Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SIMAS SANTOS | ||
Descritores: | TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE AUTORIA CO-AUTORIA CRIME QUALIFICADO CRIME PRIVILEGIADO | ||
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Nº do Documento: | SJ200210240032115 | ||
Data do Acordão: | 10/24/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 9399/01 | ||
Data: | 06/27/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Área Temática: | DIR CRIM - TEORIA GERAL. | ||
Legislação Nacional: | DL 15/93 DE 1993/01/22 ARTIGO 21 N1. CP95 ARTIGO 26. | ||
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Sumário : | I - Estando assente que os arguidos, em conjugação de esforços e vontade procediam à venda de produto estupefaciente aos consumidores de produto tóxicos que os procuravam para esse efeito, e que, na execução dessa actividade conjunta, o arguido vigiava e controlava uma fila de consumidores de produtos tóxicos que pretendiam adquirir produto ao co-arguido, para tanto entregando este aos dependentes de produtos estupefacientes, pequenas embalagens e recebia o dinheiro correspondente à quantidade vendida, procedendo de forma inversa noutras ocasiões, entregando, após tais vendas o dinheiro recebido a um indivíduo não identificado, ambos os arguidos se apresentam como co-autores.
II - Na verdade, face ao dispositivo do art. 26 do C. Penal (é punível como autor quem ... tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros...), como vem entendendo este Supremo Tribunal de Justiça são autores do crime aqueles que tomam parte directa, na execução, não sendo necessário que cada um dos agentes cometa integralmente o facto punível, que execute todos os factos correspondentes ao preceito incriminador; aquele que, mediante acordo prévio com outros agentes, pratica acto de execução destinado a executá-la é co-autor material dessa mesma infracção, não sendo necessário que tome parte na execução de todos esses actos, desde que seja incriminada a actuação total dos agentes. III - Verifica-se a co-autoria quando cada comparticipante quer o resultado como próprio com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas, bastando um acordo tácito assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum. IV - Quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e um tipo agravado, é no crime simples ou no crime-tipo que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta. Depois, nos tipo privilegiado e qualificado, vem definir os elementos atenuativos ou agravativos que modificam o tipo base conduzindo a outros quadros punitivos. E só a verificação afirmativa, positiva desses elementos atenuativo ou agravativo é que permite o abandono do tipo simples. V - O que não sucede, no caso, em que os arguidos comparticiparam num tráfico que ultrapassa o mero tráfico de rua, traficavam, de acordo com um esquema bastante em voga, fazendo intervir diversas pessoas, destinado a facilitar a fuga e a dificultar a intervenção das autoridades, bem como a proteger o dono do negócio, tendo sido encontrados com 54 embalagens de heroína, com o peso líquido de 12,746 grs e 27.000$00 em dinheiro. | ||
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Decisão Texto Integral: | Supremo Tribunal de Justiça I 1.1. O arguido AJVL foi julgado no processo comum n.º 817/00.OPULSB da 1ª secção da 1ª Vara Criminal de Lisboa e condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 4 anos e 9 meses de prisão, e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 7 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico das referidas penas na pena única de 5 anos de prisão. 1.2. Inconformado, o arguido interpôs recurso dessa decisão para a Relação de Lisboa (proc. n.º 9399/01 - 9.ª Secção), concluindo na motivação: 1. A prova produzida, quer a documental quer testemunhal, é insuficiente para fundamentar os elementos subjectivos e objectivos da co-autoria relativa ao crime p. e p. no n.º 1 do art. 21º do Dec-Lei n.º 15/93 de 22.01; 2. Consequentemente, a prova produzida, quer documental quer testemunhal, é insuficiente para afirmar a prática, pelo arguido, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. no art. 21º do mencionado diploma. 3. Acresce que, a prova produzida, quer documental quer testemunhal, não permite concluir pela existência de qualquer beneficio financeiro resultante da actividade do arguido. 