Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO DA SILVA GONÇALVES | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE CONTRATUAL ADVOGADO CONTRATO DE MANDATO SEGURO DE RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL SEGURO OBRIGATÓRIO SEGURO DE GRUPO APÓLICE DE SEGURO CLÁUSULA CONTRATUAL INTERPRETAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 12/14/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / SEGURO DE GRUPO - SEGURO OBRIGATÓRIO / SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL DE ADVOGADO. ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - ESTATUTOS PROFISSIONIAS / ADVOGADOS / DEONTOLOGIA PROFISSIONAL / RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL. | ||
Doutrina: | - Almeida Costa, in R.L.J., 129, 20; Obrigações, 104. - Antunes Varela, Obrigações, II, 375. - Galvão Telles, Obrigações, 99. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 427.º, 443.º, N.º1. CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGOS 426.º, §7. CÓDIGO DEONTOLÓGICO DOS ADVOGADOS DA UNIÃO EUROPEIA, APROVADO PELO CONSELHO GERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS - DELIBERAÇÃO N.º 2511/2007 OA (2.ª SÉRIE), DE 27 DE DEZEMBRO DE 2007. DEC.- LEI N.º 176/95, DE 26-07: - ARTIGO 1.º, N.º1, AL. G). DECRETO-LEI N.º 72/2008, DE 16 DE ABRIL: - ARTIGOS 76.º A 90.º, 101.º, N.º4. ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS - LEI N.º 145/2015, DE 9 DE SETEMBRO: - ARTIGO 104.º, N.º1. LEI N.º 15/2005, DE 26 DE JANEIRO (NA REDAÇÃO QUE LHE FOI DADA PELO DECRETO-LEI N.º 226/2008, DE 20 DE NOVEMBRO). | ||
Sumário : | I - O seguro de responsabilidade civil de advogado estabelecido no n.º 1 do art. 104.º do EOA é de natureza obrigatória. O elemento filológico de interpretação tirado do sentido das palavras que integram o texto descrito no n.º 1 do art. 104.º do EOA e também a “ratio” que superintendeu à redacção deste texto normativo, apontam no sentido da obrigatoriedade do seguro do advogado no exercício do seu cargo, mais precisamente que tem natureza imperativa o seguro de responsabilidade civil do advogado prescrita no seu estatuto. II - O contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, celebrado entre a ré/recorrente “M… Seguros, S.A” e a Ordem dos Advogados, garantindo a indemnização de prejuízos causados a terceiros pelos advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados que exerçam actividade em prática individual ou societária, configura um contrato de seguro de grupo. III - Tomando o que se dispõe no ponto 7. das condições particulares da apólice, a propósito do seu “âmbito temporal”, dele depreendemos em termos genéricos que, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, estão abrangidos por este seguro todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro. IV - Contrapondo-o à apólice de ocorrência (para fins de indemnização o facto causador do dano ou prejuízo a terceiros deve ocorrer durante a vigência do contrato), podemos afirmar que estamos perante uma apólice de reclamações, também chamada “claims made” (“reclamação feita”), que condiciona o pagamento da indemnização à apresentação da queixa de terceiros durante o prazo de validade (vigência) do contrato e que possibilita a extensão da cobertura por um determinado período anterior ao início do contrato. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça O autor AA, residente em rua ... 78, Porto, instaurou acção, com processo comum e sob a forma ordinária, contra a Dr.ª BB, advogada, com escritório na Rua …, 116, 1º andar, sala …, Porto e “CC - Seguros Gerais, S.A..”, com sede na Rua …, Lisboa, alegando: - Em 2 de Fevereiro de 2013, o autor foi citado para os termos de uma acção com processo experimental nos termos do decreto-lei n.º 108/ 2006, com o n.º 2145/125, do 3º Juízo cível do Porto, intentada por DD e EE, respectivamente irmão e irmã do aqui autor. Na referida acção, decorrente do processo de inventário, alegando uma apropriação de verbas por parte do autor, reclamaram aqueles autores ao ora demandante, o reconhecimento de especificada compensação referente ao valor das tornas que estes estavam obrigados a pagar ao autor e pelo valor de 14070,00 € cada um dos irmãos do autor e pediram, ainda, o pagamento da quantia de 5787,54 € cada um. A ora ré foi nomeada no referido processo a patrona do autor, ao abrigo do regime do apoio judiciário, para assumir a sua defesa, o que fez. A ré Dr.