Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1618/21.3YRLSB-A
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: HABEAS CORPUS
FINALIDADE
EXTRADIÇÃO
DETENÇÃO
PRAZOS
Data do Acordão: 09/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito fundamental à liberdade ambulatória, permitindo reagir imediata e expeditamente “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal”.

II. O habeas corpus contra a prisão ilegal é um procedimento especial e urgente, no qual se requer ao STJ o restabelecimento do direito constitucional à liberdade, vulnerado por uma prisão ordenada, autorizada ou executada por entidade não competente, ou por factos que a não permitem, ou que sendo originariamente legal se mantém para além da medida legalmente estabelecida ou judicialmente fixada.

III. Não constitui um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais.

IV. A detenção para extradição é uma das restrições do direito fundamental à liberdade admitida pela Constituição da República.

V. Com prazos máximos estabelecidos na lei, admite a detenção antecipada, que, todavia, integra já o processo de extradição.

VI. Visa, na forte previsibilidade do deferimento do pedido de extradição, garantir a entrega do extraditando ao Estado estrangeiro requerente,

VII. O procedimento de extradição comporta dois processos, ambos urgentes:

- o administrativo a correr na autoridade central e no ministério governamental organicamente competente para decidir, politicamente, da admissão do pedido;

- o judicial a correr no tribunal para, quando o pedido tenha sido admitido, julgar e decidir da concessão – ou recusa – da extradição.

VIII. Em qualquer caso, a detenção do extraditando deve cessar imediatamente e ser substituída por outra medida de coação processual não privativa da liberdade se o pedido admitido não der entrada em juízo até ao 60º dia ou a decisão final do Tribunal da Relação não for proferida até ao 65º dia, ambos contados da data da detenção – art. 52º n.º 1 e 63º n.º 3 da LCJIMP.

IX. A detenção do Requerente mantem-se, presentemente, dentro dos referidos prazos

Decisão Texto Integral:

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, em conferência, acorda:

I. RELATÓRIO:

1. a petição:

O arguido no processo de extradição em epigrafe:

- AA, de 26 anos e os demais sinais dos autos;

apresentou a vertente providência de habeas corpus.

Não convocando a norma constitucional pertinente nem qualquer das alíneas do número 2 do artigo 222.º do CPP, atribui a ilegalidade da sua atual detenção ao excesso do prazo legal da detenção, aduzindo que o despacho judicial que a manteve enferma de nulidade, argumentando como se transcreve:

2º Veio o Ministério Publico alegar que no dia 27 de Agosto de 2021 as entidades indianas vieram pela via diplomática requerer a extradição

3º Contudo nada foi junto aos autos

4º O prazo de 40 dias está largamente ultrapassado podendo, todavia, ir aos 40 dias por solicitação do Estado requerente se para tal as razões apresentadas forem atendíveis e o justificarem.

- Sucede, porém, e como resulta dos próprios autos o Estado requerente veio pela via diplomática, mas não juntou ainda qualquer documento aos autos, nem o digníssimo ministério publico juntou qualquer documento comprovativo

5º O douto despacho de

Não pode o arguido estar indefinidamente detido provisoriamente, estando neste momento ultrapassado o limite máximo de 40 dias

- Assim, é manifesto que tanto o MºPº como Mº Juiz Desembargador careciam de legitimidade legal ou processual para promover e determinar a detenção provisória do extraditando por mais de 40 dias.

- Consequentemente, o prazo legal de detenção provisória do extraditando era de 18 dias podendo ser prorrogado em 40 dias de acordo com o art.º 38º nº 5 da Lei 144/99 de 31 de agosto.

Nunca foi relevado ao arguido o motivo da prorrogação do prazo de 18 para 40 dias

6º Vejamos o despacho de 06/08/…257:

Em face das razões invocadas, que são atendíveis, associadas à formalização do pedido de extradição, bem assim, do disposto nos arts. 38º nº 5 e 64º nºs 2 e 3 da Lei 144/99 de 31 de Agosto e ainda do disposto no art. 10º nº 5 do acordo de extradição celebrado com a Índia (Resolução da AR nº59/2008 de 14.10), determino a prorrogação do prazo da detenção do requerido AA e para a apresentação formal do pedido de extradição deste cidadão, até ao próximo dia 27 de Agosto.

Notifique

7º Razoes invocadas que o arguido desconhece.

Viola o princípio constitucional do contraditório o que acarreta a nulidade processual que se invoca é nulo artigo 119 do CP-

Nulidade insanável que desde já se alega

5º Porem, o tribunal a quo considerou deste modo que o extraditando só pudesse estar legalmente detido até 27 de agosto de 2021;

- O que efetivamente não aconteceu!

- Termos em que o extraditando se encontra ilegalmente detido desde 27 de Agosto de 2021

6º Pois vemos:

Veio o Ministério Publico no despacho informar o processo, por oficio que não junta, que o estado da India exerceu o seu direito por via diplomática decretou que fosse o processo encaminhado para a via administrativa e judicial

7º Isto é, mais uma vez o arguido não tem acesso nem sabe que oficio é esse, novamente há aqui a violação do princípio constitucional do contraditório

8º Por que já estamos nos 45 dias de detenção, ou seja, cinco dias após o limite máximo, ou seja e dias de prisão ilegal e injustificada

9º Deve declarar-se nulo e sem qualquer efeito todos os actos processuais efectuados após o douto despacho de 27/08/2021 …713 nos termos e ao abrigo do art.119º do C.P.

Penal, o que arguiu desde já alega.

