Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17924/16.6T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE DELITUAL
PEDIDO SUBSIDIÁRIO
CAUSA DE PEDIR
RESOLUÇÃO DO BES
RESOLUÇÃO BANCÁRIA
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / PETIÇÃO INICIAL / PEDIDOS SUBSIDIÁRIOS.
Doutrina:
- António Pedro de Azevedo Ferreira, A Relação Negocial Bancária, p. 689;
- Catarina Anastácio, A Transferência Bancária, p. 124;
- L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Bancário, 2017, p. 129/130;
- Mafalda Miranda Barbosa, A Propósito do BES – Algumas Notas acerca da medida de resolução, Boletim de Ciências Económicas, LVIII.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 554.º.
Sumário :
I - O contato que normalmente se estabelece entre o banco e o cliente tem em vista a manutenção de uma relação negocial que perdura no tempo e que permite às partes a concretização dos mais diversos negócios (transferências, cartões para efetuar pagamentos, concessão de créditos, etc.).

II - No caso em apreço, as instâncias focaram-se no pedido subsidiário assente em factos integradores de responsabilidade delitual/extracontratual do réu DD por atos de comissário, olvidando que o pedido subsidiário só pode ser tomado em consideração se não proceder o pedido principal (art. 554.º do CPC).

III - Configura um contrato de depósito bancário, a situação em que os autores abriram, na agência de ... do DD, duas contas (uma a prazo e outra à ordem) e procederam à entrega de diversas quantias, nesse balcão, para provisionamento das mesmas, aplicando essas quantias ao longo dos anos em novos depósitos, com diferentes prazos e taxas, à medida em que os anteriores se foram vencendo.

IV - O Banco de Portugal, através da medida de resolução de 03-08-2014, transferiu a totalidade da atividade prosseguida pelo DD e um conjunto dos seus ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão deste, para um banco de transição – o CC.

V - No caso em apreço, o passivo transferido para o CC, em consequência da resolução referida em IV, corresponde ao valor do saldo da conta bancária onde os autores efetuaram vários depósitos em dinheiro, com a sequente condenação do CC ao pagamento de tal quantia.
Decisão Texto Integral:  

PROC. N.º 17924/16.6T8LSB.L1.S1

REL. 101[1]

                                                           *

   ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

AA e BB, residentes em ... n.º …, ..., …, intentaram contra CC, S.A. e DD, S.A., ambos sediados em Lisboa, a presente acção declarativa, pedindo que sejam condenados solidáriamente:

Na restituição das quantias entregues pelos Autores, na conta de depósito a prazo identificada, acrescidas dos juros contratualmente fixados, vencidos e vincendos, no montante global de € 926.126,00;

 No pagamento da quantia não inferior a € 5.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais;

Subsidiáriamente, pedem que o Réu DD seja condenado a pagar-lhes o montante de € 926.126,00 e a quantia de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais, a título de responsabilidade extracontratual por actos do comissário.

Para tanto, alegaram, em síntese e no essencial, o seguinte:

- No início de 2003, os Autores, que se encontravam emigrados na ..., deslocaram-se ao balcão  do BB, na ..., em ..., onde abriram uma conta bancária para depósitos a prazo e uma outra conta para depósitos à ordem;

- Ao longo dos anos, e até 2013, foram entregando, nesse balcão, quantias em dinheiro para serem depositadas na conta a prazo, num total que ascende a € 760.128,00;

- Era o gerente do balcão, EE(que veio a felecer em 04.09.2013), quem sempre atendia o Autor;

 - Vieram a descobrir, posteriormente, através de carta que lhes foi enviada pelo DD em resposta ao pedido de esclarecimento sobre os montantes existentes na conta de depósito a prazo, que as quantias entregues não haviam entrado nessa conta, como julgaram e como solicitaram;

- Ambas as instituições bancárias são responsáveis pela restituição destes valores, quer porque o dito funcionário sempre se apresentou ao serviço do DD e as aludidas operações sempre se realizaram nas instalações do Banco, criando aos Autores a total convicção de que o dinheiro estava a ser devidamente depositado, quer porque, já no que concerne ao CC, todos os depósitos feitos junto do então DD foram transferidos para a nova instituição bancária, tendo todas as responsabilidades contratuais e patrimoniais do DD transitado para o CC.

O Réu CC contestou defendendo-se por excepção e por impugnação, pedindo a procedência da excepção da sua ilegitimidade passiva ou, cautelarmente, a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide. Caso assim não se entenda, pede a sua absolvição dos pedidos formulados pelos Autores.

Para tanto e em síntese alegou não existir à data dos factos alegados na petição inicial, aos mesmos sendo alheio. Mais invocou que a alegada responsabilidade do DD, por efeito de actuação ilícita de um seu funcionário, não constitui um passivo consolidado, registado na contabilidade, estando-se perante uma mera contingência que não foi transferida para o CC.

O Réu DD também contestou a acção, defendendo-se por excepção e por impugnação, pugnando pela extinção da instância, ao abrigo do artigo 277º, alínea e), do CPC. Caso assim não se entenda, pede que se ordene a suspensão da instância, nos termos do disposto no artigo 272º, n.º 1, do CPC, e/ou se julgue improcedente a acção absolvendo-se o Réu dos pedidos contra si formulados.

Os Autores responderam às matérias de excepção, pedindo a improcedência das mesmas.

Findos os articulados, o Mmº Juiz da 1ª instância proferiu saneador-sentença, no qual:

- Declarou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, ao abrigo do artigo 277.° alínea e) do Código de Processo Civil, quanto ao Réu DD SA, em liquidação;

- Julgou improcedente a excepção dilatória de ilegimidade, declarando o Réu CC SA parte legítima;

- Julgou a presente acção totalmente improcedente, por não provada, no que respeita ao Réu CC SA, o qual, em consequência, foi absolvido dos pedidos contra si formulados.

