Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
047772
Nº Convencional: JSTJ00029771
Relator: LOPES ROCHA
Descritores: SENTENÇA
MOTIVAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
ÂMBITO DO RECURSO
CONCLUSÕES
HEROÍNA
PERIGO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
CRIME DE PERIGO
QUANTIDADE DIMINUTA
Nº do Documento: SJ199605150477723
Data do Acordão: 05/15/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N457 ANO1996 PAG121
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Indicações Eventuais: BECCARIA DEI DELITI E DELLE PENE.
KANT CRÍTICA DA RAZÃO PURA ANOI TI PAG2.
Área Temática: DIR PROC PENAL - RECURSOS.
DIR CRIM - CRIM C/SOCIEDADE / CRIM C/PESSOAS.
Legislação Nacional:
Jurisprudência Nacional:
Sumário : I - É jurisprudência constante e solidamente estabelecida no S.T.J. que o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, a tal não obstando que se apreciem oficiosamente eventuais vícios da decisão ou nulidades.
II - Na motivação da decisão (sentença) não será bastante a indicação dos factos provados nem a dos meios de prova, enquanto fundamento daquela.
Sobre os factos há-de incidir um raciocínio lógico que consiste justamente numa operação de avaliação da aptidão dos mesmos para integração na norma ou normas de conteúdo geral e abstracto, em ordem a decidir se preenchem ou não as definições nela contidas.
Em linguagem comum, o dever do juiz é dizer: os factos são estes, a norma diz isto, logo servem ou não servem à adequação à norma.
III - O artigo 374, n. 2, do C.P.P. de 1987, como muitos outros preceitos do mesmo diploma legal, acusa a influência do C.P. Italiano, em concreto o seu artigo 546.
IV - Como é do conhecimento comum, a heroína, é uma das substâncias estupefacientes mais nocivas, pela dependência que cria e pelos malefícios a que conduz.
V - 5,102 grs de heroína não pode razoavelmente considerar-se uma quantidade diminuta.
VI - O tráfico de estupefacientes é um crime de perigo abstracto e a simples detenção da droga é comportamento proíbido, pela potencialidade do perigo que encerra.
VII - O perigo que a lei tem em vista com a incriminação da simples detenção não é afastado por não se ter provado que, na altura da sua detenção, o agente estivesse rodeado de consumidores ou que detivesse o produto à venda com o propósito de obter lucro.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1 - No Tribunal de Círculo de Portimão foi julgado o arguido A.., solteiro, pedreiro, natural de
Cabo Verde e residente em Portimão, com os restantes sinais dos autos, acusado pelo Ministério
Público da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no artigo 21, n. 1 do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro.
Pelo acórdão de folhas 76/79, com data de 18 de
Novembro de 1994, julgada parcialmente procedente a acusação, foi condenado como autor de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de dois anos e meio de prisão.
Não se conformou o Ministério Público com a decisão, dela interpondo recurso para este Supremo Tribunal, que motivou, concluindo:
1.1. Da fundamentação do acórdão recorrido não constam os motivos de facto da decisão;
1.2. Pelo que o aresto é nulo nos termos do artigo 374, n. 2, em conjugação com o artigo 120, primeira parte e com o artigo 379, alínea a), todos do Código de
Processo Penal;
1.3. Pois a única interpretação admissível à luz da letra e teleologia do artigo 374, n. 2, do Código de
Processo Penal é a de que esse preceito impõe, além da enumeração dos factos provados e não provados e da indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do tribunal, uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentaram essa decisão, sob pena de nulidade;
1.4. O artigo 374, n. 2, do Código de Processo Penal não pode ser interpretado restritivamente, pois dimana do dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais (artigo 208), cabendo-lhe a função de não permitir que a subjectividade degenere em voluntarismo.
