Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
430/19.4T8PNF.P1-A.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO SOCIAL
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRABALHO NO ESTRANGEIRO
APÓLICE DE SEGURO
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
Data do Acordão: 11/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
Nos termos dos artigos 11.º n.º 1, alínea b) e 13.º n.º 2 do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, os tribunais portugueses são competentes para conhecer da ação proposta por um trabalhador português, com domicílio em Portugal, pessoa segura no âmbito de um seguro de acidentes de trabalho celebrado por uma empresa portuguesa, com o domicílio em Portugal e um segurador alemão, cobrindo o risco respeitante a acidentes de trabalho por ocasião de um destacamento temporário na Alemanha.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 430/19.4T8PNF.P1-A.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Relatório

AA intentou ação declarativa especial emergente de acidente de trabalho contra “BG BAU – Berufsgenossenschaft der Bauwirtschaft peticionando o seguinte:

Atendendo à factualidade atrás referida, às disposições legais e contratuais aplicáveis, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, reclamando, assim, o Autor:

a) Que o acidente descrito nos autos e por si sofrido seja qualificado como de trabalho e, consequentemente,

b) Seja reconhecido o nexo de causalidade entre as lesões que sofreu e o acidente destes autos, bem como o grau de desvalorização que das mesmas decorre (IPP);

E que a Ré seja condenada ao pagamento:

c) Do capital de remissão correspondente a uma pensão anual de € 4.724,82 (artº 48º, nº 3, al. c) RJAT) devido desde 29/05/2018 (artº 67º, nº 1 RJAT)

d) Da indemnização devida pelo período de incapacidade temporária absoluta que sofreu e lhe foi fixada, no valor de € 8.302,00;

e) Da quantia de € 20,00, a título de compensação pelas despesas de deslocação ao GML e a este Tribunal para a realização de atos médicos e judiciais (artº 39º, nºs 1 e 2 da Lei nº 98/2009, de 04/09);

f) De juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias em dívida, desde os respetivos vencimentos e até integral pagamento (artºs 559º, 804º a 806º do Código Civil e 135º do CPT).”.

A Ré contestou, defendendo-se, além do mais, por exceção de incompetência internacional.

Além disso requereu a intervenção principal provocada da entidade empregadora Z.P.C., Lda. e eventual entidade seguradora portuguesa.

Por despacho consideraram-se preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 129.º n.º 1 alínea b) e n.º 3 do Código de Processo do Trabalho, tendo-se determinado a intervenção na ação da sociedade Z.P.C., Lda, como empregador.

No despacho saneador de 07.02.2024, o Tribunal de 1ª instância decidiu o seguinte: “Pelo exposto, julga-se procedente a exceção de falta de competência internacional dos Juízos do Trabalho Portugueses e:

1) Absolve-se a R. Bg Bau – Berufsgenossenschaft der Bauwirtschaft da instância;

2) Julga-se extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto à interveniente Z.P.C., Lda.

O Autor interpôs recurso de apelação.

Em 28.06.2024, o Tribunal da Relação do Porto proferiu Acórdão no qual decidiu “Nos termos expostos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida, a qual é substituída por este acórdão, em que se julga improcedente a exceção da incompetência internacional do tribunal, determinando-se, por decorrência, salvo se outra razão houver que o impeça, o posterior prosseguimento dos autos.”.

A Ré interpôs recurso de revista.

O Autor respondeu às alegações.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Fundamentação

De Facto

Os factos dados como provados nas instâncias são os seguintes:

A) No dia 30/05/2017, cerca das 10h30m, na Alemanha, o A. sofreu um acidente quando prestava funções sob as ordens, direção e fiscalização da sociedade Z.P.C. Lda., com sede na Estrada …, …, 1.º Esq., …, sua entidade empregadora, exercendo as funções de pedreiro de 1ª, mediante a retribuição horária de € 13,25, perfazendo o montante mensal de € 3.498,00, no valor anual de € 41.976,00;

B) O acidente ocorreu na altura em que o A. se encontrava a cortar uma chapa metálica, utilizando para tanto uma rebarbadora, tendo o disco atingido a sua mão esquerda;

C) À data do acidente a entidade empregadora tinha a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho em que o A. fosse interveniente transferida para a ora R., através do contrato de seguro titulado pela apólice nº ...22;

D) O A. celebrou com a sociedade Z.P.C. Lda. um contrato de trabalho a termo certo, datado de 02/05/2017, com início em 10/05/2017 e termo a 31/12/2017, com a categoria profissional de pedreiro de 1ª, nos termos constantes de fls. 20 verso a 25 verso dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;

