Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
682/21.0T8VRS.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO DOS SANTOS NASCIMENTO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ÓNUS
CONTRADIÇÃO
CONTRATO-PROMESSA
CLÁUSULA CONTRATUAL
FUNDAMENTAÇÃO
ACÓRDÃO RECORRIDO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 12/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO
Sumário :
Estando em causa no recurso de Revista saber se os promitentes vendedores incorreram em incumprimento definitivo de contrato-promessa por violação de cláusula contratual e por terem praticado atos que constituem comportamento concludente do seu incumprimento, mostrando-se a matéria de facto declarada provada pela Relação insuficiente e contraditória para decisão conscienciosa dessas questões, nos termos do disposto n n.º 3, do art.º 682.º e no n.º 2, do art.º 683.º, ambos do C. P. Civil, devem os autos ser remetidos ao Tribunal da Relação, em ordem a que este, no exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo n.º 2, do art.º 662.º, do C. P. Civil, por si próprio ou com o envio dos autos à primeira instância, com cumprimento do disposto no n.º 3, do art.º 3.º, do C. P. Civil, amplie a matéria de facto e elimine a contradição, nos exatos termos em que tais atos são delimitados pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. RELATÓRIO.

AA e BB propuseram esta ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra CC, DD e EE, pedindo que seja declarada a resolução do contrato-promessa de compra e venda que identificam, celebrado com as RR, por incumprimento destas, e condenadas as Rés no pagamento da quantia de € 30.991,20, correspondente ao dobro do sinal e prejuízos que sofridos com o incumprimento das RR, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Citadas, contestaram as RR, DD e EE deduzindo a exceção da ilegitimidade passiva por não ter sido demandado FF, casado com a R CC em regime de comunhão de bens e que também deter a qualidade de promitente vendedor, pedindo a absolvição da instância, no mais negando o incumprimento do contrato e pedindo a absolvição do pedido.

Contestou também a R, CC deduzindo a exceção de ilegitimidade passiva por não ter sido demandado o seu marido, FF, requerendo a absolvição da instância, no mais impugnando a ação, alegando que os AA é que incumpriram o contrato, deduzindo pedido reconvencional, com a perda a favor das RR da quantia entregue a título de sinal.


*


Foi requerida a intervenção principal de FF, a qual foi admitida e admitido foi também o pedido reconvencional.

*


Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, julgando a ação parcialmente procedente, declarando a resolução do contrato-promessa e condenando, solidariamente, os RR CC a entregar aos AA a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), correspondente ao dobro do sinal acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa anual legal de 4%, desde a citação até efetivo e integral pagamento, a quantia de € 991,20 (novecentos e noventa e um euros e vinte cêntimos), a titulo de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da sentença e vincendos, às taxas de juro civis legalmente aplicáveis, até integral pagamento e a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), a titulo de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da sentença e vincendos, às taxas de juro civis legalmente aplicáveis, até integral pagamento.

O pedido reconvencional foi julgado improcedente e os AA dele absolvidos.


*


Inconformado com a sentença dela recorreram os RR, recebido como apelação, formulando os RR CC e FF as seguintes conclusões:

1. Deve revogar-se a decisão da matéria de facto nos termos seguintes: Dar-se como provado:

a) O teor do contrato promessa de compra e venda, especialmente o vertido nas cláusulas segunda, quarta, nona, décima e décima primeira, transcrevendo-se na decisão a sua redacção.

b) Que a única comunicação escrita dirigida às R.R. (e não também ao R. FF) é a que consta das cartas datadas de 1 de outubro de 2021, juntas como doc. 8 da petição inicial, nas quais os A.A. resolviam o contrato promessa e pediam a devolução do sinal em dobro.

c) Que os R.R. nunca foram interpelados pelos A.A. para “no prazo de 10 dias a contar da interpelação (…) para tal, (…) repor a situação objecto da queixa sob pena de se considerar em incumprimento.”

d) Que os R.R. não se recusaram a outorgar a escritura pública de compra e venda do prédio prometido vender.

e) Que os A.A. não marcaram, como era sua obrigação, “no prazo de 90 dias a contar da data de assinatura” do contrato-promessa de compra e venda, a escritura pública respectiva.

Dar-se como não provados os pontos 36 e 43 dos factos provados.

2. Feitas as correcções supra, que se impõem face à prova produzida, mormente os depoimentos nos trechos transcritos, deve revogar-se a decisão da matéria de direito, julgando improcedente a acção e procedente o pedido reconvencional.

3. Sendo aplicável in casu o ensinamento seguinte:

“I – A resolução do contrato-promessa apenas se pode fundar no incumprimento definitivo, que não na simples mora, sendo que o incumprimento definitivo resulta da não realização da prestação dentro do prazo que razoavelmente foi fixado pelo credor, ou da perda do interesse que o credor tinha na prestação, interesse esse que tem que ser apreciado objectivamente.

II – O credor, para converter a mora em incumprimento definitivo, tem de interpelar o devedor, intimando-o a cumprir a prestação, dentro do prazo razoável, fixado de acordo com as circunstâncias concretas do contrato a celebrar, com a advertência, muito clara, de que a falta da prestação, no prazo estabelecido, o fará incorrer em incumprimento definitivo da obrigação.

III – A interpelação admonitória exige o preenchimento de três pressupostos: a existência de uma intimação para cumprimento, a consagração de um prazo peremptório, suplementar, razoável e exacto para cumprir, e a declaração cominatória de que findo o prazo fixado, sem que ocorra a execução do contrato, se considera este definitivamente incumprido. (…).” (Ac. ST de 10.12.2019 in www.dgsi.pt) 4. Os A.A. não interpelaram as R.R. intimando-as ao cumprimento do contrato, nos termos do previsto no artigo 808º do Código Civil.

5. Razão pela qual, se outra faltasse, as R.R. não incorreram no incumprimento definitivo do contrato-promessa “sub judice”.

6. Sendo assim infundada a declarada resolução do contrato promessa vertida na carta que os A.A. dirigiram às R.R (e não ao R., ora apelante).

7. Por outro lado os A.A. não cumpriram o contrato promessa.

8. Não marcaram, como era sua obrigação, a escritura pública de compra e venda dentro do prazo convencionado (vd. nº 1 da cláusula quarta do CPCV).

9. Não interpelaram os R.R. para suprir qualquer falta que lhes fosse imputável e que impedisse a realização de tal escritura no prazo convencionado.

10. E manifestaram expressamente, com a presente acção e com a carta que enviaram às R.R., a intenção de não cumprirem o contrato “sub judice”.

11. Razão pela qual deve julgar-se o mesmo incumprido por culpa exclusiva dos A.A.

12. Com a consequente perda a favor dos R.R. da quantia paga a título de sinal (cf. art. 442º do Código Civil).

Assim se fazendo JUSTIÇA.”.


*


As RR DD e EE apresentaram as seguintes conclusões:

1.ª

A Sentença recorrida 18SET2023 (ref.ª .......24) padece de: A) – Erro de julgamento: Impugnação da matéria de facto.

B) – Erro na aplicação das normas dos art.ºs 268º, 405º, 406º, 437º, 777º, 779º, 805º, 808º e 814º do Código Civil;

C) – Erro na aplicação do art.º 442º n.º 4 do Código Civil;

D) – Erro na aplicação dos art.ºs 527º e 583º do CPC no respeitante às custas subjacentes à Reconvenção.

A)

– Erro de julgamento: Impugnação da matéria de facto – 2.ª

Deviam ter sido dados como provados os factos 17, 18, 19., 20, 21 e 48 da Contestação das RR/Apelantes, o que resulta do DOC. 1 junto com a PI.

A celebração do CPCV foi outorgado voluntária e conscientemente pelas partes em 05FEV2021, aí tendo ficado fixadas as condições e obrigações de cada uma delas.