Os motivos de facto da decisão, que não devem confundir-se nem com o thema decidendum nem com o thema probanduum, são constituídos pelo substrato racional que funda a convicção do tribunal quanto à matéria de facto;
1.5. A interpretação defendida do artigo 374, n. 2, do
Código de Processo Penal, além de ser a única compatível com a letra e a ratio dessa norma é imposta pelo princípio da interpretação em conformidade constitucional;
1.6. Pois atento o princípio do "duplo grau de jurisdição", caso o tribunal colectivo não tivesse, além de indicar os meios de prova, expor os motivos de facto da decisão, o artigo 410, n. 2, em conjugação com o artigo 474, n. 2, seria inconstitucional;
1.7. O acórdão deve pois ser declarado nulo e, em consequência, repetido e corrigido de molde a que na sua fundamentação se explicitem de forma clara os motivos de facto da decisão;
1.8. O acórdão recorrido deve em qualquer caso ser revogado, por força da incorrecta subsunção dos factos no artigo 25, do Decreto-Lei 15/93, pois no caso sub judice a ilicitude não se mostra consideravelmente diminuída;
1.9. Pelo que o arguido deve ser condenado por um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21, n. 1, do mesmo diploma, e, atento, designadamente, o artigo 72 do Código Penal, numa pena nunca inferior a 4 anos e 6 meses de prisão.
2 - O arguido não respondeu.
3 - Subidos os autos a este Supremo Tribunal e dada vista ao Ministério Público nos termos do artigo 410 do
Código de Processo Penal, efectuou-se o exame preliminar, que conclui pela propriedade do recurso, pela tempestividade da sua interposição e legitimidade do recorrente, enfim pela correcção do regime de subida e efeito, nada obstando ao seu conhecimento.
Seguiram-se os vistos e procedeu-se à audiência com estrita observância do formalismo legal.
Cabe agora apreciar e decidir.
4 - É jurisprudência constante e solidamente estabelecida deste Supremo Tribunal, que o âmbito de um recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (cfr. por todos e por último, o acórdão de 8 de Novembro de 1995,
Processo n. 48260).
Tal não obsta a que se apreciem oficiosamente eventuais vícios da decisão ou nulidades (Acórdão obrigatório de
19 de Outubro de 1995, publicado no D.R., I-A Série, de
28 de Dezembro de 1995).
As questões a resolver são, por conseguinte, a da nulidade do acórdão recorrido por infracção ao disposto no artigo 374, n. 2, do Código de Processo Penal, a da qualificação jurídico-penal dos factos e da medida da pena.
5 - Em sede fáctica, diz o acórdão impugnado que da prova produzida resultou:
5.1. No dia 23 de Junho de 1994, pelas 10 horas e 15 minutos, o arguido encontrava-se no Bairro do Palácio, sito em Portimão, quando foi abordado por uma brigada da P.S.P. desta cidade;
5.2. Na sua posse foram encontradas 42 doses individuais de heroína, 32 das quais, com o peso bruto de 5,524 gramas, foram-no dentro de uma embalagem de um maço de cigarros de marca SG Ventil que o arguido tinha na mão, e as dez doses restantes, com o peso bruto de
4,076 gramas, dentro de uma embalagem de um maço de cigarros de marca SG Gigante que o arguido tinha num bolso;
5.3. O peso líquido da heroína detida pelo arguido era de 5,182 gramas;
5.4. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente e, ao actuar da forma descrita, conhecia perfeitamente a natureza estupefaciente do produto que tinha em sua posse, bem sabendo que a compra, detenção, uso, oferta e venda do mesmo são proibidos por lei;
5.5. O arguido confessou os factos apurados, o que fez com algum relevo para a descoberta da verdade, e com demonstração de algum arrependimento;
5.6. É primário;
5.7. Trabalhava na altura em construção civil, como pedreiro, do que auferia 7500 escudos por dia de trabalho, tendo salários em atraso;
5.8. Tem o 5. ano de escolaridade e nacionalidade cabo-verdiana;
5.9. Vive com uma companheira e um filho de 7 anos de idade, sendo que a sua companheira, com o seu salário de empregada de bar, ajuda nas despesas domésticas;