Inconformados com a decisão, no segmento relativo ao CC, os Autores interpuseram recurso de apelação.

No entanto, a Relação de Lisboa confirmou o julgado, embora com voto de vencido de uma Ex.ª Desembargadora.

Novamente inconformados, interpuseram os Autores recurso de revista, cujas alegações terminam do seguinte modo:

A acção instaurada pelos ora Recorrentes contra o CC centrou-         -se, a título principal, na existência de um contrato de depósito e no exercício do respectivo direito contratual de restituição dos montantes depositados, isto é, no reembolso de todas as quantias entregues pelos Recorrente ao DD, acrescidas dos juros contratualmente fixados vencidos e vincendos, no montante global de € 926.126,00 (depósito que, com a medida de resolução do ..., se transmitiu para o CC);

A matéria de facto é inequívoca e não foi impugnada pelo CC, que poderia tê-lo feito, mas não fez;

Ficou demonstrada nos autos: i) a existência de um contrato de depósito a prazo celebrado entre os ora Recorrentes e o DD (FACTO ASSENTE N.º 1), ii) Os depósitos efectuados pelos Recorrentes ao longo de cerca de dez anos (entre 20.10.2013 e 11.04.2013) totalizaram CHF 828.744,92 (o que equivale a cerca de € 760.128,00) [FACTOS ASSENTES N. OS 3 E 5], e iii) Os vários depósitos foram sendo sucessivamente aplicados em novos 180.990,77 (€ 165.999,00)[FACTOS ASSENTES N.OS 6 E 7];

D)        Perante o aludido enquadramento factual, a solução jurídica não pode ser outra senão a de considerar os depósitos como tendo sido transmitidos para o CC, conclusão que foi defendida pela Veneranda Desembargadora que votou vencido no Acórdão recorrido, segundo a qual «o crédito dos Autores fundamenta-se num vulgar contrato de depósito bancário e, por isso, transferiu-se para o CC»;

E)        A circunstância de se reconhecer - como faz o Acórdão recorrido e a sentença do Tribunal de 1.ª instância - a existência dos depósitos bancários dos Recorrentes impõe o reconhecimento da sua transmissão para o CC;

F)       É que os depósitos bancários são isso mesmo: depósitos bancários, querendo
com isto os Recorrentes fazer notar que não existem depósitos bancários vulgares e
depósitos bancários invulgares, sendo, s.m.o., absurdo considerar que os créditos dos
Recorrentes não são “idênticos aos referentes a um vulgar contrato de depósito bancário, esses sim, por princípio, transferidos para o CC” (cfr. fls. 15 do Acórdão recorrido).

G)    Nos termos do regime geral, a partir do momento em que as já aludidas quantias monetárias foram entregues pelos Recorrentes no antigo DD, a propriedade transferiu-se para este último, assim como o risco de perecimento dessas quantias.

H)   Assim, errou o Acórdão recorrido na aplicação do direito à matéria factual provada, impondo-se, nessa medida, a sua revogação e substituição por outro que considere integralmente procedente, por provado, o pedido deduzido pelos Recorrentes contra o CC (nas alíneas a) e b) da petição inicial).

I)    Acresce que o Acórdão recorrido desvirtua a causa de pedir dos Recorrentes, que alicerçaram o seu pedido principal na existência de um contrato de depósito bancário celebrado com o DD e no direito de exigir a restituição dos montantes depositados (artigos 214.º a 238.º da petição inicial)!

J)  Com efeito, a conclusão do Acórdão recorrido, no sentido de que «nem se vislumbra que os preceitos legais e deliberações do Banco de Portugal (...) a par da restante factualidade provada (...) em que se alicerçou a decisão singular (...) tenham sido objecto de errada intepretação e aplicação.» encontra-se inquinada, na medida em que tal conclusão teve como ponto de partida a actuação do Director do balcão do então DD - o que está errado.

K)  Em suma, tal como concluiu a Veneranda Desembargadora que votou vencido encontram-se provados factos que exigem a seguinte conclusão: «o crédito dos Autores fundamenta-se num vulgar contrato de depósito bancário e, por isso, transferiu-se para o CC” (pág. 2 do Voto de Vencido).

L)    Por outro lado, o Acórdão recorrido constitui uma decisão manifestamente ilegal, na medida em que contraria o fundamento último e essencial da medida de resolução do DD e a criação do banco de transição - o CC, ou seja: a protecção dos depositantes;

M)   Com efeito, é público e notório que, em 3 de Agosto de 2014, o Banco de Portugal deliberou proceder à resolução do DD (cfr. Doc. 2, junto com a petição inicial), com um grande objectivo: a proteção dos depositantes e a manutenção da estabilidade do sistema financeiro Português (cfr. facto assente n.º 9 da sentença recorrida);

N)  Para proteger os depositantes, o Banco de Portugal optou pela criação de “um banco para o qual é transferida a totalidade da atividade prosseguida pelo DD, S.A.”, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 145.º-E do RGICSF (cfr. página 5 do Doc. 2, já junto com a petição inicial);

O) Na verdade, com a Deliberação de 3 Agosto de 2014 do Banco de Portugal foi fixado o conjunto de ativos, passivos e elementos extrapatrimoniais transferidos do DD para o CC foram definidos nos Anexos 2 e 2 A, sendo que o princípio geral definido no Anexo 2 da Deliberação foi o de que seriam transferidos do DD para o CC todos os “ ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do DD, registados na contabilidade, que serão objeto da transferência para o CC, S.A.”;