10º Verificou-se uma grave omissão processual do próprio despacho, não apreciando, nem fundamentando a manutenção da prisão do extraditando;

11º O douto despacho referido viola os artigos 97º, nº 4, 202º, 211º, 212º e 213º do C.P. Penal e ainda o art.38º, nº 5, da Lei 144/99 de 31/8.

- Devendo para o efeito tal nulidade ser legal e processualmente reconhecida Artigo 119.ºCP que desde já se alega

12º Alias o ato referenciado …158

Data: ver data certificada

Tendo decorrido já 45 dias desde a data da detenção do arguido e tendo em conta os limites de duração da mesma, solicita-se ao MP a entrega urgente do expediente referido no anterior despacho.

Notifique

13º Como o referido expediente para entrega no processo cessava no 40º dia e já estamos na 45º entrega mesmo na presente data é extemporânea, sendo o despacho inócuo, ferido de nulidade insanável artigo 119 e 120 do CP e ambas se alegam

Tendo como consequência legal e direta a ilegalidade da detenção do extraditando devendo ser de imediato restituído à liberdade, aguardando os ulteriores termos do processo sujeito a medidas de coação não privativas da liberdade.

- Ser de imediato o extraditando restituído à liberdade, sujeito a medidas de coação não privativas da liberdade;

2. informação judicial:

O V.ª Juiz Desembargador no Tribunal da Relação onde o processo de extradição corre termos, observando o disposto no artigo 223.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, exarou concisa informação sobre a privação da liberdade do Requerente, elucidando:

A pretensa violação dos prazos de detenção provisória.

A nosso ver eles não se mostram excedidos, atento o teor da norma que permite a sua extensão a 40 dias, e uma vez que o pedido formal foi recebido em Portugal dentro do prazo.

O que se aguarda, de momento, é a junção aos autos do pedido, devidamente tramitado nos termos legais.

A promoção dessa tramitação é da competência do MP, que deverá ter em atenção o decurso dos prazos das medidas de coacção estabelecidas, tudo aliás conforme despacho proferido no dia de ontem.


*


Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Defensor dos Requerentes, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):


I. FUNDAMENTAÇÃO:

Dos elementos com que vem instruído o procedimento, com relevância para a decisão dos vertentes pedidos de habeas corpus, extraem-se os seguintes:

a) Dados de factos e processuais (em súmula):

1. As autoridades judiciárias da República da Índia – o Juiz das Sessões das Extraordinárias, Tribunal Especial …, …, ..., ... - emitiram em 13 de agosto de 2020 mandado de detenção do Requerente.

2. Mandado que a Agência Nacional de Investigação/… daquele país fez inserir no sistema da Interpol com o n.º de controlo …-…13/…-2021, publicado em 11 de junho de 2022.

3. O Requerente foi encontrado em Portugal, em ..., pelo que, com base naquela informação do sistema da Interpol, foi detido às 14 horas de 21 de julho de 2021, com vista à extradição e entrega para procedimento criminal na República da Índia.

4. Por contra ele ali ter sido deduzida acusação, em 20.10.2020, imputando-lhe os crimes de associação criminosa, financiamento de organização terrorista, tráfico de estupefacientes, conspiração para cometer crimes e angariar fundos para atos terroristas e ser membro de organização terrorista.

5. Punidos na Lei da República da Índia, no respetivo Código Penal (1860-Secção 120B), na Lei relativa a Narcóticos e Substâncias Psicotrópicas (1985-8r/w 21, 23, 12 r/w, 27 A e 29) e na Lei de Prevenção de Atividades Ilícitas (Secções 17, 18 e 29), sendo a pena máxima aplicável a de prisão perpétua.

6. Pena máxima aplicável que não obsta à extradição se o Estado Requerente garantir que, no caso, não será aplicada ao Requerente -  art. 6.º, n.º 1, alínea f), e n.º 2, alínea b), da LCJIMP;

7. Os crimes imputados ao Requerente são puníveis, em Portugal: a associação criminosa no art. 299.º n.ºs 1 e 2, do Código Penal, a organização terrorista e o financiamento do terrorismo respetivamente nos arts. 2.º, n.º 2 e 5.º-A da Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto, e o tráfico de estupefacientes no art. 21.º n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com as penas de, respetivamente, 1 a 5 anos de prisão, 8 a 15 anos de prisão, 8 a 15 anos de prisão e de 4 a 12 anos de prisão e, em cúmulo juridico como a  pena maxima de 25 anos de prisão.

8. O Ministério Publico apresentou o Requerente detido no Tribunal da Relação de Lisboa para audição por Juiz Desembargador funcionalmente competente.

9. O V.º Desembargador de turno, em 23 de julho de 2021, ouvido o Requerente e o seu ilustre defensor, validou a detenção.

10. E, mediante promoção do Ministério Público e contraditório da defesa, julgando “demonstrada está a existência de concreto perigo de fuga”, determinou que o Requerente aguarde os termos do processo de extradição, na situação de detido.

11. Conforme elementos juntos pelo Ministério Público aos autos, o Estado requerente, primeiro em informação datada de 27 de julho da Agencia Nacional de Investigação/…, reafirmada em nota diplomática datada de 2 de agosto de 2021, informou a autoridade central de Portugal que ia apresentar pedido formal de extradição.

12. Com a informação juntou cópia do mandado de detenção emitido em 13 de agosto de 2020 pelo tribunal competente daquele país.

13. Mandado do qual consta a narração sumária dos factos imputados ao acusado, aqui Requerente, da respetiva qualificação jurídica e das normas legais, com as correspondentes incriminações.

