Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12280/07.6TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SESSÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
TRÂNSITO DE PEÕES
MARCHA ATRÁS
DEVER DE VIGILÂNCIA
MENOR
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
RECURSO DE REVISTA
REGRA DA SUBSTITUIÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
1. Constitui violação ilícita e culposa das regras estradais definidas pelos arts. 46º e 47º do C. Estrada a realização de manobra de marcha atrás pelo condutor profissional de uma viatura pesada de recolha de detritos urbanos, ao longo de toda uma rua, contígua a uma escola, devidamente sinalizada, à hora do início das actividades lectivas, sem que tomasse as providências adequadas a controlar inteiramente os obstáculos porventura existentes na retaguarda do pesado , numa altura em que estava a chover, causando com tal manobra o atropelamento mortal de um menor que se dirigia à escola.

2. A circunstância de o menor sinistrado transitar, acompanhado de um familiar, pela faixa de rodagem, junto ao muro que delimita a escola, em vez de o fazer, como devia, pelo passeio existente do lado oposto constitui infracção de gravidade e censurabilidade incomensuravelmente inferior à praticada pelo condutor, não justificando a atribuição a quem estava onerado com o dever de vigilância do menor de percentagem de culpa superior a 10%.

3. O regime prescrito no art. 731º, nº2, do CPC para o suprimento da nulidade por omissão de pronúncia deve também aplicar-se no caso de a Relação, no acórdão recorrido, não ter apreciado a matéria do cálculo da indemnização por danos não patrimoniais, suscitada no âmbito da apelação, face à solução que deu ao litígio, desresponsabilizando inteiramente o condutor da viatura segurada –implicando a quantificação da indemnização a formulação de juízos equitativos, que se não esgotam na estrita aplicação de critérios normativos, e não prescindindo o recorrente da supressão de um grau de jurisdição, que decorreria inevitavelmente da aplicação da regra da substituição, nos termos previstos no nº2 do art. 715º do CPC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1.AA e BB intentaram contra CC Portugal – Companhia de Seguros, S.A. acção de condenação, na forma ordinária, pedindo a condenação da R. na quantia de €188.185, acrescida dos juros moratórios devidos, como compensação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência da morte do filho menor dos AA., em acidente – atropelamento - da responsabilidade do condutor da viatura pesada, segurada na R.
A R. contestou, impugnando a matéria em que assentava a responsabilidade imputada ao condutor do pesado, e – após saneamento do processo e realização da audiência final – foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a acção, reconhecendo aos AA. o direito a indemnização global no valor de €121.420.000 e respectivos juros moratórios.
Inconformada com tal decisão, apelou a R., impugnando, desde logo, a decisão proferida sobre a matéria de facto relevante quanto ao circunstancialismo que rodeou o atropelamento, interpondo ainda os AA. recurso subordinado, incidente sobre a matéria da quantificação dos danos não patrimoniais decorrentes do falecimento do menor.
A Relação, no acórdão ora recorrido, julgou parcialmente procedente a impugnação deduzida quanto ao decidido quanto à matéria de facto, alterando certas respostas aos pontos da base instrutória, não considerando provado que a viatura pesada atropelante tivesse surgido de modo súbito no local do sinistro; e deixando consignado que no local do atropelamento existia um passeio, embora no lado oposto àquele por que seguiam o menor e a avó que o acompanhava, ao dirigirem-se para a escola, a pé, pelo lado direito da rua, junto ao muro que existe junto à berma, seguindo o menor à esquerda da sua avó, do lado da estrada.
E, perante a situação fáctica que teve por definitivamente estabelecida, entendeu a Relação que a realização da manobra de marcha atrás, no concreto circunstancialismo em que ocorreu o atropelamento, não implicou, por parte do condutor do pesado, a prática de contravenção estradal – imputando antes o sinistro à violação do dever de vigilância do menor por parte da avó que o acompanhava, afirmando:

Mostra-se, assim violado um dever de vigilância que impende sobre quem tem o dever de cuidar das crianças e constituído juridicamente em benefício da própria criança que tem direito que os adultos que a rodeiam e a levem à escola garantam que o percurso é efectuado em segurança.
Do exposto, mormente da circunstância de que se a criança seguisse pelo passeio, ou, pelo menos, ainda que não pela esquerda da via, fosse conduzida entre o adulto e o muro o evento danoso não teria ocorrido, resulta que a conduta omissiva da avó quanto a adopção de regras de segurança relativas à circulação do menor e a violação das
referidas regras de circulação dos peões, impostas pelo Código da Estrada, foram causa adequada do acidente que sem essa violação não teria ocorrido, nem se haveriam produzido os graves danos dele decorrentes.