P)        Ora, no caso concreto, e como é evidente, o contrato de depósito em causa nos

autos não se encontra excluído da transmissão para o banco de transição, o CC, pois não se encaixa em nenhum dos tipos de exclusão definidos no Anexo 2 da Deliberação de 3 Agosto de 2014 do Banco de Portugal;

Q)   Em suma, o caso em apreço encontra-se, justamente, abrangido pela teleologia do regime da resolução e, concretamente, da Deliberação de 3 de Agosto de 2014 do Banco de Portugal, isto é: a protecção dos depositantes;

R)  Defender solução diversa daquela que faz incluir os depósitos dos ora Recorrentes do âmbito de transmissão do DD para o CC constitui uma decisão manifestamente ilegal e contrária não só à ordem jurídica interna, como aos princípios e legislação comunitária;

S)   Semelhante decisão atenta contra o estabelecido na Directiva 2014/59/EU do

Parlamento Europeu e do Conselho (que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento e que altera a Directiva 82/891/CEE do Conselho, e as Directivas 2001/24/CE, 2002/47/CE, 2004/25/CE, 2005/56/CE, 2007/36/CE, 2011/35/CE, 2012/30/UE e 2013/36/UE e os Regulamentos (UE) n.º 1093/2010 e (UE) n.º 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho) e na Directiva 2014/49/EU do Parlamento Europeu e do Conselho (relativa aos sistemas de garantia de depósitos);

T)        Com   efeito,   de   acordo   com   o   artigo   31.º,   n.º   2,   al.   d),   um   dos   objectivos   da resolução é a de “Proteger os depositantes abrangidos pela Directiva 2014/49/UE”;

U)        Em conclusão: uma interpretação conforme i) ao espírito que norteou a Medida de Resolução, ii) à letra da alínea b) Anexo 2 à Deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014, e iii) ao objectivo de protecção dos depósitos constante das Directivas 2014/59/EU e 2014/49/EU, ambas do PE e do Conselho e iv) ao mais elementar sentimento de justiça, impõem que se conclua que os depósitos dos ora Recorrentes foram transferidos para o CC e merecem plena tutela do direito;

V)        E  não  se  venha  dizer  que  o  contrato  de  depósito  em  causa  nos  autos  não  teria transitado para o CC porquanto não se encontraria registado na contabilidade;

W)  Em primeiro lugar, ao abrigo da Deliberação do Banco de Portugal de 03.08.2014, os contratos de depósito transitam, necessariamente, para o banco de transição, isto é, para o CC, independentemente de se encontrarem, ou não, registados na contabilidade;

X)  Em segundo lugar, fazer depender a transferência dos depósitos em causa nos autos do facto de se encontrarem, ou não, registados na contabilidade, viola as normas constantes das Directivas Comunitárias aprovadas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho no âmbito desta matéria, em particular a Directiva 2014/59/EU e a Directiva 2014/49/EU do Parlamento Europeu e do Conselho;

Y)  Em terceiro lugar, não faz qualquer sentido que a protecção de um depósito fique dependente de um acto de registo na contabilidade de um banco. Na verdade, o registo de um depósito não está sequer dependente de um acto do depositante. Deste modo, é evidente que a protecção de um depósito não poderia ficar dependente de um acto que não se encontra sob o controlo do depositante;

Z)        Em quarto lugar, e sem prejuízo do referido supra, a verdade é que os depósitos bancários nem sequer se encontram individualmente registados na contabilidade de um banco;

AA)     Em quinto lugar, e em  qualquer caso,  o  ónus  da  prova  de  que  os  depósitos em causa nos autos não se encontrariam registados na contabilidade do CC incumbiria, naturalmente, a este último. No caso concreto, o Tribunal a quo não incluiu - e bem - qualquer facto relativo a esta questão contabilística na matéria assente (na medida em que o mesmo se revela irrelevante para a boa decisão da causa);

BB) Em todo o caso, e para a hipótese de se entender que seria necessário que os depósitos em causa nos autos teriam de estar registados na contabilidade para serem transferidos para o CC - o que não se concede e apenas por mero dever de patrocínio se equaciona - então, nesse caso, seria necessário proceder à realização de prova adicional nos presentes autos, designadamente prova pericial ou prova testemunhal;

CC) Noutro prisma, também não se diga que o contrato de depósito em causa nos autos não teria sido transmitido para o CC porquanto constituiria uma responsabilidade ou contingência que não se haveria transmitido do ... para o CC com a medida de resolução adoptada;

DD) De facto, o Acórdão recorrido errou ao partir para a análise e subsunção jurídicas com base na alegada conduta do funcionário do então banco DD, pois que esse constitui - quando muito - um  facto  circunstancial,  que  serviu  de  enquadramento  e  descrição cronológica dos factos que sustentam o pedido dos ora Recorrentes, mas que não constitui a causa de pedir da presente acção;

EE) Com efeito, o que está verdadeiramente em causa nos presentes autos do ponto de vista jurídico é 1) o direito a exigir a restituição de todas as quantias entregues ao balcão do banco DD, acrescida dos juros vencidos e vincendos, bem como 2) a protecção dos depósitos efectuados pelos Recorrentes junto do ..., os quais, por força da resolução do Banco de Portugal, se transferiram para o CC;

FF) Aquando das entregas de capital para depósitos a prazo, quem representava o banco DD era o respectivo Director de balcão, o qual, como ficou documentalmente provado, tinha poderes para, isoladamente, vincular o aludido banco através da aposição da sua assinatura (cfr. Doc. 7, junto com a PI). Mas mesmo que tal cenário não se verificasse - sem conceder - ainda assim os ora Recorrentes sempre beneficiaram da protecção de terceiros de boa-fé (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.11.2011, Processo n.º 1062/2001.L1-6);