ª BB fez entrar a contestação 40 dias após a data em que ocorreu a notificação da nomeação de patrono, o que determinou que fosse considerada como extemporânea a contestação apresentada e ordenado o seu desentranhamento dos autos por despacho datado de 28 de Novembro de 2013. Foram julgados confessados os factos e, em conformidade com tal despacho que julgou confessados os factos e transitou em julgado, veio o réu a ser condenado no pedido, ou seja, no reconhecimento da compensação e ainda no pagamento da quantia de 5787,54 € a cada um dos seus irmãos, por decisão datada de 12 de Fevereiro de 2014. O autor, atendendo aos juros vencidos no decurso da acção e devidamente reclamados, pagou a cada um dos seus irmãos a quantia de 6660,28 €. A primeira ré Dr.ª BB, por carta de 6 de Maio de 2014, informou o autor de que tinha procedido à participação do sinistro à seguradora, aqui segunda ré, a qual, por carta datada de 23 de Junho, comunicou que, por força de participação intempestiva do sinistro, declinava a responsabilidade daí decorrente. Mais reclama a quantia de 5000,00 € a título de dados não patrimoniais. Terminou pedindo que deverá a primeira ré ser condenada no pagamento da quantia de 41460,56 €, a título de danos patrimoniais, acrescida dos juros desde a presente data e até efectivo e integral pagamento e se vencerem à taxa supletiva legal e, bem assim, de quantia nunca inferior a 5000,00 € a título de danos não patrimoniais, acrescida esta dos juros devidos desde a data de citação até efectivo integral pagamento e condenada, solidariamente, a ré seguradora no pedido, dentro dos limites da apólice de seguro contratada. A ré “CC - Seguros Gerais, S.A..” contestou alegando, designadamente e para o que interessa neste recurso: - A situação jurídica em discussão nos presentes autos, no que respeita à ré, assenta num contrato de seguro de responsabilidade civil profissional celebrado entre a “CC Seguros Gerais” e a “Ordem dos Advogados” e titulado pela apólice de seguro 600…, sendo que, em tal apólice, foram indicados como segurados “advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados que exerçam actividade em prática individual ou societária, por dolo, erro, omissão ou negligência profissional” (cfr. condições particulares da apólice junta como doc. 1). Nos termos definidos nas condições especiais do contrato a ora ré assumiu, perante o tomador, a cobertura do riscos inerentes ao exercício da actividade de advocacia, conforme regulado no Estatuto da Ordem dos Advogados, garantindo eventual pagamento de indemnizações resultantes da responsabilização civil dos segurados, em decorrência de erros e/ou omissões profissionais ocorridas no exercício da sua actividade. Invoca ainda esta ré a exclusão do pré-conhecimento do sinistro, prevista na alínea a), do art.º 3, das Condições Especiais da Apólice, ou seja que, nos termos dela ficam expressamente excluídos da cobertura das apólices as reclamações "por qualquer facto ou circunstância conhecida da seguradora à data do início do período seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar reclamação", que o primeiro contrato de seguro entre a contestante e a Ordem dos Advogados com o número de apólice 600…, foi celebrado com data de início de Janeiro de 2014, que o autor imputa à Ré advogada a apresentação extemporânea da contestação na acção contra si deduzida pelos seus irmãos e herdeiros na herança aberta por óbito de FF, que por despacho datado de dois de Julho de 2013, foi a ré advogada notificada do indeferimento do requerimento de prorrogação do prazo para apresentação de contestação, por si requerido, que por despacho datado de 28 de Novembro de 2013, foi a ré advogada notificada, do desentranhamento da contestação por si apresentada, pelo que tendo em consideração que a ré advogada incorreu em acto ou omissão ilícita geradora de responsabilidade civil, tem a mesma conhecimento da sua omissão com a notificação do desentranhamento da contestação, notificação essa ocorrida pelo menos, no dia 2 de Dezembro de 2013, conclui esta ré/recorrida, que a resultarem provadas as omissões apontadas à ré advogada, tendo as mesmas ocorrido anteriormente de Janeiro de 2014, sendo os factos consubstanciadores da pretensa responsabilidade da ré advogada conhecidos da mesma, pelo menos, desde 2 de Dezembro de 