4.º

Neste sentido, também concorrem:

a) depoimento de parte da A. BB, acta de 31JAN2023, ref.ª .......63, gravação digital de 11:34:23 a 12:30:12, ficheiro de origem 20230131113423_4242728_2870884, com particular destaque para 00:20:48 a 00:23:34 (supra transcrito);

b) depoimento de parte do A. GG, acta de 31JAN2023, ref.ª .......11, gravação digital de 15:30:37 a 15:43:41, ficheiro de origem 20230131153036_4242728_2870884, com particular destaque 00:00:16 a 00:00:26 (supra transcrito)

5.ª

Os AA/Apelados não marcaram a escritura do contrato prometido no prazo contratualizado e não comunicaram às RR/Apelantes qualquer data ou local para a realização da mesma, como também não interpelaram as RR/Apelantes para qualquer questão.

6.º

A escritura do contrato prometido não foi realizada por motivos que contendem exclusivamente com os AA/Apelados (não obtenção de financiamento, o qual nem sequer estava previsto no CPCV, e não é oponível às AA/Apelantes).

7.º

Impõe-se dar como provados os factos 22, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 37, 39, 45, 46 e 47 da Contestação das RR/Apelantes,

Neste sentido concorrem:

a) Depoimento de parte da A. acta de 31JAN2023, ref.ª .......63, gravação digital de 11:34:23 a 12:30:12, ficheiro de origem 20230131113423_4242728_2870884, com particular destaque para (supra transcritos): 00:10:08 a 00:10:56; 00:14:05 a 00:14:08; 00:15:53 a 00:17:48; 00:38:28 a 00:39:44; 00:40:08 a 00:42:05.

b) Depoimento de parte da A. acta de 31JAN2023, ref.ª .......63, gravação digital de 14:25:30 a 15:21:48, ficheiro de origem 20230131142528_4242728_2870884, com particular destaque para (supra transcritos): 00:04:28 a 00:05:48; 00:17:47 a 00:19:38; 00:30:01 a 00:32:23.

c) Depoimento de parte do A., acta de 31JAN2023, ref.ª .......11, gravação digital de 15:30:37 a 15:43:41, ficheiro de origem 20230131153036_4242728_2870884, com articular destaque para (supra transcrito): 00:02:10 a 00:03:10; 00:03:54 a 00:05:05; 00:08:45 a 00:09:28.

d) Depoimento de parte do A., em audiência de julgamento, acta de 11MAI2023, ref.ª .......10, gravação digital de 09:52:50 a 10:49:16, ficheiro de origem 20230511095250_4242728_2870884, com particular destaque para: 00:24:12 a 00:27:59.

9.ª

Os AA./Apelados nunca consideraram nem tiveram em conta as RR/Apelantes, preferindo tratar apenas com a R. CC, com toda a informalidade que acharam adequada, em desprezo do contratado no CPCV.

10.º

Para o efeito, concorre também:

a) Depoimento da testemunha HH acta de 11MAI2023, ref.ª .......10, gravação digital de 10:50:23 a 12:03:42, ficheiro de origem 20230511105022_4242728_2870884, com particular destaque para: 00:34:30 a 00:40:16;

b) Depoimento da testemunha II, acta de 11MAI2023, ref.ª .......10, gravação digital de 12:05:42 a 12:26:23, ficheiro de origem 20230511120541_4242728_2870884, com particular destaque para (supra transcrito): 00:04:56; 00:11:52 a 00:12:26; 00:18:58 a 00:19:32;

c) Email de 06JUL2021, constante da pág. 13 do Documento 1 junto pelos AA. com o Requerimento de 16MAI2023; ref.ª ......87.

d) Depoimento da testemunha JJ, acta de 26JUN2023, ref.ª .......41, gravação digital de 09:44:54 a 10:15:05, ficheiro de origem 20230626094447_4242728_2870884, com particular destaque para (supra transcrito):

00:02:16 a 00:03:14; 00:11:08 a 00:12:19; 00:13:03 a 00:13:53;

e) Depoimento da testemunha KK, acta de 26JUN2023, ref.ª .......41, gravação digital de 10:15:49 a 11:36:07, ficheiro de origem 20230626101548_4242728_2870884, com particular destaque para (supra transcrito): 00:31:55; 00:41:52 a 00:44:00; 00:50:01 a 00:52:28;

f) Documento 1, pág. 14, junto pelos AA com o Requerimento de 19MAI2023, ref.ª ......87;

g) Pág. 55 do Documento ref.ª .......63, junto pelos AA na sessão de julgamento de 26JUN2023, acta ref.ª .......41.

h) Depoimento da testemunha dra. LL, notária, acta de 26JUN2023, ref.ª .......41, gravação digital de 11:43:00 a 12:36:45, ficheiro de origem 20230626114259_4242728_2870884, com particular destaque para: 00:06:55 a 00:09:57; 00:23:08 a 00:26:57; 00:28:45 a 00:30:36.

11.ª

Deveria, por outro lado, ter sido dado como não provado os factos que o Tribunal a quo deu como provados nos pontos 26, 38, 43º, 46, 47.

12.ª

A questão suscitada pelo Tribunal a quo sobre a alegada actuação de MM como procurador das RR/Apelantes não tem suporte nos factos provados.

13.ª

Não é o facto de o referido senhor ser filho de uma das RR, e sobrinho das demais, que faz dele procurador nem sequer gestor de negócios, sendo que o CPCV não prevê a possibilidade de actuação de MM como procurador daquelas.

14.ª

A única circunstância que o Tribunal pode lograr alcançar é a R. EE passou procuração a MM apenas e tão-só os concretos poderes para que este outorgasse a escritura pública do imóvel identificado no CPCV. – vd do teor da última página do Documento junto pelas RR/Apelantes com o Requerimento de 22MAI2023 (ref.ª Citius ......18).

B)

– Erro na aplicação das normas dos art.ºs 268º, 405º, 406º, 437º, 777º, 779º, 805º, 808º e 814º do Código Civil –

15.ª

A Sentença recorrida peca por errada aplicação das normas dos art.ºs 268º, 405º, 406º, 437º, 777º, 779º, 805º, 808º e 814º, todos do CCivil.

16.º

A escritura pública não se realizou por exclusiva responsabilidade dos AA/Apelados que i)não respeitaram o CPCV que outorgaram,(ii) não interpelaram as RR/Apelantes para que suprirem qualquer deficiência no prazo de 10 dias, (iii) quiseram motu próprio e à revelia do estipulado no CPCV condicionar o CPCV ao crédito bancário que, entretanto, quiserem obter (facto inoponível às RR), (iv) não marcaram a escritura no prazo de 90 dias, delegando essa responsabilidade contratual no banco que contrataram, (v) não informaram as RR/Apelantes com 3 dias de antecedência sobre qualquer data para realização para escritura pública.

17.ª

Sendo certo que, ficou provado que a escritura podia ter sido feita no cartório notarial da dra. NN, em ... ou também no C... ......, por exemplo.

18.ª

O CPCV fixou que os AA teriam de interpelar as RR caso verificassem alguma omissão das condições de venda (cláusula 10ª n.º 2 do CPCV), o que não sucedeu.

19.ª

Assim, nos termos dos art.ºs 777º, 779º, 805º do CCivil, as RR não se constituíram em mora. C)

– Erro na aplicação do art.º 442º n.º 4 do Código Civil – 20.ª

A Sentença recorrida viola o art.º 442º n.º 4 do CCivil: não há lugar a qualquer indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais a atribuir aos AA/Apelados.

21.ª

O CPCV dos autos não se encontra condicionado a qualquer mútuo bancário que os AA/Apelados tivessem de obter, pelo que, a relação dos AA com qualquer entidade bancária é negócio jurídico totalmente alheio e inoponível às RR/Apelantes.

22.ª

Quaisquer custos que resultem dessa relação entre os AA/Apelados com terceiros (no caso, o Banco no qual pretenderam contrair crédito bancário, como os do aconselhamento jurídico com advogada) não podem ser assacados às RR/Apelantes.

23.ª

Sendo que o CPCV celebrado estipulou sinal (cláusula 3ª do CPCV) e não prevê quaisquer outras indemnizações (cláusula 9ª do CPCV apenas consigna a restituição do sinal em dobro ou a perda do sinal em caso de incumprimento das RR ou dos AA, respectivamente).

D)

– Erro na aplicação dos art.ºs 527º e 583º do CPC no respeitante às custas subjacentes à

reconvencional formulado pelos Réus, devem estes ser condenados no pagamento das custas da acção reconvencional.