GG) Em suma: o alegado “desvio fundos” é um problema externo aos ora Recorrentes e ao contrato de depósito que, conforme ficou demonstrado, celebraram com o DD e que, com a medida de resolução, foi transmitido ao CC;

HH)  Pelo que o Acórdão recorrido errou ao apreciar o caso sub judice exclusivamente sob a perspectiva da possibilidade de imputar ao banco a responsabilidade pelo alegado acto ilícito do seu funcionário;

II) Por todo o exposto, não faz - s.m.o. - qualquer sentido invocar - com base na alegada conduta do funcionário do DD - a Deliberação do Conselho de Administração do BdP de 11.08.2014, e invocar a existência de uma “contingência que não foi transferida para o CC”;

JJ) A situação é clara: os depósitos dos Recorrentes subsumem-se na alínea b) Anexo 2 à Deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014, pelo que foram na íntegra transmitidos para o CC;

KK) À luz do supra exposto, é evidente que o contrato de depósito em causa nos autos se transmitiu do DD para o CC, não constituindo, como refere o Acórdão recorrido, um “crédito litigioso”.

LL) Como ficou assente, os Recorrentes entregaram ao balcão do aludido banco as aludidas quantias bancárias no valor de € 760.128,00 (CHF 828.744,92), a título de depósitos a prazo, os quais que seriam remunerados de acordo com taxas de juro variáveis, e que ascenderam a € 165.999,00 (CHF 180.990,77) - cfr. factos n.os 3, 5, 6 e 7 da sentença recorrida).

MM) Ora, o contrato de depósito bancário é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma determinada quantidade de dinheiro a um banco, que, mediante a retribuição de juros, adquire a respectiva propriedade e a disponibilidade sobre o dinheiro, obrigando-se a restituí-la mediante solicitação e de acordo com as condições previamente estabelecidas.

NN)  Ou seja, o banco torna-se proprietário das quantias entregues pelo depositante, ao passo que este adquire um direito de crédito sobre o banco, o qual assume o risco sobre a gestão da quantia depositada.

OO) A partir do momento em que o dinheiro é entregue ao banco, o depositante alheia-se da responsabilidade  quanto  ao  uso  e fruição,  cabendo ao  depositário, enquanto   proprietário   da   coisa  transferida,   responder   pelo   risco   de   extravio   ou dissipação da coisa até ao montante exigível no momento da solicitação da restituição.

PP) Por conseguinte, o que sucedeu com os montantes que os Recorrentes depositaram na sucursal do DD em ... é irrelevante para o caso concreto.

QQ) A partir do momento em que os Recorrentes entregaram o dinheiro no DD, o risco de perda do mesmo passou a correr por conta do DD.

RR) Uma vez que os prazos dos vários depósitos feitos pelos ora Recorrentes já atingiram o seu fim, as quantias depositadas acrescidas dos juros fixados, num total de € 926.126,00, são exigíveis, no âmbito da disciplina que rege os contratos de depósito.

SS)  De resto, a interpretação da Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014 no sentido de que um contrato de depósito não teria transitado para o CC afigura-se manifestamente inconstitucional por violação do disposto no artigo 101.º da Constituição da República Portuguesa;

TT)  Identicamente, a interpretação das Deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal, em particular as de 03.08.2014, 11.08.2014 e 29.12.2015 (melhor identificadas nos factos n.os 9, 13 e 14 da sentença recorrida) no sentido de que um contrato de depósito - ainda que não reconhecido pelo DD devido a um desvio de fundos perpetrado por um seu funcionário - não se transmitiria para o banco de transição (in casu, CC) também padeceria de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 101.º da Constituição da República Portuguesa.

            Contra-alegou o Réu CC, rebatendo cada um dos argumentos recursórios e pedindo que se negue a revista e se mantenha o decidido.

                                                                       *

            Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes, as questões que importa decidir são as seguintes:

            a) O crédito dos Autores resulta de um contrato de depósito e foi transferido para o CC?

            b) É inconstitucional, por violação do disposto no artigo 101º da CRP, a interpretação que exclua essa transmissibilidade?

                                                                       *

FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Das instâncias vêm provados os seguintes factos:

Os Autores são casados entre si e foram clientes do DD por terem sido titulares de uma conta de depósitos a prazo no balcão da sucursal deste banco em ..., na ..., com o n.° 2450/CHF.

Abriram, também, uma conta de depósito à ordem, com o n.º ..., domiciliada em ..., para a qual transferiram, de forma esporádica, quantias monetárias.

Ao longo dos anos, os Autores foram fazendo depósitos mediante a entrega de quantias no balcão de ..., por intermédio do Autor marido que se dirigia pessoalmente ao balcão do DD ao gerente do balcão, de nome EE.

O referido funcionário assumiu durante largos anos as funções de director desse balcão.

Os Autores fizeram entregas no valor total de cerca de CHF 828.744,92 (correspondente a cerca de € 760.128,00), entre 20.10.2003 e 11.04.2013.

Nas datas de vencimento dos aludidos depósitos, os mesmos foram sendo ao longo dos anos aplicados em novos depósitos com diferentes prazos e taxas.

Todos os aludidos depósitos e sucessivas reaplicações venceram juros à taxa contratual perfazendo um total de CHF 180.990,77, ou seja, € 165.999,00.