4. Nestes termos, deve o arguido ser absolvido da acusação nesta parte e quando muito a título de cumplicidade ser condenado numa pena especialmente atenuada, suspensa na sua execução e acompanhada de regime de prova que determine a obrigação de se submeter a tratamento adequado à sua toxicodependência. 5. Caso assim não se entenda, a prova produzida sempre imporia a análise do disposto nos artigo 25º a) e 26º do supra-citado DL. 6. Na verdade, resultam provados no acórdão vários factos que constituem circunstâncias, factores ou parâmetros, cuja avaliação correcta, no seu todo, sempre determinariam uma considerável diminuição da ilicitude: 7. Ao arguido não foi apreendido qualquer estupefaciente; a existir quantidade cedida esta sempre seria diminuta uma vez que o arguido só foi visto a receber dinheiro por três vezes, num espaço de dez minutos; ficou provado que o dinheiro que o arguido detinha na sua posse era seu e tinha origem lícita. 8. O arguido é tóxicodependente há mais de dezassete anos e seropositivo para a SIDA; o arguido já estava inserido num programa terapêutico de substituição da droga ilegal heroína pela droga legal metadona; sendo que a terapia de substituição metadona não é um tratamento em si porque não visa a cura, mas uma forma de redução de riscos; o arguido tem agora a oportunidade, que aceita, de fazer um tratamento com vista ao afastamento total das drogas e à sua reinserção social em instituição licenciada e protocolada com o Ministério da Saúde. 9. O arguido sempre trabalhou com carácter de regularidade demonstrando uma boa prognose de inserção social. 10. A não confissão dos factos face à discrepância, por um lado entre a matéria da acusação e os factos dados como provados, e também entre a prova produzida e estes últimos, irreleva para efeitos do juízo de desvalor da sua conduta. 11. Qualquer actividade criminosa à luz da conjugação destas provas e das regras de experiência comum deve resultar na subsunção dos factos à previsão do art. 25º ou do art. 26º do DL 15/93. 12. O acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 26º, 27º, 40º, 71º e 72º do Código Penal e ainda os artigos 21º, 25º e 26º do Decreto Lei 15/93, de 22 de Janeiro, bem como o princípio "in dubio pro reo". 13. Nestes termos e nos melhores de Direito deve a decisão recorrida ser revogada devendo a matéria de facto e a sua qualificação jurídica serem alteradas no sentido peticionado no presente recurso e a pena única aplicada pelo Tribunal "a quo" ser revogada e substituída, por outra pena não superior a dois anos, suspensa na sua execução, acompanhada de regime de prova consistente na sujeição imediata do arguido no tratamento apto à sua recuperação no centro Adictum, (melhor descrito e identificado a fls. 408/410 e 419 dos autos). 1.3. Aquele Tribunal Superior, por acórdão de 27.6.02, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão da 1.ª instância. II 2.1. Ainda inconformado, recorre o arguido agora para este Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a sua condenação como cúmplice de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25.º do Dec-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro e, porque se mostra suficiente e adequada à realização das finalidades de prevenção geral e especial, ser-lhe aplicada, a final, uma pena suspensa. Para tanto, conclui na sua motivação: 1. O arguido ora Recorrente foi condenado por tráfico de droga por estar, segundo a acusação de que vinha acusado, a vender produto estupefaciente, durante dez minutos. 2. O co-arguido Sr. MFGP, julgado pelo mesmo libelo em separação de processos, foi condenado pelos mesmos factos que o arguido ora Recorrente, mas por vender produto estupefaciente durante um período de uma semana. 3. Não basta que o arguido actue num movimento colectivo com outrem para que exista co-autoria. 4. Nas circunstâncias concretas em que o facto ilícito ocorreu, não houve qualquer acordo ou plano, expresso ou tácito, prévio ou contemporâneo à execução do facto típico. 5. Houve, quando muito, uma consciência recíproca de colaboração. 6. A colaboração prestada pelo arguido Recorrente não era essencial e indispensável à realização do crime praticado. 7. O arguido não detinha nas suas mãos o poder de fazer gorar a consumação do crime através da simples omissão do seu contributo. 8. O arguido não detinha o domínio funcional do facto global segundo a Teoria do domínio ou condomínio defendida por ROXIN e dominantemente aceites na doutrina e jurisprudência alemã e portuguesa. 