25.ª as as aqui RR/Apelantes não formularam qualquer reconvenção.

26.ª

Fica patente a violação do disposto nos art.ºs 527º e 583º do CPC. Pelo exposto e com a junção dos presentes aos autos,

Pede e aguarda deferimento de V. Exa. Venerando Desembargador.”.


*


Os AA contra-alegaram, pugnado pela confirmação da sentença recorrida.

*


O Tribunal da Relação proferiu o seguinte acórdão

“…acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso independente interposto pelas Apelantes DD e EE e parcialmente procedente o recurso independente interposto pelos Apelantes CC e FF e consequentemente decidir:

1-Revogar a sentença recorrida no tocante ao decidido nas alíneas a) a d) do respectivo dispositivo;

2-Julgar improcedentes os pedidos formulados pelos Apelados na petição inicial e bem assim o pedido ampliado no articulado superveniente de 22/05/2022 absolvendo-se todos os Apelantes dos mesmos;

3-Confirmar a sentença recorrida no tocante à improcedência do pedido reconvencional deduzido pelos Apelantes CC e FF contra os Apelados;

4- Condenar os Apelados e os Apelantes CC e FF nas custas devidas na proporção de 80% para os primeiros e de 20% para os segundos – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC”.


*


Inconformados com esse acórdão, os AA/ apelados dele recorrem de Revista, formulando as seguintes conclusões:

O presente recurso de revista é interposto contra o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, que revogou a sentença proferida em 1.ª Instância, absolvendo as Recorridas, em consequência, dos pedidos contra si formulados.

II. O Tribunal a quo incorre em erro, pois aprecia a causa à margem do que contratualmente se encontra estipulado a propósito do incumprimento definitivo e, bem assim, das mais liminares regras do direito das obrigações, desde logo, a regra prima da primazia da autonomia privada na sua vertente da liberdade contratual, nos termos do artigo405.º do Código Civil.

III. Salvo o devido respeito pelo Digno Tribunal da Relação de Évora, a verdade é que não estamos perante uma situação de simples mora, mas sim perante um incumprimento definitivo do contrato-promessa.

IV. É matéria de facto assente que a mora na marcação da escritura pública de compra e venda, não é imputável aos Recorrentes, mas sim às Recorridas.

V. De outra banda, e de um ponto de vista subjetivo, sempre valeria no caso a presunção de culpa das Recorridas assente no artigo 799º, n.º 1 do Código Civil.

VI. O Tribunal a quo concluiu, erroneamente que era obrigatória a realização de uma interpelação admonitória para que a resolução contratual efetivada fosse válida.

VII. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão com base na mera aplicação das regras gerais do direito, olvidando-se que no ordenamento jurídico português vigora o princípio da liberdade contratual podendo as partes convencionar as concretas circunstâncias determinantes para se verificar um incumprimento definitivo do contrato e, consequente, a possibilidade de resolução do mesmo. Foi o que sucedeu!,

VIII. O contrato promessa em discussão nos presentes autos consagra uma cláusula resolutiva expressa.

IX. Operando a cláusula resolutiva expressa, não é necessário percorrer o iter jurídico que, no caso da resolução legal, converte a simples mora em incumprimento definitivo, ou ver consumada a perda - apreciada objetivamente - do interesse do credor na efetivação da prestação em falta (artigo 808º do CC) – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 17/11/2015, relatado por Fernandes do Vale, e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 13/10/2022, relatado por Alcides Rodrigues, ambos disponíveis emwww.dgsi.pt.

X. as Partes acordaram que a não outorga do título definitivo de compra e venda dentro do prazo de 90 dias, por causas imputáveis a uma das partes seria fundamento de incumprimento definitivo do contrato que poderia ser invocado pela parte cumpridora – cfr. cláusula nona n.º 1 do contrato promessa.

XI. É o próprio Tribunal a quo que reconhece que foram as Recorridas que não diligenciaram, até à data, pela obtenção da documentação necessária para a outorga da escritura pública de compra e venda – obrigação secundária mas essencial à obrigação principal (factos provados 23. e 26.), tendo inclusive a Recorrida CC se recusado a outorgar uma escritura pública de retificação de partilha (factos provados 35. e 37) imprescindível para a regularização da documentação.

XII. A resolução contratual efetuada pelos Recorrentes através das cartas endereçadas às Recorridas e por elas rececionadas (factos provados 39 e 41), é absolutamente válida, não carecendo de qualquer prévia interpelação, em cumprimento das cláusulas contratuais.

XIII. O exercício pelos Recorrentes do direito resolutivo convencional atentas as circunstâncias do caso concreto, não envolve a violação da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito em causa.

XIV. O acórdão recorrido ser revogado, mantendo-se a decisão proferida em 1ª Instância, e as Recorridas condenadas nos termos constantes na sentença do Digno Tribunal de 1ªInstância.


***


XV. Independentemente da resposta anterior assente nos efeitos jurídicos da interpelação admonitória, e caso não se entenda que assiste razão aos Recorrentes, no presente caso sempre se encontraria a mesma solução através da posição unanime sufraga pelo Digno Tribunal ad quem no que diz respeito à dispensabilidade da interpelação admonitória em certas circunstâncias.

XVI. A efetivação da interpelação admonitória para verificação de uma situação de incumprimento definitivo é dispensável perante a verificação de circunstâncias que, analisadas objetivamente, revelem um comportamento concludente no sentido do incumprimento definitivo do contrato.

XVII. É neste sentido que a Doutrina e a mais alta jurisprudência têm caminhado ao longo dos anos.

XVIII. Brandão Proença, em Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral, pp. 87 e ss atribui relevo para extração de efeitos jurídicos da mora ou do incumprimento definitivo de contrato-promessa não apenas à declaração séria do promitente de que não irá cumprir o prometido, como ainda a outros comportamentos concludentes que se manifestem, por exemplo, da inércia relativamente à realização de diligências preparatórias indispensáveis à celebração do contrato definitivo.

XIX. Este mesmo Autor, na sua obra em Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações, 3ª ed., salienta que é relevante que o comportamento constitua uma “manifestação intencional, pessoal e unilateral” e ser “clara, unívoca e séria” (pp. 342 e 343),e que em tais circunstâncias, o mesmo credor fica legitimado “ao exercício mais racional dos direitos de indemnização e (ou) resolução do contrato (…)” (p. 351)”.

XX. O Tribunal a quo, salvo o merecido respeito, à semelhança de alguns tribunais de primeira e segunda instância, revelou uma impassividade ou complacência por determinados comportamentos da parte incumpridora, prendendo-se a uma posição excessivamente formalistas.

XXI. A mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem apresentado uma atitude inflexível perante os comportamentos concludentes das partes faltosas, cobrando do promitente incumpridor o preço por atitudes de pura desconsideração daquela ou de fuga ao cumprimento das suas obrigações.

XXII. A título de exemplo deixam-se os seguintes arestos deste Digno Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 30-4-15, 1187/98, Relator Tomé Gomes, no qual, com apelo ao Ac. do STJ de 22-6-10, 6134/05; Acórdão de 29-1-14, 954/05 todos em www.dgsi.pt.

XXIII. Flui uma forte corrente jurisprudencial que, com base na mais conceituada doutrina, permite afirmar o relevo autónomo que deve ser atribuído às ações ou omissões de cada um dos promitentes, por forma a justificar, em determinadas circunstâncias, um efeito idêntico ao que decorreria da transformação formal de uma situação de mora em incumprimento definitivo.

XXIV. Todos os comportamentos perpetrados pelas Recorridas (factos provados 23, 26, 35 e37), violam as regras da boa-fé contratual e do dever de colaboração recíproco, e revelam, deforma concludente, a falta de vontade de cumprir o contrato, sendo como tal dispensável a interpelação admonitória.