Em 12.07.2013, como não tivessem obtido explicações sobre o estado dos seus depósitos, os Autores dirigiram ao DD uma carta na qual solicitaram tais explicações e a restituição do dinheiro por si entregue, tendo recebido, como resposta, a carta cuja cópia consta de fls. 106, com o seguinte teor, além do mais que se dá por reproduzido: (...) «Informamos que os montantes que, na sua carta, indica como tendo sido entregues ao Senhor EE, nunca foram entregues ao DD (...) e nunca foram creditados em qualquer conta bancária, da sua titularidade, domiciliada no DD (...)».

Em 03.08.2014, o Conselho de Administração do Banco de Portugal deliberou o seguinte, além do mais que consta da respectiva acta da reunião extraordinária: «É constituído o CC SA, ao abrigo do n.° 5 do artigo 145.°-G do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo D.L. n.° 298/92 de 31 de Dezembro, cujos Estatutos constam do Anexo 1à presente deliberação» e «São transferidos para o CC SA, nos termos e para os efeitos do disposto no n.° 1 do artigo 145.°-H do Regime (...), conjugado com o artigo 17.°-A da Lei Orgânica do Banco de Portugal, os activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do DD SA que constam dos anexos 2 e 2A da presente deliberação».

No artigo 1º dos Estatutos do CC SA que constituem o Anexo 1 à deliberação referida no ponto anterior, consta que o mesmo é constituído nos termos do nº 3 do artigo 145.°-G do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).

No artigo 3º dos mesmos Estatutos, consta que «o CC SA tem por objecto a administração dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos do DD SA para o CC SA e o desenvolvimento das actividades transferidas, tendo em vista as finalidades enunciadas no artigo 145.°-A do RGICSF e com o objectivo de permitir uma posterior alienação dos referidos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão para outra ou outras instituições de crédito».

No Anexo 2 à referida deliberação constam os critérios de identificação dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do DD objecto de transferência para o CC SA e que são: «(...) As responsabilidades do DD perante terceiros que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais deste serão transferidos na sua totalidade para o CC SA com excepção dos seguintes ("Passivos Excluídos"): (...). No que concerne às responsabilidades do DD que não serão objecto de transferência, estas permanecerão na esfera jurídica do DD (...). Após a transferência prevista nas alíneas anteriores, o Banco de Portugal pode a todo o tempo transferir ou retransmitir, entre DD e o CC SA, activos passivos, elementos patrimoniais e activos sob gestão, nos termos do artigo 145.°-H, número 5 (...)».

A 11.08.2014, o Conselho de Administração do Banco de Portugal deliberou "clarificar e ajustar o perímetro dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do DD SA, transferidos para o CC SA", tendo, nomeadamente, deliberado que: «(...) H) A subalínea (v) da alínea b) do Anexo 2 à deliberação de 3 de Agosto, passa a ter a seguinte redacção: "Quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contra-ordenacionais (...)».