9. Ao arguido Recorrente deverá, salvo melhor opinião, ser-lhe aplicado o regime da cumplicidade, previsto no art. 27º, n.º 1 do Código Penal, uma vez ser o domínio funcional do facto, que cabe ao co-autor e falta ao cúmplice, o critério distintivo destas duas formas de comparticipação. 10. Os factos pelos quais o arguido ora Recorrente vinha acusado, demonstram a prática de um pequeno tráfico de rua, sem qualquer sofisticação ou qualquer esquema organizativo tão característico dos traficantes consumidores e que deve integrar a figura do tráfico de menor gravidade p. e p. no art.. 25º do Dec. Lei n.º. 15/93 de 22 de Janeiro. Para além disso, 11. O facto de o arguido Recorrente trabalhar de forma regular, ser toxicodependente e seropositivo para HIV deverá, salvo melhor entendimento, indiciar uma especial diminuição da ilicitude, o que conjugado com os restantes factos permite o enquadramento da conduta do Recorrente no art. 25º do Dec. Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro. 12. Essa, aliás, tem sido a jurisprudência amplamente defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça na distinção da aplicação do regime dos artº.s 21º, n.º 1 e 25º do diploma legal atrás citado. 2.2. Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa que concluiu: 1 - Face à matéria de facto provada é patente a co-autoria do recorrente na prática do crime p. e p. no art. 21.º, n.º 1 DL 15/93 de 22/2. 2 - A actuação do recorrente não pode reconduzir-se à previsão do art. 25.º do DL 15/93 de 22/1, porque face à matéria de facto provada não se verifica o elemento típico essencial do crime p. e p. naquele normativo - ilicitude dos factos consideravelmente diminuída. 3 - Atenta a matéria de facto provada encontram-se preenchidos todos os elementos do tipo do crime p. e p. no art. 21.º n.º 1 do DL 15/93 de 22/01, não merecendo qualquer reparo o enquadramento jurídico penal feito pelo Acórdão da 1ª Instância. 4 - Não merece pois, qualquer censura o douto Acórdão desta Relação de Lisboa ao negar provimento ao recurso do arguido e manter inalterado o Acórdão do Tribunal da 1ª Instância. 5º - Deve assim, negar-se provimento ao recurso e confirmar-se o Acórdão deste Tribunal da Relação. III Neste Supremo Tribunal de Justiça, a representante do Ministério Público apôs o seu visto. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a audiência em que foram produzidas alegações orais, pelo que cumpre conhecer e decidir. IV E conhecendo. 4.1. São as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente: - a sua comparticipação, que entende ficar-se pela cumplicidade; e - a qualificação jurídica efectuada, por considerar que o crime cometido foi o de tráfico de menor gravidade. Vejamos cada uma delas, depois de alinhar a matéria de facto de que partiram as instâncias. 4.2. As instâncias tiveram por estabelecida a seguinte factualidade. O Tribunal Colectivo deu como provados os seguintes factos: 1) No dia 11 de Abril de 2000, cerca das 15h30m, o arguido e MFGP, m. id. nos autos, em conjugação de esforços e vontade procediam à venda de produto estupefaciente aos consumidores de produtos tóxicos que os procuravam para esse efeito, junto à sede do Casalense - Casal Ventoso, nesta cidade e comarca de Lisboa; 2) Na execução dessa actividade conjunta, o arguido vigiava e controlava uma fila de consumidores de produtos tóxicos que pretendiam adquirir produto ao MFGP; 3) Para tanto, o MFGP entregava aos dependentes de produtos estupefacientes, pequenas embalagens e recebia o dinheiro correspondente à quantidade vendida. 4) Noutras ocasiões, a entrega era feita pelo MFGP enquanto o arguido recebia o dinheiro correspondente. 5) Após a venda dos produtos estupefacientes, os arguidos entregavam o dinheiro recebido a um indivíduo de raça negra, que não foi possível identificar. 6) Nesse dia, hora e local, os arguidos foram interceptados por agentes da PSP; 7) Nessa ocasião, o MFGP detinha na sua posse uma bolsa em pano de cor azul, contendo 54 (cinquenta e quatro) embalagens de um produto de cor castanha com o peso liquido de 12,746 gramas que se veio a revelar positivo para heroína, conforme exame do LPC de fls. 77 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos. 8) O arguido detinha na sua posse a quantia de 27.000$00 (vinte e sete mil escudos) em notas do Banco de Portugal, 1 (um) telemóvel e 1 (uma) pistola; 9) O arguido detinha na sua posse 1 (uma) pistola transformada inicialmente de 8 mm, apta a disparar munições de gás lacrimogénio e/ou de alarme e, no momento presente, apta a disparar munições com projéctil. 