14. Informação que o Ministério Público levou ao processo judicial de extradição.

15. Através de nota diplomática com data de 2 de aposto, apresentada em 4 do mesmo mês, a República da Índia requereu a prorrogação do prazo até 27 de agosto de 2021, para instruir o pedido formal de extradição, invocando as razões na mesma enunciadas.

16. O Ministério Público foi ao processo judicial juntar o referido pedido de prorrogação, promovendo que fosse deferido.

17. A V.ª Desembargadora em serviço de turno, por despacho de 6 de agosto julgando atendíveis as razões invocadas, associadas às exigências de formalização do pedido de extradição, ao abrigo o disposto nos arts. 38º nº 5 e 64º nºs 2 e 3 da Lei 144/99 de 31 de Agosto e no art. 10º nº 5 do acordo de extradição celebrado com a Índia (Resolução da AR nº 59/2008 de 14.10), prorrogou, até 27 de Agosto, o prazo para apresentação formal do pedido de extradição e a detenção do Requerido.

18.  A República da Índia, em 25 de agosto de 2021, apresentou, por via diplomática, à autoridade central de Portugal, o pedido formal de extradição do Requerente AA.

19. Pedido de extradição que presentemente se encontra na fase politico-administrativa na autoridade central e no Ministério da Justiça.

20. Nesta data o Requerente encontra-se detido, para extradição, recluido no Estabelecimento Prisional de Lisboa.

b) o direito:

1. direito fundamental à liberdade pessoal:

O direito à liberdade pessoal –liberdade ambulatória- é um direito fundamental da pessoa individual, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.

Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.

No artigo XXIX (29º) admite-se que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra; “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH[1], no art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.

Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/)enfatiza desde logo que o artigo 5 consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. o Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163)[2].

Interpreta: “no que diz respeito à «“legalidade” da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno”.

E que “a "regularidade" exigida pela Convenção pressupõe o respeito não só do direito interno, mas também - o artigo 18.º confirma - da finalidade da privação de liberdade autorizada pelo artigo 5.º, n.º 1, alínea a). (Bozano v. França , em 18 de dezembro de 1986, § 54, Série A n º 111, e Semanas v. Reino Unido, 2 de Março de 1987 § 42, Série A n º 114). No entanto, a preposição "depois" não implica, neste contexto, uma simples sequência cronológica de sucessão entre "condenação" e "detenção": a segunda também deve resultar da primeira, ocorrer "a seguir e como resultado "- ou" em virtude "-" desta ". Em suma, deve haver uma ligação causal suficiente entre elas (Van Droogenbroeck, citado acima, §§ 35 e 39, e Weeks , citado acima, § 42) [3].

Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art. 6º, o direito à liberdade pessoal.

Não consagrando o habeas corpus, reconhece, no art. 47º, o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União.

Todavia, assinala E. Maia Costa, os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus[4].

A Constituição da República, no artigo 27º n.º 1, reconhece e garante o direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos. 

O direito a não ser detido, preso ou privado da liberdade, total ou parcialmente, não é um direito absoluto.

À semelhança da CEDH, a Constituição da República, no art. 27º n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições.

Entre estas sobressai, desde logo “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (n.º 3), nos casos de (c) “à “prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeito a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra quem esteja em curso processo de extradição ou de expulsão”.

Das medidas cautelares de natureza pessoal processualmente previstas, a detenção para extradição (como a prisão preventiva[5]) é a mais restritiva da liberdade individual. Exige a concorrência dos pressupostos da necessidade, adequação e proporcionalidade.

Ademais da reserva de lei, está também submetida à reserva de juiz (só pode ser aplicada em decisão judicial). A drástica restrição ao direito fundamental à liberdade ambulatória que encerra, não permite que seja aplicada se não se revelar a única adequada a acautelar a execução da decisão judicial de entrega do extraditando ao Estado Requerente. 

2. a providência da habeas corpus:

A Constituição da República, em linha com CEDH, também de certo modo, na sequência das duas Constituições que a precedem (a de 1911 e a de 1933), aderindo à tradição anglo-saxónica[6], consagra no art. 31º, o habeas corpus como garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão (e a detenção) arbitrária ou ilegal[7].

A privação do direito à liberdade por meio da prisão só não configura abuso de poder e, consequentemente, será legal se se contiver nos estritos parâmetros do art. 27º n.ºs 2 e 3 da Constituição. A prisão é abusivamente ilegal quando não tenha sido decretada pelo tribunal competente em decisão judicial (fundamentada) que aplica medida de coação verificados os respetivos pressupostos ou em sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou com a aplicação de medida de segurança; tiver sido ordenada por autoridade incompetente; tiver sido motivada por factos pelos quais a lei a não permite ou for mantida para além dos prazos fixados na lei ou em decisão judicial definitiva.

“Não é qualquer abuso de poder que justifica habeas corpus”. A providência de habeas corpus exige a verificação “cumulativa de dois requisitos: o abuso de poder; a existência de prisão ou detenção ilegal”. O “abuso de poder exterioriza-se nomeadamente na existência de medidas ilegais de prisão e detenção decididas em condições especialmente arbitrárias ou gravosas[8].

Entre nós, é na Constituição Republica de 1911[9] que pela primeira vez surge consagrado o habeas corpus –no título II (Dos Direitos e Garantias Individuais), art. 3º n.º 31[10] –, por influência da Constituição brasileira de 1891[11], (transcrevendo o § 22º do artigo 72º[12]) que, por sua vez, se inspirou na constituição norte-americana[13] (se bem que o Código de Processo Penal do Brasil de 1832, já previa esta providência (artigo 340º)[14].