E, em consequência, tendo por não aplicáveis as normas atinentes à responsabilidade objectiva e prejudicado o conhecimento do recurso subordinado, julgou a Relação parcialmente procedente a apelação da R., revogando a sentença recorrida e julgando a acção improcedente.

2. Inconformados com o assim decidido, interpuseram os AA. a presente revista, que encerram com as seguintes conclusões, que lhe delimitam o objecto:

1. Impendem sobre o condutor do veículo três presunções de culpa;
2. Uma presunção decorrente da condição de comissário do condutor, outra decorrente do facto de o mesmo ter praticado um acto ilícito por violação de regras do Código da Estrada e outra decorrente de sentença penal condenatória;
3. A presunção do artigo 674.° - A do CPC deve ser levada em conta ex vi o disposto no artigo 663. ° do CPC, considerando-se aqui os factos provados naquela sentença, ou, se assim não se entender, deve ser ordenada a ampliação da matéria de facto nos termos do n.° 3, do artigo 729.°doCPC;
4. Porém, os factos provados, por si mesmos, sem o recurso a qualquer presunção, revelam que a actuação do condutor do veiculo foi ilícita, culposa e que causou adequadamente os danos aqui em apreço;
5. A manobra de marcha-atrás realizada pelo condutor foi ilícita;
6. A marcha-atrás é proibida, só sendo lícita se constituir uma manobra auxiliar ou de recurso;
7. A realização de uma manobra auxiliar ou de recurso configura, neste quadro, a alegação e prova de um facto impeditivo do direito do lesado, cabendo o ónus da respectiva demonstração ao condutor contra quem se invocou a realização da marcha-atrás;
8. Não estando provado que a manobra era de recurso ou auxiliar, a marcha-atrás é, sem mais, ilícita;
9. Sem conceder, sempre a marcha atrás seria ilícita por ter sido realizada em local proibido, atenta a visibilidade existente, as características da via e a intensidade de trânsito de veículos e peões;
10. A manobra de invasão da berma pelo camião ê um acto ilícito;
11. O condutor do veículo actuou com culpa grave;
12. A manobra de marcha-atrás ê, em geral, uma manobra perigosa;
13. O condutor do camião foi indiferente à norma que o proibia de realizar a marcha-atrás e de circular na berma;
14. o condutor do camião conduzia sem qualquer atenção ao trânsito de peões, tendo todos os meios para os avistar;
15. o condutor desconsiderou o facto de (i) conduzir um veículo perigoso, (ii) numa via perigosa, (iii) num clima perigoso, (iv) numa hora perigosa, tendo realizado, ademais, (v) uma manobra perigosa;
16. O evento do lesante - a manobra de marcha-atrás – foi causa adequada dos danos sofridos pelo lesado;
17. O peão e a avó - o terceiro - não actuaram com culpa nem deram causa ao acidente;
18. Os peões circulavam na berma e não podiam contar que o camião invadisse a berma nem que circulasse em marcha-atrás;
19. Sem conceder, ainda que houvesse culpa dos peões, rectius, do terceiro, estando em causa uma criança com seis anos de idade, entendemos que não funciona o disposto no artigo 505.°, ainda que a criança esteja sob vigilância;
20. No caso previsto na conclusão anterior, mesmo sem culpa sua, o lesante responde pelo risco;
21. Sem conceder, ainda que ocorra culpa do terceiro ou um facto imputável ao menor, não deve ser excluída a responsabilidade pelo risco;
22. No caso concreto, mesmo que se considere que houve culpa ou imputabilidade do facto aos intervenientes, não pode ignorar-se que o veículo contribuiu para o acidente e os danos;
23. A medida da contribuição do risco do risco do veículo é elevada, atento o seu volume, configuração e difícil manobralidade;
24. Neste caso, e no limite, o lesado deveria responder por 90% da indemnização dos danos;
25. Na procedência do recurso dos autores, devem ser ordenado o conhecimento do recurso de apelação subordinado;
26. Ao não as interpretar da forma acima assinalada o tribunal violou os artigos 46.°, 13.° 3 17.° do CE, os artigos 483.°, 487.°. 503.°, 505.° e 570.° do CC
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, nos termos acima expostos.
A R. seguradora contra-alegou, questionando a admissibilidade de junção, no âmbito da revista, da decisão penal condenatória do motorista da viatura pesada pelo cometimento de um crime de homicídio por negligência, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido, relativamente à causalidade e culpas na eclosão do sinistro, e pedindo, a título subsidiário, que, a não se entender assim, fosse apreciada a matéria que constava da conclusão Q) do precedente recurso de apelação, de modo a reduzir-se para €50.000 o montante compensatório da perda do direito à vida da vítima.