10) Trata-se, actualmente, de uma pistola semi-automática calibre 6,35 mm, Browning, semi-automática de movimento simples percussão central, directa, cano com 56 mm, com 4 (quatro) esterias dextrógiras, carregador com capacidade para sete munições. A pistola não é legalizável atenta a alteração (artesanal) do seu calibre. 11) O arguido não possuía licença de uso e porte de arma de fogo 12) O arguido conhecia as características da arma em apreço e que a sua detenção lhe era proibida por lei ; 13) Os arguidos conheciam, perfeitamente, a natureza e as características do produto comercializado ( heroína); 14) O arguido e MFGP destinavam tais produtos à cedência a terceiros com vista a obter, como obtiveram, benefícios financeiros. 15) O arguido e o MFGP agiram livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei. 16) O arguido aufere uma pensão mensal de vinte e cinco mil escudos, do Centro Nacional de Pensões, por questão de - segundo avaliação efectuada pelos Serviços competentes de Segurança Social - (in)capacidade para aquisição de rendimentos por via do trabalho conexionado com o facto de ser seropositivo para a SIDA; 17) O arguido é consumidor de drogas de há, pelo menos, cerca de 17 (dezassete) anos a esta parte ; 18) O arguido trabalha com carácter de regularidade para a "Delta Press", empresa de distribuição de jornais, onde aufere o rendimento médio mensal de cerca de 67.000$00 (sessenta e sete mil escudos), de há cerca de, pelo menos, cinco anos a esta parte; ajuda ainda o pai num quiosque de venda de jornais e revistas explorado por este último; 19) O arguido é de condição social e cultural modestas, é de condição económica razoável, tem como habilitações literárias o 5º ano de escolaridade, é tóxico-dependente, tendo iniciado em 11 de Maio de 1998 tratamento no CAT das Taipas, estando desde 6 de Janeiro de 2000 em programa de substituição com metadona, referindo aquela Instituição "ser acompanhado quinzenalmente em consulta de apoio psicoterapêutico, sendo a sua evolução positiva"; 20) O arguido negou que estivesse a vender estupefacientes, tendo referido ser consumidor de cocaína; confessou ter adquirido por sete mil escudos a arma de fogo que lhe foi apreendida; 21) O arguido levantou no dia 11 de Abril de 2000, a quantia de 25.000$00 respeitante a vale do Centro Nacional de Pensões, a si destinado; 22) O Centro de Tratamento "Adictam, Lda" devidamente licenciado e protocolado pelo SPTT com o Ministério da Saúde, está na disposição de proporcionar ao arguido um tratamento; 23) ANTECEDENTES CRIMINAIS O arguido foi julgado e condenado por decisões transitadas em julgado a) No proc. n.º 133/97 do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Estarreja, por sentença de 30 de Novembro de 1998, na pena de 100 (cem) dias de multa e na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 300$00, pela prática de crimes de falsificação e de subtracção de documento, cometidos em 14 de Junho de 1996; b) No proc. n.º 3271/97 do 2º Juízo Criminal de Lisboa, 1ª Secção, por "sentença de 16 de Junho de 2000, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 600$00, o que perfaz 54.000$00, e, subsidiariamente, 60 dias de prisão pela prática de crime de furto simples, cometido em 7 de Julho de 1997; - em cúmulo jurídico, por sentença de 16 de Junho de 2001, das penas atrás descritas foi o arguido condenado na pena única de 180 dias de multa, sendo 100 dias à taxa diária de 300$00, e os restantes 80 dias à taxa diária de 600$00, o que perfaz 78.000300, e, subsidiariamente, em 120 dias de prisão." O Tribunal Colectivo considerou não provados os seguintes factos: "1 ) Para tanto, os arguidos (o ora arguido e MFGP) adquiriam tais produtos a indivíduos que não foi possível identificar para os revender, a preços superiores, em doses individuais; e que se destinava a ser distribuído por um assinalável número de consumidores. 2) Que o arguido utilizava a pistola dos autos para amedrontar e controlar os consumidores de produtos tóxicos que se preparavam para receber produto das mãos do MFGP. 3) O arguido e MFGP, m. id. nos autos, tivessem decidido vender droga em data anterior a 11 de Abril de 2000 (tendo-se tão só provado o que consta em I - supra). 