5.10. Encontra-se em Portugal desde 1970, oriundo de uma família carenciada que emigrou de Cabo Verde;
5.11. Tem apoio da sua companheira;
5.12. Conta com uma muito deficiente situação económica.
O acórdão acrescenta que se provaram todos os factos constantes da acusação, excepto que o arguido, na altura da detenção estivesse procedendo à venda da heroína ou estivesse rodeado de consumidores de produtos estupefacientes, também não se tendo provado que destinasse o produto à venda de consumidores com o propósito de obter lucro.
6 - Vejamos agora, e seguindo a ordem das questões a decidir referidas em 4, se o acórdão recorrido enferma da nulidade a que se refere o artigo 375, alínea a) do
Código de Processo Penal referida ao artigo 374, n. 2, do mesmo Código. Aliás, o conhecimento deste meio de impugnação tem prioridade lógica sobre os restantes, dado que a verificar-se a referida nulidade, prejudicadas ficariam as questões da subsunção no tipo legal de crime e medida da pena.
A nulidade do acórdão provem, como foi relatado, no entender do Magistrado recorrente, de nele não constarem os motivos de facto da decisão.
Quanto a este ponto, não tem razão.
Tem havido um certo equívoco em torno da exacta injunção legal da fundamentação no tocante à exposição dos motivos de facto e de direito da decisão, potenciado pela teoria proposta pelo Meritíssimo Juiz
Marques Ferreira no estudo citado na motivação do presente recurso.
Pode pensar-se que tal equívoco resulta de a lei ter começado por impor uma enumeração dos factos provados e não provados e seguidamente exigir uma exposição, tanto quanto possível completa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.
Deste modo, a fundamentação não se contentaria com a referida enumeração e imporia aos julgadores que explicitassem os "elementos que em razão das regas da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência".
Esta teoria é perfeitamente defensável na parte em que diz não serem bastantes os factos provados nem os meios de prova, enquanto fundamento da decisão.
Sobre estes há-de incidir um raciocínio lógico que consiste justamente numa operação, demais conhecida, de avaliação da aptidão dos factos para integração na norma ou normas de conteúdo geral e abstracto, em ordem a decidir se as mesmas preenchem ou não as definições nelas contidas.
A isto se chama correctamente a operação de subsunção lógico-formal, que todo o julgador tem de fazer e a que não pode renunciar.
Dizendo de outro modo, e desde Peccaria, o dever do
Juiz consiste em examinar se tal homem praticou ou não uma acção contrária à lei. Daí o célebre silogismo que ele deve sempre observar: a premissa maior seria a lei geral, a menor, a acção conforme ou contrária à lei e a conclusão o castigo ou a absolvição do acusado. Se o juiz é compelido a fazer um raciocínio adicional ou o faz a seu alvedrio, tudo devém incerteza ou obscuridade
(dei delitti e delle pene, paragrafo IV).
Também desde Kant, subsumir consiste em aplicar um conceito ou uma categoria geral do entendimento a uma intuição sensível particular, de maneira que nisso haja um conhecimento ou um juízo; ou, mais precisamente, "se se define o entendimento em geral como o poder das regras, o juiz será o poder de subsumir nas regras, quer dizer decidir se uma coisa é ou não é submetida a uma dada regra (Crítica da razão pura, 1,1,2). Outra coisa não pode pensar-se quando a lei impõe que a sentença contenha os "motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão". Em linguagem comum, o dever do juiz é dizer: os factos são estes, a norma diz isto, logo servem ou não servem à adequação à norma.
Como em muitos preceitos do Código de Processo Penal em vigor, também o artigo 374 acusa visível influência do
Código de Processo Penal italiano, em concreto o seu artigo 546.