Pelos AA/ recorrentes foi ainda peticionada a correcção de lapso de escrita, que inquinava a redacção da conclusão 24 da alegação apresentada, deixando assente que a redacção desta seria a seguinte:
24. Neste caso, e no limite, o lesante deveria responder por 90% da indemnização dos danos.

Tratando-se efectivamente de um lapso ostensivo de escrita e não tendo a parte contrária deduzido oposição ao requerido, autoriza-se a pretendida rectificação, nos termos do art. 249º do CC.

3. A Relação fez assentar a decisão do pleito na seguinte matéria de facto - que teve por definitivamente assente, após apreciação da impugnação deduzida pela entidade apelante:

1). Os Autores AA e BB são pais do menor DD que nasceu no dia 04/08/00 (al.A).________________________________________________________
2). O menor DD faleceu no passado dia 06/03/07, no estado de solteiro sendo os seus progenitores os seus únicos e universais herdeiros (al.B).
3). No dia 06/03/07, cerca das 09.55 horas, Vila Nova de Gaia, o veículo pesado de recolha de resíduos sólidos com a matrícula 00-00-00, propriedade da sociedade comercial que gira sob a denominação de «SUMA, Serviços Urbanos e Meio Ambiente, S. A.» - al.C -. _____________________________________________________
4). À data da prática dos factos o veículo pesado de mercadorias era conduzido por EE, o qual exercia a actividade profissional de motorista ao serviço da sobredita sociedade comercial (al.D) sendo certo que naquele dia àquela hora se encontrava no desempenho da sua actividade profissional, transitando por um itinerário definido pela sua entidade patronal já que se preparava para proceder á recolha dos resíduos sólidos domésticos que se encontravam depositados na Rua das Escolas (al.E)._
5). Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 3), o veículo de matrícula 00-00-00 circulava de marcha-atrás (al.F), fazendo-o no sentido Largo das Escolas-Rua das Escolas, ou seja, Nascente-Poente (al.G).________________________
6). Sucede que pela berma direita da Rua das Escolas, considerando o sentido de
marcha Rua das Escolas-Largo das Escolas, transitava a pé o menor DD, acompanhado pela sua avó FF(al.H) sendo certo que estes se dirigiam para a entrada principal da Escola E/B 1 do Outeiro situada no Largo das Escolas (al.I). ____________________________________________________________
7). Com efeito, a Sra. FF preparava-se para deixar o menor na
escola considerando que este tinha actividades lectivas que se iniciavam às 10.00 horas da manhã (al.J). _____________________________________________________________
8). O local do acidente configura uma recta de boa visibilidade sendo que a faixa de rodagem no local do acidente tem 5 metros de largura (al.K), situando-se a referida artéria dentro da localidade de Oliveira do Douro (al.L), sendo ladeada em toda a sua extensão de forma ininterrupta por diversas habitações (al.M). ___
9). Ademais, a presença da Escola E/B 1 do Outeiro encontra-se devidamente sinalizada, nomeadamente através de sinalização vertical de forma rectangular de fundo amarelo e na qual se encontra gravado um sinal triangular de perigo do tipo A 14 do Decreto-Regulamentar n.º 22-A/98, de 01/10 e as letras «ATENÇÃO» e «ESCOLAS» - que se encontra aposta em
ambos os sentidos de marcha da Rua das Escolas (al.N).____
10). À data dos factos existia um elevado fluxo de trânsito rodoviário e pedonal,
nomeadamente àquela hora, considerando que, recorde-se, se tratava da hora de entrada dos alunos do 1.º ano do ensino básico, nas actividades escolares (al. O).
11). O piso era, como é, betuminoso e encontrava-se em bom estado de conservação (al. P). _
12). A proprietária do veículo OJ, através da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º 000000000000, transferiu a responsabilidade civil emergente da circulação do referido veículo para a Ré CC Portugal encontrando-se tal seguro válido e eficaz no momento do acidente (al. Q).___________________________________________________
13). O OJ circulava a não mais de 15 Kms./hora (1.º)._______________________________
14). Chovia na altura referida em 3) – facto 2.º-.___________________________________