2013, encontra-se o sinistro excluído da cobertura da referida apólice. O autor respondeu alegando que a excepção invocada representa um contra-senso no âmbito da apólice de seguro de responsabilidade civil da Ordem dos Advogados, dado que a modalidade contratada é no sistema de «claims made», ou seja, é a reclamação que define a apólice competente e não a participação do sinistro, não sendo a eventual excepção a operar entre as partes, oponível ao autor. Foi proferida decisão que julgou procedente a excepção peremptória invocada e, consequentemente, absolveu do pedido a ré “CC - Seguros Gerais, S.A..” Inconformada com esta decisão, dela apelou a ré Dr.ª BB para a Relação do Porto - com subida em separado - que, por acórdão de 03.05.2016 (cfr. fls. 272 a 282), julgando procedente a apelação, revogou a sentença recorrida e, em consequência, julgou improcedente a excepção peremptória invocada pela ré seguradora. Desagradada, deste acórdão recorre agora para este Supremo Tribunal a ré “CC - Seguros Gerais, S.A..”, que alegou e concluiu pelo modo seguinte: i. Do acórdão proferido pelo Tribunal a quo, resulta claro que este, assumindo tratar-se o contrato de Seguro sub judice de um Seguro Obrigatório, o que não se aceitando aqui se equaciona por dever de patrocínio, sustenta a inaplicabilidade da exclusão de pré-conhecimento invocada pela Apelante CC prevista na alínea a) do artigo 3.º das condições especiais do seu contrato de seguro, com fundamento na aplicação do artigo 101.º n.º 4 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o qual prevê a inoponibilidade aos lesados, em caso de seguro obrigatório, do incumprimento de participação do sinistro a cargo do Segurado. ii. Salvo o devido respeito, carece em absoluto a posição do Tribunal a quo de fundamento legal, a irrelevância da pretensa natureza obrigatória do Seguro sub judice para a aplicação da exclusão de pré-conhecimento prevista nesse contrato na alínea a) do artigo 3.º das condições especiais da apólice, na qual o Tribunal a quo funda a absolvição da Apelada do pedido. iii. Nos termos da alínea a) do artigo 3.º das condições especiais da apólice sub judice ficam expressamente excluídas da cobertura da apólice as reclamações "por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado à data do início do período seguro, e que já tenha gerado ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação". iv. Não obstante inserida no capítulo da Apólice dedicado às Exclusões, sendo assim impropriamente designada de exclusão (sendo não obstante o supra alegado e atenta a estruturação da decisão recorrida aqui designada por exclusão), a disposição sub judice (pré-conhecimento) assume a natureza de disposição delimitadora do objecto da Apólice (por clarificadora da disposição de retroactividade temporal) limitando-se o seu âmbito de cobertura aos factos geradores de responsabilidade civil que tendo sido cometidos em data anterior ao termo do período de vigência da apólice, sejam desconhecidos do Segurado em data anterior ao inicio do período de vigência dessa mesma apólice. v. Dos artigos 100.º e 101.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, resulta limitar-se o seu âmbito de aplicação ao incumprimento da obrigação a cargo do segurado de participação de sinistro na vigência do contrato de seguro, âmbito esse que, como se tem por manifesto, não engloba a exclusão prevista na alínea a) do artigo 3.º das condições da apólice, a qual regula os "sinistros" conhecidos pelo Segurado em data anterior ao início do período seguro, não impondo ao segurado, (como em face do seu objecto não poderia impor) qualquer ónus de participação do sinistro. vi. A exclusão do sinistro da cobertura da apólice, não resulta de "qualquer relação estabelecida entre tomador de seguro e/ou segurado ou do tomador de seguro de deveres contratualmente fixados" como sustentado na decisão sub judice. vii. A evidência do distinto âmbito de aplicação das disposições em apreço, resulta da constatação de que, mesmo que comunicados à Recorrente, na data do início do período Seguro, os factos e circunstâncias conhecidas do segurado que já tivessem ou pudessem vir a gerar reclamação, o sinistro em causa se encontraria excluído da cobertura da apólice, por pré-conhecidos. viii. Como se tem por inequívoco, não poderá a exclusão em causa ser reconduzida a um incumprimento de uma obrigação, quando o facto consubstanciador da exclusão é prévio à fonte das obrigações assumidas pelas partes, rectius, à celebração do contrato de seguro sub judice. ix. Não sendo aplicável, à "exclusão" prevista na alínea a) do artigo 3.