A Constituição de 1933 reafirmou o habeas corpus como providência excecional contra o abuso de poder, remetendo a sua regulamentação para lei especial[15] (remissão eliminada na revisão de 1971[16]).

Observando a imposição constitucional, o Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de Outubro de 1945[17], estabeleceu o regime jurídico do habeas corpus.

Da exposição de motivos, pela consistência das justificações e da finalidade da providência transcreve-se que o habeas corpus:

“(…) consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade.

Providência de carácter extraordinário, só encontra oportunidade de aplicação, (…) quando o jogo normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos.

O habeas corpus não é um meio de reparação dos direitos individuais ofendidos (…). É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. (…) De outro modo tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso”.

Instituiu-se o habeas corpus liberatório em duas modalidades, um contra a detenção abusiva, o outro, diferenciado, para a prisão ilegal.

Segundo Adriano Moreirao habeas corpus não tem nenhuma característica substancial, mas é apenas como que, entre os vários processos normais de tutela da liberdade, um processo de reserva para os casos em que não existe esse processo normal, ou de facto o indivíduo está impossibilitado de a ele recorrer”.

“O habeas corpus, na sua função normal, não é pois mais do que – um processo destinado a restituir a pessoa, ilegalmente privada da sua liberdade física pela autoridade, à tutela do processo comum[18].

No entendimento de M. Cavaleiro de Ferreira, “diz-se providência extraordinária, porque os trâmites processuais e o mecanismo normal do funcionamento da administração devem, por si, ser salvaguarda suficiente para evitar a contingência de prisões ilegais[19]”.

Regime que, mantendo a conceção e a arquitetura[20], transitou para o Código de Processo Penal de 1929 – artigos 312º a 324º.

E transitou também para a atual Constituição da República, estabelecendo-se o prazo de 8 dias para a decisão da providência.

Na alteração do CPP de 1929 que se seguiu à proclamação da Constituição de 1976, operada pelo Decreto-Lei n.º 320/76 de 4 de maio, estatuiu-se que o esgotamento do prazo sem decisão, determinava a imediatamente restituição do detido ou preso à liberdade[21].

E, ainda que simplificado (concentrado em dois artigos substantivos, e outros dois procedimentais), o regime passou para o vigente Código de Processo Penal (de 1987), e que, na parte substantiva referente à prisão ilegal (art. 222º) não sofreu qualquer alteração.

O habeas corpus é, pois, uma garantia (“direito-garantia”), não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito fundamental à liberdade[22] pessoal, permitindo reagir imediata e expeditamente “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal” .

No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”. “Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.

“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”

“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei[23].

3. regime legal e procedimento:

Dando expressão legislativa ao texto constitucional [24], o art. 222º n.º 2 do CPP estabelece que a petição de habeas corpus “deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Tem como denominador comum configurar situações extremas de detenção ou prisão determinadas com abuso de poder ou por erro grosseiro, patente, grave, isto é, erro qualificado na aplicação do direito.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão”[25] ou da detenção para extradição.

Tem sublinhado que a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei. Não constitui um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Esta providência não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade[26].

Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP”[27].

O habeas corpus contra o abuso de poder em virtude de a prisão ilegal é um procedimento especial, no qual se requer ao tribunal competente o restabelecimento do direito constitucional à liberdade pessoal, vulnerado por uma prisão ordenada, autorizada ou executada fora das condições legais ou que sendo originariamente legal se mantém para além do tempo ou da medida judicialmente decretada ou em condições ilegais.

É também um procedimento de cognição limitada e instância única no qual somente é possível valorar “a legitimidade de uma situação de privação de liberdade, a que [o Juiz] pode por fim ou modificar em razão das circunstâncias em que a prisão se produziu ou se está realizando, mas sem extrair destas -do que as mesmas têm de possíveis infracções ao ordenamento- mais consequências que a da necessária finalização ou modificação daquela situação da privação da liberdade[28] .

Não é um recurso, - ordinário ou extraordinário. É uma providência que visa colocar perante o Supremo Tribunal de Justiça a questão da ilegalidade da prisão em que o requerente se encontra nesse momento ou do grave abuso com que foi imposta. Visa apreciar se a prisão foi determinada pela entidade competente, se o foi por facto pelo qual a lei a admite, se se mantem pelo tempo decretado e nas condições legalmente previstas. Para o que pode ser necessário equacionar da legalidade formal ou intrínseca do ato decisório que determinou a privação de liberdade, mas não mais que isto.

Não é uma via procedimental para submeter ao STJ a reapreciação da decisão da instância que determinou a prisão ou à ordem da qual o requerente está privado da liberdade. Não se destina a questionar o mérito do despacho judicial ou da sentença condenatória que impôs a prisão (ou detenção) nem a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades de que possam enfermar.

Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpus é uma providência judicial urgente. Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação[29].

O Juiz decide-a em 8 dias, em audiência contraditória –art. 31º n.º 3 da Constituição da República.

Conhecendo da petição de habeas corpus, o STJ, nos termos do art. 223º (procedimento) n.º 4 do CPP, delibera no sentido de:

a) Indeferir o pedido por falta de fundamento bastante;

b) Mandar colocar imediatamente o preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça e no local por este indicado, nomeando um juiz para proceder a averiguações, dentro do prazo que lhe for fixado, sobre as condições de legalidade da prisão;

c) Mandar apresentar o preso no tribunal competente e no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de desobediência qualificada; ou

d) Declarar ilegal a prisão e, se for caso disso, ordenar a libertação imediata.

