Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2755
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: GERENTE
SOCIEDADE POR QUOTAS
RENÚNCIA
INEFICÁCIA
Nº do Documento: SJ200310090027557
Data do Acordão: 10/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7204/02
Data: 01/21/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1. O gerente de uma sociedade por quotas, ainda que munido de uma procuração dos outros gerentes com atribuição de poderes para tal, carece, em absoluto, de legitimidade substancial para renunciar ao arrendamento do local da sede da sociedade.
2. Um tal acto apenas pode ser validamente tomado por deliberação dos sócios, em assembleia geral regularmente convocada.
3. O dito acto de renúncia não vincula, pois, a sociedade (artº. 268º, 1, CC (1)), porque exorbita dos poderes legais do gerente (artº. 260º, 1, CSC), e porque, implicando uma alteração do contrato de sociedade, teria de partir de uma deliberação dos sócios (citado artº. 85º, 1, CSC).
4. O artº. 514º, 1, CPC, impõe-se ao próprio Supremo, não obstante os comandos dos artº. 722º, 2, CPC ("O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista...") e no artº. 26º, LOFTJ (2) ("Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito").
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(1) Código Civil
(2) Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A, Lda.", pretende que seja declarado:
- a ineficácia, relativamente a ela, da declaração de renúncia, da autoria do sócio-gerente B, ao contrato de arrendamento do prédio onde se situava a sua sede social e o seu estabelecimento;
- a nulidade da mesma declaração, por causa de coacção moral exercida sobre o declarante;
- a nulidade do subsequente contrato de arrendamento celebrado entre o dono do prédio, C, e D;
pede, mais, a condenação daqueles três a indemnizarem os danos provocados.
A acção improcedeu nas instâncias, e a autora pede, agora, revista, com os seguintes fundamentos:
- a renúncia é nula não só porque implica alteração da sede social como, também, a alienação do próprio estabelecimento, actos que, quer um quer outro, dependem de deliberação dos sócios, nos termos do artº. 246º, 1, h), e 2, c); CSC (1);
- a renúncia é, ainda, nula porque, ainda que o acto coubesse nos poderes da gerência, o sócio-gerente que a emitiu não tinha poderes para o fazer por si só, já que a procuração que exibiu lhe não confiava poderes para tal; foram, deste modo, violados os artºs. 260º, 1, e 261º, 1, CSC;
- em decorrência das referidas invalidades, também nulo será o subsequente contrato de arrendamento, acarretando tudo responsabilidade civil dos intervenientes para com a recorrente.
Contra-alegou E, entretanto habilitada como sucessora do réu C, que morreu na pendência da causa.

2. São os seguintes os factos provados:
. pelo escrito de fls. 51, datado de 13.11.91, B declarou a C que "A, Lda.", renunciava ao arrendamento dos nº. ... e ... da Rua ..., Póvoa de Santo Adrião, e entregava as chaves do local arrendado; ao emitir tal declaração, B invocou a sua qualidade de gerente da "A, Lda.", bem como ter procuração de gerência do outro gerente, procuração essa que é a junta em fotocópia a fls. 26 e verso;
. a partir de data incerta, mas pelo menos desde meados do mês de Novembro de 1991, "A, Lda." deixou de ter a sua sede e deixou de laborar no local acima mencionado;
. no dia 21 de Novembro de 1991, C obrigou-se a proporcionar a D o gozo temporário do imóvel mencionado, mediante retribuição, para exploração de actividade industrial de preparação, transformação e comercialização de produtos alimentares;
. "A, Lda." dedica-se à preparação e comercialização de pickles e especiarias, fruindo de bom nome no mercado;
. "A, Lda." tinha a sua sede e o seu estabelecimento na Rua ..., nº. ..., Póvoa de Santo Adrião;
. do respectivo pacto social resulta que a sociedade se constituiu em 8.5.84 com três sócios, todos eles designados gerentes;
. a cláusula 5ª, § 1º, do mesmo pacto, exige a assinatura de dois gerentes para que a sociedade se obrigue;
. a procuração acima referida contém uma lista de actos concreta e explicitamente autorizados ao procurador nela instituído, sem que aí se inclua a faculdade de renunciar a arrendamentos, e uma cláusula geral de autorização para o exercício e prática de todos os actos de comércio.