15). Na hora referida em 3) havia, numa rotunda na qual a Rua das Escolas entronca, movimento de veículos (4.º).____________________________________________
16). O menor DD e sua avó, FF, transitavam próximo de um muro que ladeia a sobredita escola (5.º). ______________________________________
17). O menor DD e sua avó, FF seguiam usando guarda-chuva para se protegerem da chuva (6.º).__________________________________________
18). A dado passo surge o OJ próximo da berma por onde transitavam DD e sua avó (7.º)._________________________________________
19). A avó de DD só se apercebeu da marcha do OJ quando este já tinha colhido o referido menor com a parte traseira (8.º e 9.º). ____________________
20). Imediatamente após se aperceber que seu neto tinha sido colhido pelo OJ, FF começou a gritar e a efectuar gestos para tentar avisar o condutor do veículo (10.º). _____________________________________________________________
21). Após o embate, o OJ continuou a circular até se deter em altura em que DD ficou deitado entre as duas rodas traseiras do lado direito (11.º).
22). DD e sua avó, FF, dirigiam-se para a escola daquele, a pé, pelo lado direito da Rua das Escolas, junto ao muro que existe junto à berma (12.º). _____________________________________________________________
23)[. Não provada a resposta ao art 13º da base instrutória]
24). Aquando do embate chovia e havia poças de água no chão (14.º). ___________
25). O OJ surgiu, seguindo em marcha-atrás, junto de DD e sua avó (16.º)._______________________________________________________
26). A referida manobra de marcha-atrás era acompanhada por dois colegas do motorista que seguiam fora do OJ, na parte dianteira do mesmo, na rua (17.º) sendo assinalada por um sinal sonoro que se acciona quando se engata tal mudança e o veículo circula (18.º) audível para quem circula a pé junto do veículo em causa (19.º)._________________________________________________________
27). O O percorreu alguns metros na Rua das Escolas antes de embater em DD (20.º). _____________________________________________________________
28). Provado apenas que a criança seguia nas condições referidas na resposta ao art. 12º da base instrutória, à esquerda da sua avó, do lado da estrada
29). DD foi colhido pela parte traseira direita do OJ na Rua das Escolas (22.º). ______________________________________________________________________
30). O condutor do OJ não evitou o atropelamento de DD (23.º)._____
31). Em consequência do atropelamento acima referido DD sofreu lesões medulares (24.º). ____________________________________________________________
32). As lesões sofridas por DD provocaram-lhe sofrimento físico e angústia (25.º e 26.º). _____________________________________________________________
33). Após o embate do OJ e até este veículo se imobilizar, DD sofreu dores (27.º e 28.º)._________________________________________________________
34). Imediatamente após o OJ se imobilizar, a avó de DD deslocou-se para junto de seu neto e dirigiu-lhe algumas palavras tendo o mesmo olhado por alguns segundos e posteriormente fechou os olhos (29.º e 30.º). __________________
35). DD faleceu depois do atropelamento e após o referido em 29.º e 34 (facto 31.º). _____________________________________________________________
36). O DD era um filho exemplar e dedicado (32), dedicava muito afecto, amor e carinho aos aqui Autores seus pais (33) e igualmente nutria pelos seus irmãos uma ternura e amor (34) sendo um menino educado, solidário e amigo dos pais, irmãos, demais familiares e amigos (35.º). ________________________
37). A sua falta provocou e vai continuar a provocar por toda a vida dos aqui Autores tristeza, consternação e pesar, sendo uma verdadeira lacuna nas suas vidas que jamais será preenchida (36.º). ___________________________________________
38). Com o falecimento de DD, os Autores ficaram abatidos, choram, estando tristes (37.º, 38.º, 40).______________________________________________________
39). Os Autores pagaram a quantia de € 1.420 com sepultura, floreira, lampião, suporte de fotografia do enterro de DD (42.º).