XXV. O acórdão recorrido ser revogado, mantendo-se a decisão proferida em 1ª Instância, e as Recorridas condenadas nos termos constantes na sentença do Digno Tribunal de 1ªInstância.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência deve o acórdão recorrido ser revogado, mantendo-se a decisão proferida em 1ª Instância, e as Recorridas condenadas, solidariamente, a:

a) Pagar aos Recorridos a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), correspondentes ao dobro do sinal que estes prestaram, quantia à qual acrescem juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa anual legal de 4%,contabilizados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;

b) Pagar aos Recorridos a quantia de € 991,20 (novecentos e noventa e um euros e vinte cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, às sucessivas taxas de juro civis legalmente aplicáveis, até integral pagamento, a contar da data da sentença;

c) Pagar aos Recorridos a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, às sucessivas taxas de juro civis legalmente aplicáveis, até integral pagamento, a contar da data da sentença, com as legais consequências.

Fazendo-se JUSTIÇA!


*


Os RR/apelante CC e FF contra-alegaram, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

*


Também as RR/apelantes, DD apresentaram contra-alegações, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

*


2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.

O acórdão recorrido julgou:

A.1. Provados os seguintes factos:

1. Por escrito particular datado de 5 de Fevereiro de 2021, denominado “Contrato-Promessa de Compra e Venda”, junto com a ref.ª .....07, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, os Autores prometeram comprar e as Rés prometeram vender, livre de ónus e encargos, pelo preço de € 83.000,00 (oitenta e três mil euros), o prédio urbano em propriedade total, sito em ..., freguesia e concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1838 da mesma freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..37.

2. Pela Ap. ..41 de 21.06.2012, foi registada, provisória por dúvidas, a aquisição por partilha de herança de OO e PP, a favor das Rés CC, EE e DD, na proporção de 1/3 cada, do imóvel descrito em 1).

3. Segundo Declaração emitida pelo Conservador do Registo Predial de ..., datada de 28.06.2012, o título submetido a registo pelas Rés, na Ap. ..41 de 21.06.2012, ou seja, a escritura de partilha lavrada em 30.03.2009, exarada a fls. 72 e seguintes do Livro 2-A, do Cartório Notarial de ..., a cargo da Notária NN, foi objecto de rectificação por escritura de 20.04.2009, do mesmo Cartório, no sentido de passar a constar que o património partilhado pertencia ao casal dos pais das Rés, e que tendo em consideração que os falecidos dispuseram das respectivas quotas disponíveis, tal como se refere nas respectivas habilitações, não se mostram rectificadas as contas da partilha, com as inerentes consequências jurídicas e fiscais, razão pela qual o registo foi lavrado como provisório por dúvidas nos termos dos artigos 68º, 70º e 72º todos do CRP.

4. O negócio de compra e venda do imóvel objecto do contrato-promessa de compra e venda referido em 1) foi intermediado pela mediadora imobiliária “C..., S.A.”, com quem as Rés celebraram o contrato de mediação imobiliária n.º ...14, no dia 08.02.2021, junto aos autos com a ref.ª .......78, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.

5. Consta da cláusula segunda n.º 3 do contrato referido em 1) que “os segundos contraentes [Autores] expressamente manifestam e declaram que previamente à celebração do presente contrato: a) Procederam à vistoria do imóvel objecto do presente contrato; b) Analisaram a documentação a ele relativa; c) Têm conhecimento integral do seu estado físico e das respectivas áreas, confrontações e condições jurídicas actuais (de trato administrativo, matriciais e registais)”.

6. De acordo com a cláusula terceira n.º 1, alínea a) do contrato referido em 1), os Autores obrigaram-se a pagar às Rés a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), a título de sinal e principio de pagamento, na data da assinatura do referido contrato, por meio de transferência bancária para conta bancária a designar por aquelas, tendo as Rés declarado ter recebido naquela data tal quantia e dela ter dado quitação.

7. Os Autores apenas procederam ao pagamento da quantia de € 15.000,00 referida em 6) no dia 23.04.2021, por meio de transferência bancária para conta bancária titulada pela empresa C..., S.A., que posteriormente a fazer sua a quantia relativa à comissão contratada com as Rés no contrato de mediação imobiliária, entregou, em 20.05.2021, a cada uma delas a quantia de € 2.950,00 (dois mil e novecentos e cinquenta euros).

8. As partes acordaram, na cláusula quarta do contrato referido em 1) que a escritura pública relativa à compra e venda, ou o documento particular autenticado equiparado, seria outorgada no prazo de 90 dias, a contar da data da assinatura do contrato promessa, em dia, hora e local a fixar pelos Autores, mediante acordo com as Rés, comprometendo-se aqueles a informar estas acerca da data, hora e local com uma antecedência mínima de 3 dias em relação à sua realização.

9. Acordaram, também, na cláusula sétima do contrato referido em 1) que “As partes expressamente declaram que, na presente data, não se opera a tradição do Imóvel, situação que apenas ocorrerá com a outorga da escritura pública de compra e venda do Imóvel e o pagamento integral do preço”.

10. As partes acordaram, na cláusula nona do contrato referido em 1), o seguinte: “1. Caso o título definitivo de compra e venda, não seja celebrado até ao termo do prazo previsto no numero um da cláusula quarta do presente contrato promessa de compra e venda, por causa imputável a qualquer das partes, poderá, desde logo, a parte não faltosa invocar o seu incumprimento definitivo, aceitando, os outorgantes o mero decurso desse lapso de tempo como necessário e suficiente para extrair tal consequência. 2. O incumprimento definitivo por parte dos primeiros contraentes confere aos segundos contraentes, o direito de resolver o presente contrato-promessa de compra e venda e de exigir daquele a restituição em dobro de todas as importâncias entregues a titulo de sinal. 3. Se o incumprimento definitivo do presente contrato, for por causa imputável aos segundos contraentes, os primeiros contratantes farão suas as quantias até aí recebidas, não podendo os segundos contratantes, no entanto, exigir qualquer indemnização pelas obras eventualmente efectuadas no imóvel”.

11. Acordaram, ainda, as partes na cláusula décima n.º 2 do contrato referido em 1) que “a não verificação ou omissão de qualquer condição de venda ou garantia acima acordadas por parte dos primeiros contraentes na data da outorga do contrato prometido obriga estes a, num prazo de 10 dias a contar da interpelação dos segundos contraentes para tal, a repor a situação objecto da queixa sob pena de se considerar em incumprimento”.

12. Para pagamento de parte do preço acordado e referido em 1) – no qual se incluía a quantia a título de sinal aludida em 6) –, bem como para financiar a realização de obras no imóvel, os Autores solicitaram, em data não concretamente apurada mas seguramente anterior a 19.03.2021, dois empréstimos bancários, um crédito à habitação, no valor de € 68.000,00 (sessenta e oito mil euros) e um crédito para obras, no valor de € 10.500,00 (dez mil e quinhentos euros), junto do Novo Banco.

13. Tendo os mesmos sido definitivamente aprovados em 18.05.2021 e cobradas as respectivas despesas de comissão e imposto de selo.

14. Desses empréstimos foi fiadora a Ré CC.

15. Em junho de 2021, o Cartório Notarial de ... – entidade escolhida pelo Novo Banco para a realização da escritura pública de compra e venda prometida –, tomou conhecimento, pela consulta da escritura pública de habilitação de herdeiros da falecida PP datada de 30.03.2009, da existência de um testamento público, realizado por esta no estrangeiro, em ..., Espanha, no dia 17.09.1999, no Cartório Notarial a cargo da Notária QQ.

16. Nesse referido testamento, a falecida PP dispôs de um legado e instituiu herdeira da quota disponível de todos os seus bens a sua filha, aqui Ré, EE.

17. RR, do Departamento de Crédito a Particulares – Crédito Habitação, do Novo Banco, remeteu a SS, da Direcção Regional ..., em 07.06.2021, um email, tendo por assunto «BB» e o seguinte conteúdo: “Boa tarde. Adicionalmente ao anteriormente indicado: Regime de casamento dos fiadores; DD – será obrigatório o assento de casamento e respectivo código de acesso, caso não pretendam remeter o documento em falta devem os clientes dirigirem-se à conservatória para efectuarem a devida actualização; Verificamos ainda que após a analise da documentação enviada e tendo em conta que a autora da herança deixou testamento elaborado no estrangeiro terá que ser feito o registo prévio da Habilitação de Herdeiros. Verificamos que: - deverão remeter assentos de nascimento das herdeiras CC e EE e será ainda necessário o assento de casamento da herdeira DD com TT. – a quota parte das herdeiras na Caderneta Predial Urbana não se encontra em conformidade, pelo que se solicita rectificação. – O imóvel tem de ser actualizado na Certidão de Registo Predial e matriz, e a certidão para dispensa de Licença de Utilização deixar de constar tal menção, sob pena de não ser possível registar definitivamente a aquisição e hipoteca, porque tem sido entendimento corrente das conservatórias que ter ou não área descoberta altera a identidade do prédio. Por último solicitamos que nos informem se existe algum grau de parentesco entre a compradora e os vendedores.”