3. Vê-se dos factos acima descritos e do que consta da não impugnada documentação particular junta aos autos, que, munido de uma procuração de gerência, o sócio gerente B entregou o local da sede da sociedade ao senhorio e deu em pagamento ao réu D, por serviços prestados à sociedade, os equipamentos e a existência do estabelecimento.
De seguida, este último réu tomou de arrendamento o local, e propôs-se pagar as dívidas da sociedade, reservando-se o direito de sub-rogação.
Assim, por meios ínvios e informais, aquele gerente desencadeou os efeitos práticos próprios de uma dissolução da sociedade e do trespasse do estabelecimento da "A, Lda.".
Tão estranhos aos simples poderes de gerência são aqueles efeitos (cfr., a propósito, o artº. 246, 1, h), e 2, c), CSC), que seria, no mínimo, insólito que um dos principais daquele encadeado de actos (a renúncia ao arrendamento) fosse tido como bom pela ordem jurídica, válido e eficaz para com a sociedade atingida.
Seria, com efeito, uma incoerência grave.
Ora, o gerente B (ainda que a procuração lhe tivesse atribuído tais poderes, e não o tinha) carecia, em absoluto, de legitimidade substancial para fazer o que fez (renunciar ao arrendamento, deixando a sociedade sem sede).
Com efeito, nem para simplesmente deslocar a sede "dentro do concelho ou para concelho limítrofe" tem a administração das sociedades comerciais poderes, a não ser que o contrato de sociedade o autorize, e nem com esta autorização o poderá fazer para sítio mais distante (artº. 12º, 2, CSC).
Se isto é assim quanto à mera deslocação, com maioria de razão o será para a radical extinção da sede, que foi o que se verificou.
Um tal acto apenas pode ser validamente tomado por deliberação dos sócios, em assembleia geral, pois, como se diz no acórdão deste Supremo Tribunal, de 8.8.00, publicado na CJSTJ (2), ano 8, tomo 2, pág. 107, a sede é um dos elementos estruturantes do contrato de sociedade que, como tal, não poderá ser alterado a não ser por um "processo similar ao do acto inicial, a menos que o pacto social preveja um mecanismo diferente de modificação....e que não viole qualquer norma legal de natureza imperativa".
Para valer, a supressão, ainda que temporária, da sede social teria de ser deliberada pelos sócios e, depois, formalizada em acto notarial, conforme o disposto o artº. 85º, CSC (3).
O dito acto de renúncia não vincula, pois, a "A, Lda." (artº. 268º, 1, CC (4)), porque exorbita dos poderes legais do gerente (artº. 260º, 1, CSC), e porque, implicando uma alteração do contrato de sociedade, teria de partir de uma deliberação dos sócios (citado artº. 85º, 1, CSC).
Mas, ainda que não exorbitasse, também seria inoponível à "A, Lda.", porque proveio de decisão individual, não abrangida pela procuração de gerência (artº. 261º, 1 e 2, CSC).
A renúncia em causa é, pois, ineficaz para com a "A, Lda.", assim como ineficaz o é o contrato de arrendamento que, posteriormente, foi celebrado entre o senhorio C e D, o advogado que comprou as instalações e a existência do estabelecimento.
Não obstante as respostas negativas aos quesitos 14º e segs., que versam a questão dos danos, é, no entanto, óbvio que um ilícito como o declarado, que teve como efeito a eliminação temporária da sede da sociedade atingida e o abandono das instalações da empresa, não pode deixar de ter provocado danos patrimoniais, directos e indirectos, à "A, Lda.", por causa da forçada paralização da actividade administrativa e de produção (danos directos) e por causa, também, das perdas resultantes do desaparecimento do nome da autora/recorrente, ainda que temporário, do mercado (danos indirectos).
Dizer o contrário, ou, mesmo, dizer que se não provou que os tivesse havido (confortado nas tais respostas negativas) seria fechar os olhos às realidades da vida económica, realidades que se impõem a qualquer observador, por menos preparado que seja, e que, por isso mesmo, encontram guarida processual no artº. 514º, 1, CPC (5).