4) Numa semana, o arguido e o MFGP venderam produtos estupefacientes no valor de 2.000.000$00 dois milhões de escudos 5 ) Recebiam, pela venda, desses produtos cerca de 20 contos/dia. 6) O arguido não tomou qualquer resolução criminosa com o (co-arguido) MFGP. 7) Não o conhecia mais do que as centenas de toxicodependentes que enxameiam o Casal Ventoso se conhecem uns aos outros, por aí se cruzarem com regularidade. 8) Não comprou qualquer produto estupefaciente a terceiros para os revender a preços superiores. 9) No entanto, adquiria com regularidade produtos estupefacientes, com vista ao seu próprio consumo. 10) Toda a conduta que lhe é imputada e que possa vir a resultar provada tinha por desiderato único obter estupefacientes para seu próprio consumo. 11) No dia 11 de Abril, no modo e circunstâncias descritos nos autos, o arguido não procedia a qualquer venda de estupefacientes. 12) Na semana referida na acusação, o arguido não vendeu estupefacientes, nem entregou dinheiro a quem quer que fosse e logicamente nada recebeu por vendas que não fez. 13) Que na altura da sua detenção do arguido, o dinheiro que este trazia consigo, tivesse a seguinte origem: dois mil de dinheiro de bolso que a mãe lhe tinha dado e vinte e cinco mil escudos referentes ao vale remetido em seu próprio nome, pelo Centro Nacional de Pensões (tendo-se provado tão somente o que consta em 1 supra) ; 14) No dia e hora, como aliás em todos os dias e horas nessa época, junto à sede do Casalense - um dos poucos edifícios que permaneciam intactos no Casal Ventoso - existiam dezenas de indivíduos a vender e centenas a comprar drogas. 15 ) Que o (arguido) MFGP e o AJVL não se conhecessem e que muito menos tivesse um negócio de droga montado com ele. 16 ) O AJVL não vendia. 17) O fenómeno social do Casal Ventoso leva, sem dúvida, a que as posições de vendedor e comprador mudem frequentemente durante o dia, a troco de dois ou três pacotes de veneno e não a troco de benefícios económicos. 18) Uma vez que os autores desses crimes, agem não livre e conscientemente, mas compelidos pela força do vício que esmaga a sua vontade e os faz perder o livre arbítrio 19) A falência da terapia com metadona é óbvia; o arguido continua a consumir as antigas drogas em concurso com a nova. 20) O arguido necessita de um centro de tratamento de estada prolongada (que o afaste do consumo de todas as drogas e lhe proporcione a necessária reestruturação de personalidade e, completando como se pretende, o tratamento com sucesso, a reinserção social). 21) O Centro de Tratamento "Adictam, Lda", está na disposição de proporcionar ao arguido um " tratamento adequado" (tendo-se provado tão só o que consta em I - supra); 22) Que o arguido aufira uma pensão social pelo facto - EXCLUSIVO - de ser seropositivo para a SIDA (tão só se provou o que consta em I -supra) " 4.3.1. Questiona o recorrente a sua condenação como co-autor de um crime de tráfico de estupefacientes, por entender que para tal não basta que o arguido actue num movimento colectivo com outrem para que exista co-autoria (conclusão 3.ª), sendo que não houve no caso qualquer acordo ou plano, expresso ou tácito, prévio ou contemporâneo à execução do facto típico (conclusão 4.ª), quando muito uma consciência recíproca de colaboração (conclusão 5.ª), que no que se refere ao recorrente não era essencial e indispensável à realização do crime praticado (conclusão 6.ª). O recorrente não detinha nas suas mãos o poder de fazer gorar a consumação do crime através da simples omissão do seu contributo (conclusão 7.ª), não detinha o domínio funcional do facto global (conclusão 8.ª), pelo que deverá ser-lhe aplicado o regime da cumplicidade, previsto no art. 27.º, n.º 1 do C. Penal (conclusão 9.ª). 4.3.2. Sucede, porém, que está assente, além do mais, que o recorrente e o MFGP, em conjugação de esforços e vontade procediam à venda de produto estupefaciente aos consumidores de produtos tóxicos que os procuravam para esse efeito, junto à sede do Casalense - Casal Ventoso (n.º 1 da matéria de facto), e que, na execução dessa actividade conjunta, o arguido vigiava e controlava uma fila de consumidores de produtos tóxicos que pretendiam adquirir produto ao MFGP (n.º 2 da matéria de facto), para tanto entregando este aos dependentes de produtos estupefacientes, pequenas embalagens e recebia o dinheiro correspondente à quantidade vendida (n.