18. Este email foi reenviado para a empresa C..., S.A., na pessoa de JJ em data não concretamente apurada mas entre 07.06.2021 e 14.06.2021.

19. Em 14.06.2021, JJ reenvia o email referido em 17) a UU, com o conhecimento de HH, gestores do processo venda, com a seguinte informação: “Bom dia UU. Volto a solicitar estes documentos por parte do banco…é importante, sem isto não há escritura”.

20. O email referido em 17) foi reenviado pela empresa C..., S.A., na pessoa de UU, a MM, em 14.06.2021, filho da Ré DD e sobrinho das restantes Rés.

21. MM enviou, no dia 14.06.2021, um email à empresa C..., S.A., com o seguinte teor: “Exmos Senhores, boa noite. Em primeiro lugar gostaria de me apresentar. Chamo-me MM, filho de uma das proprietárias (DD) e com procuração de outra das proprietárias (EE). Agradeço que reencaminhem este email para o banco ou para a notária que está a tratar do processo, uma vez que ainda não percebi quem está por trás de toda esta incompetência. Gostaria de dizer que achamos lamentável a forma como o banco/notário está a tratar do processo. Revela uma incompetência nunca vista, e que terá consequências uma vez que apresentaremos queixa ao gerente do banco ou à Ordem dos Notários, conforme as explicações que nos forem dadas ao presente email. Os senhores têm de apresentar habilitação de herdeiros e comprovativo de pagamento de imposto de selo, que também remetemos. Hoje recebo comunicação da C..., S.A. a informar-me que o banco tinha solicitado novos documentos…Esta situação revela uma falta de profissionalismo do banco ou do notário, que é inaceitável. Então mas que análise do dossier foi feita? Levam 3 meses pedindo novos documentos, a espaços? E o profissionalismo? Alguém terá de responder pelas consequências de uma situação destas! O contrato promessa de compra e venda tem prazos! E se forem ultrapassados, de quem é a responsabilidade? Não têm noção da dificuldade de funcionamento dos serviços públicos? (…)”.

22. A este email, respondeu a empresa C..., S.A., na pessoa de HH, em 15.06.2021, da seguinte forma: “Bom dia MM. Como pode ver no email que deve ter recebido há minutos, já demos seguimento ao seu email para o banco. Temos feito tudo o que está ao nosso alcance e solicitado os documentos no tempo em que nos são solicitados a nós, mas também notamos uma descoordenação entre os proprietários levando isso a um delay entre o pedido e o momento em que a documentação chega até nós. Nós não temos a documentação há mais de três meses como referiu no email. Há três meses temos a documentação do imóvel e documentos de identificação das partes. Vendedoras, não tínhamos habilitação de herdeiros e muito menos procuração que esperamos há semanas, que teria que ser previamente validade nos moldes do banco em causa. Operamos nos ramos imobiliário há anos e o nosso foco e obkectivo sempre foi satisfazer os nossos clientes. Portanto agradeço a vossa colaboração para terminarmos este processo. Estamos quase no fim do processo!”.

23. Por email datado de 17.06.2021, foi a empresa C..., S.A., na pessoa de HH, uma das gestoras do processo de venda, informada por LL, notária do Cartório Notarial de ..., da necessidade das Rés procederem às seguintes diligências:

a documentação há mais de três meses. Depois de analisarem solicitaram alguns documentos que remetemos com brevidade. Posteriormente voltaram a pedir documentos que voltamos a remeter. Por fim disseram-nos que teríamos de

- rectificação da caderneta predial no que respeita às quotas partes respeitantes a cada uma das herdeiras de OO e PP, em consonância com o disposto em testamento deixado por esta;

- actualização no registo predial e na caderneta predial das áreas do imóvel e menção da existência de um pátio;

- solicitação à Câmara Municipal de uma certidão que comprove que, com a construção do pátio, não foi necessário emitir uma licença de utilização.

24. Por email datado de 17.06.2021, a empresa C..., S.A., na pessoa de HH, comunicou a MM, a informação que recebeu do Cartório Notarial de ... aludida em 23), da seguinte forma: “Boa tarde MM. Solicito a sua maior atenção para o email abaixo. O que lhe foi solicitado por email e por telefone, por parte do banco, consta no mesmo pedido por parte do Cartório Notarial de .... É uma questão que nós não conseguimos ultrapassar e só depende única e exclusivamente das proprietárias. Pedimos mais uma vez, a vossa colaboração para ultrapassar esta questão e façamos finalmente a escritura.”

25. A mesma informação foi transmitida pela Autora BB e pelo gerente da agência do Novo Banco de ... à Ré CC, em data não concretamente apurada.

26. Até à presente data, nenhuma das Rés ou alguém por si mandatado, procedeu às diligencias referidas em 23).

27. A empresa C..., S.A., na pessoa de HH, remeteu a NN, Notária no Cartório Notarial em faro, sito na Rua ... um email, datado de de 18.06.2021, com o seguinte teor: “Bom dia. A pedido do procurador de uma das proprietárias deste processo, o MM, e após ter tido uma conversa consigo, segue toda a documentação para que possam analisar a possibilidade de se realizar a escritura deste imóvel. Aguardo resposta da vossa parte”.

28. A este email, respondeu NN, em 22.06.2021, a HH da seguinte forma: “Boa tarde. Relativamente à escritura mencionada em epígrafe, após analisar a documentação, venho informar que a mesma está em condições de se fazer, apenas sendo necessário: - a habilitação de herdeiros de PP; - o cancelamento do registo provisório correspondente à Ap. ..41, de 21.06.2021, o que será simples que eu mesma posso fazer, atento que o mesmo já se encontra caducado.”.

29. A empresa C..., S.A., na pessoa de HH, remeteu à notária NN novo email em 29.06.2021, com o seguinte teor: “Bom dia Dra. NN. Reenvio o documento solicitado, penso que o tenha, mas para que fique registado. Agradeço que me confirme, se sempre está disponível para realizar a escritura, após confirmação de todos os documentos já enviados, para que possa informar o banco da cliente compradora, e solicitar ao mesmo que aceite esta situação, tendo em conta tudo o que já aconteceu”.

30. A este email respondeu a Notária NN por email datado de 30.06.2021, da seguinte forma: “Boa tarde, HH. Apesar de essa escritura de habilitação ter sido feita por mim, foi-o quando estive em funções no Cartório em ..., cujo arquivo lá ficou. Portanto, não tenho acesso a ele. A certidão que me envia, agora completa com o testamento, é o documento que faltava para a outorga da escritura. Fico a aguardar a marcação por parte do banco, uma vez que este terá que articular com o respectivo procurador.”

31. A empresa C..., S.A., na pessoa de HH remeteu à notária NN, em 30.06.2021, novo email com o seguinte teor: “Boa tarde. Vou informar o banco da sua posição, e solicitar autorização para que seja feita a escritura convosco”.

32. O Novo Banco, na pessoa do gerente da agência de ..., II, enviou em 06.07.2021, um email à empresa C..., S.A., na pessoa de HH, com o seguinte conteúdo: “Bom dia D. HH. Estou agora a responder porque só há pouco obtive a resposta da parte do Banco quanto a passagem do processo para Notário. Assim, o Banco não autoriza a realização da escritura em notário. No limite poder-se-ia tentar junto da ... mas infelizmente julgo que ainda não estão a fazer escrituras. Julgo que o caminho será regularizar as duas situações e assim conseguiríamos resolver o problema. Desde já agradeço a Vossa atenção e colaboração.”.