º das condições especiais da apólice, o previsto no n.º 4 do artigo 101.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, é, novamente com o devido respeito, irrelevante para a sua aplicação a pretensa natureza obrigatória do contrato de seguro, sendo, consequentemente, despiciendas as considerações vertidas pelo Venerando Tribunal a quo sobre tal matéria. x. Sendo certo que a omissão incorrida pela Recorrida (apresentação extemporânea de contestação) não poderá ser qualificada como actuação não excepcional (ao contrário por exemplo da renuncia de inquirição de testemunhas), mesmo que se equacione a natureza obrigatória do Seguro sub judice, resulta a aplicabilidade da “exclusão” alegada pela Recorrente à omissão imputada à Recorrida. xi. Em face de tudo quanto se expos, resulta a manifesta procedência do recurso interposto pela Recorrente, devendo em consequência ser proferida decisão que, revogando a decisão proferida pelo Tribunal a quo, mantenha a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, na parte em que a mesma julgou procedente a excepção peremptória de pré-conhecimento invocada pela Recorrente. Termina pedindo que seja proferida decisão que julgue procedente a exclusão de pré-conhecimento invocada pela recorrente. Contra-alegou a recorrida/autora a Dr.ª Ana Luísa pedindo a manutenção do julgado. Corridos os vistos legais cumpre decidir. ========================== 1. Nesta ação pretende o autor AA ser ressarcido dos prejuízos que lhe advieram (€ 41460,56 a título de danos patrimoniais e de € 5000,00 a título de danos não patrimoniais) em consequência de a ré Dr.ª BB (advogada), nomeada patrona do autor na ação n.º 2145/125/3º Juízo cível do Porto (decorrente do processo de inventário), ter neste processo apresentado extemporaneamente a sua contestação, o que determinou o seu desentranhamento dos autos e, consequentemente, julgados confessados os factos contra si articulados, ter sido o réu (ora autor) condenado no pedido. Fundamenta o demandante a responsabilidade civil da ré “CC - Seguros Gerais, S.A..” na circunstância de esta seguradora ter celebrado particularizado contrato de seguro com a “Ordem dos Advogados”, titulado pela apólice n. º 600…. (Seguro de Grupo de Responsabilidade Civil Profissional dos Advogados) e que a abrange todos os Advogados com inscrição na “Ordem dos Advogados”. A ré “CC - Seguros Gerais, S.A..” nega a sua responsabilidade no evento praticado pela Ex. ª Advogada do réu e lesivo dos direitos do autor, argumentando: Conferindo as Condições Particulares da Apólice 600…, estão expressamente excluídas da cobertura da apólice - artigo 3.°, al. a) - as reclamações por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data do início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação. A resultarem provadas as omissões apontadas à ré advogada, tendo as mesmas ocorrido anteriormente a Janeiro de 2014 e sendo os factos consubstanciadores da pretensa responsabilidade da ré advogada conhecidos da mesma, pelo menos, desde 2 de Dezembro de 2013, encontra-se o sinistro excluído da cobertura da apólice 6001391100058. 2. A sentença proferida em 1.ª instância julgou procedente a exceção peremptória invocada pela ré/seguradora e, consequentemente, absolveu-a do pedido com este fundamento: - Ficam expressamente excluídas da cobertura da apólice, nos termos do artigo 3.°, al. a) das Condições Particulares da Apólice 600…, as reclamações por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data do início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação. Ora, os factos invocados na presente ação ocorreram em 2013 e a ré teve conhecimento dos mesmos no dia 2/12/2013, com a notificação do despacho proferido em 28/11/2013 no proc. 2145/12.5TJPRT, do 3.º Juízo Cível, que ordenou, por extemporânea, o desentranhamento da contestação; - O contrato de seguro celebrado entre a ré “CC - Seguros Gerais, S.A..” e a Ordem dos Advogados teve início no dia 1 de janeiro de 2014 e, por isso, a reclamação efetuada pela ré/segurada à ré/seguradora encontra-se excluída da cobertura do contrato celebrado. Outro é o entendimento da Relação. Conferindo o disposto no n.