A 29.12.2015, o Conselho de Administração do Banco de Portugal, relativamente ao ponto da agenda "Clarificação e retransmissão de responsabilidades e contingências definidas como passivos excluídos nas subalíneas (v) a (vii) da alínea b) do n.° 1 do Anexo 2 à Deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014 (20 horas), na redacção que lhe foi dada pela Deliberação do Banco de Portugal de 11 de Agosto de 2014 (17 horas)", adoptou uma deliberação com, no que ora releva, o seguinte teor: «(...) 4. O Banco de Portugal dispõe de um poder legalmente conferido que pode ser exercido a todo o tempo antes da revogação da autorização do DD para o exercício da actividade ou da venda do CC, para determinar transferências adicionais de activos e passivos entre o CC e o DD (o "Poder de Retransmissão"). O Poder de Retransmissão encontra-se previsto no Capítulo III (Resolução) do Título VIII do RGICSF, tendo ficado expressamente estabelecido no número 2 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de Agosto (...). 7. O Banco de Portugal considerou ser proporcional e de interesse público não transferir para o banco de transição as responsabilidades contingentes ou desconhecidas do DD (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do DD nos termos da subalínea (v) a (vii) da alínea b) do n.° 1 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de Agosto, uma vez que a certeza relativamente às responsabilidades do banco de transição é essencial para garantir a continuidade das funções críticas desempenhadas pelo CC e que anteriormente tinham sido desempenhadas pelo DD. 8. A legitimidade processual do DD tem vindo a ser questionada ou enjeitada em processos judicias em que é parte, com base na alegada transferência para o CC das responsabilidades que se discutem naqueles processos, em que o DD era réu a 3 de Agosto de 2014 e que respeitam a factos anteriores à aplicação da medida de resolução ao DD e por efeito da aplicação desta. 9. Importa clarificar que o Banco de Portugal, enquanto autoridade pública de resolução, decidiu e considera que todas as responsabilidades contingentes e desconhecidas do DD (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do DD, estão abrangidas pelas subalíneas (v) a (vii) da alínea b) do n.° 1 do Anexo 2 da Deliberação, não tendo sido, portanto, transferidas para o CC (...). 12. Se o número de processos pendentes nos tribunais judiciais e a diferente orientação nas decisões até hoje tomadas conduzirem a que, de modo significativo, não venha a ser reconhecida adequadamente a selecção efectuadas pelo Banco de Portugal (enquanto autoridade pública de resolução) dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos do DD para o CC (decisão sobre o perímetro de transferência), pode ficar comprometida a execução e a eficácia da medida de resolução aplicada ao DD, a qual, entre outros critérios, se baseou num critério de certeza quanto ao perímetro de transferência. 13. Foi esse critério de certeza que permitiu calcular as necessidades de capital da instituição de transição, o CC, e foi com base nesse cálculo que o Fundo de Resolução realizou o capital da instituição de transição. 14. Caso viessem a materializar-se na esfera jurídica do CC responsabilidades e contingências por força de sentenças judiciais, o CC seria chamado a assumir obrigações que de modo algum lhe deveriam caber e cuja satisfação não foi pura e simplesmente tida em consideração no momento do capital com que aquele banco de transição foi inicialmente dotado. 15. Este risco pode materializar-se ainda antes do trânsito em julgado das decisões judiciais se, de acordo com as regras contabilísticas, for entendido que, não obstante a decisão do Banco de Portugal, aquela materialização é provável. 16. Nos termos da lei, a decisão do Banco de Portugal sobre o perímetro de transferência só pode ser alterada através dos meios processuais previstos na legislação do contencioso administrativo, de acordo com o artigo 145.°-AR do RGICSF (correspondente ao artigo 145.°-N do RGICSF, em vigor à data de aplicação da medida de resolução ao DD). 17. Questionar o referido perímetro de transferência fora do contencioso administrativo constitui um desvio à competência dos tribunais administrativos, legalmente estabelecida, e impede que o Banco de Portugal exerça a prerrogativa que a lei lhe confere de afastar, por motivo de interesse público, a execução de sentenças desfavoráveis, iniciando-se de imediato o procedimento tendente à fixação da indemnização de acordo com os trâmites definidos no Código do Processo nos Tribunais Administrativos. 18. Decisões dos tribunais judiciais que, directa ou indiretamente, ponham em causa o perímetro de transferência neutralizam este mecanismo contencioso (e compensatório), legalmente previsto, de impugnação das decisões do Banco de Portugal, enquanto autoridade pública de resolução, e comprometem a execução e a eficácia da medida de resolução. 19. Tem a presente deliberação o seguinte objectivo: a Clarificar o tratamento das responsabilidades contingentes e desconhecidas do DD (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de • disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do DD, nos termos da subalínea v) da alínea b) do n.° 1 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de Agosto; b. Se e na medida em que quaisquer responsabilidades contingentes e desconhecidas ou incertas do DD à data de 3 de Agosto (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do DD e que devessem ter permanecido na sua esfera jurídica nos termos da deliberação de 3 de Agosto, sejam atribuídas ao CC, proceder à sua retransmissão, mediante o exercício do Poder de Retransmissão, das referidas responsabilidades contingentes e desconhecidas (incluindo responsabilidades litigiosas relativos ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou de violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais) para o DD; e c. Determinar que, de acordo com o disposto no n.° 7 do artigo 145.°-P e nos n.°s 2, 3 e 4 do artigo 145.°-G do RGICSF, o ... e o CC tomem as medidas previstas nesta deliberação por forma a conferir-lhe eficácia plena. 20. Face ao exposto e de forma a garantir a continuidade das funções essenciais desempenhadas pelo CC, encontram-se reunidos os pressupostos para o exercício que se afigura extremamente necessário, urgente e inadiável. O Conselho de Administração do Banco de Portugal, ao abrigo da competência conferida pelo RGICSF para selecionar os activos e passivos a transferir para o banco de transição, delibera o seguinte: A) Clarificar que, nos termos da alínea b) do número 1 do Anexo 2 da deliberação de 3 de Agosto, não foram transferidos do DD para o CC quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do DD que, às 20:00 horas do dia 3 de Agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do DD; B) Em particular, desde já se clarifica não terem sido transferidos do DD para o CC os seguintes passivos do DD: (...) (vii) Qualquer responsabilidade que seja objecto de qualquer dos processos descritos no Anexo 1. C) Na medida em que, não obstante as clarificações acima efectuadas, se verifique terem sido efectivamente transferidos para o CC quaisquer passivos do DD que, nos termos de qualquer daquelas alíneas e da Deliberação de 3 de Agosto, devessem ter permanecido na sua esfera jurídica, serão os referidos passivos retransmitidos do CC para o DD, com efeitos às 20 horas do dia 3 de Agosto de 2014; D) O Conselho de Administração do DD e o Conselho de Administração do CC praticarão todos os actos necessários à implementação e eficácia das clarificações e retransmissões previstos na presente deliberação. Em particular e de acordo com o disposto no n.° 7 do artigo 145.°-P e nos n.°s 2, 3 e 4 do artigo 145.°-G do RGICSF, o CC e o DD devem: a) Adoptar as medidas de execução necessárias à adequada aplicação da medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal ao DD, bem como de todas as decisões do Banco de Portugal que a complementam, alteram ou clarificam, incluindo a presente deliberação; b) Praticar todos os actos, sejam estes de natureza procedimental ou processual, nos processos em que sejam parte de modo a dar adequada execução às decisões do Banco de Portugal referidas em a), incluindo aqueles que sejam necessários para reverter actos anteriores que tenham praticado contrários aquelas decisões; c) Para efeito de cumprimento do disposto na alínea b), requerer a imediata junção da presente deliberação aos autos em que sejam parte; d) Adequar os seus registos contabilísticos ao disposto nas decisões do Banco de Portugal referidas em a); e e) Abster-se de qualquer conduta que possa por em causa as decisões do Banco de Portugal referidas em a) (...)».

O DIREITO

Impôem-se algumas notas preliminares.

A primeira nota é sobre a causa de pedir, ou seja, sobre o conjunto dos fundamentos de facto e de direito das pretensões formuladas pelos Autores.

No breve resumo acima feito, nenhuma dúvida pode restar de que a causa de pedir principal, apontada ao pedido de procedência da alínea a) da petição inicial,  assenta em factos relacionados com a actividade bancária do Réu DD e no incumprimento, por este, das obrigações decorrentes do contrato de depósito bancário firmado com os Autores. É o incumprimento desse contrato que serve de fundamento para o pedido de restituição das quantias reclamadas, deduzido nessa mesma alínea a).