4. Com a alegação que apresentaram na presente revista, juntaram os AA/ recorrentes certidão da decisão penal condenatória do motorista da viatura pesada atropelante pelo crime de homicídio involuntário, transitada em julgado em 23/7/09 – portanto, antes de ter sido proferido pela Relação o acórdão ora recorrido – pretendendo prevalecer-se da presunção consagrada no art. 674º-A do CPC.

Tal pretensão não se revela, porém, admissível, por aplicação conjugada do preceituado nos arts. 727º e 706º do CPC, na versão aplicável ao presente recurso, inserido em processo iniciado anteriormente a 2008 : é que, por um lado, a pretendida junção, enquanto funciona como suporte da referida presunção legal, excede manifestamente o âmbito das «questões de direito» que podem constituir objecto idóneo de um recurso de revista , tendo necessariamente de reconhecer-se ao responsável demandado a oportunidade processual de carrear para o processo factos susceptíveis de afastarem tal presunção, o que naturalmente se não compagina minimamente com a fisionomia de um recurso de revista.
Por outro lado, e na concreta situação dos autos, não pode olvidar-se que os vistos no recurso de apelação apenas se iniciaram em 12/10/09, portanto em data ulterior ao trânsito em julgado daquela decisão penal, pelo que recaía sobre o interessado o ónus de ter providenciado pela respectiva junção no âmbito da apelação, com base na sua natureza superveniente relativamente à sentença e à apresentação da alegação no recurso dela interposto – mas manifestamente anterior ao início dos vistos naquele recurso de apelação ( cfr. nº2 do art. 706º do CPC).
A circunstância de a referida sentença não poder funcionar constitutivamente como base da presunção invocada não dita, porém, o seu desentranhamento dos presentes autos, tendo valor meramente informativo do que ocorreu efectivamente no processo penal que correu termos paralelamente a esta acção cível, mostrando ainda que nela não foi enxertada qualquer pretensão indemnizatória.

5. Importa realçar que, no presente litígio – exercendo inquestionavelmente o condutor da viatura pesada de recolha de detritos urbanos a tarefa de comissário por conta e no interesse da respectiva entidade patronal e tomadora de seguro – estão preenchidos os pressupostos da presunção de culpa emergente do estatuído no nº 3 do art. 503º do CC. A solução do litígio passa, deste modo, essencialmente por verificar se tal presunção de culpa se pode ter por ilidida, face à matéria de facto apurada quanto ao circunstancialismo do acidente – o que implica essencialmente a análise e ponderação de duas questões:
- a realização pelo motorista que conduzia a viatura pesada da manobra de marcha atrás na concreta situação de tempo e lugar existente no momento do atropelamento implicou violação culposa das normas constantes dos arts. 46º e 47ºdo C. Estrada, que se possa qualificar como contravenção causal ao atropelamento mortal do menor?

- qual o relevo que deve ser conferido, na óptica do regime normativo constante dos arts. 99º e 100º do mesmo Código e em termos de possível concausalidade e culpa , ao facto de o menor e o familiar que o acompanhava - naturalmente onerado com o dever da respectiva guarda e vigilância – circularem, na altura do sinistro, pela faixa de rodagem, em vez de utilizarem o passeio contíguo à metade oposta da via por onde se dirigiam à escola?
Note-se que ambas as questões são naturalmente susceptíveis de plena análise e decisão no âmbito de um recurso de revista, já que está fundamentalmente em causa a determinação da culpa decorrente da violação de normas ou preceitos legais, desde logo, as normas estradais atrás invocadas.