º 3 do art.º 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados - que prevê expressamente que possa/deva ser accionado um seguro (de grupo) cuja celebração compete à Ordem dos advogados - o contrato de seguro celebrado entre a Ordem dos Advogados (tomador de seguro) e a seguradora/ré, porque nele estão segurados todos os advogados inscritos na ordem e beneficiários os respectivos clientes, é um contrato de seguro obrigatório (seguro de grupo). Não se retira do preceituado no n.º 3 do art.º 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados que o Ordem dos Advogados tenha liberdade ou não de celebrar o referido seguro (de grupo); ao invés, o legislador pressupõe a outorga desse contrato, sem prejuízo da conformação que esta entidade possa dar ao contrato, ressalvada a exigência alusiva ao capital seguro (mínimo de 50000,00 €). Tratando-se de aferir a responsabilidade da ré/seguradora no âmbito de um seguro de grupo celebrado com a Ordem dos Advogados, não são oponíveis ao lesado (beneficiário), que é alheio a essa relação contratual, as excepções de direito material fundadas na relações estabelecidas entre tomador do seguro e/ ou segurado e a seguradora, quando aqueles excepções se prendem com o incumprimento por parte do segurado ou do tomador de seguro de deveres contratualmente fixados, sem prejuízo do exercício do direito de regresso por parte da seguradora, verificado o respectivo condicionalismo legal e/ ou contratual, actualmente o art.º 101, n.º 4, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (RJCS) Neste enquadramento legal a Relação julgou improcedente a excepção peremptória invocada pela ré/seguradora. 3. É contra este entendimento que a recorrente reage. A ré “CC - Seguros Gerais, S.A..” nega a sua responsabilidade no evento praticado pela Ex. ª Advogada do réu e lesivo dos seus direitos, argumentando assim: - Nos termos da alínea a) do artigo 3.º das condições especiais da apólice sub judice ficam expressamente excluídas da cobertura da apólice as reclamações "por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado à data do início do período seguro, e que já tenha gerado ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação"; a disposição sub judice (pré-conhecimento) faz limitar o seu âmbito de cobertura aos factos geradores de responsabilidade civil que, tendo sido cometidos em data anterior ao termo do período de vigência da apólice, sejam desconhecidos do segurado em data anterior ao inicio do período de vigência dessa mesma apólice. 2. Não sendo aplicável, à "exclusão" prevista na alínea a) do artigo 3.º das condições especiais da apólice, o previsto no n.º 4 do artigo 101.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, é irrelevante para a sua aplicação a pretensa natureza obrigatória do contrato de seguro. Vejamos se lhe assiste razão. ============================= I. Dispõe o n.º 1 do art.º 104.º (responsabilidade civil profissional) do Estatuto da Ordem dos Advogados - Lei n.º 145/2015 de 9 de setembro - que “o advogado com inscrição em vigor deve celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional tendo em conta a natureza e âmbito dos riscos inerentes à sua atividade, por um capital de montante não inferior ao que seja fixado pelo conselho geral e que tem como limite mínimo (euro) 250 000, sem prejuízo do regime especialmente aplicável às sociedades de advogados e do disposto no artigo 38.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro”. Preconiza este normativo estatutário a obrigatoriedade de o Advogado haver de se assistir de um seguro funcional que o acompanhe na sua atividade profissional. Compreende-se que assim seja; havendo lugar a indemnização por danos praticados no âmbito da responsabilidade civil contratual, designadamente por negligência de Advogado no cumprimento das suas obrigações integradas no mandato judicial - o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor (art.º 798.