A causa de pedir não tem de ser única, e não o é no presente caso.

Podem, efectivamente, ser plúrimas e distintas, consoante o número de previsões normativas preenchidas que o tribunal entenda, no momento em que analisa o caso, serem adequadas à produção do(s) efeito(s) pedido(s).

Nestes autos, a leitura da petição inicial transmite-nos imediatamente a certeza da existência de uma causa de pedir específica para o pedido subsidiário da alínea c) da petição, assente em factos integradores de responsabilidade civil delitual  do Réu DD, por actos de comissário (artigos 252º a 272º da petição).

Foi nesta causa de pedir que as instâncias se focaram, olvidando que o pedido subsidiário só pode ser tomado em consideração se não proceder o pedido principal – cfr. artigo 554º do CPC.

Como veremos de seguida, a factualidade provada é mais do que suficiente para a procedência do pedido principal.

Ainda uma nota sobre o modo como, em geral, os bancos e clientes se relacionam.

O contacto que normalmente se estabelece entre o banco e o cliente tem em vista a manutenção de uma relação negocial que perdura no tempo e que permite às partes a concretização dos mais diversos negócios (transferências, cartões para efectuar pagamentos, concessão de crédito, etc.).

Nessa relação, assente fundamentalmente numa base de confiança, o banco assegura ao cliente a protecção dos seus interesses e a observância de rigor técnico e especialização funcional no desempenho da sua actividade.

É a abertura de conta bancária que marca o início da relação bancária, complexa e duradoura, entre o banco e o seu cliente, constituindo a base geral conformadora da relação bancária. Por isso, “os vários contactos negociais estabelecidos ao longo da relação não se apresentam como simples peças soltas de um quadro incaracterístico, antes representam as manifestações próprias de um quadro consolidado em torno de uma vontade negocial abrangente”[2].

 À abertura de conta está quase sempre associado um contrato de depósito bancário, o que leva a que seja por vezes difícil determinar se é o contrato de abertura de conta que gera a celebração implícita de um contrato de depósito bancário, ou se é da concretização deste , mediante um primeiro ‘depósito’, que se tem por celebrado aquele[3].

O depósito bancário compreende, em termos gerais, a entrega ao banco por um cliente de uma quantia em moeda legal ou escritural, cujo valor é inscrito numa conta de que é titular, obrigando-se a instituição de crédito a restituir, mediante solicitação, nos termos negocialmente fixados, essa quantia[4].

No que respeita, em particular, aos depósitos a prazo, estes são um instrumento fundamental para o financiamento dos bancos, cuja actividade tradicional consiste, na essência, “na recolha de poupanças do público sob a forma de depósitos a prazo (operações passivas), remunerando-os a uma determinada taxa, para depois poderem conceder por conta própria crédito (operações ativas) a quem dele carece a uma taxa mais elevada, sendo o ganho do banco a diferença entre as duas taxas”[5].

Entrando no caso concreto:

A caracterização da relação contratual estabelecida entre os Autores e o DD resulta abundantemente dos factos provados nos pontos 1. a 7.  

Os Autores, em 2003, abriram na agência de ... do DD duas contas (uma a prazo e outra à ordem – cfr. pontos 1. e 2. da matéria provada). Durante cerca de 10 anos (cfr. ponto 5.), procederam à entrega de diversas quantias, nesse balcão, para provisionamento dessas mesmas contas. Nas datas de vencimento dos aludidos depósitos, os mesmos foram sendo ao longo dos anos aplicados em novos depósitos com diferentes prazos e taxas, conforme resulta do ponto 6. dos factos provados.

Se isto não configura um contrato de depósito bancário é caso para perguntar a que título é que os Autores teriam entregue essas quantias de dinheiro no balcão desse banco.

Temos, pois, de confessar a nossa perplexidade quando cruzamos com a afirmação da sentença, reiterada no acórdão recorrido, de que “não podem os autores pretender que os seus créditos sejam idênticos aos referentes a um vulgar contrato de depósito bancário – esses sim, por princípio transferidos para o CC”.

A Ex.ª Desembargadora vencida fez notar, precisamente, a sua discordância quanto a esse aspecto, referindo na respectiva declaração de voto: “Não posso, assim, concordar com a passagem da sentença recorrida, transcrita no acórdão …”. E concluiu: “Pelo contrário, o crédito dos Autores fundamenta-se num vulgar contrato de depósito bancário e, por isso, transferiu-se para o CC”.

Esclarecido – segundo cremos – este ponto, passemos àquilo que acaba por constituir a grande linha de defesa do CC, acolhida pelo acórdão recorrido, e que se resume a saber se a medida de resolução do Banco de Portugal não incluiu a transferência para aquele Réu das responsabilidades imputadas nesta acção ao DD.

O grande equívoco das instâncias foi, na nossa percepção, o de, alheando-se da causa de pedir da pretensão principal, ter deslocado o centro da discussão para a conduta (supostamente ilícita) do gerente do balcão do DD em ..., a partir da carta que constitui o documento n.º 81, concluindo, nessa medida, que “o crédito reclamado pelos autores é tudo menos um crédito consolidado”. 

Sendo indiscutível, como já dissemos, a existência de um contrato de depósito bancário, prolongado no tempo, entre os Autores e o DD, o que apenas falta apurar é se a responsabilidade pela restituição dos valores depositados e respectivos juros deve considerar-se transferida para o CC, em resultado da medida de resolução do Banco de Portugal de 03.08.2014.