º 3 da matéria de facto), sendo, noutras ocasiões, a entrega era feita pelo MFGP enquanto o arguido recebia o dinheiro correspondente (n.º 4 da matéria de facto). Após tais vendas os arguidos entregavam o dinheiro recebido a um indivíduo de raça negra não identificado (n.º 5 da matéria de facto), Quando foram interceptados pela PSP nessa actividade, o MFGP detinha uma bolsa contendo 54 (cinquenta e quatro) embalagens de heroína (n.ºs 6 e 7 da matéria de facto) e o recorrente a quantia de 27.000$00 (n.º 8 da matéria de facto). 4.3.3. É certo que o recorrente suscitou a mesma questão perante a Relação, mas este Tribunal Superior confirmou inteiramente aquela matéria de facto, nos termos seguintes: "Pretende o recorrente que a prova produzida, quer documental quer testemunhal não permite sustentar que estivesse, juntamente com MFGP, a proceder à venda de estupefacientes ou que da actividade resultasse para ele qualquer beneficio financeiro, e bem assim concluir que, em co-autoria, tenha praticado o crime por que foi condenado. Refere que não se alcança como é que o Tribunal chegou à conclusão de que " no dia 11 de Abril de 2000, cerca das 15h30m, o arguido e MFGP... em conjugação de esforços e vontade procediam à venda de produto estupefaciente aos consumidores de produtos tóxicos que os procuravam para esse efeito, junto à sede do Casalense - Casal Ventoso, nesta cidade e comarca de Lisboa" e de que "o arguido e MFGP destinavam os ... produtos (obviamente os detidos por este último, mencionados sob ponto 7 da matéria assente) à cedência a terceiros com vista a obter, como obtiveram, benefícios financeiros." De tal alegação decorre, logicamente, que não aceita os depoimentos das testemunhas agentes da P.S.P. que procederam à sua detenção e do MFGP depoimentos nos quais o Tribunal baseou a sua convicção (vd. motivação de facto) como bastantes para deles se poder extrair a prova de tais factos. Como decorre do exposto atrás, o que neste contexto importará, antes de mais, é ver se existiu, relativamente aos factos que o recorrente põe em causa, erro de julgamento, ou seja, se, a prova produzida - muito em particular aquela em que o Tribunal se apoiou - ponderada segundo as regras da ciência, lógica ou da experiência comum, e insuficiente ou inadequada para, em vista dela, se considerarem provados aqueles factos. Ora, ponderadas nos sobreditos termos as provas invocadas na motivação - os falados depoimentos - e as demais disponíveis, não se vê que tenha havido qualquer erro, sendo o raciocínio que subjaz ao acolhimento dos mencionados factos como provados com base nessas provas perfeitamente consentâneo com a lógica e as regras da experiência comum: Se - e foi isso que as testemunhas relataram - um indivíduo, se encontra, num local onde se procede a venda de estupefacientes, a orientar a fila de toxicodependentes que para o efeito iam chegando (e saindo, após obterem o produto do MFGP, que, no topo da fila, o entregava), deles recebendo algumas vezes o dinheiro que pagavam assim actuando no período de observação de cerca de dez minutos que precedeu a detenção, é legítimo que se conclua que procedia, de comum acordo e em conjugação de esforços com o MFGP, à venda, de estupefacientes, por forma alguma sendo irrazoável, muito contrário, de acordo com as regras da experiência comum, o raciocínio que conduz a essa conclusão. Por outro lado, tendo o recorrente, actuado pela forma referida, obviamente em conjugação de esforços com o MFGP, durante cerca de dez minutos, cessando tal actuação apenas com a intervenção da autoridade, é legítimo concluir que ambos destinavam à venda o produto que o MFGP ainda detinha quando foram interceptados. Ainda, sendo evidente, de acordo com as regras da experiência comum, que o recorrente não podia deixar de ser conhecedor dos riscos de uma tal actuação (ainda mais sendo, como admite, tóxico-dependente, seguramente conhecedor dos perigos inerentes a tais vivências), é óbvio que não a levava a cabo por "desporto" ou para, altruisticamente, auxiliar alguém, pelo que - e sendo que o Tribunal "a quo" que apreciou a prova com tudo o que a imediação permite inferir, deu como não provado que tivesse como fim único obtenção de estupefaciente para seu consumo - é igualmente legítimo concluir que visava, mediante a venda a que procediam, obter benefícios financeiros que ainda obtiveram na medida das vendas que chegaram a efectuar. E nem se diga que estava ali para comprar "ajudando" para apressar a