33. As Rés outorgaram, no dia 30.03.2009, uma escritura pública de partilha da herança aberta por óbito de PP, da qual faz parte, entre outros, o imóvel descrito em 1), nos termos da qual lhes foi adjudicado um terço indiviso do mesmo prédio.

34. A escritura pública de partilha referida em 33) foi objecto de rectificação pela escritura pública outorgada pelas Rés em 20.04.2009, na qual fizeram constar que procediam à partilha da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do dissolvido casal de seus pais, OO e PP, e que o primeiro fez testamento público pelo qual instituiu herdeira da quota disponível de seus bens a sua referida mulher, PP.

35. Pela Autora BB foi solicitada no Cartório Notarial de ..., sito na Urbanização ..., a preparação e marcação de escritura pública de rectificação de partilha, doação e compra e venda, com mútuo e hipoteca, tendo como finalidade proceder à rectificação da caderneta predial do imóvel descrito em 1) no que respeita às quotas partes respeitantes a cada uma das herdeiras de OO e PP e posterior compra e venda do mesmo.

36. A escritura pública referida em 35) foi marcada pelo Cartório Notarial de ... para o dia 18.08.2021, tendo comparecido para outorga da mesma apenas a Autora BB e a Ré CC.

37. A Ré CC recusou-se a outorgar a escritura pública referida em 35) por discordar dos seus termos, no que diz respeito à rectificação da partilha anteriormente efectuada entre as Rés e aludida em 33).

38. Por declaração passada pela Notária LL, do Cartório Notarial de ..., em 06.10.2021, foi por esta atestado que a escritura pública referida em 35) não foi celebrada por falta de acordo dos interessados nos termos da partilha.

39. Os Autores remeteram a cada uma das Rés, uma carta registada com aviso de recepção, juntas como Doc. N.º 8 a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, datadas de 01.10.2021, com o seguinte assunto: “Resolução contrato promessa de compra e venda celebrado entre EE/DD/CC e BB/AA”, da qual se retira, entre o mais, o seguinte teor: “(…) Apesar de ter ficado agendada a celebração da escritura publica de compra e venda no prazo de 90 dias, sucede que a mesma não foi outorgada, até ao presente, por facto imputável aos promitentes vendedores. Pois que, nos termos da cláusula oitava do referido contrato, os promitentes vendedores estavam obrigados a entregar toda a documentação necessária para a realização da escritura, o que não sucedeu, uma vez que existem desconformidades nas informações constantes na certidão permanente do Registo Predial e na caderneta predial das finanças. Assim, e nos termos do disposto no n.º 1, da cláusula nona do contrato promessa de compra e venda, dúvidas não restam de que estamos perante um incumprimento definitivo do contrato por factos imputáveis aos promitentes vendedores. Nestes termos, os promitentes compradores resolvem o contrato promessa de compra e venda celebrado com EE, DD e CC, no dia 5 de fevereiro de 2021, e exigem o pagamento do montante total de € 30.000,00 (trinta mil euros), respeitante ao dobro do valor pago a título de sinal, no prazo máximo de 8 (oito)dias após a recepção da presente missiva, sob pena de serem acionados no imediato os competentes meios judiciais com vista ao pagamento desse valor, acrescidos de juros de mora”.

40. As cartas referidas em 39) foram redigidas e assinadas pelo Dr. VV, a quem os Autores haviam conferido, por procuração passada a 24.09.2021, “os mais amplos poderes forenses por lei permitidos, bem como os especiais para transigir e para os representar para efeitos de resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado no dia 05.02.2021”.

41. As cartas referidas em 39) foram recepcionadas pelas Rés, que não responderam às mesmas.

42. Os financiamentos solicitados pelos Autores e supra aludidos em 12) extinguiram-se, por caducidade dos processos.

43. (Suprimido)

44. Os Autores suportaram a quantia total de € 499,20 (quatrocentos e noventa e nove euros e vinte cêntimos), a título de despesas com a concessão dos empréstimos bancários referidos em 12), mais concretamente:

- a quantia de € 320,00 (trezentos e vinte euros), a título de comissão pelo crédito relativo à aquisição do imóvel;

- a quantia de € 12,80 (doze euros e oitenta cêntimos), a titulo de imposto de selo pelo crédito relativo à aquisição do imóvel;

- a quantia de € 160,00 (cento e sessenta euros), a título de comissão pelo crédito relativo às obras;

- a quantia de € 6,40 (seis euros e quarenta cêntimos), a título de imposto de selo pelo crédito relativo às obras.

45. Com vista à regularização das desconformidades referidas em 23), os Autores contrataram os serviços de uma advogada, a qual cobrou a quantia de € 492,00 (quatrocentos e noventa e dois euros), a titulo de honorários, a qual foi paga.

46. A aquisição do imóvel descrito em 1) tornou-se parte essencial do projecto de vida dos Autores, que nele pretendiam habitar permanentemente.

47. Na sequência das Rés não terem procedido às diligencias referidas em 23) e da recusa da Rés CC referida em 35), a Autora BB viu o seu projecto de vida paralisado, voltando à estaca zero após vários meses de diligencias tendentes à aquisição do imóvel descrito em 1).

48. A 17.12.2021, a Autora BB iniciou consultas de psiquiatria no Grupo H.. ....., com o Dr. WW, que mediante atestado médico, datado de 20.12.2021, atestou que tais consultas se iniciaram devido a episódio depressivo com componente de grande ansiedade reativo ao problema de não conclusão da celebração do contrato prometido de compra e venda.

49. Nesse relatório, atesta ainda o dito médico psiquiatra que na Autora observou sentimentos penosos, associados a perda de vitalidade, sensação de desalento, acompanhados de explosões emocionais, como crimes de raiva, impaciência, dificuldades cognitivas de concentração e memória, marcadas por esquecimentos e desorientação; grande sofrimento psicológico e desespero, situação que afectou a sua vida profissional e a dinâmica familiar.

50. O estado depressivo descrito em 48), teve consequências na vida social da Autora BB, que passou a refugiar-se em casa, quando antes ia com regularidade ao café e a casa de amigos e familiares.

51. Tendo-se também reflectido em distúrbios do sono, com diagnostico de insónia inicial e intermédia.

52. Os Autores nunca interpelaram por escrito ou verbalmente a Ré CC para no prazo de 10 dias a contar da interpelação repor a situação objecto de queixa sob pena de se considerar em incumprimento, mas tão só falaram com esta para resolver a questão da documentação em falta para a venda. (Aditado)

53. Os Autores não marcaram a escritura publica de compra e venda no prazo de 90 dias a contar da data da assinatura do contrato promessa.” (Aditado)


*


A. 2. Não provados os seguintes factos:

a) Que Autores e Rés tivessem acordado que o pagamento da quantia a título de honorários, referida em 45) seria dividido em partes iguais.

b) Que, à revelia das Rés, os Autores ocuparam o imóvel, em data que se desconhece após a celebração do contrato promessa, e nele realizaram diversas obras de demolição no seu interior, nomeadamente destruíram todas as paredes interiores, a cozinha e a casa de banho, removeram o pavimento, tornando o imóvel absolutamente inútil para o fim a que se destina que é a habitação.

c) Tendo-o abandonado, mais tarde.

d) Que os danos causados pelos Autores no imóvel desvalorizaram-no em pelo menos a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).

e) Que o imóvel se encontrava em bom estado de conservação.

f) Que para além da inscrição do prédio urbano descrito em 1) a favor das três Rés, não fosse necessária qualquer outra formalidade para a venda do mesmo aos Autores.

g) Que os Autores, antes da celebração do contrato promessa referido em 1), conhecessem a exacta situação jurídica do prédio urbano objecto do mesmo.

h) Que a empresa C..., S.A. recebeu, na data da outorga do contrato promessa de compra e venda referido em 1), na íntegra, a sua comissão.

i) Que a Ré CC entregou à empresa C..., S.A. toda a documentação que lhe foi solicitada.

j) Que a Ré CC estava convicta que a escritura pública referida em 18) era apenas de compra e venda do imóvel objecto do contrato promessa.”

B) O DIREITO APLICÁVEL.