Quanto à primeira questão, diverge-se do entendimento adoptado pela Relação, segundo o qual a realização da fatal manobra de marcha atrás da viatura pesada não constituiu, nas referidas circunstâncias concretas, contravenção estradal. Desde logo, cumpre realçar que, por força do estatuído no nº1 do art. 46º do C. Estrada, tal manobra - potenciadora de notórias dificuldades de plena visão da faixa de rodagem pelo condutor e, portanto, de acrescidos riscos para terceiros - só é permitida como manobra auxiliar ou de recurso : cumpria, pois à R., onerada com a presunção de culpa do condutor / comissário, ter alegado e provado que a recolha dos resíduos urbanos na via onde ocorreu o atropelamento mortal era absolutamente impossível sem que ocorresse a referida circulação do pesado em marcha atrás, ao longo de toda uma rua – ou seja, que se tratava da manobra auxiliar inevitável, e não de mera «manobra de comodidade» do respectivo condutor.
Por outro lado - e procedendo a uma adequada ponderação de todas circunstâncias concretas que rodearam o sinistro - temos por seguro que a referida manobra, pela sua elevada perigosidade, estava vedada , face ao preceituado no nº2 do citado preceito estradal, cuja al. d), em termos amplos, a inibe sempre que a visibilidade seja insuficiente ou as peculiares características da via onde ocorre tornem inapropriada a realização de marcha atrás. Ora, na específica situação dos autos, concorrem múltiplas circunstâncias que ditam a manifesta inadequação da realização de uma manobra de marcha atrás ao longo de toda uma rua por parte de um pesado – desde logo, a proximidade de uma escola primária, em momento de real ou, pelo menos, potencial acréscimo de circulação de crianças nas proximidades, por se tratar da hora de abertura das actividades lectivas, e o facto de estar a chover, diminuindo, como é notório, a visibilidade, quer por parte dos peões, quer dos condutores . Acresce que não foram manifestamente adoptadas pelo condutor todas as cautelas e medidas que afastassem a elevada perigosidade da manobra efectuada, associada, desde logo, à reduzida visibilidade para a retaguarda do condutor do pesado (pela forma e estrutura deste, ampliada pela chuva que caía no momento do sinistro) e à elevadíssima potencialidade letal da viatura, tornando qualquer choque com um peão, ainda que a reduzida velocidade, provavelmente mortal : se, porventura, o motorista tivesse absoluta necessidade de circular, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, em marcha atrás (facto que, como se referiu, não pode dar-se por demonstrado) teria de ter tomado todas as medidas que inibissem, também em absoluto, o grave risco que lhe estava inevitavelmente associado, impondo-se. desde logo, que os acompanhantes do motorista seguissem fora da viatura pesada, mas na retaguarda da mesma, e não na sua parte dianteira (cfr. ponto 26 da matéria de facto), de modo a que pudessem simultaneamente alertar prontamente, quer qualquer peão ( eventualmente uma criança que se dirigisse à escola praticamente contígua) que se não tivesse apercebido dos riscos da manobra, quer o próprio motorista, - suprindo a deficiente visibilidade para a retaguarda, para prontamente imobilizar o veículo perante qualquer situação de perigo que surgisse e não tivesse por ele sido de imediato notada, face ao manifesto défice de visibilidade.
E, nesta perspectiva, temos por segura a existência, por parte do condutor comissário, de uma violação ilícita e culposa das normas estradais, acima citadas, que regulam a admissibilidade de efectivação da manobra de marcha atrás por parte de uma viatura pesada, a qual se revelou manifestamente causal do atropelamento mortal do menor.

