do comentador têm manifesta correspondência / adesão na jurisprudência deste Supremo Tribunal.

Veja-se, só para um exemplo, o Acórdão de 30.05.2019 (Proc. 156/16.0T8BCL.G1.S2)2:

(…) a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no tocante à decisão sobre a matéria de facto é meramente residual. Destina-se, no essencial, a garantir a observância das regras de Direito probatório material ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, conforme resulta das disposições do n.º 3 do artigo 674.º e do n.º 3 do artigo 682.º do CPC, determinando-se no primeiro destes dispositivos que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objecto de recurso de revista”, só podendo o Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido no respeitante à matéria de facto quando, nessa fixação, tenha havido “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”3.

Em particular, a propósito do disposto no artigo 662.º do CPC, salienta Rui Pinto que “[o] n.º 4 do artigo 662.º é perentório a determinar a irrecorribilidade das decisões através das quais a Relação exerce os poderes previstos nos n.ºs 1 e 2 (…). Portanto, o Supremo não pode julgar se a prova foi bem ou mal avaliada e se o facto foi bem ou mal dado como provado. Por ex., não é sindicável a reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, como sejam a prova testemunhal, a prova por documento sem força probatória plena, a prova pericial e a prova por presunções judiciais”4.

Todavia, como também se disse atrás, tem sido defendido, designadamente neste Supremo Tribunal de Justiça, que é admissível julgar o modo de exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto que são confiados à Relação pelo artigo 662.º do CPC, dado que esta previsão constitui “lei de processo” para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC5. A emergência de uma questão desta natureza faz, aliás, com que a dupla conformidade seja mera aparência, tornando, portanto, irrelevante a sua alegação, como decorre da decisão proferida pela Formação nestes autos6.

Isto significa que, com as cautelas / limites acima descritos, este Supremo Tribunal está autorizado a apreciar o modo como o Tribunal recorrido exerceu estes poderes e, designadamente, de o censurar se se concluir que existiu um “mau uso”7 (uso indevido, insuficiente ou excessivo) destes poderes8. Isto é, naturalmente, diferente de sindicar os resultados a que chegou o Tribunal recorrido, i.e., de controlar a sua decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, que, essa sim, estaria interdita a este Supremo Tribunal9”.

Sucede que, nem quando conjugadas com as alegações, das conclusões do recorrente resulta que a pretensão do recorrente seja reconduzível a qualquer das hipóteses, acima referidas, em que é admissível, a título excepcional, a intervenção do Supremo Tribunal no âmbito da decisão sobre a matéria de facto.

Não se verificam nem a hipótese em que o Supremo Tribunal de Justiça entende que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a questão de direito (cfr. artigo 682.º, n.º 3, do CPC, nem a hipótese em que o recorrente alega a violação de regras de Direito probatório material (cfr. artigo 674.º, n.º 3, do CPC), nem a hipótese em que o recorrente alega o mau uso pela Relação dos poderes de reapreciação da matéria de facto.

O recorrente alega a violação do artigo 662.º, als. a) e b), do CPC, o que significa que põe em crise as decisões do Tribunal recorrido de não ordenar a renovação da produção da prova [cfr. al. a) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC] e a produção de novos meios de prova [cfr. al. b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC]. Mas isto não equivale a qualquer das hipóteses em que excepcionalmente se admite a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça. Através daquela alegação são impugnadas decisões específicas (de conteúdo negativo ou de abstenção) quanto à matéria de facto cujo conhecimento implicaria não apenas apreciar da conformidade do comportamento da Relação às normas jurídicas mas pressuporia um envolvimento directo na matéria de facto. Ora, isto é insustentável para o Supremo Tribunal, vocacionado que está para o conhecimento exclusivo de questões de direito10. Acrescente-se que um entendimento diferente equivaleria a fazer tábua rasa do disposto – categoricamente – no n.º 4 do artigo 662.º do CPC.

Do recurso ao critério “julgamento dentro do julgamento

A única questão remanescente respeita, então, à aplicação do critério do “julgamento dentro do julgamento”.

Recorrendo, mais uma vez, às alegações de recurso, percebe-se que o recorrente imputa a decisão de procedência do recurso da ré (com a qual não se conforma) à aplicação daquele critério, critério que, segundo ele, não é aplicável, já que nenhuma norma o impõe ou sequer o consagra (cfr., sobretudo, alegações 3 e 4).

Veja-se.

Nos presentes autos respeitam a uma acção de responsabilidade pelo dano por perda de chance ou de oportunidade processual11.

Sobre esta matéria foi proferido recentemente um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência – o AUJ n.º 2/2022, de 5.07.2021 (Proc. 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A), que uniformizou jurisprudência no sentido de que “[o] dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade”.