O conhecimento deste Supremo Tribunal, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto da revista, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2, 639.º 1 e 2, do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso), observando, em especial, o estabelecido nos art.ºs 682.º a 684.º, do C. P. Civil.


*


B.1. Questões.

Atentas as conclusões da Revista, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pelos Recorrentes consiste, tão só, em saber, se o acórdão recorrido deve ser revogado e as Recorridas condenadas nos termos da sentença da 1ª Instância, porque (1) não estamos perante uma situação de simples mora, mas perante incumprimento definitivo do contrato-promessa, uma vez que nos termos da cláusula nona, n.º 1, do contrato promessa “as partes acordaram que a não outorga do título definitivo de compra e venda dentro do prazo de 90 dias, por causas imputáveis a uma das partes seria fundamento de incumprimento definitivo do contrato que poderia ser invocado pela parte cumpridora” (conclusões I a XIV) e porque, se assim se não entender, (2) os factos provados sob os números 23, 26, 35 e 37 revelam um comportamento concludente no sentido do incumprimento definitivo do contrato, pelo que é válida a resolução contratual efetuada pelos Recorrentes através das cartas endereçadas às Recorridas e por elas recepcionadas, a que se reportam os factos provados sob os números 39 e 41 (conclusões XV a XXV).


*


B.2. Conhecendo.

Sendo pacífico nos autos que a espécie contratual outorgada pelas partes é um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, tipificado no art.º 410.º, do C. Civil e 874.º, do C. Civil, o cerne da presente Revista é constituído pela questão de sabermos se os recorridos incorreram em incumprimento definitivo desse contrato-promessa, com um duplo e subsidiário fundamento em que o primeiro é a violação pelos recorridos da cláusula nona, n.º 1, do contrato-promessa e o segundo a prática de atos pelos Recorridos que constituem comportamento concludente no sentido desse incumprimento, sendo que qualquer deles constitui fundamento legal para a resolução do contrato pelos Recorrentes.

Relativamente ao primeiro - violação pelos Recorridos do n.º 1, da cláusula nona – o acórdão recorrido, depois, de equacionar a questão sob a expressão “E será que se pode considerar que os Apelantes incorreram em incumprimento definitivo do contrato-promessa como concluiu o Tribunal a quo?”, apresenta de imediato a resposta que lhe deve ser dada, dizendo “Julgamos que em face da modificação da matéria de facto resultante da apreciação da impugnação apresentada pelos Recorrentes, mormente dos Apelantes CC e FF, a resposta terá igualmente que ser negativa” e passando em seguida a fundamentar esta resposta com base, essencialmente, na interpretação da referida cláusula nona, n.º 1 e da cláusula décima do mesmo contrato, em interação com a matéria de facto provada, fazendo-o nos seguintes termos:

Ora, se é certo que as diligências apontadas como prévias e necessárias, desse modo constituindo condição para a posterior marcação e realização da escritura pública da compra e venda prometida, chegaram ao conhecimento dos Apelantes e apesar de, outrossim, terem resultado assentes os factos descritos nos pontos 35. a 38. do sub-segmento dos factos considerados como provados na sentença recorrida, o certo é que os Apelados confessaram, quando foram ouvidos em declarações de parte na audiência final realizada no Tribunal a quo, que nunca interpelaram por escrito ou verbalmente a Ré CC para no prazo de 10 dias a contar da interpelação repor a situação objecto de queixa sob pena de se considerar em incumprimento, mas tão só falaram com esta para resolver a questão da documentação em falta para a venda (ponto 52 dos factos provados).

Assim e apesar de na missiva que enviaram a cada uma das Apelantes invocando a resolução do contrato promessa com base em incumprimento definitivo os Apelados se escudarem na clausula nona do dito contrato, certo é que à situação factual concreta que temos vindo a analisar mostra-se previamente aplicável o que ficou estabelecido na clausula décima, pelo que não tendo resultado provado que até ao momento os Apelados tenham interpelado os Apelantes para num prazo de dez dias procederem às diligências descritas no ponto 23. dos factos considerados como provados com a advertência de não o fazendo incorrerem então em incumprimento definitivo do contrato-promessa não se poderá considerar o dito contrato como validamente resolvido”.

Como decorre destes excertos do acórdão recorrido, a fundamentação da resposta à questão do incumprimento definitivo do contrato, parte da alteração da decisão da 1.ª instância em matéria de facto por parte da Relação no que respeita ao facto sob o n.º 52 da matéria de facto provada do acórdão.

Reza o facto sob o n.º 52, aditado pela Relação, que “Os Autores nunca interpelaram por escrito ou verbalmente a Ré CC para no prazo de 10 dias a contar da interpelação repor a situação objecto de queixa sob pena de se considerar em incumprimento, mas tão só falaram com esta para resolver a questão da documentação em falta para a venda”.

Ao reportar-se à “situação objecto de queixa” quererá este n.º 52 referir-se aos obstáculos à realização da escritura do contrato prometido, segundo o acórdão, descritos sob os números 35 a 38 da matéria de facto provada, mas também identificados nos factos sob os n.ºs 15 a 26 da matéria de facto provada da sentença e que, grosso modo, consistem na prática de um conjunto de atos por parte dos Recorridos necessários à outorga do contrato prometido.

Na economia do acórdão não existe incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte dos Recorridos porque os Recorrentes os não interpelaram para que praticassem tais atos, no prazo de dez dias, como exigia a Cláusula 10.ª do contrato, como descrito sob o n.º 11 da matéria de facto provada do acórdão, a saber “11. …quea não verificação ou omissão de qualquer condição de venda ou garantia acima acordadas por parte dos primeiros contraentes na data da outorga do contrato prometido obriga estes a, num prazo de 10 dias a contar da interpelação dos segundos contraentes para tal, a repor a situação objecto da queixa sob pena de se considerar em incumprimento”.

Esta ausência de interpelação foi declarada provada pela Relação sob o n.º 52 da matéria de facto da acórdão, com fundamento na confissão dos Recorrentes - como decorre da expressão acima reproduzida, a saber, que “…os Apelados confessaram, quando foram ouvidos em declarações de parte na audiência final realizada no Tribunal a quo, que nunca interpelaram por escrito ou verbalmente a Ré CC para no prazo de 10 dias a contar da interpelação repor a situação objecto de queixa sob pena de se considerar em incumprimento, mas tão só falaram com esta para resolver a questão da documentação em falta para a venda (ponto 52 dos factos provados)” e ainda do seguinte excerto do acórdão “Sucede, porém, que da leitura atenta das actas de audiência final relativas às sessões realizadas em 31/01/2023 no Tribunal a quo decorre assente a confissão dos ora Apelados no tocante aos factos contidos nos artigos 20 e 33 da contestação dos ora Apelantes CC e FF, factos esses que no essencial respeitam ao que ora se identifica sob as alíneas c) e e) e se pretende aditar ao elenco dos factos considerados como provados na sentença recorrida.

Pelo que, sem necessidade de mais considerações, impõe-se rejeitar a impugnação no tocante ao conteúdo das alíneas b) e d ) e deferir a mesma no tocante às alíneas c) e e), que passarão a integrar o sub-segmento da sentença recorrida respeitante aos factos considerados como provados com o seguinte teor: “52. Os Autores nunca interpelaram por escrito ou verbalmente a Ré CC para no prazo de 10 dias a contar da interpelação repor a situação objecto de queixa sob pena de se considerar em incumprimento, mas tão só falaram com esta para resolver a questão da documentação em falta para a venda;

53. Os Autores não marcaram a escritura pública de compra e venda no prazo de 90 dias a contar da data da assinatura do contrato promessa.”

e dela decorrerá que “…não se poderá considerar o dito contrato como validamente resolvido”.

Ora, este facto sob o n.º 52 que o tribunal a quo considera demonstrativo do incumprimento por parte dos Recorrentes do dever de interpelação que para eles decorreria da cláusula 10ª do contrato e consequentemente da inexistência de incumprimento definitivo do contrato-promessa, para além da sua formulação negativa que lhe advém da consideração dos factos articulados sob os n.º s 20 e 23 da contestação dos RR/agora Recorridos, CC e FF e do olvido da regra do ónus da prova estabelecida pelo n.º 1, do art.º 342.º, do C. Civil, uma vez que se tratará de um facto constitutivo do direito à resolução invocado pelos AA/agora Recorrentes apresenta-se equívoco em duas asserções distintas mas complementares.