Resta analisar em que medida é que a circunstância de o menor sinistrado seguir, no momento do atropelamento mortal, pela faixa de rodagem, próximo do muro que a delimita – em vez de utilizar o passeio existente no lado oposto para se dirigir à entrada da escola que frequentava - pode considerar-se facto culposo e concausal do evento danoso, imputável, desde logo, a cumprimento defeituoso do dever de guarda e vigilância que recaía sobre a avó que o acompanhava.
Note-se que – como decorrência das anteriores considerações e da existência de violação culposa do preceituado nos arts.46º e 47º do C. Estrada por parte do condutor do pesado – está liminarmente excluído que a irregular forma de circulação dos peões, no momento do atropelamento, decorrente da deficiente guarda e vigilância do menor pelo familiar que o acompanhava, possa permitir imputar exclusivamente àqueles o evento danoso verificado – tudo se resumindo a saber se ocorreu, porventura, concorrência de culpas, e em que medida, entre as infracções estradais porventura praticadas , quer pelo condutor, quer pelos peões.
Quanto a este ponto, tem de reconhecer-se razão ao acórdão recorrido quando considera que o modo como os peões circulavam na altura do atropelamento fatal traduz violação das normas definidas, nomeadamente, pelos arts. 99º e 100º do C. Estrada – decorrente primacialmente da omissão de circularem pelo passeio existente do outro lado da estrada, face às circunstâncias existentes, particularmente a chuva intensa e o uso de guarda chuvas, propiciador de dificuldades na plena visão do trânsito que circulasse no local ; e implicando naturalmente tal infracção às regras estradais e de prudência geral um incumprimento do dever de vigilância do menor pela sua avó.
Considera-se, porém, que nas concretas circunstâncias do caso, a tal facto ilícito e culposo tem de ser atribuído um relevo incomensuravelmente menor do que à violação pelo condutor das regras de prudência associadas ao regime prescrito para a efectivação da manobra de marcha atrás – revestindo a violação por um motorista profissional de um pesado dos comandos ínsitos nos referidos arts. 46º e 47º uma gravidade objectiva e um grau de censurabilidade muitíssimo superior ao que decorre da inadequada circulação dos peões: não pode, na verdade, olvidar-se que o local onde ocorreu o evento fatal se situa a escassos metros de uma escola, devidamente sinalizada, tendo os peões – mesmo que circulassem pelo passeio existente do lado oposto, - inelutavelmente de atravessar a faixa de rodagem para se dirigirem à entrada da escola…
E, fundamentalmente, consideramos que o facto de o acidente ter ocorrido em zona praticamente contígua ao estabelecimento de ensino - por assim dizer, na «zona de protecção» deste, decorrente do sinal de perigo que impõe aos condutores um especialíssimo e reforçado dever de cuidado e atenção à previsível circulação e atravessamento da via por crianças – poderá justificar a confiança com que avó e vítima se dirigiam à entrada a escola, supondo-se a coberto dos normais e correntes riscos de circulação de veículos em ambiente rodoviário «hostil», por todos os condutores que circulassem no local estarem inquestionavelmente vinculados àquele acrescido dever de atenção e cuidado – sendo lícito esperar fundadamente que tais deveres reforçados fossem efectiva e adequadamente cumpridos por todos os condutores.

A repartição de culpas entre os autores das contravenções estradais cometidas, concausais do acidente, deverá, pois, realizar-se de modo a atribuir ao comissário que conduzia o pesado uma percentagem de culpa
de 90%, representando o deficiente cumprimento do dever de guarda e vigilância do menor, nas concretas e específicas circunstâncias, uma percentagem de culpa de apenas 10%- pelo que, nos termos do preceituado no art. 570º do CC, é esta a percentagem em que deverá reduzir-se a indemnização devida pela R./seguradora.

6. A sentença de 1ª instância havia condenado a R. no pagamento de indemnização global aos AA. no montante de €121.420, valorando, respectivamente, em €10.000, €40.000 e €70.000 os danos não patrimoniais resultantes dos sofrimentos que precederam a morte, dos danos morais sofridos pessoalmente pelos progenitores e da lesão do direito à vida.
Tal segmento decisório foi impugnado por ambas as partes nos recursos de apelação, pretendendo a seguradora ver reduzidas tais quantias ( cfr. conclusões N a Q do seu recurso, a fls. 262/263); e os AA. , no recurso subordinado que interpuseram, sustentando que esses montantes indemnizatórios deveriam ser ampliados, aproximando-se do valor do pedido originariamente deduzido ( fls. 243/244).
Tal matéria do cômputo da indemnização não foi apreciada pela Relação , face à solução dada ao litígio, ao ter por improcedente a pretensão indemnizatória formulada, perante a apreciação que fez das circunstâncias concretas e da causa e culpas na eclosão do acidente, dele desresponsabilizando inteiramente o condutor/comissário.
Como é óbvio, o entendimento que se segue no presente acórdão, ao imputar ao referido condutor uma percentagem de culpa de 90%, faz ressurgir de pleno o interesse na apreciação jurisdicional das questões referentes à quantificação da indemnização devida aos AA. – podendo, porém, suscitar-se a dúvida sobre se tal matéria deverá ser, desde logo, apreciada no âmbito da presente revista ou se, pelo contrário, deverão os autos ser remetidos à Relação.
Saliente-se que, no caso dos autos, não estamos obviamente confrontados com o cometimento pelo tribunal «a quo» de nulidade por omissão de pronúncia - caso em que o art. 731º impõe, de forma expressa, a baixa do processo, a fim de a Relação fazer a reforma da decisão anulada – excluindo, deste modo, de forma expressa, o funcionamento da regra da substituição ao tribunal recorrido.