Diz-se aí, entre outras passagens relevantes:

colocando-se num processo (como acontece no caso do processo do Acórdão fundamento e no caso deste processo) a questão da indemnização pelo dano da perda de chance, tal probabilidade - o mesmo é dizer, a consistência concreta da oportunidade ou "chance" processual que foi comprometida - tem sempre que ficar apurada/provada, uma vez que, sem a mesma estar apurada/provada, não se poderá falar em "dano certo" e sem este não pode haver indemnização.

Apuramento este que terá assim que ser feito na apreciação incidental - o já chamado "julgamento dentro do julgamento" - a realizar no processo onde é pedida a indemnização pelo dano de perda de chance, em que se indagará qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometido o ato lesivo (a falta do mandatário), indagação que no fundo irá permitir estabelecer, caso se apure que a ação comprometida tinha uma suficiente probabilidade de sucesso (ou seja, no mínimo, uma probabilidade de sucesso superior à probabilidade de insucesso), que há dano certo (a tal chance "consistente e séria") e ao mesmo tempo o nexo causal entre o facto ilícito do mandatário e tal dano certo.

Apreciação/decisão hipotética em que, sendo assim, se procurará, num juízo de prognose póstuma, reconstituir, para efeitos da possível indemnização do dano da perda de chance, o desenrolar e a decisão que o processo (onde foi cometida a falta do mandatário) teria tido - na perspetiva do tribunal que o teria que decidir - sem tal falta do mandatário, com o que, concluindo-se que o processo teria tido uma suficiente (no referido limiar mínimo) probabilidade de sucesso, se estará também a concluir ter sido o evento lesivo conditio sine qua non (requisito mínimo da causalidade jurídica) do dano.

Apreciação/decisão hipotética que acabará também por relevar para o quantum indemnizatório, uma vez que a indemnização deve corresponder ao valor da chance perdida e este valor será o reflexo do grau de probabilidade da perda de chance em relação à vantagem que se procurava e se perdeu em definitivo

Assim, visando-se com tal apuramento estabelecer o preenchimento de requisitos da responsabilidade civil (dano e nexo causal), estão em causa (no subsequente processo, em que se pede a indemnização pelo dano da perda de chance) elementos/factos constitutivos do direito indemnizatório invocado pelo lesado/mandante, sendo este - face ao encargo que o ónus da prova, quando aos requisitos da responsabilidade civil, lhe coloca (cf. 342.º/1 do C. Civil) - que terá que fornecer os elementos que irão permitir apurar qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometida a falta do advogado (ou seja, os factos que irão permitir apurar que o processo comprometido tinha uma suficiente, no referido limiar mínimo, probabilidade de sucesso ou, dito por outras palavras, que a chance perdida era consistente e séria).

Não se ignora que tal apuramento - tal "julgamento dentro do julgamento" - nem sempre será fácil, havendo casos em que, traduzindo-se (como no Acórdão recorrido) a falta do mandatário na não interposição de recurso de apelação, poderá ser relativamente acessível averiguar, com elevada probabilidade, o desfecho que o processo teria tido sem tal falta do mandatário; e havendo casos em que, traduzindo-se (como no Acórdão fundamento) a falta na não apresentação tempestiva do requerimento probatório, será bem menos acessível estabelecer o desfecho que o processo (dependente de prova que não foi produzida) teria tido sem a falta do advogado.

Tanto mais que, repete-se, no incidental "julgamento dentro do julgamento", como juízo de prognose póstuma que é, o que se pretende alcançar é a prova da decisão hipotética que o processo teria tido sem a falta do mandatário (tendo em vista reconstruir a situação hipotética que, sem tal falta, existiria), ou seja, o tribunal da ação de indemnização deve adotar a perspetiva do tribunal que teria que decidir o processo e não exatamente o seu prisma de decisão, uma vez que, insiste-se, o que está verdadeiramente em causa, em termos de configuração jurídica, é a reconstituição do curso hipotético dos acontecimentos sem o evento/facto lesivo (reconstituição de que a decisão hipotética do processo, na perspetiva do tribunal que teria decidido o processo, é instrumental”.

Quer dizer: o Supremo Tribunal de Justiça dá por assente que, nestes casos, para apurar a existência e a medida do dano, recorrer à operação do “julgamento dentro do julgamento”, que consiste em avaliar se existiria uma probabilidade consistente e séria de, em determinada acção, a pretensão do autor ter sido acolhida no caso de o mandatário forense não ter incumprido.

Ora, o que fez, neste caso, o Tribunal a quo foi, justamente, efectuar esta operação e decidir em conformidade.

Diz-se no Acórdão recorrido:

No que se refere à perda de oportunidades processuais imputável ao advogado, vem o Supremo Tribunal de Justiç defendendo a realização de um julgamento dentro do julgamento com vista a apurar a viabilidade de êxito da pretensão perdida única possibilidade de indemnização (exceptuados os casos em que a indemnização se refere a danos de natureza não patrimonial relacionados com angústia ou sofrimento causados pela atitude negligente do advogado em quem se confia, o que não está em causa).