Mas aqui, não se contém uma injunção, pelo menos expressamente formulada, da enumeração prévia dos factos provados e não provados. O que esse preceito diz, e por aí se vê como o legislador nacional nele se inspirou, é que a sentença deve conter, além do mais,
"la concisa esposizione dei motivi di fatto e di diritto su cui la decisione é fundate, con l'indicazione delle prove poste a base della decisione atenta e l'enunciazone delle razioni per le quali il judice ritiene non attendibili le prove contrarie" (n.
1, alínea e)).
Perante esta disposição torna-se claro que os motivi di fatto são aqueles que a sentença tem de descrever, naturalmente em função das provas apreciadas, e os motivi di diritto são as razões de direito que o tribunal invoca para a qualificação jurídico-penal dos primeiros, seja para concluir pela sua adequação às normas, seja para decidir que tal adequação não se verifica.
Isto é, se os factos preenchem o tipo abstractamente descrito na norma incriminadora, em todos os seus elementos, objectivos e subjectivos e se, além disso, concorrem ou não causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Por conseguinte, não deve complicar-se, na exegese do artigo 374, n. 2, do Código de Processo Penal, aquilo que é perfeitamente claro e ver na exigência da exposição dos motivos de facto e de direito um mais que não se contenha na enumeração dos factos provados e consequente avaliação deles à luz da norma ou normas chamadas ou juízo subsuntivo, ou seja, se os factos preenchem ou não a enércia dessas normas.
A isto chamava a filosofia escolástica a recognitio.
Ora, o que é que fez o acórdão impugnado?
Descreveu os factos que conseguiu apurar e concluiu que os mesmos integravam os elementos essenciais do crime de tráfico de estupefacientes, praticado em autoria material e sob dolo directo, embora tenha perfilhado uma concepção diferente da da acusação considerando que eles preenchiam o crime do artigo 25 do Decreto-Lei n.
15/93, de 22 de Janeiro.
Mas isso é outra questão, que releva da correcção do juízo substantivo e não de qualquer vício de falta de fundamentação: com efeito, trata-se aí de uma questão de qualificação jurídico-penal dos factos apurados que nada tem a ver com a falta de indicação aos motivos de facto e de direito e que apreciaremos mais adiante.
Improcede, por conseguinte, o primeiro meio de impugnação deduzido, baseado na violação do n. 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal e, consequentemente, não podemos concordar com a crítica feita, nessa parte, ao acórdão impugnado.
7 - Passemos, então, à análise do meio seguinte, que discute o bem fundado da qualificação jurídica dos factos.
Entendeu o acórdão recorrido que a factualidade apurada preenchia o tipo legal do artigo 25 do Decreto-Lei n.
15/93, considerando a quantidade e a qualidade do produto estupefaciente detido pelo acusado e o disposto no artigo 26, n. 3, do mesmo diploma, que limita a punição pelo tráfico para consumo dos casos em que o agente seja encontrado na detenção de substâncias cuja quantidade exceda o necessário para o consumo por cinco dias, e argumentando que este dispositivo de algum modo pode servir de parâmetro na aferição daquela quantidade a que o legislador faz, se bem que de forma não automática, corresponder uma manifestação de menor ilicitude.
A seguir, invoca que se desconhece para que fim destinava o arguido a droga que lhe foi encontrada e as circunstâncias em que a arranjou ou detinha.
Enfim, diz que a quantidade de droga detida não pode, face ao artigo 25, deixar de se considerar pouco relevante, facto que, conjugado com o desconhecimento de quaisquer especiais circunstancialismos que hajam rodeado a detenção faz considerar que o tráfico levado a cabo é de menor gravidade.
Esta fundamentação de direito não pode merecer a nossa concordância.
Com efeito, o tráfico de menor gravidade previsto e punido no citado artigo 25 pressupõe que a ilicitude do facto se mostre consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meio utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
A qualidade da substância detida pelo arguido não pode servir para um juízo de menor ilicitude do facto que aliás, a lei exige que seja "considerável".