º do Código Civil) - justifica-se que o legislador tenha devotado a este tema o devido cuidado legislativo, impondo que seja assegurado ao mandatário judicial a indispensável segurança no cumprimento do seu mandato, desta feita lhe impondo que o risco da sua função seja aliviado através da proteção que sempre lhe acederá um seguro de responsabilidade civil profissional. Esta tomada de atitude visa, essencialmente, não só proteger o Advogado no exercício do seu delicado ofício de colaborador da justiça, mas também apoiar o cidadão, seu constituinte, contra a falta de zelo do seu patrono judicial, que igualmente ficará resguardado das atitudes menos diligentes operadas pelo seu Advogado. Numa sociedade baseada no respeito pelo primado da lei, o advogado desempenha um papel especial. O advogado deve servir o propósito de uma boa administração da justiça ao mesmo tempo que serve os interesses daqueles que lhe confiaram a defesa e afirmação dos seus direitos e liberdades. O respeito pela função do advogado assume-se como uma condição essencial para a garantia do Estado de Direito Democrático (Preâmbulo do Código de Deontologia dos Advogados Europeus). O elemento filológico de interpretação tirado do sentido das palavras que integram o texto descrito no n.º 1 do art.º 104.º do EOA -…o advogado com inscrição em vigor deve celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional…- aponta no sentido da obrigatoriedade do seguro do Advogado no exercício do seu cargo, mais precisamente que tem natureza imperativa o seguro de responsabilidade civil do advogado prescrito no seu estatuto. Se assim não fosse, em lugar do termo “deve” (está obrigado) o legislador teria recorrido ao vocábulo “pode” (direito de deliberar, agir, mandar); e só nesta última locução se poderia retratar o sentido de que o seguro de responsabilidade civil de advogado é de natureza facultativa. Também a “ratio” que superintendeu à redação daquele texto normativo se projeta em exigir do Advogado, cuja atividade profissional envolve o risco de incumprimento de prazos e de outras delicadas tarefas processuais, a necessidade de se fazer acompanhar de seguro obrigatório, capaz de garantir a sua responsabilidade praticada nos atos de que a parte o incumbiu. Tomando as rédeas da teleologia que está por detrás da norma interpretanda, a opção a tomar neste domínio não pode orientar-se de forma a seguir o desaconselhável rumo de que o seguro de responsabilidade civil de Advogado é de natureza facultativa e só será obrigatório nos casos em que o advogado pretenda limitar a sua responsabilidade. O seguro de responsabilidade civil de advogado estabelecido no n.º 1 do art.º 104.º do EOA é de natureza obrigatório. O Código Deontológico dos Advogados da União Europeia, aprovado pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados (Deliberação n.º 2511/2007 OA (2.ª série), de 27 de Dezembro de 2007), ao prescrever que os Advogados devem manter sempre um seguro contra queixas com base na negligência profissional, dentro de um limite razoável, tendo em conta a natureza e o âmbito dos riscos em que podem incorrer no exercício da sua actividade (3.9.1) e, no caso de não ser possível ao Advogado obter um seguro em conformidade com as regras do Código Deontológico da CCBE, deve informar desse facto os seus clientes (3.9.2.4), confere a autoridade que “ex abundante” se evoca para tornar efetivo este entendimento. A este propósito lembramos, ainda, que a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões contém o seguro de responsabilidade civil de advogado na listagem de seguros obrigatórios em vigor na ordem jurídica portuguesa (Advocacia - Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro (na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro). Contra este entendimento não colhe a motivação retirada do disposto no n.º 3 do art.º 104.º do EOA[1]. Na verdade, o que deste dispositivo se depreende é que, muito embora o Advogado esteja obrigado a fazer-se proteger por individualizado seguro obrigatório (n.º 1 do art.º 104.º), este posicionamento profissional não o vai impedir da prerrogativa de, caso não tenha cumprido este funcional dever, outrossim beneficiar do seguro (de grupo) que a Ordem dos Advogados, sem mais, lhe atribui e que é suscetível de proteger, nos moldes tipificados pela AO, a sua causídica carreira. Estas duas descrições normativas não se contrariam e antes se completam. II. Contrato de seguro é a convenção por virtude da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado), a assumir um risco ou conjunto de riscos e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.[2] Ao segurado exige-se-lhe o cumprimento da obrigação de, atempadamente, pagar o atinente prémio de seguro nos termos definidos pela respectiva apólice (cfr. arts. 426º, §7º e 427º, do Código Comercial) e à seguradora incumbe o dever de satisfazer os compromissos tipificados no contrato. Dispõe o n.