Assim, a chance só adquire relevo e consistência em função dos resultados que se esperam. (…) A única utilidade que pode retirar-se de uma chance resulta da sua eventual realização e, portanto, da verificação do resultado favorável esperado: resultado de que só poderá beneficiar, geralmente, quem tem essa expectativa.

Em suma, a certeza da ausência de causalidade adequada que referimos no ponto anterior, é desde logo um limite à aplicabilidade do regime da perda de chance.

Do que vimos dizendo, ressalta a divergência com a primeira instância, com o devido respeito pela posição expendida, por isso que entendemos ser indispensável o “julgamento dentro do julgamento” tanto quanto à verificação da existência do dano como, posteriormente, à sua quantificação.

No que a tal se refere, ou seja, fazendo o julgamento dentro do julgamento, importa atentar no teor do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães transcrito na factualidade assente, salientando qual a situação que nele e na sentença de primeira instância foi julgada e a razão de julgar numa e noutra instância.

Fazendo-o, temos que o montante que o Autor exigia na acção à aí Ré era relativo ao pagamento de uns estudos de vento que lhe entregara no contexto de um contrato de compra e venda de terrenos destinados à instalação de um parque eólico. A posição do Autor era a de que a entrega dos estudos e o pagamento do seu preço era independente da venda dos terrenos, que não chegara a concretizar-se. A Ré, por sua vez, defendeu que a entrega dos estudos era instrumental da venda dos terrenos e apenas interessava se essa venda se concretizasse, o que não aconteceu.

Neste contexto da demanda, a primeira instância deu como não provados os factos relativos à ligação entre os dois negócios e a segunda instância, na reapreciação da decisão de facto, deu como provado que os estudos de vento se referiam aos terrenos e que ambas as partes sabiam que só interessava à Ré adquiri-los se adquirisse os terrenos a que esses estudos se reportavam e nos quais pretendia instalar um parque eólico.

Entendemos que face ao regime jurídico de recursos aplicável não pode entender-se demonstrada a igual probabilidade de o Autor, no recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, obter ou não vencimento de causa.

Na verdade, a questão decisiva não era uma questão jurídica em que a primeira instância tivesse seguido uma orientação e a Relação uma outra, podendo o Supremo optar por uma ou outra (negligenciando eventuais questões de jurisprudência maioritária, unânime ou fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça).

A questão decisiva é a de facto. E a decisão de facto é, em última instância, da Relação uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça não conhece de facto no que respeita aos meios de prova sujeitos a livre apreciação, como o são os que motivaram a decisão das instâncias.

É o que resulta do artigo 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Para concluir, entendemos que o “julgamento dentro do julgamento” determina se considere que a probabilidade de o recurso obter provimento não está demonstrada face aos factos apurados, que o mesmo é dizer, não está demonstrada a existência de um dano por perda de uma situação favorável”.

Nada se vê, em conclusão, na conduta do Tribunal a quo que mereça censura.

O Tribunal a quo limitou-se a adoptar um critério que é consensualmente reconhecido e seguido, designadamente neste Supremo Tribunal de Justiça, para avaliar do dano por perda de chance processual.

Ao contrário do que pensa o recorrente, não é o facto de ele não estar consagrado explicitamente numa norma que lhe retira valor nem validade. O critério do chamado “julgamento dentro do julgamento” é uma aplicação do regime geral da responsabilidade civil ou, por outras palavras, é a adaptação das regras, em particular, da causalidade adequada e do dano ao caso especial da responsabilidade civil pelo dano de perda de chance processual.

Por fim, o recorrente sustenta ainda que a aplicação do critério do “julgamento dentro do julgamento” deveria, pelo menos, ter sido objecto de notificação às partes nos termos dos artigos 3.º e 665.º do CPC.

Mas não lhe assiste razão. Não está em causa, de forma alguma, uma situação do tipo das previstas naquelas normas, ou seja, em que se impusesse ouvir as partes nos termos do n.º 3 do artigo 3.º ou do n.º 3 do artigo 665.º do CPC. Não está em causa, de facto, uma “decisão-surpresa” no sentido de que a solução aplicada ou a questão decidida é inesperada. Tratou-se, simplesmente, de aplicar um critério de direito que é, como se viu, sobejamente conhecido e consensualmente aceite na jurisprudência portuguesa a uma questão que tinha sido já amplamente discutida pelas partes e decidida pela 1.ª instância.

Acrescente-se que o Tribunal de 1.ª instância não desconheceu ou ignorou o critério do “julgamento dentro do julgamento”, tendo-se-lhe referido expressamente na sentença, apenas tendo decidido rejeitá-lo.

*

III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.

*

Custas pelo recorrente.