4. pressuposto da atualidade:

Na arquitetura traçada pela Constituição da República e na conformação normativa do CPP, a providência em apreço pressupõe a efetividade e atualidade da prisão ilegal. A doutrina vai maioritariamente neste sentido[30], havendo, contudo quem sustente que a nossa Magna Carta não exclui o denominado habeas corpus preventivo[31].

A Jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sido unanime[32] na exigência da verificação do pressuposto da atualidade da prisão ilegal. No Ac. de 18/07/2014[33] sustenta-se: “A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe, além do mais, uma actualidade da ilegalidade da prisão aferida em relação ao tempo em que é apreciado aquele pedido”.

E no Ac de 11/02/2016[34] entendeu-se que: “A viabilidade do habeas corpus, como meio direccionado exclusivamente para a tutela da liberdade, exige uma privação de liberdade actual, não servindo, por isso, como mecanismo declarativo de uma ultrapassada situação de prisão ilegal. Do mesmo modo, também o habeas corpus não pode ser utilizado como meio preventivo de uma eventual futura prisão ilegal. Só a efectiva privação de liberdade pode fundamentar aquela providência”.

Entende-se que é esta a interpretação que melhor se conjuga com a evolução desta providência na nossa ordem constitucional. Como se referenciou, a Constituição de 1911 previa expressamente o habeas corpus preventivo, estabelecendo: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder”. Modalidade que a Constituição de 1933 não manteve: E que a Constituição de 1976 também não adotou. Seguramente que o legislador constituinte não desconhecia o texto e, consequentemente, as modalidades daquela primeira inscrição constitucional do habeas corpus e também não ignorava a modificação conformada pela Constituição de 1933. Neste quadro histórico-constitucional certamente que se a sua vontade tivesse sido a de admitir o habeas corpus preventivo ter-se-ia servido de uma fórmula igual ou equivalente aquela que era dada à providência na Constituição da primeira República. Mas não adotou, nem na versão de 1976, nem nas quatro subsequentes alterações. pelo que não existe base constitucional, para sustentar o referido entendimento.

É também essa a interpretação que o legislador ordinário fez daquele comando constitucional. Como alguns autores reconhecem, no regime do Código de Processo Penal, a providência dirige-se contra a prisão ilegal, isto é, a efetiva privação da liberdade, pois que somente a atualidade da prisão ilegal pode justificar qualquer dos atos que podem decorrer do seu deferimento: mandar colocar imediatamente o preso à ordem do STJ; mandar apresentar o preso ao juiz em 24 horas; ordenar a libertação imediata.

Evidentemente que só pode libertar-se quem já está encarcerado, privado da liberdade ambulatória, seja porque a ilegalidade da prisão resulta de ter sido ordenada ou executada por entidade incompetente, seja porque o foi por facto que não admite essa medida de coação ou essa sanção, seja porque foi mantida para além do prazo legal ou judicialmente fixado ou fora das condições legalmente estabelecidas.

A colocação do preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça, tal como a apresentação do preso ao juiz determinado, somente tem sentido (jurídico e prático) se a pessoa está efetivamente privada da liberdade ambulatória. Não sendo assim, o habeas corpus requerido em favor da conservação da sua liberdade era-lhe penosamente prejudicial. Nessa situação (se está em liberdade), deferida que fosse a providência – e estando fora de causa a libertação imediata pela simples razão de não estar encarcerado -, tinha de ser preso para, nessa situação, ser colocado à ordem do STJ ou para ser apresentado em 24 horas ao juiz determinado. A lei não prevê, nem teria qualquer sentido, que o requerente ou beneficiário da providência seja colocado em liberdade à ordem do STJ, ou que em liberdade se apresente perante o juiz em 24 horas.

Consequentemente, se a pessoa não está presa, não se verifica um dos pressupostos nucleares da providência de habeas corpus.

5. detenção para extradição:

O efetivo cumprimento da decisão judicial que concede a extradição é garantido pela detenção que, como se referiu, está expressamente prevista na Constituição da República como medida restritiva da liberdade pessoal ambulatória e que tem regime legal próprio.

Conforme realça a jurisprudência do Tribunal Constitucional – máxime: acórdão n.º 228/97 -, “o legislador regulamentou os pressupostos, as condições, a duração e as respectivas garantias da detenção por forma a realizar a finalidade que a mesma pretende realizar com o mínimo de constrangimentos e procurando realizar o máximo de garantias do visado pela detenção. Designadamente, estabeleceu prazos de detenção sensivelmente mais reduzidos do que aqueles que se aplicam à prisão preventiva. E a medida desses prazos não se afigura desproporcionada se se tiver em conta que o processo de extradição requer contactos entre entidades de vários países, envolve a coordenação de autoridades judiciais, administrativas e policiais bem como a formalização dos contactos havidos, o que se traduz em garantia de autenticidade do processo e redunda em protecção do próprio extraditando. O equilíbrio entre as finalidades da cooperação internacional e as restrições dos direitos do indivíduo a extraditar não se mostra a título algum rompido, quer em favor daquelas finalidades, quer em termos de compressão de direitos individuais

Detenção para extradição que tem os prazos máximos admitidos estabelecidos nos art.º 52º (para proferir decisão) e 60º n.º 2 (para a entrega) da Lei n.º 114/99 de 31 de outubro/Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal/LCJIMP.

No que releva para a decisão da vertente providência liberatória, o primeiro daqueles prazos – até à decisão do pedido pelo Tribunal da Relação (que aqui funciona como 1ª instância) -, é de 65 dias, improrrogáveis, contados desde a data da detenção do extraditando.

A lei permite a detenção antecipada.