º 1 do art.º 443.º do C.Civil que "por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se “promitente” a parte que assume a obrigação e “promissário” o contraente a quem a promessa é feita". Caracteriza este normativo legal a figura do “contrato a favor de terceiro” definido como aquele em que um dos contraentes (o promissário) obtém do outro (o promitente) a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro estranho ao negócio (o destinatário). Neste enquadramento jurídico-positivo é relevante o facto de o promissário agir em nome próprio e também a circunstância de o terceiro não ser um simples destinatário da prestação, pois que adquire um direito de crédito autónomo. Distingue-se dos falsos ou impróprios contratos a favor de terceiro na consideração de que com estes visa-se apenas dar ao promissário o direito de exigir que o promitente faça a prestação a terceiro sem que o terceiro beneficiário adquira crédito algum, podendo apenas receber a prestação.[3] Essencial ao contrato a favor de terceiro, como figura típica autónoma, é que os contraentes procedam com intenção de atribuir, através dele, um direito (de crédito ou real) a terceiro ou que dele resulte, pelo menos, uma atribuição patrimonial imediata para o beneficiário;[4] e o beneficiário fica investido no direito por força do contrato, sem necessidade de manifestar a sua vontade no sentido de o aceitar - é uma aquisição automática, ipso jure.[5] O seguro de grupo, agora planificado nos artigos 76.º a 90.º do Dec. Lei n.º 176/95, de 26/07, baseia-se num seguro de pessoas ligadas entre si e ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum - al. g) do art. 1.º - abrangendo um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo que não seja o de segurar - art. 76.º). Deixa de ser necessária a existência de um vínculo ou interesse comum entre os segurados; o que para tanto se torna exigível é que o vínculo se verifique relativamente ao tomador do seguro. O contrato de seguro de grupo cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por uma relação distinta da individualidade segurada e o seguro de grupo envolve dois momentos: 1.º Quando se concretiza o contrato entre o segurador e o tomador do seguro; 2.º Quando os segurados aderem ao contrato de seguro. III. O contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, celebrado entre a ré/recorrente “CC-Seguros Gerais, S.A.” e a “Ordem dos Advogados, S.A.”, titulado pela apólice de seguro 600…, garantindo a indemnização de prejuízos causados a terceiros pelos advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados que exerçam actividade em prática individual ou societária, por dolo, erro, omissão ou negligência profissional”, configura um contrato de seguro de grupo. Conferindo o que está estatuído no n.º 4 do art.º 101.º do Dec. Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril - o disposto nos n.ºs 1 e 2 não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações que efectuar, com os limites referidos naqueles números - havemos de discorrer que, estando nós perante a perscrutação de saber se existe responsabilidade da ré/seguradora no contexto daquele pormenorizado contrato de seguro de grupo firmado com a Ordem dos Advogados (tomadora de seguro), não é permitida à recorrente “CC - Seguros Gerais, S.A.” que oponha à ré Dr.ª BB (Advogada), lesada/beneficiária do seguro celebrado, as excepções de direito material fundadas na relações estabelecidas entre Ordem dos Advogados (a tomadora do seguro) e a beneficiária do seguro (Dr.ª BB), relativamente às excepções que se prendam com o incumprimento, por parte do segurado ou do tomador de seguro, de deveres contratualmente fixados. Contesta a recorrente/seguradora que ao caso se possa aplicar este normativo legal. No seu entendimento, a exclusão do pré-conhecimento do sinistro, consignada na alínea a), do art.