A primeira é constituída pela dupla circunstância de a R/Recorrida CC, tendo outorgado como promitente-vendedora não ser a única promitente-vendedora nem se mostrar mandatada para representar as restantes.

A segunda e porventura mais importante é que este duplo facto sob o n.º 52, que refere primeiramente que os Recorrentes nunca interpelaram e em segundo lugar que tão só falaram, se encontra em contradição com os factos sob os n.ºs 35, 36 e 37 da matéria de facto provada do acórdão, a saber, que "35. Pela Autora BB foi solicitada no Cartório Notarial de ..., sito na ..., a preparação e marcação de escritura pública de rectificação de partilha, doação e compra e venda, com mútuo e hipoteca, tendo como finalidade proceder à rectificação da caderneta predial do imóvel descrito em 1) no que respeita às quotas partes respeitantes a cada uma das herdeiras de OO e PP e posterior compra e venda do mesmo.

36. A escritura pública referida em 35) foi marcada pelo Cartório Notarial de ... para o dia 18.08.2021, tendo comparecido para outorga da mesma apenas a Autora Oana e a Ré CC.

37. A Ré CC recusou-se a outorgar a escritura pública referida em 35) por discordar dos seus termos, no que diz respeito à rectificação da partilha anteriormente efectuada entre as Rés e aludida em 33)”.

Se a Recorrida CC compareceu à escritura “marcada” pela A/Recorrente (factos sob os n.ºs 35 36) e se recusou a outorga-la (facto sob o n.º 37), não se poderá afirmar que tão só falaram e porventura também se não poderá dizer que a recorrida CC não foi interpelada como consta sob o facto 52, aditado pela Relação, pelo que estes factos sob os n.ºs 35 a 37 e 52, para além da natureza negativa e conclusiva deste último, se apresentam contraditórios e insuficientes para permitirem uma decisão conscienciosa sobre a existência ou inexistência de interpelação e incumprimento dos promitentes-vendedores.

Urge, pois, dilucidar esta contradição e concomitantemente apurar as circunstâncias em que a escritura foi “marcada” pela A/Recorrida, por acordo ou com o conhecimentos dos promitentes vendedores ou por sua livre iniciativa, se a R/Recorria CC foi informada notificada, ou avisada para comparecer e se os restantes promitentes-vendedores foram informados notificados ou avisados para comparecem.

Em face dos factos sob os números 35 a 37 da matéria de facto provada do acórdão recorrido também o facto sob o n.º 53 - “Os Autores não marcaram a escritura pública de compra e venda no prazo de 90 dias a contar da data da assinatura do contrato promessa” - apesar de articulado na contestação da Recorrida CC e marido, para além da sua configuração negativa (não marcaram a escritura), se configura como desprovido de sentido e pertinência para decisão do litígio, na medida em que se não foram removidos os obstáculos à realização da escritura de outorga do contrato prometido, não haveria que marcar qualquer escritura.

Concomitantemente com esta matéria relativa à remoção de obstáculos à outorga da escritura de realização do contrato prometido e com os factos que acabamos de referir, também o facto sob o n.º 21 da matéria de facto provada do acórdão recorrido se configura como insuficiente para decisão da Revista uma vez que o autor do ato, identificado no facto sob o n.º 20 como “filho da Ré DD e sobrinho das restantes Rés” aparece a agir no âmbito da remoção de obstáculos à realização do contrato prometido sem estar esclarecido em que condições o faz, ou seja, se foi mandatado a qualquer título e como pelos promitentes vendedores, sendo certo que o autor do ato de envio da missiva se intitula “…filho de uma das proprietárias (DD) e com procuração de outra das proprietárias (EE)” e que no facto sob o n.º 27 é citado como procurador de uma das proprietárias.

Nos factos sob os números 22 e 24 da matéria de facto provada do acórdão também o autor do facto sob o n.º 21 figura como recebedor de missivas com conteúdo que se reporta à ação (e inação) necessária dos promitentes vendedores à realização do contrato prometido como decorre do facto sob o número 24 quando refere que “… O que lhe foi solicitado … consta no mesmo pedido por parte do Cartório Notarial ... É uma questão que … só depende única e exclusivamente das proprietárias. Pedimos mais uma vez, a vossa colaboração para ultrapassar esta questão e façamos finalmente a escritura”.

Com efeito, reportando-se esse facto sob o n.º 21 da matéria de facto provada do acórdão à remoção de obstáculos à “aprovação” de empréstimo pelo banco e à outorga da escritura, como dele próprio consta quando refere “… que reencaminhem este email para o banco ou para a notária…”, constatamos que existe coincidência entre os obstáculos a que se reporta o facto sob o n.º 17 dos factos provados do acórdão (e a que também se referem os factos sob os números 18 a 20) e os obstáculos descritos no facto sob o n.º 23 no que respeita à identificação do imóvel no registo predial, máxime quanto ao “pátio”, e também quanto à quota parte das promitentes vendedoras.

Ora, a escritura pública a que se reporta o facto sob o n.º 35 destinava-se, como dele próprio consta, “…à retificação da caderneta predial … no que respeita às quotas partes respeitantes a cada uma das herdeiras…”.


*


A decisão conscienciosa da questão da Revista na dupla vertente em que se configura - violação pelos recorridos da cláusula nona, n.º 1, do contrato-promessa e prática de atos concludentes do incumprimento - exige, pois, que o Tribunal da Relação, em exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo n.º 2, do art.º 662.º, do C. P. Civil e nos seus próprios termos, a saber, por si próprio ou com o envio dos autos à primeira instância, em aplicação do disposto na al. b), do n.º 2, do art.º 5.º, do C. P. Civil - que determina a consideração pelo Juiz dos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa - e com cumprimento do disposto no n.º 3, do art.º 3.º, do C. P. Civil,

1) reaprecie o facto sob o n.º 52 na perspetiva do facto pertinente para decisão da causa em aplicação do n.º 1, do art.º 342.º, do C. Civil, que é o facto positivo (interpelação) e não o facto negativo (não interpelação), independentemente do que foi articulado pelos RR CC e marido, em aplicação do principio jura novit curia consagrado no n.º 3, do art.º 5.º, do C. P. Civil, eliminando a contradição de ambos os segmentos desse n.º 52 - nunca interpelaram e só falaram - com os factos sob os n.ºs 35 a 37;

2) apure as circunstâncias em que a escritura foi “marcada” pela A/Recorrente, por acordo ou com o conhecimento dos promitentes vendedores ou por sua livre iniciativa, se a R/Recorrida CC foi informada notificada, ou avisada para comparecer e se os restantes promitentes-vendedores foram informados notificados ou avisados para comparecem;

3) apure relativamente ao facto sob o n.º 21 da matéria de facto provada do acórdão em que condições intervém o autor desse ato e recebedor das missivas a que se reportam os factos sob os n.º s 22 e 24, se foi mandatado a qualquer título e por que forma pelos promitentes vendedores ou por algum deles;

4) esclareça a conexão entre os obstáculos referenciados nos factos sob os n.ºs 17 a 26 e 35 a 37 da matéria de facto provada do acórdão e para além da inação que já consta sob o facto 26, o conhecimento ou desconhecimento de todos e cada um dos promitentes vendedores em relação a esses mesmos factos.


*


Para o efeito, em aplicação do disposto no n.º 3, do art.º 682.º e no n.º 2, do art.º 683.º, ambos do C. P. Civil, não poderá deixar de se ordenar a remessa dos autos ao tribunal a quo para que em novo julgamento seja ampliada a matéria de facto e eliminada a contradição indicada, após o que será preferido acórdão em conformidade.

*


3. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em ordenar a remessa ao Tribunal da Relação para que seja ampliada a matéria de facto e eliminada a contradição nos termos acima exarados e proferido acórdão em conformidade.

Custas pelo vencido a final.

Orlando Santos Nascimento (relator)

Maria Graça Trigo

Catarina Serra