E) O A. celebrou com a sociedade Z.P.C. Lda. um contrato de destacamento temporário de trabalhador a termo, datado de 02/05/2017, com início em 10/05/2017 e termo a 31/12/2017, para exercer funções de pedreiro de 1ª na Alemanha, nos termos constantes de fls. 26 a 29 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas, do qual consta:

1) Na cláusula 4ª nº 3 que “O Trabalhador terá direito às condições de trabalho previstas na legislação do país de destino”;

2) Na cláusula 5ª nº 1, que “O horário de trabalho a cumprir pelo Trabalhador será fixado de acordo com a legislação do país de destino, designadamente, caso exista, com o contrato colectivo de trabalho aplicável naquele país”;

3) Na cláusula 6ª nº 1 que “O Trabalhador terá direito a férias pagas nos termos estabelecidos pela legislação do país de destacamento”;

4) Na cláusula 7ª nº 1 que “O Trabalhador, durante o seu destacamento em Alemanha e enquanto essa situação se mantiver, auferirá a retribuição mínima aplicável no país de destino e disporá dos benefícios estabelecidos no Anexo I ao presente Acordo”;

5) Na cláusula 8ª, que “O alojamento e alimentação no país de destino ficarão a cargo do Trabalhador”;

6) Na cláusula 9ª nº 1, que “O Trabalhador custeará as viagens necessárias ao exercício das suas funções no país de destino, nomeadamente no início e no termo do destacamento, sem prejuízo de a Primeira Contraente lhe poder atribuir, como reembolso das inerentes despesas, um valor pago a título de subsídio de viagem”;

7) Na cláusula 4.1 do Anexo, que “Durante o período de destacamento, o trabalhador terá acesso aos cuidados de saúde no país de destacamento, como se estivesse em Portugal, na medida em que se encontra enquadrado como trabalhador destacado em país da União Europeia, (…) ou, estar seguro em termos de doença, directamente pela Segurança Social do país de destino”;

8) Na cláusula 4.3 do Anexo, que “O Segundo Outorgante, por imposição legal, poderá ser beneficiário do seguro de acidentes de trabalho, no país de destino;

F) Foi celebrado entre o A. e a sociedade Z.P.C. Lda. um aditamento a acordo de destacamento temporário (alojamento) datado de 02/05/2017, do qual consta na cláusula 1ª nº 1 que “Durante a prestação do serviço no país de destacamento, no período compreendido entre 10/05/2017 e 31/12/2017, a Empresa disponibiliza ao Trabalhador, mediante o pagamento do respectivo preço, alojamento em apartamento ou contentor perto do local de trabalho (…)”, na cláusula segunda que “O Trabalhador obriga-se a reembolsar a Empresa, até ao final de cada mês, dos custos com o respetivo alojamento, sendo o mesmo no valor diário de 8,00 €, com IVA incluído, em vigor no país de destacamento”;

G) Na cláusula terceira do aditamento indicado em F) são estabelecidas as obrigações do Trabalhador, da mesma constando que este é também responsável por danos causados por pessoas que o visitem;

H) Dos recibos de vencimento do A., emitidos pela sociedade Z.P.C. Lda., referentes aos meses de Maio a Julho e Dezembro de 2017 consta como morada do A. Estugarda e o desconto de quantias para a Segurança Social da Alemanha e imposto sobre o rendimento alemão, nos termos constantes de fls. 781 verso e 782 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;

I) Dos recibos de vencimento do A., emitidos pela sociedade Z.P.C. Lda., referentes aos meses de Maio e Junho de 2017 consta o desconto de quantia referente a retenção de renda;

J) Relativamente ao ano de 2017 o A. entregou declaração anual modelo 3 para efeitos de IRS na qual declarou um rendimento auferido no estrangeiro no valor total de € 5.681,04 e imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro no valor de € 590,61;

K) Na data do acidente o A. apresentava como residência a morada ..., nos termos constantes do relatório do médico especialista em acidentes de trabalho datado de 30/05/2017 e do relatório de acidente elaborado pela sociedade Z.P.C., Lda. em 31/05/2017, juntos e traduzidos a fls. 89 verso, 117, 738 e 739 dos autos;

L) O A. foi contratado pela sociedade Z.P.C., Lda. para ser de imediato destacado para a Alemanha, não tendo sido inscrito na Segurança Social Portuguesa;

M) A retribuição mensal do A. era transferida para a conta bancária com o ...20”

De Direito

A única questão que se discute no presente recurso é a de saber se os tribunais portugueses são competentes para conhecer da eventual responsabilidade da Recorrente decorrente de um eventual acidente de trabalho que o Autor terá sofrido.