obtenção do estupefaciente para seu consumo: essa urgência na obtenção do seu consumo não se conjuga com o facto de ter ficado durante dez minutos a organizar a fila, proporcionando a compra a outros antes de si, e a receber dinheiro (que, se fosse comprar, entregaria e não receberia) sendo das regras da experiência que colhemos na prática dos Tribunais que o tóxicodependente em carência que vai comprar droga para consumir a locais de grande afluência de outros consumidores, adquire de facto, o mais rapidamente possível, e, até por segurança, se afasta para o primeiro local onde o possa fazer, consumindo de imediato. Também o argumento de que não ter na sua posse droga ou dinheiro para além da quantia de 27.000$00, sendo 25.000$00 da pensão que recebera não colhe: no contexto da actuação descrita pelos factos apurados - e inequívocos, com base na prova, como se disse tais circunstâncias são irrelevantes: sendo a actuação em conjugação de esforços e divisão de tarefas com pelo menos outro indivíduo o facto de não ter consigo o estupefaciente e insusceptível de afastar a sua responsabilidade; também o facto de não ter consigo o dinheiro recebido dos compradores (ainda assim incerto pois nada assegura que o montante que detinha fosse, como alega, o da pensão recebida, tal tendo resultado aliás não provado - ponto 13) não releva pois que da mesma prova decorre que, conforme se deu por assente, quer ele, quer MFGP, entregavam o dinheiro que iam recebendo a um indivíduo de raça negra (provavelmente um terceiro co-autor) que não foi possível identificar. Temos pois que o raciocínio subjacente ao juízo que leva a que se considerassem provados os factos que o recorrente pretendia não poderem extrair-se da prova produzida não enferma assim de qualquer vício de lógica ou ofende as regras da experiência comum, antes pelo contrário resultando tais factos claramente da prova, designadamente da indicada na motivação de facto como base da convicção do Tribunal a eles relativa. Não se colocará assim sequer a questão de violação do princípio "in dubio pro reo": o tribunal não teve - nem tinha que ter face à evidência da prova - qualquer dúvida que houvesse de resolver segundo aquele princípio. Assim, e em conclusão, contrariamente ao que pretende o recorrente, os depoimentos das testemunhas em que o Tribunal, segundo a motivação, baseou a sua convicção para dar como provados os factos em causa, inatacáveis quer do ponto de vista da clareza e isenção, quer do ponto de vista da razão de ciência (conhecimento directo do relatado), ponderados no seu conjunto e segundo as regras da experiência comum, são seguramente suficientes para constituir prova daqueles factos." Face a esta matéria de facto, e como já se decidiu, e bem, no acórdão recorrida, dúvidas não restam quanto à co-autoria por parte do recorrente. Na verdade, face ao dispositivo do art. 26.º do C. Penal (é punível como autor quem ... tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros...), como vem entendendo este Supremo Tribunal de Justiça são autores do crime aqueles que tomam parte directa, na execução, não sendo necessário que cada um dos agentes cometa integralmente o facto punível, que execute todos os factos correspondentes ao preceito incriminador; aquele que, mediante acordo prévio com outros agentes, pratica acto de execução destinado a executá-la é co-autor material dessa mesma infracção, não sendo necessário que tome parte na execução de todos esses actos, desde que seja incriminada a actuação total dos agentes. Verifica-se a co-autoria quando cada comparticipante quer o resultado como próprio com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas, bastando um acordo tácito assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum (cfr., por todos, o Ac. de 11.4.02, proc. n.º 485/02-5, do mesmo Relator). Os arguidos, com plena consciência e aceitação do resultado da sua conduta, comparticiparam num crime de tráfico de estupefacientes, devendo destacar que, entre eles, trocaram de papéis, na execução desse crime. 4.4.1. Mas questiona o recorrente igualmente a qualificação jurídica efectuada. E fá-lo sustentando que os factos que lhe eram atribuídos, demonstram a prática de um pequeno tráfico de rua, sem sofisticação ou esquema organizativo tão característico do traficantes consumidores e que deve integrar a figura do tráfico de menor gravidade (conclusão 10.