Esta disposição impõe-se ao próprio Supremo, não obstante os comandos dos artº. 722º, 2, CPC ("O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista...") e no artºs. 26º, LOFTJ (6) ("Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito").
Tem sido, aqui, entendido, com efeito, que cabe nas atribuições deste tribunal, não só o controlo do correcto uso, pelas instâncias, do dispositivo do artº. 514º, 1, CPC, na definição do que, em concreto, constitui, ou não, facto notório (cfr., p. ex., os acórdãos de 10.12.91, Proc. 80295, 1ª secção; de 05.03.96, no BMJ (7) 455º/420; de 01.07.99, Proc. 1215/98, 2ª secção), mas, também, o próprio conhecimento, de ofício, dos factos notórios (cfr. os acórdãos de 23.05.85, Proc. 72350, 2ª secção; de 23.09.99, Proc. 610/99, 1ª secção (8)).
E compreende-se a bondade desta jurisprudência: trata-se, em qualquer dos casos, de fixar factos, não por um processo de apreciação de provas, que é próprio dos tribunais de instância, mas por aplicação de uma norma de direito.
Os danos não são, todavia, quantificáveis neste local.
É tarefa a realizar em execução de sentença.
Por eles, é responsável o demandado B, porque gerente e autor do acto de renúncia, tendo em conta o disposto nos artºs. 64º e 72º, 1, CSC.
Aquele acto foi, como se disse, praticado "com preterição dos deveres legais" de gerente, causou danos à sociedade, e o réu não ilidiu a presunção de culpa com que o sobrecarrega a parte final do citado nº. 1, do artº. 72º.
Quanto aos outros réus, os elementos de facto à disposição não permitem atribuir-lhes, também, responsabilidade.
Estando em causa um direito de crédito (assim tem sido encarado por este Supremo Tribunal o direito ao arrendamento), embora com especiais características que, sob certos aspectos, o aproximam dos direitos reais, importa lembrar a eficácia relativa dessa categoria de direitos, que carecem, em princípio (salvo os casos especialmente previstos na lei), de eficácia externa, só podendo o respectivo cumprimento ser exigido do devedor, e não de terceiros (artº. 406º, 2, CC).
Isto explica, desde logo, a exclusão do réu D (terceiro), sem prejuízo de outra coisa bem diferente se dever, porventura, concluir, caso tivesse ficado melhor esclarecida a relação que, indubitavelmente, existiu entre aquele advogado e a sociedade lesada.
O senhorio, C, por seu lado, não era obrigado a saber a falta de poderes do gerente renunciante, e, por isso, na falta de prova do contrário, também não responde pelos danos resultantes do acto de renúncia e posterior novo arrendamento; só a prova de uma conduta maliciosa da sua parte, tendente a induzir o co-réu B a ser infiel à sociedade é que justificaria, à luz da boa fé, a pretendida responsabilização, que, nesse caso, teria como fundamento o próprio contrato de arrendamento e o seu incumprimento.

4. Pelo exposto, concedem parcialmente a revista, e, em consequência, revogando, em parte, o acórdão sob recurso, declaram ilegal e ineficaz, relativamente à recorrente "A, Lda.", a renúncia, da autoria do sócio-gerente B, ao contrato de arrendamento do prédio onde se situava a sua sede social e o seu estabelecimento, assim como o subsequente contrato de arrendamento celebrado entre o dono do prédio, C, e D;
condenam, finalmente, o réu, aqui recorrido, B a pagar à autora "A, Lda.", aqui recorrente, o que se liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais decorrentes daquele acto de renúncia.
Custas, aqui e nas instâncias, pelos réus, em regime de solidariedade, sendo a responsabilidade dos réus D e herdeiros de C limitada a dois terços.

Lisboa, 9 de Outubro de 2003
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo Barros
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(1) Código das Sociedades Comerciais.
(2) Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.
(3) Na primitiva redacção, que é a aplicável.
(4) Código Civil.
(5) Código de Processo Civil.
(6) Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
(7) Boletim do Ministério da Justiça.
(8) Todos acessíveis na página de acórdãos do STJ do site do ITIJ, do Ministério da Justiça.