Decorre dos factos dados como provados no processo que o Autor, cidadão português, foi objeto de um destacamento internacional para a Alemanha pelo seu empregador, que é uma empresa, Z.P.C. Lda., com sede em Portugal (facto A). E como se refere no douto Parecer do Ministério Público junto aos autos neste Tribunal, “[s]endo que, por outro lado, o autor tem domicílio em Portugal, conforme se verifica, nomeadamente, do acordo de destacamento, da petição inicial, bem como do auto de tentativa de conciliação efetuado na fase conciliatória do presente processo”. Tal conclusão, de que o trabalhador tem o seu domicílio em Portugal não é afastada pelo facto de evidentemente enquanto trabalhou na Alemanha e no momento em que ocorreu o sinistro o Autor residir temporariamente nesse país. Aliás o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012 no seu artigo 62.º n.º 1 precisa que “para determinar se uma parte tem domicílio no Estado-Membro a cujos tribunais é submetida a questão, o juiz aplica a sua lei interna”. O artigo 82.º n.º 1 do Código Civil português determina que o local do domicílio é, em princípio, o local da residência habitual (“[a] pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual (…)”).

Assim, e aplicando a versão originária da Diretiva 96/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de dezembro de 1996, pode afirmar-se que a situação se pode subsumir à alínea a) do artigo 1.º n.º 3 da referida Diretiva.

Não se ignora que o trabalhador destacado é aquele que “por um período limitado trabalhe no território de um Estado-membro diferente do Estado onde habitualmente exerce a sua atividade” (artigo 2.º n.º 1 da Diretiva), e que um segmento da doutrina considera que deve existir animus revertendi por parte do trabalhador e animus retrahendi da parte do empregador, mas, como refere UGLJESA GRUSIC1, a intenção das partes pode deduzir-se do acordo entre elas celebrado e de outras circunstâncias do caso. Na situação dos autos o acordo estabelecia que “o Trabalhador, durante o seu destacamento em Alemanha e enquanto essa situação se mantiver” (Facto E) e o pagamento da retribuição era realizado por transferência para uma conta bancária em Portugal (facto M).

Tratando-se de um destacamento internacional de trabalhador, a própria Diretiva prevê no seu artigo 6.º “[a] fim de fazer valer o direito às condições de trabalho e emprego garantidas pelo artigo 3.º, pode ser instaurada uma ação num tribunal do Estado-membro em cujo território o trabalhador esteja ou tenha estado destacado (…)”, mas trata-se de uma faculdade e não de uma imposição de competência exclusiva desse tribunal.

Existindo um destacamento há que atender ao disposto no artigo 10.º n.º 2, alínea a) do Código do Processo de Trabalho (doravante designado por CPT) e como o que está em causa é um acidente de trabalho ao disposto no artigo 15.º n.º 2 desse mesmo Código. As soluções consagradas nesses preceitos são inteiramente compatíveis com o artigo 21.º n.º 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, já que de acordo com este preceito, o empregador com domicílio num Estado-membro pode, desde logo, ser demandado nos tribunais do Estado-Membro em que tem domicílio.

Relativamente ao Recorrente, tanto mais que este provocou a intervenção principal do empregador, o douto Parecer do Ministério Público sustenta que sempre a competência internacional dos tribunais portugueses poderia decorrer do artigo 8.º n.º 1 do Regulamento.

Sublinhe-se, contudo, que o que está em jogo no presente recurso é aferir da competência internacional dos tribunais portugueses em relação a quem agiu como segurador. Com efeito, está provado nos autos que “[à] data do acidente a entidade empregadora tinha a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho em que o A. fosse interveniente transferida para a ora R., através do contrato de seguro titulado pela apólice nº ...22” (facto C).

O Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial contém regras especiais relativamente ao contrato de seguro visando proteger a parte mais fraca como resulta do seu Considerando 18.

Assim, o segurador domiciliado no território de um Estado-Membro pode ser demandado noutro Estado-Membro em caso de ações intentadas pelo tomador de seguro, o segurado ou um beneficiário, no tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio (artigo 11.º, n.º 1, alínea b). Aliás, sendo o seguro de acidentes de trabalho em Portugal um seguro obrigatório, sujeito às regras aplicáveis a um seguro de responsabilidade civil (artigo 138.º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de abril) e em que é possível a ação direta do sinistrado contra o segurador (artigo 146.º do Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de abril), a competência internacional dos tribunais portugueses resulta igualmente do artigo 13.º do Regulamento, mormente do seu n.º 2.

Decisão; Negada a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido, e considerando-se improcedente a exceção de incompetência internacional, ainda que com outra fundamentação.

Custas do recurso pelo Recorrente

Lisboa, 6 de novembro de 2024

Júlio Gomes (Relator)

José Eduardo Sapateiro

Albertina Pereira

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1. The European Private International Law of Employment, Cambridge University Press, Cambridge, 2015, p. 159.↩︎