Conforme estabelece a lei vigente e já realçava o Tribunal Constitucional no regime jurídico anterior – máxime, no acórdão n.º 325/86 -, “a lei, porém, contempla duas possibilidades de detenção antecipada, e antecipada não só à fase judicial do processo de extradição, mas, inclusivamente, ao pedido formal deste: são elas a detenção provisória (artigo [38 e 62º] e a detenção não solicitada (artigo [39 e 64º])”. A primeira, tem lugar quando, «em caso de urgência e como acto prévio de um pedido formal de extradição», a «autoridade competente do Estado requerente» a solicite, através de pedido transmitido directamente ao Ministério da Justiça. É ordenada pelo juiz relator (…) quando se certificar da autenticidade, da regularidade e da admissibilidade do pedido, sendo, para o efeito, entregue mandado ao Ministério Público, para execução”.

Modalidade que, por não ter ocorrido no caso, não interessa à vertente providência.

A segunda modalidade de detenção antecipada ocorre quando as autoridades de polícia detêm “indivíduos que, segundo informações oficiais, designadamente da INTERPOL, sejam procurados por autoridades competentes estrangeiras para efeito de procedimento criminal ou de cumprimento de pena por factos que notoriamente justifiquem a extradição”.

Foi o que sucedeu neste caso com o Requerente.

A detenção provisória e a detenção não solicitada, prévias ao pedido formal de extradição formulado a Portugal por um Estado estrangeiro, constituem e integram já o processo de extradição.

Nestas situações, o procedimento e o prazo máximo da detenção do extraditando até que o Estado requerente apresentação pedido formal de extradição, constam essencialmente do art.º 64º da LCJIMP.

Confirmada a detenção, o Estado requerente deve informar, urgentemente, pela via mais rápida, se vai formular o pedido de extradição. Para o que dispõe de 18 dias a contar da detenção.

Se a autoridade competente do Estado estrangeiro a quem a extradição interessar não prestar aquela informação até ao 18º dia posterior à detenção, o detido deve ser colocado imediatamente em liberdade por ter expirado o prazo máximo permitido para a sua detenção antecipada não diretamente solicitada.

Informando o Estado estrangeiro requerente que vai formular pedido de extradição, tem de apresentar o pedido formal de extradição do detido até ao 40º dia, contado da data da detenção.

Se não for recebido na autoridade central de Portugal o pedido formal de extradição até ao 40º dia posterior à detenção, o detido deve ser imediatamente libertado.

O processo de extradição comporta duas fases que correm paralelamente, ambas urgentes: uma administrativa, outra judicial,

Uma administrativa destina-se a reunir os elementos legalmente exigidos e a apreciar e decidir, politicamente, da admissibilidade do pedido de extradição. Corre na autoridade central e no ministério governamental orgânica e legalmente competente.

O Estado estrangeiro apresenta, pela via diplomática, o pedido formal de extradição e todas as comunicações ao mesmo respeitantes, na autoridade central do Estado requerente, que, em Portugal, é a Procuradoria-Geral da República. A qual, verificada a sua regularidade formal e, considerando-o devidamente instruído, elabora informação no prazo máximo de 20 dias, submetendo-o à apreciação do Ministro da Justiça. Que, por sua vez decide, em 10 dias, da admissão do pedido de extradição.

Se o Ministro da Justiça indeferir o pedido, a Procuradoria-Geral da República deve ser logo informada, devendo levar, de seguida, a informação ao processo judicial para que o Tribunal determine a libertação imediata do detido e o arquivamento do processo.

Se o Ministro da Justiça considerar o pedido de extradição admissível, informa urgentemente, a Procuradoria-Geral da República. A qual remete o pedido de extradição, conjuntamente com os elementos que o instruírem e a decisão politica de admissão, ao Ministério Público no Tribunal da Relação onde corre termos o processo à ordem do qual o extraditando se encontra provisoriamente detido. Ministério Público na Relação que, por sua vez, dentro das 48 horas subsequentes, em requerimento instruído com aqueles elementos, vai ao processo à ordem do qual o extraditando está provisoriamente detido, promover o cumprimento do pedido de extradição.

Em qualquer caso, a detenção do extraditando deve cessar imediatamente e ser substituída por outra medida de coação processual não privativa da liberdade se o pedido não for apresentado em juízo até ao 60º dia ou a decisão final do Tribunal da Relação não for proferida até ao 65º dia, posteriores àquele em que a detenção ocorreu – art. 52º n.º 1 e 63º n.º 3 da LCJIMP.

Prazo máximo da detenção que será aumentado, ope legis, automaticamente, se a decisão da Relação for impugnada através de recurso para o STJ e se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional.

Realça-se que o caso se rege pelo Acordo de Extradição entre a República Portuguesa e a República da Índia, assinado em Nova Deli, em 11 de Janeiro de 2007, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 59/2008 e pelo Decreto n.º 125/2008, de 14 de Outubro, publicados no Diário da República, 1.ª série, n.º 199, de 14 de Outubro de 2008. Convenção que entrou em vigor dia 14 de Outubro de 2008, conforme Aviso n.º 221/2008, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 221, de 13 de Novembro de 2008.

Convenção que regula a detenção provisória e os respetivos prazos, no art.º 10º, estabelecendo:

1 — Em caso de urgência, um Estado Contratante pode solicitar, através da Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL), ou por qualquer outra via, a detenção provisória da pessoa procurada até à apresentação do pedido de extradição.

2 — O pedido pode ser transmitido por via postal ou telegráfica, ou por qualquer outro meio que permita o seu registo por escrito.

3 — Os pedidos de detenção provisória deverão indicar a existência do mandado de detenção ou decisão condenatória contra a pessoa reclamada, conter um resumo dos factos constitutivos da infracção, com indicação do momento e do lugar da sua prática, e referir os preceitos legais aplicáveis e os dados disponíveis acerca da identidade, nacionalidade e localização daquela pessoa.