É do conhecimento comum que a heroína é uma das substâncias estupefacientes mais nocivas, pela dependência que cria e pelos malefícios a que conduz, como se ponderou, entre outros, no acórdão deste
Supremo Tribunal de 5 de Abril de 1995, no Processo n.
47751, onde se acrescenta: "Aquela substância opiácia, de grande toxidade, deriva da morfina que, por sua vez, provém do ópio. O seu uso está interdito para fins médicos. Produz habituação rápida e as suas consequências são rapidamente perniciosas, tanto para o dependente como para a Sociedade. Essa substância, também conhecida por cavalo entre os consumidores, é considerada, entre estes e cientificamente, a mais perigosa das drogas clássicas" (Segue-se a citação de literatura da especialidade).
Por conseguinte, em tema de "qualidade" temos desde logo uma contra indicação nítida à subsunção do facto no artigo 25 do Decreto-Lei n. 15/93.
Relativamente à "quantidade", o peso líquido da droga detida pelo arguido cifrou-se em 5,182 gramas (cf. supra, ponto 5.3).
Atendendo ao potencial intoxicante desta droga, tal quantidade não pode razoavelmente considerar-se como diminuta.
Como justamente se ponderou no acórdão de 18 de Outubro de 1995, deste Supremo Tribunal (Processo n. 48077), que se indica a título de exemplo (outro há no mesmo sentido), face ao artigo 24, ns. 1 e 3 do Decreto-Lei
430/83, de 13 de Dezembro, entendia-se como quantidade diminuta de estupefacientes a que não excedia o necessário para o consumo individual durante um dia. E segundo a jurisprudência, a quantidade necessária para o consumo individual médio diário deveria fixar-se em torno de um grama e meio.
A lei vigente deixou de falar em tráfico de quantidades diminutas para passar a referir o tráfico de menor gravidade, não especificando a quantidade limite de estupefaciente para os factos se subsumirem no artigo
25, alínea a).
Se se entender que é de apelar ao que deriva do artigo
40, n. 2 - prossegue o acórdão - quantidade que não exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de três dias - é de concluir que a quantidade detida pelo agente, quando roça os 5,477 gramas, excede o limite máximo para o tráfico poder considerar-se de menor gravidade.
No acórdão recorrido usou-se como parâmetro quantitativo o critério legal do n. 3 do artigo 25,
"consumo médio individual durante o período de cinco dias".
Mas esqueceu-se que aquele artigo encerra um tratamento privilegiado para a categoria do "traficante-consumidor", quando actua com a "finalidade exclusiva", de conseguir plantas, preparados ou substâncias para "uso pessoal".
Esta situação não é comparável com a do arguido nestes autos, relativamente ao qual se não provou que a heroína se destinasse para uso pessoal e que essa fosse a finalidade exclusiva.
Daí que o critério do artigo não seja extrapolável para as restantes modalidades do tráfico.
Tem razão, por isso, o Magistrado recorrente quando se insurge contra a qualificação dos factos imputados ao arguido e provados na audiência, como preenchendo o ilícito do artigo 25 do Decreto-Lei n. 15/93.
E não vale argumentar, como se fez no acórdão recorrido, que se desconhece o fim a que o arguido destinava a droga nem as circunstâncias em que a arranjou ou detinha.
Tratando-se, como é constantemente recordado na doutrina e na jurisprudência, de um crime de perigo abstracto, a simples detenção já é um comportamento proibido e punido, pela potencialidade de perigo que encerra. A experiência mostra que ninguém detém ou transporta droga para seu deleito ou por mera curiosidade cientifica, independentemente de ulterior destinação, para mais tratando-se de uma substância, como a heroína, que atinge valores elevados no comércio ilegal, fora do alcance de pessoas de escassos recursos
(deu-se como provado que o arguido era pessoa de muito deficiente situação económica).