º 3, das Condições Especiais da Apólice - ficam expressamente excluídos da cobertura das apólices as reclamações "por qualquer facto ou circunstância conhecida da seguradora à data do início do período seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar reclamação" - faz excluir da cobertura da referida apólice o sinistro reclamado: - Tendo o contrato sido celebrado nos inícios de Janeiro de 2014 e tendo as omissões apontadas à ré Advogada ocorrido anteriormente a Janeiro de 2014 - foi por despacho datado de 02/07/2013 que a ré/advogada foi notificada do indeferimento do requerimento de prorrogação do prazo para apresentação de contestação - sendo os factos consubstanciadores da pretensa responsabilidade da ré advogada conhecidos da mesma, pelo menos, desde 02/12/2013, encontra-se o sinistro excluído da cobertura da referida apólice, conclui a seguradora. Contra esta perceção interpretativa responde a ré/recorrida (Advogada) com o que dispõe o ponto 7. das condições particulares da apólice, a propósito do seu "âmbito temporal": "O segurador assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador de seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, coberta pela presente apólice, e, ainda, que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice, e sem qualquer limitação temporal de retroactividade.". A razão está do lado da Ex.ma Advogada beneficiária do seguro. Nos termos desta disposição contratual e em termos genéricos, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, estão abrangidos por este seguro todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador de seguro. Contrapondo-a à apólice de ocorrência (para fins de indemnização, o fato causador do dano ou prejuízo a terceiros deve ocorrer durante a vigência do contrato), podemos dizer a este propósito que estamos perante uma apólice de reclamações, também chamada “claims made” (“reclamação feita”), que condiciona o pagamento da indemnização à apresentação da queixa de terceiros durante o prazo de validade (vigência) do contrato e que possibilita a extensão da cobertura por um determinado período anterior ao início do contrato. Estamos agora em condições de, inequivocamente, confirmar que a ré/recorrente “CC - Seguros Gerais, S.A.” não pode invocar contra o demandante a exclusão da cobertura da apólice baseada na alínea a), do art.º 3, das Condições Especiais da Apólice. Concluindo: 1. O seguro de responsabilidade civil de advogado estabelecido no n.º 1 do art.º 104.º do EOA é de natureza obrigatório. O elemento filológico de interpretação tirado do sentido das palavras que integram o texto descrito no n.º 1 do art.º 104.º do EOA e também a “ratio” que superintendeu à redação deste texto normativo, apontam no sentido da obrigatoriedade do seguro do Advogado no exercício do seu cargo, mais precisamente que tem natureza imperativa o seguro de responsabilidade civil do advogado prescrita no seu estatuto. 2. O contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, celebrado entre a ré/recorrente “CC - Seguros Gerais, S.A.” e a “Ordem dos Advogados, S.A.”, garantindo a indemnização de prejuízos causados a terceiros pelos advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados que exerçam actividade em prática individual ou societária, configura um contrato de seguro de grupo. 3. Tomando o que dispõe o ponto 7. das condições particulares da apólice, a propósito do seu "âmbito temporal", dele depreendemos em termos genéricos que, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, estão abrangidos por este seguro todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador de seguro. 4. Contrapondo-a à apólice de ocorrência (para fins de indemnização o fato causador do dano ou prejuízo a terceiros deve ocorrer durante a vigência do contrato), podemos afirmar que estamos perante uma apólice de reclamações, também chamada “claims made” (“reclamação feita”), que condiciona o pagamento da indemnização à apresentação da queixa de terceiros durante o prazo de validade (vigência) do contrato e que possibilita a extensão da cobertura por um determinado período anterior ao início do contrato.
Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente. Supremo Tribunal de Justiça, 14 de dezembro de 2016. António da Silva Gonçalves (Relator) António Joaquim Piçarra Fernanda Isabel Pereira _________________________ [1] Artigo 104.º, n.º 3 do EOA: - O disposto no número anterior não se aplica sempre que o advogado não cumpra o estabelecido no n.º 1 ou declare não pretender qualquer limite para a sua responsabilidade civil profissional, caso em que beneficia sempre do seguro de responsabilidade profissional mínima de grupo de (euro) 50 000, de que são titulares todos os advogados não suspensos. |