ª). Para além de considerar que a circunstância de trabalhar de forma regular, ser toxicodependente e seropositivo para HIV indicia uma especial diminuição da ilicitude, o que também aponta para aquele tráfico (conclusão 11.ª) 4.4.2. Decidiu-se no acórdão recorrido: "Sendo para nós evidente face aos contornos da acção delineados pela matéria assente que a ilicitude dos factos por forma alguma é consideravelmente diminuída, elemento típico essencial do ilícito previsto no art. 25º a) do DL 15/93 de 22/1, em tal conformidade não preenchido, não se vê que o tribunal tenha incorrido em qualquer erro na determinação da norma jurídica Do que atrás se disse a respeito da antecedente questão já decorre que não se pode acolher para qualquer dos fins pretendidos a argumentação do recorrente em ordem a minimizar a sua actuação apurada ou a caracterizá-la de insignificante, também para este efeito essa argumentação não procedendo. Índices atendíveis de diminuição de ilicitude bastante para justificar a subsunção ao tipo definido nesse preceito são v. g. nomeadamente os meios utilizados, modalidade ou circunstâncias da acção, qualidade ou quantidade das substâncias. Ora, como facilmente se infere da factualidade disponível, no caso nenhum desses índices aponta para diminuição, em qualquer medida, de ilicitude, antes pelo contrário: proceder, agindo pela forma já algo organizada que se descreveu, de comum acordo e em conjugação de esforços com outros, em execução de desígnio comum, à venda de estupefacientes (heroína) a várias pessoas (tanto que era necessário organizar a fila), num local que era considerado o "supermercado" de tais produtos - havendo ainda, após dez minutos de venda, 12,746 gramas desse produto divididas por 54 embalagens, destinadas ao mesmo fim - por forma alguma pode pretender-se consubstanciar acto de diminuta ilicitude. Não pode assim reconduzir-se à previsão do citado art. 25º a) do DL 15/93 a apurada actuação do recorrente." 4.4.3. Deve notar-se, desde logo que o recorrente e o co-arguido comparticiparam num tráfico que ultrapassa o mero tráfico de rua. Com efeito, eles traficavam, de acordo com um esquema bastante em voga, fazendo intervir diversas pessoas, destinado a facilitar a fuga e a dificultar a intervenção das autoridades, bem como a proteger o dono do negócio. E nesse tráfico, como bem se entendeu na decisão recorrida não se pode falar de ilicitude consideravelmente diminuída, como o exige o n.º 1 do art. 25 do DL n. 15/93. Assim fica afastado o argumento do recorrente, desenvolvido na conclusão 10.ª da sua motivação. Por outro lado, as circunstâncias de trabalhar de forma regular, ser toxicodependente e seropositivo para HIV, respeitam às condições pessoais do agente [al. d) do n.º 2 do art. 71 do C. Penal], são completamente alheias à ilicitude, de cuja diminuição considerável deriva o privilegiamento do tráfico de estupefacientes. Com efeito, como resulta do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 71 do C. Penal, a ilicitude relaciona-se essencialmente com o modo de execução do facto e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; Ora, como tem entendido este Supremo Tribunal de Justiça, quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e um tipo agravado, é no crime simples ou no crime-tipo que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta. Depois, nos tipo privilegiado e qualificado, vem definir os elementos atenuativos ou agravativos que modificam o tipo base conduzindo a outros quadros punitivos. E só a verificação afirmativa, positiva desses elementos atenuativo ou agravativo é que permite o abandono do tipo simples. (Cfr., neste sentido, os Acs. de 23-11-2000, proc. n.º 2766/00-5, de 22.2.01, proc. n.º 4129/00-5, de 25.1.01, procs. n.ºs 3710/00-5 e 3557/00-5, de 18.10.01, proc. n.º 1188/01-5 e de 23.5.02, proc. n.º 1687/02-5 do mesmo Relator) Assim, não se tendo demonstrado uma ilicitude consideravelmente diminuída, mostra-se adequada a qualificação jurídica efectuada: crime de tráfico simples do n.º 1 do art. 21.º do DL n.º 15/93. Finalmente, constata-se que o recorrente não impugnou a medida das penas que lhe foram fixadas no quadro da qualificação jurídica efectuada. V Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso trazido pelo arguido AJVL. Custas pelo recorrente, com a taxa de Justiça de 4 Ucs. Honorários legais ao defensor . Lisboa, 24 de Outubro de 2002 Simas Santos, Abranches Martins, Oliveira Guimarães, Dinis Alves. |