O perigo que a lei tem em vista com a incriminação da simples detenção não é afastado por não se ter provado que, na altura da detenção do arguido pela polícia, estivesse rodeado de consumidores ou que destinasse o produto à venda com o propósito de obter lucro.
Logo, a factualidade descrita preenche o tipo legal do artigo 21 n. 1 do Decreto-Lei n. 15/93.
Resta ver agora qual a pena que concretamente lhe deve ser aplicada.
A moldura penal tem o limite mínimo de 4 e o máximo de
12 anos de prisão.
Atendendo aos critérios do artigo 72 do Código Penal em vigor ao tempo dos factos (hoje, artigo 71, na versão do Decreto-Lei n. 48/95, de 15 de Março, sem alterações substanciais), temos que, a seu favor, apenas se provou a confissão dos factos, com algum relevo para a descoberta da verdade e com demonstração de algum arrependimento e o facto de ser primário.
Isto mostra que a confissão não teve aquele grau de relevância que mereça um juízo atenuativo particular, até porque foi surpreendido em flagrante pela polícia, ou seja em condições que dificilmente, se não de todo impossível, negar perante o facto. Mas poderia certamente ser valorada de outro modo, em seu benefício, se tivesse revelado onde e como adquiriu a droga e o que se propunha fazer com ela e, perante a factualidade apurada, só ele poderia (podia) fazê-lo.
Também o arrependimento não foi considerado com aquele grau que fizesse supor uma atitude de repúdio pelo facto praticado e convencesse de uma renúncia a futura conduta da mesma natureza (cf. a restrição do acórdão quando fala em "algum arrependimento", o que não equivale a um arrependimento completo e sincero).
A sua situação económica e familiar, embora modestas, não revelam carências de tal modo relevantes que consintam uma compreenção de algum modo atendível para diminuir a culpa.
Actuou com dolo directo, bem sabendo do carácter ilícito da sua conduta e agindo com vontade livre e consciente.
A ilicitude do facto, não sendo de grau elevado, também não é diminuta, como acima se ponderou.
Dos sentimentos e fins e motivos que o determinaram, nada se apurou de concreto, naturalmente porque omitiu qualquer circunstância que permitisse ao tribunal chegar a conclusões favoráveis.
O ser um delinquente primário não constitui, em si, uma atenuante de relevo, tendo em conta a particular gravidade do comportamento. E quanto à personalidade, nada se apurou de concreto, mas neste caso em seu favor, por não se mostrar que lhe possa ser imputada falta de preparação para manter conduta lícita que deva ser consumada através da aplicação de uma pena.
Tudo ponderado, entende-se que lhe deve ser aplicada uma pena na medida mínima do tipo legal de crime, isto
é, de quatro anos de prisão.
Este quantum de pena antolha-se-nos proporcional à culpa revelada e susceptível de satisfazer as exigências de prevenção, geral e especial, na base de um propósito favorável de bom comportamento futuro, que
é de arriscar, pois nada sugere que se trate de um delinquente com inclinação para o crime, podendo aceitar-se que se trata de um ocasional a quem a pena aplicada poderá constituir advertência bastante para que não volte a cometer crimes.
8 - Pelo exposto, dizendo que não foi violado o disposto no artigo 374, n. 2, do Código de Processo
Penal mas que procedem as conclusões da motivação no que respeita ao enquadramento jurídico-penal dos factos e à medida da pena, neste caso em parte; e entendendo que o arguido, por eles, deve ser considerado autor de um crime previsto e punido pelo artigo 21, n. 1, do
Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, concedem parcial provimento ao recurso, condenando-o na pena de quatro anos de prisão, no mais confirmando a decisão recorrida.
Não é devida tributação.
Fixam-se em 7500 escudos os honorários da Senhora defensora oficiosa, a adiantado pelos Cofres.
Lisboa, 15 de Maio de 1996
Lopes Rocha,
Augusto Alves,
Andrade Saraiva,
Leonardo Dias.
Decisão impugnada:
Acórdão de 18 de Novembro de 1996 de Portimão.