*

Lisboa, 11 de Janeiro de 2024

Catarina Serra (relatora)

Cura Mariano

Fernando Baptista

____


1. Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), pp. 358-159.

2. Cfr., para outro exemplo, o Acórdão de 17.10.2019 (Proc. 1565/16.0T8PNF.P1.S1).

3. Sobre isto cfr., por todos, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 397 e s. e pp. 431 e s.

4. Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 339.

5. Cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2016, Proc. 907/13.5TBPTG.E1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).

6. Cfr., no mesmo sentido, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I - Parte Geral e Processo de declaração – Artigos 1.º a 702.º, Coimbra, Almedina, 2018, p. 800. Dizem eles que “é de rejeitar a aparente verificação da dupla conforme, à luz do art. 671.º, n.º 3, nos casos em que, apesar da confirmação da sentença da 1.ª instância pela Relação, o recorrente suscita a violação de preceitos adjectivos relacionados com a aplicação do art. 662.º”.

7. Partilha-se a expressão usada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.07.2015, Proc. 284040/11.0YIPRT.G1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt)

8. Reproduzindo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.07.2011, Proc. 645/05.2TBVCD.P1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt): “[s]e a este Supremo Tribunal lhe é vedado sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, já lhe é, todavia, possível verificar se, ao usar tais poderes, agiu ela dentro dos limites traçados pela lei [] para os exercer”.

9. Cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.10.2009, Proc. 1834/03.0TBVRL-A.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).

10. Para um exemplo da inadmissibilidade de recurso de decisões (de conteúdo positivo) do mesmo tipo cfr. o recente despacho deste Supremo Tribunal de Justiça de 29.03.2023 (Proc. 3338/17.4T8AVR.P1-A.S1)

11. Sobre o tema da responsabilidade por perda de chance encontra-se, na doutrina portuguesa, uma profusão de estudos e referências. Cfr. para alguns exemplos, Paulo Mota Pinto, “Perda de chance processual”, in: Revista de Legislação e Jurisprudência, 2016, n.º 3997, pp. 174 e s., Manuel Carneiro da Frada, Direito civil. Responsabilidade civil — O método do caso, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 107-108, Manuel Carneiro da Frada, “Danos societários e governação de sociedades (corporate governance)”, in: Cadernos de Direito PrivadoII Seminário dos Cadernos de direito privado – Responsabilidade civil, 2012, pp. 31-48, Júlio Vieira Gomes, “Sobre o dano da perda de chance”, in: Direito e Justiça, 2005, Vol. XIX, pp. 9 e s., Júlio Vieira Gomes, “Ainda sobre a figura do dano da perda de oportunidade ou perda de chance”, in: Cadernos de Direito PrivadoII Seminário dos Cadernos de direito privado – Responsabilidade civil, 2012, 17 e s., Júlio Vieira Gomes, “Em torno do dano da perda de chance – Algumas reflexões”, in: Ars Ivudicandi – Estudos em Homenagem do Professor Doutor António Castanheira Neves, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 289 e s., Rute Teixeira Pedro, A responsabilidade civil do Médico. Reflexões sobre a perda de chance e a tutela do doente lesado, Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra / Coimbra Editora; Coimbra, 2009, Rute Teixeira Pedro, “Reflexões sobre o dano da perda de chance à luz da jurisprudência”, in: Novos olhares sobre a responsabilidade civil, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2018, pp. 183 e s., Rui Soares Pereira, O nexo de causalidade na responsabilidade delitual, cit., pp. 1189 e s., Rui Cardona Ferreira, Indemnização do interesse contratual positivo e perda de chance (em especial, na contratação pública), Coimbra Editora, Coimbra, 2011, Rui Cardona Ferreira, “A perda de chance – Análise comparativa e perspetivas de ordenação sistemática”, in: O Direito, 2012, tomo I, pp. 29 e s., Rui Cardona Ferreira, “A perda de chance revisitada (a propósito da responsabilidade do mandatário forense)”, in: Revista da Ordem dos Advogados, 2013, vol. IV, pp. 1301 e s., Rui Cardona Ferreira, “The Loss of Chance in Civil Law Countries: A Comparative and Critical Analysis”, in: Maastricht Journal of European and Comparative Law, 2013, vol. 20, pp. 53 e s., Nuno Santos Rocha, “Perda de chance como uma nova espécie de dano”, Coimbra, Almedina, 2016, Durval Ferreira, “Dano da perda de chance – responsabilidade civil”, Lisboa, Vida Económica, 2017 (2.ª edição), Patrícia Cordeiro da Costa, Causalidade, dano e prova: a incerteza na responsabilidade civil, Coimbra, Almedina, 2016 (2.ª edição), Patrícia Cordeiro da Costa, “A perda de chance – Dez anos depois”, in: Julgar, 2020, n.º 42, pp. 51 e s.