Bem pelo contrário, a situação processual com que nos defrontamos é a prevista no nº 2 do art. 715º do CPC, assentando a não decisão das questões referentes ao cômputo da indemnização , não no incumprimento do dever de resolução de todas as questões que o tribunal estava vinculado a solucionar, mas antes na relação de dependência ou prejudicialidade destas relativamente às questões que prioritariamente ditaram a sorte da acção na 2ª instância.
Ora, apesar de a letra do art. 726º apenas excluir do âmbito da revista a aplicação do nº1 do art . 715º - não se pronunciando, ao menos de forma expressa, sobre a eventual aplicabilidade à revista da norma constante do nº2 daquele preceito legal – entende-se que, na situação dos autos, não deverá efectivamente funcionar a regra da substituição por parte deste Supremo, de modo a apreciar imediatamente as questões, referentes ao cômputo da indemnização, suscitadas pelas partes nos respectivos recursos de apelação – e que a Relação teve por prejudicadas, face ao seu entendimento sobre a causa e culpas na produção do acidente.
Para este entendimento – que tem tido acolhimento na própria jurisprudência deste Supremo ( vejam-se, por ex., os acs. de 17/4/08,no p. 08B351 e de 19/11/02, no p. 02A3442) – concorrem fundamentalmente dois motivos:
- a fixação dos montantes indemnizatórios devidos por danos não patrimoniais pressupor essencialmente um juízo equitativo, que se não reconduz à estrita resolução de uma «questão de direito», segundo critérios estritamente normativos, devendo competir essencialmente e em primeira linha às instâncias a formulação do juízo casuístico e prudencial que está na sua base ( cfr,v.g. , o ac. de 1/7/10, na revista 457/07);
- não se justificar a eliminação de um grau de jurisdição, de modo a ficar resolvida definitivamente a questão dos montantes indemnizatórios devidos, considerada prejudicada pela Relação, sem que esta ulteriormente possa apreciá-la e decidi-la, cabendo ainda, nos termos gerais, de tal decisão recurso para o Supremo – ao menos nos casos em que o recorrente, interessado na apreciação de tal matéria, não haja claramente prescindido do grau de jurisdição que resultaria inevitavelmente suprimido em consequência da aplicação da referida regra da substituição : ora, na situação dos autos, requereram expressamente os AA, na alegação apresentada na presente revista, que - procedendo esta no que respeita à matéria da imputação do acidente, - se ordene « a baixa dos autos à RELAÇÂO para conhecimento de tal recurso» subordinado, cujo teor se dá por integralmente reproduzido .

7. Nestes termos e pelos fundamentos apontadas:
a) concede-se em parte provimento à revista, de modo a ficar assente que ao condutor / comissário do veículo segurado é imputável, a título de culpa,
o sinistro, devendo a respectiva seguradora responder por 90% dos danos causados;
b) ao abrigo do preceituado no nº2 do art. 731º, conjugado com o nº2 do art. 715º do CPC, determina-se a remessa do processo à Relação, a fim de que , se possível pelos mesmos juízes, se proceda à apreciação da matéria, atinente à quantificação dos danos resultantes do acidente, face ao teor das alegações apresentadas pelas partes nos respectivos recursos de apelação, e que não chegou a ser apreciada em 2ª instância, em consequência da solução dada ao litígio, no que respeita à imputação de responsabilidades entre os intervenientes no acidente.
Custas pelas partes, em função do decaimento a final, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam os recorrentes.

Lisboa 21 de Outubro de 2010

Lopes do Rego (Relator)
Barreto Nunes
Orlando Afonso