4 — Após recepção do pedido de detenção provisória, o Estado requerido deverá tomar as medidas necessárias para garantir a detenção da pessoa procurada e o Estado requerente deverá ser prontamente notificado do resultado da execução do seu pedido.

5 — A detenção provisória cessa se o pedido de extradição não for recebido no prazo de 18 dias a contar da mesma, podendo, no entanto, prolongar -se até 40 dias se as razões invocadas pelo Estado requerente o justificarem.

6 — O disposto no n.º 5 não prejudica nova detenção e a extradição, se o pedido for ulteriormente recebido.

Correspondendo, no essencial, ao que se expôs sobre o regime da detenção provisória antecipada constante da LCJIMP, dispensado, assim, esclarecimentos complementares.

6. no caso:

i. da arguição de nulidades:

O Requerente, desprezando a finalidade e os fundamentos do habeas corpus argui a nulidade de atos do processo, reclamando que se declarem “nulo[s] e sem qualquer efeito todos os actos processuais efectuados após o douto despacho de 27/08/2021 (…) nos termos e ao abrigo do art.119º do CPPenal”. Argumenta ainda que o despacho que determinou a manutenção da detenção não está fundamentado. E que o último despacho judicial proferido nos autos é “inócuo, ferido de nulidade insanável artigo 119 e 120 do CP e ambas se alegam”.

Argumentação tão deslocada quando abusiva para poder amparar uma providência de habeas corpus.

Está legalmente estabelecido e jurisprudencialmente firmado que o habeas corpus “não pode ser utilizada para sobrestar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para reapreciação.

Na verdade, a essência da providência em causa reside numa afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve ser demonstrado, sem qualquer margem para dúvida, que aquele que está preso não deve estar e que a sua prisão afronta o seu direito fundamental a estar livre”.

No habeas corpus “o Supremo Tribunal de Justiça não se pode substituir, de ânimo leve, às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira[35].

Não pode, pois, utilizar-se o habeas corpus em vez dos recursos ordinários admissíveis.

Não podendo, por conseguinte, o STJ entrar, aqui, na apreciação das arguidas nulidades.

ii. detenção mantida em prazo:

Dos elementos fornecidos pelos autos, verifica-se que o Requerente foi detido ao abrigo do disposto no art.º 10º n.º 1 do Acordo de Extradição entre as Repúblicas de Portugal e da Índia. Detenção provisória antecipada amparada também pelo disposto nos arts. 39º e 64º n.º 1 da LCJIMP.

Foi apresentado ao Juiz no prazo legalmente estabelecido. Que, após audição, validou a manutenção da detenção e mediante detenção e contraditório, determinou que o Requerente aguarde, detido, os termos do processo de extradição.

A República da Índia informou, tempestivamente, que ia apresentar pedido formal de extradição do Requerente e requereu a prorrogação do prazo para apresentação do pedido formal de extradição até 27 de agosto de 2021.

O Tribunal da Relação foi informado e mediante promoção do Ministério Público, no 17º dia após a detenção, deferiu a requerida prorrogação (até 27 de agosto de 2021, certamente porque não eram úteis os dois últimos dias do prazo legal e convencional – 28 sábado e 29 domingo).

A República da Índia apresentou, pela via diplomática, em 25 de agosto de 2021 – portanto, dentro daquele prazo - o pedido formal de extradição do aqui Requerente AA.

O Tribunal da Relação foi informado e, na sequência, determinou que os autos aguardem a junção da decisão politico-administrativa de admissão – ou não – do pedido de extradição.

Foram, pois, respeitados os prazos estabelecidos no art.º 10º do Acordo de Extradição bilateral entre o Estado Requerente e o Estado Português.

Consequentemente. o prazo máximo da detenção do requerente à ordem deste processo de extradição continua a decorrer, sem suspensão ou interrupção. Prazo máximo que, conforme se assinalou, é de 60 dias até à entrega do pedido em juízo e 65 dias até que o Tribunal da Relação julgue e decida nos autos o pedido de extradição do Requerente. Prazo que decorre até 24 do corrente mês de setembro (a decisão judicial final pode ser proferida até esse dia porque o arguido está detido, podendo, por isso, praticar-se o correspondente ato em qualquer dia, mesmo que não seja dia útil – art.º 103º n.º 2 al.ª a) do CPP.

Verifica-se, assim, que a detenção do Requerente se mantem, presentemente, dentro do referido prazo legal de 65 dias e ainda decorre o prazo para apresentação do pedido em juízo. Foi decretada e mantêm-se em obediência ao regime convencional e legal aplicável. Não é, pois, ilegal nem se mantém com abuso de poder

A detenção do Requerente à ordem dos autos foi decretada pelo Juiz materialmente competente. Ao invés, até ao momento, foram observados os prazos convencional e legalmente estabelecidos: máxime, de apresentação do detido ao Juiz, de audição deste, validação da detenção, de prestação da informação de que o Estado requerente ia apresentar pedido de extradição, e da apresentação do pedido formal de extradição.  Consequentemente, a detenção do Requerente à ordem dos autos, mantêm-se dentro do prazo legalmente estipulado, por decisão do Tribunal competente e em situação em que a Constituição da República e a lei a permitem.

Inexistindo, por conseguinte, qualquer ilegalidade ou abuso de poder que seja suscetível de integrar alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal que é a norma processual que delimita o âmbito de admissibilidade da providência contra a prisão ilegal ou a detenção para extradição ilegal em virtude de abuso de poder.