Antes de entrarmos nesse tema é importante dizer que se subscreve o afirmado pelo CC no artigo 21º das contra-alegações: os factos dados como assentes são exclusivamente os que constam acima e não quaisquer outros. E, para reforço do que expusemos, fica garantido que nenhum dos factos provados alude a qualquer actuação ilícita do gerente do balcão do DD em ... ou a “qualquer abuso de funções desse gerente, extravasando as competências, responsabilidades e incumbências do DD”. O que apenas existe é uma declaração escrita do DD(carta de fls. 106 – documento n.º 81, junto com a petição inicial) em que se informa os Autores de que os montantes por este engregues “nunca foram creditados em qualquer conta bancária, da sua titularidade” e de que “se iniciou uma investigação à actuação do Senhor EE (…)”, que, relembre-se, era o gerente do balcão do DD em ... – cfr. pontos 3., 4. e 8. dos factos provados.

Também sobre este aspecto, veja-se a clarividente afirmação da Ex.ª Desembargadora vencida: “Ora, desta factualidade, entendo não ser de concluir que o dinheiro entregue pelos Autores tenha sido apropriado, ilicitamente, por terceira pessoa. (…). Nenhuma prova existe de que algum funcionário do Banco se tenha apropriado dos valores entregues pelos Autores” – cfr. fls. 379 dos autos.

Pois bem:

Através da medida de resolução de 03.08.2014, o Banco de Portugal transferiu a totalidade da actividade prosseguida pelo DD e um conjunto dos seus activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão deste, para um banco de transição, o CC.

Uma das finalidades prosseguidas pela medida de resolução foi garantir a segurança dos depósitos constituídos no DD, cujos saldos foram integralmente transferidos para o CC – cfr. ponto dois da medida de resolução, a fls. 36.  Dos passivos transferidos apenas ficaram excluídos os que constam da alínea b) do anexo 2 (v. fls. 42, verso, e 43), sendo que, essa ressalva não atinge os depósitos bancários de clientes do DD, o que bem se justifica pelo que já a seguir se dirá.

“Ao efectuar um depósito, o depositante entrega um bem fungível a outra pessoa, prescindindo da propriedade sobre ela. Não o faz, porém, com espírito de liberalidade, mas para que a outra lha restitua sempre que o exija. Por via do contrato, opera-se a substituição de um direito real por um direito de crédito; a restituição da coisa a mais não equivale do que ao pagamento de uma quantia certa. Mas esse pagamento ocorre sempre que o depositante o exigir, razão pela qual Menezes Cordeiro sustenta que a pedra de toque do contrato está na disponibilidade permanente do saldo. Não está aqui subjacente uma intenção de investimento; o depositante transfere a propriedade do dinheiro para transmitir, também, o risco de perecimento da coisa. Em troca, o depositário pode usar e fruir as verbas depositadas. Mas tem de fazê-lo em termos tais que as coloque, novamente, na disponibilidade do depositante sempre que solicitado. Por tudo isto, entende-se o alarme social sempre que são postos em causa os depósitos bancários. E, por tudo isto, entende-se a disciplina especial que o legislador consagrou a este propósito. Esta é justificada, por um lado, pela necessidade de tutela do depositante – atentos os interesses em jogo – e, por outro lado, pela necessidade de salvaguardar a confiança no sistema financeiro”[6].

O comunicado do Banco de Portugal de 13.08.2014[7] é claríssimo quanto a esta matéria:

“Depósitos. A medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal garante a segurança dos depósitos que tinham sido constituídos junto do DD, S.A. Deste modo, não foram afetados quaisquer direitos legais ou contratuais dos depositantes. Os depósitos são integralmente transferidos para o CC. O saldo dos depósitos permanece intacto e disponível para ser movimentado, sem qualquer restrição”.

Deste modo, e com o devido respeito, consideramos errada a integração do passivo equivalente ao total dos valores depositados na categoria de responsabilidades contingentes ou desconhecidas do DD (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais).

Como assim, o passivo efectivamente transferido para o CC, em consequência da medida de resolução do Banco de Portugal, corresponde ao valor do saldo da conta bancária onde os Autores foram efectuando vários depósitos em dinheiro, somado dos respectivos juros, ou seja, € 760.128,00 de capital e € 165.999,00 de juros – cfr. pontos 5. e 7.

b)        

O conhecimento da  restante questão recursória (artigo 608º, n.º 2, do CPC) mostra-se prejudicado pela solução dada à questão anterior.

                                                           *

DECISÃO

Face ao exposto, no provimento da revista, revoga-se o acórdão recorrido e  condena-se o Réu CC, S.A. a pagar aos Autores a quantia de € 926.126,00 (novecentos e vinte e seis mil, cento e vinte e seis euros).

                                                           *

As custas, em todas as instâncias, serão suportadas pelo CC, sem prejuízo da decisão proferida a fls. 261, verso.

                                                           *

LISBOA, 17 de Outubro de 2019

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Raimundo Queirós

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[1]    Relator:      Henrique Araújo

     Adjuntos:   Maria Olinda Garcia

                         Raimundo Queirós

[2] António Pedro de Azevedo Ferreira, em “A Relação Negocial Bancária”, página 689.

[3] Catarina Anastácio, “A Transferência Bancária”, página 124.

[4] L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito Bancário”, 2017, páginas 129/130.

[5] Idem, página 145.

[6] Cfr. Mafalda Miranda Barbosa, “A Propósito do BES – Algumas Notas acerca da medida de resolução”, em Boletim de Ciências Económicas, LVIII, páginas

[7] Consultável em www.bportugal.pt.