Em conformidade e por manifestamente falta de fundamento tem de indeferir-se a vertente providência de habeas corpus - artigo 223.º, n.º 4, alínea a) e n.º 6, do Código de Processo Penal. Não podendo, por isso, ordenar-se a peticionada libertação imediata do Requerente.

III. DECISÁO:

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 223.º do CPP, acorda em:

a) indeferir, por falta de fundamento, a petição de habeas corpus, apresentada nos autos pelo Requerente.

b) Condenar o Requerente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 5UCs (art. 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).

c) condenar o Requerente, nos termos do art. 223º n.º 6 do CPP. a pagar 7UCs


*


Supremo Tribunal de Justiça, 8 de setembro de 2021


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

(Atesto o voto de conformidade do C.º Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[36] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

António Pires da Graça (Juiz Conselheiro Presidente da secção)

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[1] Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.
[2] Grand Chamber, caso AL-JEDDA v. THE UNITED KINGDOM, (Queixa n.º 27021/08), julgamento em 7 Julho de 2011
[3] Grand Chambre, caso KAFKARIS c. CHYPRE. (queixa n.º 21906/04), sentença de 12 fevereiro de 2008.
[4] Habeas corpus: passado, presente, futuro, revista JULGAR - N.º 29 – 2016, pag. 223.
[5] Sem perder de vista a da diferente natureza, finalidade e fundamento das duas medidas cautelares.
[6] Iniciada ou pelo menos desde o «Habeas corpus Act» de 1679.
[7] Autores e obra citada, pag. 508.
[8] Autores e obra citada, pag 508.
[9] Aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, na sessão do 19 de Junho do 1911.
[10] 31.º Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.
A garantia do habeas corpus só se suspende nos casos do estado do sitio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira.
Uma lei especial regulará a extensão desta garantia e o seu processo.
[11] Jorge Miranda, O constitucionalismo liberal luso-brasileiro, Lisboa, 2001, págs. 51/52.
[12] § 22. Dar-se-ha o habeas-corpus sempre que o individuo soffrer ou se achar em imminente perigo de sofrer violencia, ou coacção, por illegalidade, ou abuso de poder.
[13]  Jorge Miranda, ob. cit. pág. 48/49;
[14] E. Maia Costa, HABEAS CORPUS: PASSADO, PRESENTE, FUTURO, Revista Julgar, N.º 29 – 2016.
[15] Artigo 8º, § 4º: “Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excepcional do habeas corpus, nas condições determinadas em lei especial
[16] Lei nº 3/71, de 16 de Agosto.
[17] Diário do Govêrno n.º 233/1945, Série I de 1945-10-20.
[18] Sobre o Habeas corpus, “Jornal do Fôro”, Ano 9º, nºs. 70/73, 1945, págs. 228/229.
[19] Curso de Processo Penal, vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, págs. 477/478.
[20] Na exposição de motivos do DL n.º 185/72 fez-se constar: “Em virtude de as garantias da legalidade da prisão deverem inserir-se no sistema do Código de Processo Penal, incluiu-se nele, substancialmente inalterada, a regulamentação do habeas corpus, a que procedera o Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de Outubro de 1945, para dar cumprimento à parte final do § 4.º do artigo 8.º da Constituição. Quer dizer: realiza-se, neste ponto, uma pura e simples «codificação» de normas vigentes, e não qualquer mudança de conteúdo (…)”.
[21] Funcionando a secção do STJ com todos os Juizes em exercício.
[22] E. Maia Costa, publicação cit., pag. 236.
[23] E. Maia Costa, publicação cit., pag.
[24] Ao art. 31º da Constituição da República.
[25] Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196
[26] Ac. STJ de 20/09/2017, Proc. 82/17.6YFLSB, e jurisprudência aí citada (máxime: por remissão para o Ac. de 4.02.2016, proc. 529/03.9TAAVR-E.S1), ECLI:PT:STJ:2017:82.17.6YFLSB.D4.
[27] Ac. STJ de 10/08/2018, Proc. 398/17.1PASXL-B.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[28] Tribunal Constitucional de Espanha (Sala Primeira), Sentença 21/2018 de 5.03.2018 (recurso de amparo 3766-2016), in BOE (Boletim Oficial do Estado) n.º 90 de 12.04.2018
[29] Ac. STJ de 9/08(2017 cit.
[30] Assim Maia Costa In Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça 2016. Almedina -2ª edição revista, pág. 854; Paulo Pinto de Albuquerque, inComentário do Código de Processo Penal, 4º ed., pág. 638.
Também assim Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada I, 2010, pág. 346 para quem, “a providência de habeas corpus é, desde a sua efectiva introdução na nossa ordem jurídica, uma providência meramente conservatória, liberatória ou desconstitutiva e não também preventiva. Reage a uma detenção ou prisão efectiva e actual, e não ao simples perigo iminente de detenção ou de prisão” -
[31] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada (artigos 1º a 107º), Coimbra Editora, 4ª ed. Revista (2007), pag. 510.
[32] Cfr Ac. de 8/02/2017, proc. 404/11.3PULSB-A; Ac. de 7/11/2012, proc. 19996/97.1TDLSB-H.S1; Ac. de 11/11/2010, proc. 610/08.8PBSXL-B.S1, in www.dgsi.pt.
[33] 211/12.6GAMDB-A.S1, in www. Dgsi.pr
[34] Proc. 741/12.0TXPRT-F, in www. dgsi.pt
[35] Ac. STJ de 16/03/2015, proc. n.º 122/13.TELSB-L.S1 in www.dgsi.pt.
[36]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.